MILTON,John - Tradução - teoria e prática

download MILTON,John - Tradução - teoria e prática

of 252

Transcript of MILTON,John - Tradução - teoria e prática

yyTraduoTeoria e Prtica John Milton

Martins FontesSo Paulo 1998

Copyright Livraria Martins Fontes Editora Ltda., So Paulo, 1998, para a presente edio. Ia edio 1993 (Ars Potica) Publicado com o ttulo O Poder da Traduo 2- edio setembro de 1998 Reviso grfica Celta Regina Camargo Teresa Ceclia de Oliveira Ramos Produo grfica Geraldo Alves Paginao/Fotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial (6957-7653)

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Milton, John, 1956Traduo : teoria e prtica / John Milton. - 2- ed. - So Paulo : Martins Fontes, 1998. - (Coleo leitura e crtica) Bibliografia. ISBN 85-336-0951-5 1. Traduo e interpretao I. Ttulo. II. Srie. 98-3831 _ _ _ _ _ ndices para catlogo sistemtico: 1. Traduo : Lingstica 418.02 CDD-418.02

Todos os direitos para a lngua portuguesa reservados livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ramalho, 330(340 01325-000 So Paulo SP Brasil Tel. (011) 239-3677 Fax (OU) 3105-6867 e-mail: [email protected] http :i lwww.martinsfontes.com

ndice

I. Introduo II. A traduo e a poca Augustan III. Les belles infidies e a tradio alem IV Ezra Pound - Renovar! V Outros tradutores do sculo XX sobre a traduo. VI. Cabala, Babel e Bblia VII. A traduo como fora literria VIII. A teoria da traduo literria no Brasil Palavras finais Bibliografia

1 17 55 79 131 153 183 205 233 235

f

AgradecimentosEste livro foi originariamente uma tese de doutorado feita sob a superviso do professor Paulo Vizioli da FFLCH da Universidade de So Paulo. Gostaria de agradecer ao Conselho Britnico e ao CAPES o apoio financeiro durante a elaborao do livro. Gostaria tambm de agradecer a Deusa Maria de Sousa, que me ajudou durante a traduo.

H seis meses, tenho sido perturbado pela doena (se assim posso cham-la) da Traduo... John Dryden, "Introduo" aos Poems from Sylvae

I. IntroduoSem a traduo na lngua vulgar, os incultos so como as crianas no poo de Jac (que era profundo), sem um balde ou algo com que puxar a gua: ou como aquela pessoa mencionada por Esa, que, ao receber um livro selado com o seguinte pedido "Lede-o, eu vos suplico", foi relutante ao dar sua resposta, "No posso, porque ele est selado". "Introduo dos tradutores" da Bblia Sagrada, King James Version

1. As metforas e a traduo literria Um ponto de partida relevante para encaminhar um estudo sobre a traduo literria consiste em examinar as metforas usadas por comentaristas e crticos. O ensaio de Theo Hermans, "Images and Translation: Metaphors and Images in the Renaissance Discourse on Translation" (Imagens e traduo: metforas e imagens no discurso renascentista sobre a traduo)1, contrasta as metforas usadas pelos tradutores do incio do perodo renascentista (que viam os tradutores exercendo uma funo servil, desempenhando um papel inferior em relao ao escritor) com aquelas usadas por escritores aps 1650. Durante o perodo de 1550 a 1650 as imagens predominantes so as relativas a se seguirem os passos exatos do autor, ao tradutor como servo ou escravo, e o trabalho do tradutor como sendo infinitamente inferior ao origi-

.'

TRADUO. TEORIA E PRATICA

uai o avesso de uma tapearia, ou a luz da vela comparada luz do sol. Alm disso, h freqentemente referncias ao tradutor tendo um papel social, uma vez que ele promove o bem comum, proporcionando o acesso a trabalhos estrangeiros. Aps 1650, particularmente aps o elogio de Sir John Denham a Fanshawe em To Sir Richard Fanshawe upon his Translation of Pastor Fido2 por ter ele declinado "do caminho servil", o tipo de imagem sofre uma considervel mudana. Agora, encontramos imagens que retratam o tradutor preservando a "chama" do original, acrescentando algo de si para preservar a "essncia" do original. O tradutor deixa de ser um servo; ele agora um amigo e conselheiro, o qual pode ter acentuada afinidade com o autor. Em outras pocas, o status do tradutor varia muito. Algumas das imagens mais positivas vm dos alemes do fim do sculo XVIII e do incio do sculo XIX. O tradutor visto como um esotrico semideus, a "estrela da manh"3, um profeta, um guia para a Utopia que far da literatura alem o centro da mais alta criao artstica, e que proporcionar infinitas possibilidades atravs da introduo das formas e das idias das grandes literaturas do mundo4. A "Introduo dos tradutores" da verso autorizada da Bblia Sagrada de 1611 v o tradutor como algum que retira o vu e que fornece a luz: a traduo que abre a janela, para deixar a luz entrar; que quebra a casca, a fim de podermos comer a polpa; que abre a cortina, a fim de podermos olhar o lugar mais sagrado; que remove a tampa do poo, a fim de podermos tirar gua.. .5 Em contraste com isso, entre as imagens mais comuns de traduo nos dois ltimos sculos tm sido destaque aquelas que se referem a algum desajustado, que impede a luz de entrar. Heine acreditava que um tradutor tentava "empalhar os raios do sol"6. Virgnia Woolf, ao ler obras russas e

