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O SENTIDO DA MEDITAÇÃO FILOSÓFICA - MIGUEL REALE (1910- 2006) E A INFLUÊNCIA RECEBIDA DE HARTMANN E MONDOLFO RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS “PAULINO SOARES DE SOUSA”, DA UFJF. INSTITUTO BRASILEIRO DE FILOSOFIA SÃO PAULO. RIVE2001@GMAIL.COM O Brasil perdeu seu maior filósofo contemporâneo: Miguel Reale. O falecimento do mestre paulista, no entanto, não significa que a sua obra cairá no esquecimento. A meditação de Reale fecundou de maneira indelével a nossa cultura filosófica, de forma tal que, hoje, não poderíamos pretender identificar a meditação nacional, sem fazermos referência obrigatória ao sistematizador da Corrente Culturalista e criador do Instituto Brasileiro de Filosofia. Reale deu prosseguimento, entre nós, à superação do vício apologético, que Tobias Barreto denominou de “Filosofia em mangas de camisa”. No clima de tolerância intelectual que imprimiu ao Instituto, desde a sua fundação, em 1949, tiveram cabida, ao longo de todos estes anos, os representantes das mais variadas correntes de pensamento que se consolidaram no Brasil. Tivemos acolhida, também, nós, os pertencentes às novas gerações de estudiosos da meditação brasileira, em que pese a nossa inexperiência e as dificuldades enfrentadas nas várias Universidades, para encontrarmos veículos de divulgação dos nossos escritos. Reale estimulava e acolhia, com generosidade, a contribuição das novas gerações. Daí porque os jovens sentiam-se tão à vontade na proximidade do grande Mestre. Testemunhei isso em Congressos e Seminários, os mais variados, ao longo do país. Era espírito jovem que pulsava com os jovens. Talvez, por isso, os burocratas do pensamento o odiassem tanto. Burocratas sediados nas Universidades e nos Ministérios. Os patrulheiros ideológicos jamais perdoaram ao velho professor a sua ousadia crítica. No Brasil dos clãs e das patotas, Reale era uma exceção de abertura e de solidariedade intelectual.

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O SENTIDO DA MEDITAÇÃO FILOSÓFICA - MIGUEL REALE (1910-2006) E A INFLUÊNCIA RECEBIDA DE

HARTMANN E MONDOLFO

RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ

COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS “PAULINO SOARES DE SOUSA”, DA UFJF.

INSTITUTO BRASILEIRO DE FILOSOFIA – SÃO PAULO. [email protected]

O Brasil perdeu seu maior filósofo contemporâneo: Miguel Reale. O falecimento do mestre paulista, no entanto, não significa que a sua obra cairá no esquecimento. A meditação de Reale fecundou de maneira indelével a nossa cultura filosófica, de forma tal que, hoje, não poderíamos pretender identificar a meditação nacional, sem fazermos referência obrigatória ao sistematizador da Corrente Culturalista e criador do Instituto Brasileiro de Filosofia.

Reale deu prosseguimento, entre nós, à superação do vício apologético, que Tobias Barreto denominou de “Filosofia em mangas de camisa”. No clima de tolerância intelectual que imprimiu ao Instituto, desde a sua fundação, em 1949, tiveram cabida, ao longo de todos estes anos, os representantes das mais variadas correntes de pensamento que se consolidaram no Brasil. Tivemos acolhida, também, nós, os pertencentes às novas gerações de estudiosos da meditação brasileira, em que pese a nossa inexperiência e as dificuldades enfrentadas nas várias Universidades, para encontrarmos veículos de divulgação dos nossos escritos. Reale estimulava e acolhia, com generosidade, a contribuição das novas gerações. Daí porque os jovens sentiam-se tão à vontade na proximidade do grande Mestre. Testemunhei isso em Congressos e Seminários, os mais variados, ao longo do país. Era espírito jovem que pulsava com os jovens. Talvez, por isso, os burocratas do pensamento o odiassem tanto. Burocratas sediados nas Universidades e nos Ministérios. Os patrulheiros ideológicos jamais perdoaram ao velho professor a sua ousadia crítica. No Brasil dos clãs e das patotas, Reale era uma exceção de abertura e de solidariedade intelectual.

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Uma homenagem ao saudoso Mestre. Quero, nestas páginas, lembrar apenas um dos aspectos mais marcantes de sua obra, aquele que diz relação à forma em que se dá o pensamento filosófico contemporâneo, que surge como meditação sobre os problemas que a ciência deixou de lado, aqueles que, por irresolúveis, atrapalham a positividade do saber: morte, finitude, felicidade, amor. Eis os grandes escolhos sobre os quais se debruça, com afinco, a filosofia. Destacarei, na minha exposição, dois pontos: em primeiro lugar, a influência que Reale recebe de dois grandes vultos do pensamento do século XX: Nicolai Hartmann (1882-1950) e Rodolfo Mondolfo (1877-1976), influência que o leva a pensar a Filosofia como Problema. Em segundo lugar, tratarei da aplicação que Reale faz dessa versão da Filosofia, no que tange ao estudo das Filosofias Nacionais, particularmente da Filosofia Brasileira.