INTRODUO

3

gregas em traduo, pensava estar usando culos errados, ou que houvesse uma neblina entre ela e a pgina7. Em outra ocasio, ela enfatizou essa idia de perda. Quando lemos uma traduo dos grandes escritores, sentimo-nos como pessoas desprovidas (por ocasio de um terremoto ou um acidente ferrovirio) no somente de suas roupas, mas tambm de algo mais sutil e mais importante - de suas maneiras, das idiossincrasias de seu carter8. Da mesma maneira, Yehuda Amichai pensava que ler poesia em traduo era como beijar uma mulher atravs de um vu, colocando um filtro entre o autor e o original9. Para Mme de Stal, o tradutor um msico que toca uma pea escrita para outro instrumento10. Cecil Day Lewis escreveu que Pope tocou Homero num flautim, e Dr. Johnson o tocou num fagote". O tradutor um fotgrafo que tira uma fotografia de um quadro numa galeria de arte12, ou tira uma fotografia de uma esttua13, ou um cego numa galeria de arte14. Robert Lowell v a maioria dos tradutores como taxidermistas que perdero a vitalidade do original15. Para Jos Paulo Paes, o tradutor pode ter "o complexo de Judas"16. Robert Frost acredita que a poesia "o que perdido na traduo"17. Outra imagem famosa "a violeta no caldeiro" de Shelley: i^ssim a vaidade da traduo; seria muito sbio j ogar uma violeta num caldeiro para descobrir a frmula da sua cor e perfume18. O trocadilho italiano traduttore-traditore (tradutor-traidor) ficou bem conhecido. Uma imagem mais sutil o jogo de palavras em francs de Roger Zuber sourcier-sorcier (descobridor de fontes e mgico)19. Imagens de tradues que no combinam com o original so comuns. Provavelmente as mais conhecidas so as

4

TRADUO. TEORIA E PRATICA

imagens de Walter Benjamin do original e da traduo como sendo "a fruta e sua casca"20 - a "casca" de uma boa traduo reveste com exatido o original - e da traduo como "roupas largas, envolvendo o original como um manto real de amplas dobras"21. A outra imagem de Benjamin refere-se s "dores do parto"22, traduo resultante do casamento das lnguas original e nova. Mas o parentesco de traduo varia: "deveria ser o irmo e no o filho do original"23, ou poderia ser at o marido24. Metforas contemporneas enfatizam idias modernas. O tradutor um cirurgio que realiza transplantes25; ele faz uma transfuso de sangue para o texto traduzido26; faz psicanlise27; no ato de traduo, ele encontra o "outro"28; e "um personagem em busca de si mesmo"29. As metforas de traduo podem ficar desatualizadas em pouco tempo: a metfora seguinte pertence a um breve perodo aps a Segunda Guerra Mundial: Tal traduo em larga escala poderia ser comparada venda de porta-avies norte-americanos, sendo vendidos como sucata e rebocados ao Japo, de onde voltaro para ns na forma de revlveres de brinquedo para menores americanos usarem nas ruas de cidades pequenas30. Lope de Vega chamou o tradutor de "contrabandista de cavalos"31. Agora, suas profisses foram atualizadas: ele um ator32, um arteso33, um cozinheiro34, um florista35, um "poeta-camaleo"36 e um compositor que rearranja a obra de outro compositor37. A traduo um "treinamento na selva"38, um jogo de tnis39 ou de futebol40, "ressurreio, mas no do corpo"41. E ainda encontramos as imagens renascentistas tais como verter lquidos de uma jarra para outra42, o tradutor como artista43, e a "afinidade" entre autor e tradutor44. Sobejam imagens clssicas. O tradutor to vaidoso quanto Narciso45, to mutvel quanto Proteu46, e o papel no

INTRODUO

5

qual a traduo escrita o leito de Procusto47. Ele to esperto quanto Ssifo, e do mesmo modo que a gua fugia quando Tntalo tentava beb-la, sofre de um desejo impossvel de ser satisfeito48. Neologismos com "trans-" so comuns. O tradutor prolfico foi chamado de um "Don Juan transfornicador"49. Augusto e Haroldo de Campos nos do transcriao, transparadisao, transluminao, transluciferao mefistofustica, bem como os mais comuns recriao e reimaginao50. Kiman Friar, em Modem Greek Poetry, complementa esses termos com transport, transmission, transposition, transplant, transformation, transmutation, transcendence e transsubstanciation51. E o famoso tradutor francs do sculo XVI foi chamado de "trad-revisor"52. Catford e Nida, insistindo que o contedo do original pode ser transferido traduo, usam diagramas de caixas e imagens de vages ferrovirios. "O que importante no transporte de frete no diz respeito a quais materiais so carregados em quais vages, nem ordem na qual os vages esto ligados entre si, mas, sim, ao fato de todos os contedos chegarem ao seu destino. O mesmo se refere traduo."" Assim, as metforas nos do uma idia das muitas maneiras atravs das quais a traduo descrita. Mas o que a maioria delas tem em comum a discusso entre a forma e o contedo. Isso remonta a Ccero, que traduziu o Protgoras de Plato e outros documentos gregos para o latim. Ccero declarou: O que homens como vs... chamam de fidelidade em traduo os eruditos chamam de minuciosidade pestilenta... duro preservar em uma traduo o encanto de expresses felizes em outra lngua... Se traduzo palavra por palavra, o resultado soar inculto, e se, forado por necessidade, altero algo na ordem ou nas palavras, parecer que eu me distanciei da funo do tradutor54.

6

TRADUO. TEORIA E PRTICA

No fim do sculo IV, quando Jernimo recebeu a incumbncia do Papa para produzir uma verso da Bblia em latim, tambm deu preferncia a uma verso facilitada e tentou traduzir "sentido por sentido e no palavra por palavra". No seu Prefcio, previu a crtica que viria receber: Quem quer que, sendo culto ou no, tomasse o volume nas mos e descobrisse que, ao l-lo, discordava daquilo com que estava acostumado, no haveria de romper em gritos, e me chamar de um falsificador sacrlego, por eu ter tido a ousadia de acrescentar algo aos Livros Antigos, de fazer mudanas e correes neles?55 E no podemos esquecer o fim do tradutor francs, Etienne Dolet (1509-1546), queimado por heresia devido sua traduo de Plato, que foi julgada hertica por no aceitar a imortalidade da alma56. Em tempos muito mais recentes, (julho de 1991), o tradutor japons dos Versos satnicos, Hitoshi Igarashi, foi assassinado, e o tradutor italiano do mesmo livro, Alberto Caoriolo, foi esfaqueado.

2. O plano do livro A idia central deste livro consiste no fato de que a discusso entre a traduo literal e a traduo mais livre tem sido a preocupao principal entre os comentaristas sobre a traduo literria, desde Ccero e Jernimo at o presente. No obstante, nos ltimos anos, o estudo da traduo literria tem ampliado os seus horizontes, e pode ser visto como uma chave para abordagens contrastantes dos estudos literrios. Ento, este livro far uma comparao entre essas abordagens tradicionais e as contemporneas. O Captulo II examinar a traduo na poca Augustan na Inglaterra, quando a sociedade modelou-se segundo va-

INTRODUO

7

lores clssicos, e a maioria das figuras literrias mais importantes traduziu os Clssicos. O enfoque principal deste captulo John Dryden, o mais importante comentarista sobre a traduo desse perodo. Dryden concebeu o paradigma tridico da traduo como metfrase (traduo palavra por palavra), parfrase (traduo mais livre) e imitao. Os termos usados hoje em dia so um pouco diferentes, mas muitos escritores contemporneos ainda se valem dessa diviso. O Captulo III compara a teoria que est por trs das belles infidles, as teorias francesas dos sculos XVII e XVIII, com as idias alems sobre a traduo no fim do sculo XVIII e no incio do sculo XIX. Enquanto os escritores franceses exigiam que tudo fosse sacrificado beaut e clart, os escritores alemes davam preferncia adaptao de formas estrangeiras no mbito da lngua alem atravs da traduo, assim ampliando as possibilidades da lngua e da literatura alems. Ezra Pound, sem dvida a figura mais importante na traduo literria no mundo de lngua inglesa no sculo XX, o tema do Captulo IV Pound "fez suas tradues novas"; atualizou-as; mudou-lhes a nfase; o resultado de suas "tradues" foi muitas vezes um novo poema. Muita traduo moderna segue Pound, e o tradutor freqentemente impe sua prpria personalidade traduo. A importncia que Pound d traduo tambm contrasta com o conceito romntico ingls de traduo. Para Pound, a traduo central literatura; para os Romnticos, perifrica, longe da inspirao divina do poeta. Esse longo captulo tambm inclui uma anlise da polmica entre Matthew Arnold e F. H. Newman em 1861. Arnold, visto por alguns crticos como precursor de Pound no campo da traduo, imaginou que uma traduo de Homero deveria conferir-lhe uma nobreza tpica do sculo XIX, e criticou a verso arcaizante da Ilada.

8

TRADUO. TEORIA E PRTICA

Os Captulos V, VI e VII examinam outros escritos do sculo XX sobre a traduo. O Captulo V concentra-se no grande nmero de comentaristas sobre a traduo literria que seguem as idias de Dryden e Pound. O Captulo VI estuda os escritos sobre traduo de Jorge Luis Borges, Walter Benjamin, Paul de Man e Henri Meschonnic. Esses autores tm alguns temas em comum: o mito de Babel e o sonho cabalstico de uma lngua mundial; a centralidade da forma na traduo; a influncia que a traduo poderia ter sobre uma cultura, e a traduo como um modo de desconstruo. O Captulo VII descreve a obra de dois grupos de estudiosos para quem a traduo tambm uma fora motriz na compreenso do desenvolvimento de uma literatura. O primeiro grupo, com base em Israel e nos Pases Baixos, entende a traduo como uma parte central do sistema literrio. Em certas pocas e em certas literaturas, a traduo desempenha um papel central, e ela responsvel pela introduo de novas formas que vm de fora do pas. Em outras ocasies, e freqentemente em literaturas j consolidadas, a traduo desempenha um papel perifrico. Tambm se acredita que s o texto traduzido deva ser estudado. O grupo de Gttingen compartilha muitas das idias deste grupo, apesar de no enfatizar a idia de literatura como um sistema, e de no insistir somente no estudo dos textos traduzidos, ignorando os originais. Seu interesse principal est na transferncia cultural atravs da traduo. Uma traduo pode ser adaptada cultura de chegada, ou pode levar elementos da culturafonte para a cultura de chegada. O Captulo VIII se concentra na teoria da traduo no Brasil. Nos ltimos anos essa rea tem sido dominada por Augusto e Haroldo de Campos. Suas tradues e a sua teoria de traduo constituem uma abordagem contempornea bastante clara neste pas. Jorge Wanderley esboa as caracters-

INTRODUO

9

ticas desse grupo, os Concretistas, e compara suas tradues com as dos poetas modernistas e as da Gerao de 4551. Esse estudo chama a ateno para outros estudos aleatrios, sem encontrar, no entanto, alguma outra escola de traduo com linhas definidas no Brasil. So essas, pois, as delimitaes deste livro, o qual, acredito, cubra as teorias principais de traduo literria. H outras reas de interesse perifrico que no analiso, tais como a discusso clssica da imitao, as abordagens lingstica e semitica da traduo; tampouco descrevo trabalhos sobre a hermenutica e a traduo58. O livro no analisa as prprias tradues, exceto no Captulo IV, que versa sobre as idias de Ezra Pound a respeito da traduo. Essas idias podem ser mais bem observadas quando lhes examinamos as tradues. Essa anlise de tradues pertence rea da traduzibilidade, descrita muito bem por Jorge Wanderley: Cabe aqui comentar o fato de que questes como ser ou no a poesia intraduzvel, ou ser mais ou menos traduzvel, ou ainda estar melhor ou pior esta ou aquela traduo; questes como a de estar ou no obedecendo a um critrio de severidade ou rigor, ou estar ou no adotando um critrio geral de liberdade - e mesmo de rebeldia - ante o texto original; questes como as da realizao ou no de uma traduo que se inscreva (ou no) na histria da traduo de determinados textos, ou ainda questes referentes a anlises, avaliaes e comentrios acerca do processo especfico empregado neste ou naquele caso - so todas questes referentes TRADUZIBILIDADE5'. A grande maioria do que se escreveu sobre a traduo literria diz respeito poesia. H poucos estudos de tradues de prosa, e o estudo da traduo do drama ainda est nos seus primrdios60. Assim, no me desculpo por ter-me concentra-