Miguel Reale, o maior pensador brasileiro do século XX.

A HERANÇA RECEBIDA DE HARTMANN E MONDOLFO: A FILOSOFIA COMO PROBLEMA

A filosofia no mundo de hoje é pensada ao redor de problemas. Nicolai Hartmann foi quem primeiro assinalou o papel daqueles na meditação filosófica. O seu pensamento estruturou-se a partir dos postulados da Escola de Marburgo, mas acabou por se separar do idealismo lógico daquela Escola, bem como do neo-kantismo, por influência imediata de Husserl e Scheler, mas também, segundo o próprio filósofo destaca, graças à retomada, por ele, da antiga tradição metafísica presente na obra de Aristóteles. Hartmann destaca que na elaboração da sua proposta filosófica influiu a leitura das obras de Kant e de Hegel, notadamente no que tange à discussão das raízes ontológicas que são pressupostas no pensamento desses filósofos.

A formulação de uma nova ontologia amadurece, no pensamento de Hartmann, por

volta de 1919. As primeiras obras nas quais o autor expôs essa teoria são Metaphysik der Erkenntnis (1921) e Ethik (1925). Nos anos seguintes, Nicolai Hartmann publicou a sua obra dedicada à lógica, sob o título de Studien zur Logik (1931 a 1944), cujo manuscrito terminou se perdendo no meio à agitação vivida na Alemanha, no final da II Guerra Mundial.

Não há dúvida de que Hartmann é um dos autores que mais têm influído na filosofia

do século XX. Possuía o que denominaríamos hoje de ética da responsabilidade intelectual, num meio em que pairavam as idéias do totalitarismo e da despersonalização. Dessa inspiração ética, profundamente enraizada na tradição kantiana, dá testemunho a sua convicção de que não pode haver consciência alguma sobranceira à pessoa singular. Para

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Hartmann, unicamente o espírito pessoal é dotado de intuição, bem como da capacidade de assinalar fins. Essa sua enraizada convicção intelectual levou-o a não ceder nunca às modas intelectuais, se norteando unicamente pela procura sempre renovada da verdade.

A essência da posição de Hartmann, no que tange à teoria do conhecimento,

consiste na afirmação do caráter histórico dos grandes problemas da Filosofia, que constituem problemas-limite, comuns a todas as ciências, e que são, no fundo, problemas metafísicos atrelados a um núcleo irracional e insolúvel. Hartmann utilizou na sua meditação o método fenomenológico, mas desatrelando-o da redução transcendental, tendo unicamente adotado a redução ao eidos. Graças a isso, para Hartmann, o fenômeno não exclui a aporética, mas ao contrário torna possível o acesso à Filosofia. À descrição fenomenológica segue-se, em primeiro lugar, para Hartmann, a prática dos métodos analítico e dialético, que constituem uma perspectiva de caráter horizontal dos fenômenos (livre da dimensão triádica da dialética hegeliana); em segundo lugar vem o método sintético que, no nível mais alto da intuição, possibilita a unificação das categorias, dando ensejo à descoberta de todos os atos alicerçados em outros de nível inferior. Nicolai Hartmann conferiu tal grau de importância ao método eidético, que terminou confundindo redução ao eidos com a própria epoché fenomenológica. [Cf. Fraga, 1990: 2, 1010-1014].

O cerne da ontologia de Harmann é a sua teoria dos modos de ser ou análise modal,

que o pensador alemão expõe na obra intitulada Mögichkeit und Wirklichkeit (1938). Nesta obra, o pensador explica as leis fundamentais que regulam as relações de possibilidade e realidade, necessidade e acidentalidade, impossibilidade e não realidade. A lei real da necessidade é formulada nos seguintes termos: "o que é realmente possível também é realmente necessário". Essa lei deriva do antigo princípio metafísico de que o ser não pode provir do não ser ou, em outros termos, de que a possibilidade do ser não é simultaneamente possibilidade do não ser. Hartmann formula, ademais, a lei ou fórmula "de identidade", que reza assim: "as condições de possibilidade real de uma coisa são simultaneamente as condições da sua necessidade real" [Apud. Fraga, 1990: 2, 1010-1014]. Esta lei exprime uma convicção contrária ao conceito popular de possibilidade, que foi aceito pela ontologia tradicional, desconhecendo o rigor que os pre-socráticos (de Megara) conferiam ao conceito de possibilidade. A lei real da necessidade não implica, no entanto, para Hartmann, um determinismo total do mundo, mas apenas o que ele denomina de uma sobreposição de várias formas de determinação [cf. Fraga, ibid.].