10

TRADUO. TEORIA E PRATICA

do em idias sobre a traduo de poesia. Tambm utilizo o termo literatura com certa liberdade. O Captulo III trata das tradues francesas que fez d'Ablancourt de histrias romanas. O Captulo VI inclui comentrios sobre as tradues das obras de Freud e Plato. De fato, uma idia central desse captulo que a Bblia antes de tudo uma obra literria. Tambm no peo desculpas por ter usado fontes de vrias lnguas. Por sua prpria natureza, um estudo sobre a traduo cruza as fronteiras nacionais e lingsticas. Um trabalho que se concentra na maneira pela qual uma lngua traduzida para outra pertence rea da traduzibilidade, que no , como j foi mencionado, assunto deste livro. Que contribuio este livro poderia trazer ao estudo da traduo literria? Primeiramente, acredito que ele examine a rea de uma nova perspectiva, contrastando desenvolvimentos recentes com abordagens tradicionais. Outras obras gerais sobre a traduo literria seguem linhas diferentes. Em After Babel61, a idia central a da hermenutica do processo de traduo. Louis Kelly, em The True Interpretei1, sugere que a abordagem ideal seria aquela que modificasse uma abordagem lingstica semelhante de Catford e Nida com a hermenutica. Translation Studiest, de Susan Bassnett, um panorama geral da teoria da traduo, mas no inclui os vrios autores que analiso nos Captulos VI e VII. A segunda contribuio importante que espero possa este livro oferecer uma anlise da teoria da traduo de um ponto de vista brasileiro. Espero que este estudo possa ajudar a formar uma base para o estudo da traduo literria no Brasil, incentivar e ser til a outros estudos na rea.

INTRODUO

11 REFERNCIAS

1. "Images of Translation: Metaphor and Imagery in the Rennaissance Discourse on Translation", Theo Hermans, em The Manipulation ofLiterature, ed. Theo Hermans. Croom Helm, Londres, 1985. 2. Para as referncias completas, ver Captulo II, Nota 15. 3. Para as referncias completas, ver Captulo III, Nota 24. 4. Ver Captulo III, p. 55. 5. Da "Introduo dos tradutores" Holy Bible, King James Edition. Oxford University Press, 1853. 6. Citado por Paulo Rnai em A traduo vivida. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1981, p. 22. 7. Citado por Aloys Skoumal em "The Sartorial Metaphor and Inongruity in Translation", em The Nature of Translation, Essays on the Theory and Practice of Literary Translation, ed. James S. Holmes. Mouton, Haia e Paris, 1970. 8. "The Russian Point of View", em The Common Reader. Pelican, Harmondsworth, 1938: "... like men deprived by an earthquake or railway accident not only of ali their clothes but also of something subtler and more important - their manners, the idiosyncrasies of their characters". 9. Citado em A traduo vivida, op. cit., p. 23. 10. Citado em .4 traduo vivida, p. 22. 11. Citado por Louis Kelly em The True Interpreter. Blackwell, Oxford, 1979. 12. Ernesto Sbato, citado em A traduo vivida, p. 22. 13. Michael Reck, citado em A traduo vivida, p. 22. 14. Em "Notes on Translation", Arthur Waley, em Delos, vol. 3, 1969. 15. Imitations, Robert Lowell. Faber & Faber, Londres, 1958, p. xi. 16. "Sob o signo de Judas", Jos Paulo Paes, em Traduo: a ponte necessria. tica, So Paulo, 1990. 17. "The Lot of the Translator", em The World of Translation, PEN American Center, Nova York, 1971, p. 169. 18. Em The Prose Works of Percy Bysse Shelley, vol. 2, Chatto & Windus, Londres, 1912: "Hence the vanity of transia-

12

TRADUO. TEORIA E PRATICA

tion; it were as wise to cast a violet into a crucible that you might discover the formal principie of its colour and odour." 19. Em Les "Belles Infidles " et laformation du got classique, Roger Zuber. Armand Colin, Paris, 1968, p. 382. 20. "The Task of the Translator", p. 75. Para as referncias, ver Captulo VI, Nota 25. 21. Ibid.,p. 75. 22. Ibid., p. 74. 23. Em "The Sartorial Metaphor of Incongruity in Translation", em The Nature of Translation, Essays on the Theory and Practice ofLiterary Translation, ed. James S. Holmes. 24. Em "Translation and Creation", Jean Paris, em The Craft and Context of Translation, ed. William Arrowsmith e Roger Shattuck. Univ. Texas Press, Austin, 1961. 25. Em "Doing the Talking", Anglo-French Poetry Translation Conference, Poetry Society Productions, Londres, 1977, p. 56. 26. Ben Belitt em The Poet's Other Voice, ed. Edwin Honug. Univ. Mass. Press, Amherst, 1985, p. 69. 27. Ibid., p. 76. 28. Christopher Middleton em The Poet's Other Voice, op. cit.,p. 192. 29. Renato Poggioli em "The Added Artificer", em On Translation, ed. Reuben Brower, Oxford University Press, Harvard, 1959, p. 42. 30. Em "Translation as a Form of Criticism", Smith Palmer Bovie, em The Craft and Context of Translation, op. cit.: "At its furthest reach, such wholescale translation may be likened to American aircraft carriers being sold for scrap metal and towed to Japan, whence they will return to us in the form of toy pistols for small Americans to brandish on the streets of small towns." 31. Citado em A traduo vivida, p. 23. 32. Ben Belitt em Adam 's Dream, op. cit., p. 32. 33. Burton Raffel em "The Forked Tongue: On the Translation Process", em Delos, n. 5, 1970, p. 50. 34. Ibid., p. 50. 35. Ibid., p. 50, citando Karl Dedicius.

INTRODUO

13

36. Kenneth Rexroth em "The Poet as Translator", em The Craft and Context ofTranslation, op. cit.,p. 29. Tambm MeyerClason, citado em A traduo vivida, op. cit., p. 23. 37. Michael Hamburger em "On Translation", em "Encrages: Posie/Traduction". Universit de Paris Vll-Vincennes Saint-Denis, Printemps-t, 1980. 38. Ben Belitt em Adam 's Dream, op. cit., p. 30. 39. John Hollander em "Versions, Interpretations and Performances", em On Translation, op. cit., p. 218. 40. Gerado Gambolini em "La traduccin de poesia", em Dirio de poesia, vero de 1990, Buenos Aires, Rosrio, Montevidu. 41. Henry Gifford citado por Charles Tomlinson na "Introduo" ao The Oxford Book of Verse in English Translation, ed. Charles Tomlinson. Oxford University Press, 1980, p. xii. 42. Tatiana Fotitch em A traduo vivida, op. cit., p. 23, e Renato Poggioli, "The Added Artificer", em On Translation, op. cit. 43. Por exemplo, Werner Winter, "Impossibilities ofTranslation", em The Craft and Context ofTranslation, op. cit., p. 68. 44. Kenneth Rexroth em "The Poet as Translator", em The Craft and Context ofTranslation, op. cit. 45. Renato Poggioli em "The Added Artificer", op. cit. 46. Padre Clivet, citado em/4 traduo vivida, p. 23. 47. Andr Mirabel, citado em A traduo vivida, op. cit., p. 23. 48. lbid., pp. 22-23. 49. EdwinHonig em ThePoet's Other Voice, op. cit.,p. 192. 50. Em "Octavio Paz e a potica da traduo", Haroldo de Campos, em Folhetim, Folha de S. Paulo, 9 de janeiro de 1987. 51. Kiman Friar em Modern Greek Poetry, citado por Jos Paulo Paes em "Prs e contas", em Folhetim, Folha de S. Paulo, 18 de setembro de 1983. Tambm em Traduo: aponte necessria, op. cit. 52. Em Les "Belles Infidles " et laformation du got classique, op. cit., p. 192. 53. Veja os diagramas de caixas em "Principies of Bible Translation as exemplified by Bible Translation", Eugene A. Nida, em On Translation, op. cit.

14

TRADUO. TEORIA E PRATICA

54. Da Carta 57 a Pammachio sobre o melhor mtodo de traduzir. Em Toward a Science ofTranslating, Eugene A. Nida. Brill, Leiden, 1964, p. 13. 55. Ibid.,p. 13. 56. Em Les grands traducteurs franaises, E. Cary. Librairie de FUniversit, Genebra, 1963, pp. 5-14. 57. A traduo do poema entre poetas do modernismo: Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida, Abgar Renault, Jorge Wanderley. M. A. dissertao, PUC, Rio de Janeiro, 1985; A traduo do poema: notas sobre a experincia da gerao de 45 e dos Concretos. Tese de doutoramento, PUC, Rio de Janeiro, 1988. 58. Para uma discusso de imitao e simulacro veja Texto, crtica, escritura, Leila Perrone-Moiss. tica, So Paulo, 1978, Captulo 1. Para uma viso da traduo que enfatiza a lingstica estrutural, ver Approaches to Translation, Peter Newmark. Pergamon, Oxford, 1982; A Linguistic Theory of Translation, John Catford. Oxford University Press, 1965; Toward a Science ofTranslating, Eugene A. Nida e The Theory and Practice of Translation, Eugene A. Nida e Charles R. Taber. Brill, Leiden, 1974. Para uma abordagem semitica, ver o ensaio de Roman Jakobson, "On Linguistic Aspects of Translation", em On Translation, e Traduo intersemitica, Jlio Plaza. Perspectiva, So Paulo, 1987. Em After Babel, Oxford University Press, 1975, George Steiner desenvolve as idias da hermenutica da traduo. "Through movements of trust, agression, incorporation and restitution a translator will enter the text and render it in the foreign language." (Atravs de movimentos de confiana, agresso, incorporao e restituio um tradutor se introduzir no texto e o verter na lngua estrangeira.) 59. A traduo do poema: notas sobre a experincia da gerao de 45 e dos Concretos, Jorge Wanderley. 60. Para tentativas de iniciar uma teoria sobre a traduo do drama, ver o trabalho de Brigitte Schultze, Universidade de Gttingen, particularmente "In Search of a Theory of Drama Translation: Problems of Translating Literature (Reading) and Theatre

INTRODUO

15

(Implied Performance)", no publicado, e Susan Bassnett, "Ways through the Labyrinth. Strategies and Methods for Translating Theatre Texts", em The Manipulation ofLiterature. 61. After Babel, op. cit. 62. The True Interpreter, op. cit. 63. Translation Studies, Susan Bassnett (McGuire), Methuen, Londres, 1980.