Nicolai Hartmann (1882-1950), que focalizou a criação filosófica como discussão de problemas.

Em que pese o fato da concessão que Hartmann faz à perspectiva realista na sua ontologia (difícil de justificar teoricamente, uma vez aceitos os princípios do neo-kantismo), um aspecto contudo deve ser ressaltado: em face da complexidade do mundo, é necessário reconhecer que o pensamento moldado em sistemas está fora de jogo. A respeito, escreve o filósofo alemão em Autoexposição sistemática [Hartmann, 1989: 4]:

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Explicar o espírito a partir da matéria ou entender a matéria a partir do espírito, o ser a partir da consciência; reduzir o organismo ao mecanismo ou fazer passar o acontecer mecânico por uma vitalidade encoberta, tudo isso e muito mais é hoje uma coisa impossível de se realizar. Isso contradiz já nos primeiros passos o que com segurança sabemos nos domínios especiais. O pensamento construtivo ficou fora de jogo. Embora os pensadores contemporâneos não renunciem a uma busca de nexo

sistemático entre os fenômenos, Hartmann considera, no entanto, que essa pressuposição deve ser abandonada como ponto de partida. O que a meditação filosófica faz, no seu início, é tomar consciência de uma complexidade do mundo, que o autor alemão não duvida em identificar como perspectiva problemática do pensar.

Ao pensamento sistemático construtivo Hartmann contrapõe o pensamento

problemático investigador. Essas duas grandes linhas epistemológicas são claramente identificáveis na história da Filosofia ocidental. Embora encontremos pensadores mais afinados com a perspectiva sistemática (como Plotino, Proclo, Tomás de Aquino, Duns Scot, Hobbes, Espinosa, Fichte, Schelling) e outros mais próximos da visão problemática (como Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Leibniz, Kant), em todos eles a meditação filosófica emerge a partir da base dos problemas metafísicos, que são os que acompanham a perplexidade da mente humana diante do mistério do Ser.

Em geral, escreve Hartmann, o morto e o simplesmente histórico pertencem ao pensar sistemático; pelo contrário, o supra-histórico e o vital pertencem ao pensar problemático puro. Nele se encontram as aquisições da história do pensamento [Hartmann, 1989: 7]. Os historiadores da filosofia e os comentaristas deformaram, infelizmente, o

pensamento de Platão, apresentando-o como decorrente de uma visão sistemática pré-concebida. Ora, nada mais afastado do grande filósofo grego do que essa preguiçosa concepção sistemática. Nele era fundamental, antes de mais nada, a perplexidade em face do Ser, a dimensão da dúvida, que o levava a considerar como cosmogonias mitológicas as concepções herdadas dos seus antepassados. É necessário recuperar, frisa Hartmann, a dimensão problemática da filosofia platônica, para que saibamos valorar a sua criatividade. Platão, ao manter viva a perplexidade diante do real, deu vida à meditação filosófica, abrindo a porta para a interrogação e a elaboração de novos caminhos.

Hartmann considera necessário, de outro lado, recuperar a valoração problemática

da meditação aristotélica, que parte da aporética e que se encaminha para a construção de um sistema de pensamento. Acontece que a sistematização escolástica empobreceu essa dimensão dinâmica da meditação do estagirita, ressaltando o momento sistemático e esquecendo o ponto de partida problemático. Três razões explicariam, nos historiadores da filosofia, essa pressa em valorar o sistema por cima dos problemas: em primeiro lugar, a impaciência para descobrir soluções custe o que custar; em segundo lugar, a pressuposição (falsa) de que problemas insolúveis são filosoficamente inúteis; em terceiro lugar, o menosprezo em face das perguntas irrecusáveis.

Em relação à primeira razão, Hartmann considera que é muito mais filosófico legar

aos nossos discípulos perguntas sem responder, do que pretender construir, a qualquer