II. A traduo e a poca AugustanNec verbum verbo curabis reddere, fidus interpres Tampouco palavra por palavra traduz fielmente Horcio, Ars Potica

Este captulo analisa os escritos sobre traduo de escritores ingleses, sobretudo poetas, do fim do sculo XVII e do sculo XVIII, o chamado perodo Augustan. Representam a primeira tentativa de uma teorizao do ato de traduzir, que ainda muito pertinente s idias sobre traduo do sculo XX. Tambm a poca das mais famosas tradues para o ingls - a Ilada de Homero, traduzida por Alexander Pope, e a Eneida de Virglio, traduzida por John Dryden. Antes da poca Augustan, a traduo sempre fora uma parte integrante da literatura inglesa, mas ela no existia como a conhecemos atualmente. A prtica generalizada era traduzir, atualizar ou adaptar as obras de outros escritores sem referncias s fontes. Muitas vezes, uma histria que j existia em outra lngua era recontada em ingls. No fim do sculo XV, William Caxton, o inventor do sistema moderno de impresso, imprimiu verses inglesas de contos franceses e latinos. Antes dele, Geoffrey Chaucer introduziu vrios estilos e temas da literatura europia na lngua inglesa. Entre eles estavam suas verses da ballade franaise, o

IX

TRADUO. TEORIA E PRTICA

romance de Boccaccio e a fbula de animais, ofabliau de Flandres. Tambm Chaucer traduziu The Romaunt of the Rose e De consolationephilosophiae de Bocio. Tais adaptaes de obras estrangeiras foram de grande importncia no estabelecimento das razes da literatura inglesa. As imitaes de Wyatt e Surrey dos sonetos de Petrarca estabeleceram a forma do soneto na literatura inglesa. E William Shakespeare, como a maioria dos dramaturgos contemporneos, emprestava elementos livremente. Plutarchs Lives de Sir Thomas North (que tambm era uma traduo) forneceu a base para suas tragdias romanas, Jlio Csar, Tito Andrnico, Antnio e Clepatra e Coriolano; e muitas de suas comdias e outras tragdias usaram a histria/enredo de peas de teatro menores, j esquecidas1. O possvel tradutor enfrentava muitos problemas logsticos. Apesar da inveno da imprensa de Caxton no terceiro quarto do sculo XV, os livros ainda eram escassos. A biblioteca de vinte volumes do Clrigo de Chaucer nos Contos de Canturia era considerada grande, e no havia bibliotecas pblicas ou colees disponveis ao estudioso. Sir Thomas Elyot conta que ficou interessado em um livro de Alexander Seneres e comeou a traduzi-lo, "embora eu no tenha podido terminar minha tarefa como pretendera, porque o dono do livro o quis de volta, e fui obrigado a deixar uma parte sem traduzir"2. No sculo XVI, encontramos pela primeira vez o conceito do dever pblico do tradutor. Fortescue e Udall dizem que o trabalho do tradutor de grande importncia ao estado3. Richard Taverner diz que traduziu parte do Chiliades de Erasmo "pelo amor que tenho melhoria e ao ornamento do meu pas"4. John Brede, em sua dedicatria traduo do History ofQuintus Curtius, disse que sua inteno era promover o ingls primeira diviso de lnguas, junto ao grego, ao latim e ao francs. Traduzia para que "ns, os ingleses, fosse-

A TRADUO E A POCA AUGUSTAN

19

mos considerados to avanados quanto outras naes que tinham levado histrias valiosas para suas lnguas naturais"5. De fato, encontramos vrios comentaristas sobre traduo no fim do sculo XVI exigindo melhor pagamento para os tradutores. Alm de melhorar a literatura inglesa por meio da introduo de modelos de fora, tambm houve a melhoria e o aumento do vocabulrio da lngua inglesa atravs da introduo de novos termos, especialmente do latim. No seu Prefcio ao The Governor, Sir Thomas Elyot relaciona a traduo ao movimento de se aumentar o vocabulrio ingls6. No fim do sculo XVI Peele elogia o tradutor Harrington, bem letrado e discreto Que to puramente tem naturalizado Palavras estranhas, e feito delas todas cidads livres7 Porm, no havia nenhuma aceitao generalizada desses termos que tinham sido introduzidos de fora, chamados inkhorn. O catedrtico de Cambridge, Sir John Cheeke, preferiu a adaptao de termos anglo-saxnicos, e no permitia "nenhuma palavra que no fosse ingls puro"8. Apesar disso, muitas palavras inkhorn logo entraram em uso geral. Richard Willes, no seu Prefcio edio de 1577 de History of Travei to the ast and West Indies, criticou tais termos inkhorn como domination (dominao), ditionaries (sic) (dicionrios), ponderous (vagaroso), solicitable (solicitvel), obsequious, homicide (homicdio), inbibed (bebeu), antiques (antigidades) porque "cheiravam muito a latim"9. Todas essas palavras so usadas diariamente na lngua inglesa hoje em dia. No decorrer do sculo XVI, o aumento da prosperidade da classe mdia inglesa resultou em um mercado cada vez maior para as tradues, entre as mais importantes das quais

20

TRADUO. TEORIA E PRATICA

destacaram-se a Eneida de Gavin Douglas, traduzida para o dialeto escocs (1525); The Book ofthe Courtier (1561) (O livro do homen da Corte) de Sir Thomas Hoby, traduzido do italiano de Castiglione; as tradues de Ovdio de Arthur Golding (1567); Plutarch s Lives (As vidas de Plutarc) de Sir Thomas North (1579), como j se disse, foi muito aproveitado por Shakespeare; o Ariosto de Harrington (1591); o Montaigne de John Florio (1603); Plutarch 's Morais (1603); eoDon Quixote de Thomas Shelton (1612)10. Para Ezra Pound, esse perodo marca a poca dourada na histria da traduo inglesa e escocesa". Somente no final do sculo XVI encontramos os primeiros comentrios tericos sobre a traduo. Os comentrios de George Chapman (1559-1634) nos Prefcios s suas tradues antecipam os escritores Augustans. Na sua primeira traduo de Homero, Seaven Boohes ofthe Iliad (1598), Chapman enfatiza que a sensibilidade ao estilo do original imprescindvel ao tradutor. O valor de um tradutor habilidoso observar as figuras e formas do discurso do seu autor, sua verdadeira estatura, e adorn-las com figuras e formas prprias compatveis com o original na mesma lngua para que foram traduzidas12. T. R. Steiner, em English Translation Theory, 1650-1800, constata que aqui Chapman diz que a traduo "mimese lingstica, bastante fcil de ser alcanada"13. Porm, os acrscimos de 1609 e 1611 aos seus Prefcios fazem com que a traduo parea uma tarefa mais difcil. Segundo Steiner, "apontam para "uma arte rara de traduo potica", rejeitando tanto tradues literais como a moda contempornea de parafrasear, em que o tradutor "explicava" o significado. Para Chapman, esse tipo de traduo continha um excesso de raciocnio, e perdia a "natureza" do original. Antecipando as palavras de Denham e Dryden, o tradutor tem de alcanar o

A TRADUO E A POCA AUGUSTAN

21

"esprito" do original. O prprio Chapman acreditava possuir essa ligao metafsica com Homero. Ele imagina que Homero lhe dissera: Meditando, um vento doce Levou-me a ti, e herdaste Meu verdadeiro senso, para aquela poca, no meu esprito, E eu, invisvel, te seguia, te auxiliando, At esses quatro campos verdes, onde tu me traduziste [para o ingls14. Esse extrato de The Tears o/Peace caracterstico de uma boa parte da obra de Chapman. Steiner comenta: "As panegricas prefatrias, espalhando-se de pgina em pgina, confirmam em prosa e verso seu amor honesto e genial por Homero"... "De todos os livros existentes, Homero o primeiro e o melhor... Ele um mundo, do qual toda a educao possvel pode ser derivada. Somente para enumerar suas virtudes, o mundo precisa de outro Homero... para ensai-las"15.

1. Sir John Denham A seguinte figura de relevo que antecipou as idias de Dryden sobre a traduo foi o poeta Sir John Denham. Denham era membro de um grupo de hommes de lettres que inclua Abraham Cowley, Sir Richard Fanshawe, Sir Edward Sherburne e Thomas Stanley. Durante o perodo do Commonwealth (1649-1660) aps o rei Charles I ter sido deposto, todos esses monarquistas foram exilados e encontraram-se em Paris formando um crculo literrio. Esse contato com culturas estrangeiras naturalmente fomentou um interesse por traduo. O prprio Denham traduziu a Eneida. Mas seus comentrios mais interessantes sobre a arte de traduzir aparecem no poema To Sir Richard Fanshawe upon his Translation of Pastor Fido (1648)16.

22

TRADUO. TEORIA E PRTICA

tal a nossa Insnia, Sina e Presuno, Que poucos, sem o dom da escrita, preferem a Traduo. Mas o que neles de Arte ou voz ausncia, Em ti modstia ou Preferncia. Enquanto esta obra restaurada por ti permanece Livre dos vcios de mo que s empobrece. Seguro de Fama, desejas somente o adular, Menos honra para criar do que para resgatar. Nem deve um gnio menor do que o do criador A Traduo tentar, pois sendo ele do esprito doador, Todos os defeitos do cu e da terra mantm, E mentes frias como climas frios o so tambm: Em vo se cansam, pois nada pode ser gerador De um esprito vital, seno um vital calor. A esse caminho servil tens o brio de renunciar Palavra por palavra, linha por linha traar. So criaes penosas de mentes servis, No os efeitos de poesia, mas Dores vis; Arte barata e vulgar, cuja misria no transfere Asas s idias, mas sempre s palavras adere. Buscas caminhos novos e mais nobres Para tornar Tradues e tradutores menos pobres. Eles, porm, preservam as Cinzas, e tu a Chama, Fiel ao seu sentido, mais fiel sua Fama. Vadeando suas guas, onde raso for, Que delas brote e flua segundo o teu dispor; Restaurando com bom senso certa fascinao Perdida ao mudar de Tempos, de lngua ou de Regio. Nem mesmo sua Mtrica e poca atado, Traste sua Msica com Verso mal-acabado, Nem foram os nervos de fora precisa Esticados e dissolvidos numa grande indecisa: Mesmo assim (se pudssemos consider-la tua), Teu esprito ao seu crculo confinado continua. Novos nomes, novas vestes e moderna imponncia, Troca de cenas e de personagens dariam a aparncia Ao mundo que fora obra tua, pois sabido

A TRADUO E A POCA AUGUSTAN

23

De alguns ilustres admirados pelo falso obtido. A mo do Mestre vida consegue dar Se ares, linhas e feies de um rosto traar, Com pincelada livre e arrojada, dota de expresso Um nimo instvel ou um Vestido de seduo; Poderia ter feito igual queles que a fizeram menor, Mas no fundo sabia que o prprio trao era melhor. (Traduo de Fernando Dantas) Esse poema contm vrios elementos que antecipam o tom e as idias da traduo Augustan. Denham elogia Fanshawe por no ter seguido "o caminho servil" da maior parte das tradues. Esse tipo de traduo literal deixa de conter qualquer tipo de "vital calor" e assim no pode restaurar o "esprito vital". Por outro lado, Fanshawe, nos seus "caminhos novos", consegue preservar a "chama". Mas para conseguir a vitalidade do original mister fazer mudanas. Quando acha o original inferior, "raso", o faz fluir segundo o seu "dispor". Tambm Denham enfatiza a melodia do poema traduzido e sada Fanshawe por no ter trado "sua Msica com Verso mal-acabado". Mas, apesar das mudanas que faz, este no o poema de Fanshawe. Confina-se ao "crculo" de Guarini. A metfora do pintor, to comum aos comentaristas sobre traduo dessa poca, resume as qualidades da traduo de Fanshawe. Utilizando a "pincelada livre e arrojada, dotada de expresso", consegue expressar as sutilezas do original melhor do que se tivesse feito uma cpia fotogrfica. O outro escrito terico de Denham o Prefcio sua traduo do Segundo livro da Eneida de Virglio (1656). Aqui repete vrias de suas idias anteriores. "um erro vulgar, ao se traduzirem os poetas, assumir o papel de Fidus Interpres". Esse tipo de traduo mais apropriado aos "assuntos relacionados aos fatos ou aos relacionados f". A responsabilidade do tradutor de poesia no a de "traduzir de uma lngua para outra, mas traduzir poesia em poesia" e "a