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preço, respostas sistemáticas para tudo. Em relação à segunda razão, o filósofo alemão considera que os problemas insolúveis são filosoficamente úteis. A história do pensamento ocidental mostra que o verdadeiro progresso advém da abertura à indagação e do questionamento às soluções já adquiridas. Ora, as ciências somente progridem em face do princípio da refutabilidade que nos leva a adotar, perante o que recebemos dos nossos antepassados, uma atitude não de subserviência, mas de crítica. O drama dos dogmatismos, estreitamente ligados aos totalitarismos no mundo contemporâneo, consiste justamente no fato de eliminarem a dúvida e o pensamento crítico. Em relação à terceira razão, Hartmann destaca que há problemas que foram colocados num determinado momento e que jamais seria possível colocá-los antes. A formulação de indagações está sempre ligada a determinadas condições históricas irrepetíveis, bem como a um determinado estado do saber. Enquanto os filósofos estiverem preocupados unicamente com a dimensão sistemática, não perceberão o sentido dos eternos e irrecusáveis conteúdos problemáticos, que ancoram na perplexidade diante da realidade. Assim, frisa Hartmann, "acontece que é necessária previamente uma reflexão especial sobre a linha histórica do pensamento problemático, que se oculta por trás da fachada dos sistemas, para garantirmos aqueles conteúdos" [Hartmann, 1989: 13]

Os eternos e irrecusáveis conteúdos problemáticos: esse constitui o ponto de partida

do filosofar. Ora, destaca Hartmann, esses eternos e irrecusáveis conteúdos emergem da consciência perplexa pela complexidade do real, que constitui um fenômeno básico não impugnável. "Os fenômenos, escreve, são sempre mais fortes do que as teorias. O homem não pode mudar os fenômenos; o mundo permanece como é, qualquer que seja o pensamento do homem sobre ele. O homem pode somente apreendê-lo ou errar em relação a ele" [Hartmann, 1989: 14].

Hartmann propõe um método progressivo para a razão não se afastar da realidade e

construir as suas teorias sem falsear a apreensão dos fenômenos. O primeiro passo é constituído pela descrição fiel dos fenômenos. O segundo consiste na aporética ou estudo dos problemas enquanto constituem o incompreendido dos fenômenos, explicitando com claridade as aporias naturais; este passo deve levar em consideração o estado da pesquisa respectiva. O terceiro passo, por fim, consiste na teoria, ou abordagem da solução das aporias. Em relação à metodologia proposta, o filósofo alemão escreve:

Essa progressão: fenomenologia, aporética, teoria, não pode ser abreviada. Os dois primeiros graus, tomados cada um em si, constituem um amplo campo de trabalho, uma ciência inteira. E precisamente porque nenhum dos dois é o definitivo e verdadeiro, recai sobre eles a maior ênfase. O seu campo de trabalho é aquele onde os sistemas construtivos têm pecado. Estes precisamente ficaram curtos demais. E justamente por isso as teorias repousavam sobre bases frágeis. Aqui é preciso criar fundamentos sólidos -- não os fundamentos objetivos da teoria (que devem ser encontrados preferentemente só quando começa o estudo das aporias), mas os pontos de partida do conhecimento, enquanto deve ser algo mais do que simples descrição do encontrado anteriormente. No relativo ao terceiro grau, deve consistir num tratamento puro das aporias destacadas, e certamente com base no mesmo resultado presente nos fenômenos. Esse tratamento ou estudo não é mais do que uma solução das aporias. Somente pode tender em direção a uma solução. De antemão não pode dizer nem como resultará a solução, nem se alguma é possível absolutamente. O estudo das aporias é algo muito diferente quando pode se alicerçar num limpo trabalho prévio, realizado sobre o fenômeno e o problema, e quando parte sem mais de algo supostamente dado. Os problemas vistos com ingenuidade foram colocados na maior parte das vezes de forma inadequada, e atingem a

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realidade só de forma periférica. Pois a colocação problemática condicionada toma-se possível graças ao conteúdo problemático objetivo. Dessa forma misturam-se muitas aporias artificiais e as naturais são encobertas. Mas, antes de mais nada, somente depois de efetivado o trabalho da aporética, resulta possível dar novamente à teoria mesma o seu valor e sentido original [Hartmann, 1989: 16-17]. A radical inadequação entre o nosso pensamento e a realidade presente no mundo

dos fenômenos, essa seria, no sentir de Hartmann, a metafísica dos problemas, a partir da qual tentamos, de várias formas, explicar a realidade (dando ensejo aos sistemas), sem que contudo consigamos nunca dar conta dela. Eis a raíz do que hoje denominamos de modéstia epistemológica, única atitude condizente com a busca diuturna da verdade.