24

TRADUO. TEORIA E PRTICA

poesia de um esprito to sutil que, ao se derramar de uma lngua para outra, tudo se evapora; e, se um novo esprito no for acrescentado na transfuso, nada restar a no ser um caput mortuum""'. O "esprito" de grande importncia, mas a "roupagem" no pode ser esquecida. Denham pensa que Virglio deveria vestir a roupa do ingls contemporneo. Usar a linguagem contempornea seria muito mais natural do que usar arcasmos falsos. Essa idia de fazer do autor clssico um contemporneo do tradutor continuou at o fim do perodo Augustan. William Guthrie (1708-1770) levou esse ponto de vista aos extremos ao traduzir Ccero, decidindo, assim, que se Ccero estivesse vivo e morasse na Inglaterra, falaria da mesma maneira que um membro do parlamento ingls. Dessa forma, Guthrie passou trs anos assistindo aos debates na Cmara dos Comuns para descobrir o tipo de linguagem mais apropriada ao poeta latino! Finalmente, Denham insiste em que o sentido de sua traduo de Virglio, e no o seu prprio: Onde as minhas expresses no so to acabadas como as dele, a nossa lngua ou a minha arte apresentavam deficincias (mas suspeito mais de mim mesmo); mas onde as minhas so mais perfeitas do que as dele, elas so apenas as impresses que a sua freqente leitura deixou em meus pensamentos; de modo que se no so as suas prprias concepes, so pelo menos resultados delas; e se (estando consciente de faz-lo falar de modo pior do que ele o fez em quase todos os versos) erro ao tentar s vezes faz-lo expressar-se com mais propriedade, espero que seja considerado um erro em favor do que melhor, erro que merece perdo, se no imitao18.

2. John Dryden e a traduo Augustan O maior crtico da poca, Dr. Samuel Johnson, oferecenos a chave importncia da traduo para os Augustans:

A TRADUO E A POCA AUGUSTAN

25

H um tempo em que as naes, emergindo da barbrie e caindo na subordinao regular, adquirem lazer para aumentar sua sabedoria, e sentem a vergonha da ignorncia e a dor do desejo de satisfazer a curiosidade. A esse apetite da mente o senso prtico mostra-se grato; o que preenche o vazio remove o desassossego, e libertar-se da dor por algum tempo prazer; mas a demasia gera a minuciosidade, um intelecto saturado logo torna-se ostentoso, e o conhecimento no encontra receptividade at que seja recomendado por dico artificial. Portanto, podemos nos deparar com o fato de que, no progresso do conhecimento, os primeiros escritores so simples, e que cada poca se aperfeioa em elegncia". Nesse pargrafo, podemos ver algumas das idias principais da sociedade Augustan. Os Augustans tinham a plena conscincia de que seu perodo era um perodo de melhoria da sociedade. Deixaram para trs tanto a barbrie da Inglaterra medieval como tambm o excesso de emoo do Renascimento, e conseguiram formar uma sociedade estvel e organizada. Mas tal sociedade no poderia desenvolver uma auto-satisfao altamente negativa? Como pode a cultura nacional ser revitalizada? Somente mediante a introduo de modelos estrangeiros. E a soluo dos Augustans foi a de seguir modelos clssicos tanto em literatura, como na linguagem, na arquitetura e na cultura como um todo. Os autores gregos e latinos foram os modelos para os Augustans. Os padres romanos e gregos foram seguidos no nmero crescente de gramticas e dicionrios, dos quais o Dictionary do Dr. Johnson (1755) foi o mais famoso. John Dryden, provavelmente a figura de maior influncia no mundo das letras na Inglaterra na segunda metade do sculo XVII, teceu os comentrios mais interessantes nesse perodo sobre a traduo de poesia. Quase a metade da obra publicada de Dryden consiste em tradues, e nos prefcios dessas tradues que encontramos suas idias sobre tra-

26

TRADUO. TEORIA E PRATICA

duo. Seu "Prefcio" s Epstolas de Ovdio (1680) introduz muitas das idias, termos e pontos de referncia que sero utilizados por escritores sobre a teoria da traduo nos sculos subseqentes. Consta que h trs tipos de traduo; primeiramente, a metfrase, "traduo de um autor palavra por palavra, e linha por linha, de uma lngua para outra"20. Foi desta maneira, diz Dryden, que Ben Jonson traduziu a Ars Potica de Horcio. Em segundo lugar, h a parfrase, ou "traduo com latitude", "em que o autor mantido ao alcance dos nossos olhos... porm suas palavras no so seguidas to estritamente quanto seu sentido, que tambm pode ser ampliado, mas no alterado"21. Como exemplo, menciona a traduo de Waller da Quarta Eneida de Virglio. Em terceiro lugar, h a imitao, em que "o tradutor (se que j no perdeu esse nome) assume a liberdade, no somente de variar as palavras e o sentido, mas de abandonlos quando achar oportuno, retirando somente a idia geral do original, atuando de maneira livre a seu bel-prazer"22. Exemplos de imitao que menciona so as Odes de Pndaro e de Horcio traduzidas por Abraham Cowley. Dryden adverte acerca do primeiro tipo de traduo. " quase impossvel, ao mesmo tempo, traduzir literalmente e bem."23 Uma das tarefas mais difceis a de encontrar equivalncias entre uma palavra em ingls e o vocabulrio denso do latim. Dryden faz a comparao de "danar em uma corda com as pernas agrilhoadas: pode-se evitar uma queda sendo-se cauteloso; mas no se pode esperar que os movimentos sejam elegantes: e, na melhor das hipteses, no passa de uma tola tarefa, pois nenhuma pessoa sensata se exporia ao perigo em troca dos aplausos por ter escapado sem quebrar o pescoo"24. Depois, Dryden examina as imitaes de Denham (a Segunda Eneida de Virglio) e de Cowley (as Odes de Pnda-

p

\

1

A TRADUO E A POCA AUGUSTAN

) ' \\