Retomando os conceitos desenvolvidos por Hartmann, o pensador italiano Rodolfo

Mondolfo tematizou, por sua vez, o papel da indagação dos problemas na criação filosófica. A consciência da insuficiência dos nossos conceitos, esse seria o ponto de partida de uma autêntica reflexão. A respeito, escreve Mondolfo:

Na aquisição de conhecimentos e na reflexão intelectual, sempre acontece tropeçarmos com dificuldades que se baseiam no reconhecimento de faltas e imperfeições em nossas noções, cuja insatisfação, portanto, nos suscita problemas. E daí surge a investigação, isto é, pela consciência de um problema, cuja solução nos sentimos impelidos a procurar, estando justamente a indagação voltada para a solução do problema, que nos foi apresentado [Mondolfo, 1969: 30]. O pensador italiano considera que o sucesso da investigação filosófica decorre, sem

lugar a dúvidas, da clareza com que tenha sido colocado o respectivo problema. É o ponto que os escolásticos chamavam de status quaestionis, que era colocado antes da elaboração doutrinária, na tradicional Lectio. Em relação a esse aspecto, Mondolfo escreve:

A fecundidade do esforço investigador é proporcional à clareza e à adequação da formulação do problema; de maneira que a primeira exigência imposta ao investigador é a de conseguir, da melhor maneira possível, uma consciência clara e distinta do problema, que constitui o objeto de sua indagação. Esta exigência é válida preliminarmente para qualquer espécie de investigação, porém o é, sobretudo, na filosofia, sendo a filosofia antes de mais nada -- como já Sócrates o ressaltava-- consciência da própria ignorância, isto é, da existência de problemas que exigem o esforço da mente na procura de uma saída dessa situação de mal-estar e de insatisfação [Mondolfo, 1969: 30]. Na trilha da perspectiva genética apontada por Vico ("a natureza das coisas é o seu

nascimento"), Mondolfo escreve:"toda a investigação teórica que quiser encontrar seu caminho com maior segurança, supõe e exige, como condição prévia, uma investigação histórica referente ao problema, a seu desenvolvimento e às soluções que foram tentadas para resolvê-lo" [Mondolfo, 1969: 30-31].

O filósofo italiano Rodolfo Mondolfo (1877-1976), que aprofundou na caracterização, feita por Hartmann, da criação

filosófica como discussão de problemas.

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Mondolfo considera que a perspectiva problemática atrela-se à essência da pesquisa filosófica. Aparentemente haveria oposição entre a tarefa do historiador (inquiridor da verdade sub specie temporis) e a do filósofo, (perscrutador da alétheia sub specie aeterni). No entanto, a esta última só se chega pela porta estreita da historicidade, pois como frisa Karl Jaspers [1980: 34], "se saíssemos da História tombaríamos no nada". A respeito deste ponto, escreve Mondolfo:

Com efeito, podemos distinguir um duplo aspecto na filosofia, conforme ela se apresente

como problema ou como sistema. Como sistema, é evidente que o pensamento filosófico, apesar de sua pretensão, sempre asseverada, de uma contemplação sub specie aeterni, não consegue, na realidade, afirmar-se a não ser sub specie temporis, isto é, necessariamente vinculado à fase de desenvolvimento espiritual própria de sua época e de seu autor, e destinado a ser superado por outras épocas e outros autores sucessivos. Ao contrário, quanto aos problemas que suscita, o pensamento filosófico, ainda que esteja sempre subordinado ao tempo em sua geração e desenvolvimento progressivo, apresenta-se, no entanto, como uma realização gradual de um processo eterno. Com efeito, os sistemas passam e caem; porém, os problemas formulados sempre permanecem como conquistas da consciência filosófica, conquistas imperecíveis, apesar da variedade das soluções tentadas e das formas pelas quais tais problemas são propostos, pois esta variação representa um aprofundamento progressivo da consciência filosófica. Dessa maneira, a reconstrução histórica do desenvolvimento da filosofia aparece como um reconhecimento do caminho percorrido pelo processo de formação progressiva da consciência filosófica, o que vale dizer, como uma conquista da autoconsciência [Mondolfo, 1969: 33-34]. Há evidentemente, para Mondolfo, uma lógica da história da filosofia. Nesse

aspecto, o pensador italiano assume as teses fundamentais de Hegel nas suas Lições de História da Filosofia. Há um fio condutor na história do pensamento humano. Ora, esse fio corresponde à estrutura lógica da razão que busca, no meio aos fatos e aos fenômenos, se manter idêntica a si mesma. Daí por que Mondolfo considera que

A história da filosofia não pode, de maneira alguma, ser considerada como uma sucessão de criações contraditórias, que negam cada uma o que a outra afirmava, ou constróem ao seu bel-prazer um edifício destinado a ser derrubado, a fim de deixar seu lugar para outra construção, que será igualmente demolida como produto arbitrário de uma fantasia caprichosa [Mondolfo, 1969: 57-58]. Em decorrência dessas observações no terreno da historiografia da filosofia,

Mondolfo considera que se deve elaborar um método de pesquisa que respeite a essência da dimensão problemática da meditação ocidental. A respeito, Mondolfo [1969: 261] escreve:

Devemos reviver em nossa consciência a experiência filosófica da humanidade passada, tanto em seu conjunto, quanto na individualidade de cada pensador. E para viver de novo cada sistema temos que realizar o máximo esforço, a fim de colocarmo-nos na situação espiritual em que se encontrava o filósofo que o criou, isto é, temos que reproduzir em nossa interioridade a consciência dos problemas que preocupavam a sua época, assim como as exigências particulares de sua personalidade, compenetrando-nos de seu processo de formação e de sua vida interior. E quando, nos filósofos que são objeto de nosso estudo, esta vida interior [tiver sido] muito intensa e ativa, deparamo-nos geralmente com um movimento contínuo de aprofundamento, renovação e evolução espirituais, que reúne, por assim dizer, múltiplas personalidades sucessivas numa única pessoa, o que complica e dificulta a tarefa do intérprete que procura a reconstrução histórica. O pensador italiano frisa que no estudo historiográfico da filosofia deve-se

reconhecer, como aspecto fundamental, o progresso contínuo do espírito humano. Mas esse

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fato não reduz a cinzas as conquistas dos nossos antecessores. Elas serão sempre importantes, como a escada que nos permitiu subir mais alto para enxergar, numa maior altura, o horizonte. Continua presente, aqui, a convicção filosófica de Hegel no progresso do espírito humano. A respeito, frisa Mondolfo [1969: 263]:

Naturalmente, não ficam anulados ou destruídos os resultados das investigações e intuições

de Hegel ou de Zeller, ou de outros grandes historiadores, por serem superados pelas indagações sucessivas, cuja realização foi condicionada e estimulada por eles próprios. O processo de superação, como pensava Hegel, sempre outorga uma verdade mais profunda ao que foi superado, o qual permanece vital e ativamente nas raízes dos novos resultados, cuja obtenção tornou possível, impulsionando-os para a sua realização. Neste aspecto, devemos expressar nosso respeito e reconhecimento para com os grandes historiadores do passado, cujo estudo será sempre ponto de partida e fonte de fecundas sugestões - positiva ou negativamente, por meio da aceitação ou da oposição que provoca, das soluções que indica ou dos problemas que formula - para os novos investigadores. A ORIGINALIDADE DA FILOSOFIA COMO PROBLEMA, SEGUNDO MIGUEL REALE No contexto da reflexão crítico-histórica desenvolvida por Miguel Reale, abriu-se

fecunda perspectiva para analisar, de forma clara e objetiva, os principais problemas que afetam ao homem contemporâneo. Por esse caminho vai se identificando a forma brasileira de abordar a existência humana do ângulo filosófico, sendo que hoje podemos falar, como frisa com propriedade Zdenek Kourim [1997: 425] de uma autêntica "emancipação intelectual" do nosso país.

Miguel Reale parte do fato de que a criação filosófica contemporânea ocorre

preferencialmente sob a forma de meditação sobre problemas e não como formulação das grandes perspectivas transcendente e transcendental (que já foram fixadas por Platão e por Kant, respectivamente), ou como construção de sistemas (modalidade adotada pela meditação filosófica ocidental até o final do século passado). A partir daí, o nosso autor formula um método que permite a análise da meditação filosófica brasileira e latino-americana como discussão de problemas, superando o vício do engajamento apologético, que condena ou hiper-valoriza autores, de acordo com as preferências axiológicas do estudioso e vencendo, de outro lado, a atitude puramente analítica, que reduz a filosofia ao estudo dos clássicos, sem, contudo, reconhecer aos pensadores brasileiros e latino-americanos a capacidade de meditar sobre a própria realidade.

Capa da edição brasileira da obra de Miguel Reale intitulada Pluralismo e Liberdade, ferozmente censurada pelas patrulhas

marxistas nas Universidades brasileiras, no final da década de 1970.

No seu ensaio intitulado “A doutrina de Kant no Brasil” [1949] o filósofo brasileiro já tinha destacado o fato de o pensamento kantiano ter tido no Brasil um desenvolvimento criativo, em estreita relação com a reflexão dos nossos pensadores sobre as circunstâncias

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particulares da história brasileira. O criticismo kantiano, observa Reale no mencionado ensaio, não entrou no Brasil simplesmente como cópia das idéias do filósofo de Königsberg (hipótese que Clóvis Bevilacqua [1929: 5-14] tentou provar no seu trabalho dedicado à saga da doutrina kantiana em terras brasileiras), mas penetrou de forma viva e criativa. A respeito, escreve Miguel Reale [1949: 55]:

A doutrina de Kant, no que ela possui de perenemente vital, não se presta a essas recepções

fáceis nem pode ser convertida em um conjunto cerrado de princípios. O criticismo é antes um método, uma atitude ou posição espiritual. É um ponto de partida para a pesquisa criadora; mais uma forma de inquietação e de crise estimativa do que de plenitude e suficiência. Daí poder-se dizer que a presença de Kant, ao menos como motivo de filosofar, constitui um sinal de densidade cultural, como certas roupagens vegetais assinalam as terras ricas de húmus. A compreensão de Kant não permite, em verdade, uma atitude ou forma cômoda de filosofar sem excessiva filosofia, sem serem empenhadas a fundo as nossas mais subtis capacidades de inteligência em um trabalho perseverante e metódico. A filosofia clássica é, portanto, para o pensador brasileiro, não uma muralha que

impede o vôo do espírito, mas antes uma trilha aberta, que nos convida a caminhar por ela, iluminando a problemática que vivemos com os seus ensinamentos. Em relação a esse posicionamento, Antônio Paim assume posição semelhante à de Reale. Se referindo à questão da filosofia como problema, Paim [1981: 92] escreveu:

A filosofia é certamente um saber especulativo, que se volta para uma problemática que, embora renovada através do tempo, se tem revelado perene em contraposição à alternância dos sistemas. Esses problemas, contudo, têm sempre a ver com a circunstância cultural. De sorte que o caráter especulativo da filosofia não pode ser arrolado como simples diletantismo, como se a filosofia não tivesse nenhum compromisso com a temporalidade e as angústias de determinado momento da cultura de um povo. Em relação à metodologia formulada por Miguel Reale para possibilitar a pesquisa

da História das idéias filosóficas, Antônio Paim [1981: 92] escreveu: O método sugerido por Miguel Reale para a investigação da filosofia brasileira compõe-se dos seguintes elementos: 1) identificar o problema (ou os problemas) que tinha pela frente o pensador, prescindindo da busca de filiações a correntes que lhes são contemporâneas no exterior; 2) abandonar o empenho de averiguar se o pensador brasileiro interpretou adequadamente as idéias de determinado autor estrangeiro, mais expressamente, renunciar ao confronto de interpretações e, portanto, ao cotejo da interpretação do pensador brasileiro estudado com outras interpretações possíveis, para eleger entre uma ou outra; e 3) ocupar-se preferentemente da identificação de elos e derivações que permitem apreender as linhas de continuidade real de nossa meditação. Convém indagar, a esta altura, como fundamenta Reale a metodologia apontada. Ao

meu entender, o autor concebe a história das idéias como um desdobramento da “reflexão crítico-histórica” por ele analisada em Experiência e Cultura [Reale, 1977: 126 seg.].

No contexto da original interpretação que o pensador paulista realiza da

fenomenologia husserliana, à luz da herança transcendental kantiano-hegeliana, ele destaca a correlação in fieri do subjetivo e do objetivo na subjetividade concreta.

Em verdade -- frisa a respeito Miguel Reale [1977: 27] -- se a consciência intencional se

dirige sempre para algo, visando à conversão de algo em objeto, e se este, enquanto objeto, não se

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distingue daquilo que se oferece à consciência, não se pode considerar ‘puramente subjetivo’ o momento culminante do processo eidético. Parece-me, ao contrário, que a ‘reflexão fenomenológica’ é necessária e intrinsecamente subjetivo-objetiva, isto é, ontognoseológica, consoante terminologia que julgo mais adequada para indicar o âmbito em que se dão todos os atos cognoscitivos e as volições do homem em sua perene e dinâmica relação com a natureza, assim como na trama de seus próprios conhecimentos e volições e do percebido e querido por ‘um eu’ e ‘outro eu’ .Na subjetividade transcendental já está, por assim dizer, in nuce, a experiência ontognoseológica, o processo de significações ou ‘intencionalidades objetivadas’ que são a realidade da ‘cultura’. Consciência intencional ou temporalidade ou historicidade, longe de serem antitéticas, são, pois, expressões que se exigem e se complementam. Ora, se consciência intencional e historicidade são expressões dialéticas e

complementares, a “reflexão crítico-histórica” é, para Miguel Reale, o momento culminante do processo ontognoseológico, que é, essencialmente, “reflexão ambivalente”, no seio da qual “quanto mais se desvelam as fontes da subjetividade mais se capta o sentido da objetividade” [Reale, 1977: 129]. Somente assim, considera o nosso autor, é possível salvaguardar os dois aspectos básicos destacados pela fenomenologia na dinâmica do conhecimento: o da subjetividade e o da objetividade (ou “mundo do viver comum”, ou “mundo da originariedade natural”).

Capa da obra de Miguel Reale intitulada Teoria Tridimensional do Direito, na qual o filósofo paulista senta as bases

filosóficas para o estudo do Direito, analisando-o à luz de três variáveis: fato, valor e norma.

É conhecida a forma clara e contundente com que o pensador brasileiro aplica o conceito de “reflexão crítico-histórica” ao filosofar, quando reflete sobre a doutrina da Lebenswelt husserliana. Para Miguel Reale é claro que

Nenhum conhecimento ou nenhuma Filosofia tem sentido fora do diálogo da história, ou sem consciência da historicidade do homem e de suas idéias, de sorte que o desconhecimento do valor da História equivale a abdicar da Filosofia, da cultura e do sentido da própria vida [Reale, 1977: 130-131]. Esta concepção insurge-se contra a denominada por Husserl “Filosofia da

decadência” (Verfallphilosophie), que pratica a “retirada do mundo” e que “espelha um fenômeno de massa” ao olvidar o “espírito de responsabilidade pessoal e radical inerente ao ethos da autêntica Filosofia” [Reale, 1977: 131]. O pensador já pressentia, sem dúvida, há vinte anos atrás, quando escrevia estas palavras em Experiência e Cultura, o fenômeno de alienação protagonizado hodiernamente pela moda analítica que se pratica nas corporações autistas e pseudofilosofantes, em que infelizmente se converteram não poucos departamentos de filosofia das Universidades brasileiras.

À luz da “reflexão crítico-histórica” proposta por Miguel Reale, o filosofar

brasileiro teria, basicamente, duas tarefas: identificar os temas-chave da filosofia ocidental e, em segundo lugar, refletir, à luz desse legado, sobre a própria problemática histórica. Valeria aqui lembrar rapidamente a forma em que Hegel [1981: 41 seg.] entendia o estudo

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da filosofia, pois o autor brasileiro aproxima-se neste ponto do filósofo alemão. Se, por um lado, a análise das filosofias nacionais e dos sistemas deve ser objeto de estudo da história da filosofia, no sentir de Hegel, a inquirição, contudo, não pára aí. Momento fundamental da dialética da razão é constituído, também, pela busca da identidade dela consigo mesma, ao que só se pode chegar mediante a integração das várias filosofias nacionais e dos sistemas numa visão de conjunto que, revelando as diferenças históricas, explicite também, o fundo comum que as une, a força e a lógica do espírito humano na busca da sua identidade. Para utilizar o belo símil colocado pelo ilustre pensador português Antônio Braz Teixeira, o fato de ter pernas que repousam sobre a terra, não tira à ave a capacidade de voar até os céus. Ora, Reale tem realizado ambas as tarefas com indiscutível originalidade. Como lembra com propriedade Roque Spencer Maciel de Barros [1994],

Miguel Reale desempenhou e desempenha entre nós, e creio que também hoje, em Portugal, um papel semelhante ao que Ortega y Gasset desempenhou em Espanha e no mundo ibérico em geral. Diríamos que Reale se põe diante de cada autor estudado compreendendo que cada um há de ser examinado não segundo padrões abstratos, mas com as ‘suas circunstâncias’. ‘Tu es tu e a tua circunstância’, parece dizer a cada um o filósofo brasileiro, disposto a situar-se diante dos problemas que o autor em exame enfrentou, com as ferramentas de que dispunha e, se critica as suas obras, fá-lo ‘de dentro’, da perspectiva do pensador estudado, com generosa serenidade e simpatia, que combina com o rigor crítico. No seu trabalho de diálogo filosófico com os autores, Reale faz da tolerância e do

pluralismo o clima de trabalho, que soube comunicar ao Instituto Brasileiro de Filosofia criado por ele em 1949 e ao seu órgão, a Revista Brasileira de Filosofia. Os que

Amam a verdade alimentada pelo livre sopro das idéias, -- frisa Reale [1994: 23] numa das suas últimas obras -- mister é que fortaleçam a sua posição pela seriedade das pesquisas, pela meditação serena que é o âmago, a ‘intimidade’ da filosofia (...). É claro que do diálogo filosófico não se exclui a veemência, nem a paixão pela verdade, mas os caminhos da filosofia são os das convicções livremente elaboradas e transmitidas, não se justificando a polêmica convertida em razão do filosofar. Ao enxergar a magna obra de Miguel Reale no terreno da História das idéias, à luz

da qual se formaram as duas gerações que, nos últimos cinqüenta anos têm desenvolvido de forma sistemática o estudo do pensamento filosófico brasileiro, bem como o diálogo deste com o pensamento português, podemos concluir que a corrente culturalista, sistematizada pelo saudoso pensador paulista, é a que mais influência tem tido, no Brasil particularmente e em Ibero-América, de modo geral, no que tange à tarefa de fundamentar filosoficamente a pesquisa no terreno da História das idéias. Reale desempenha, nesse terreno, em Ibero-América, papel semelhante ao que desempenharam Marrou e Aron na França, no ambiente mais largo da fundamentação crítica do método de pesquisa em História.

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