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Nestelivro,MiltonSantospropõeumainterpretaçãomultidisciplinardo

mundocontemporâneo,emquerealçaopapelatualdaideologianaproduçãoda

históriaemostraoslimitesdoseudiscursofrenteàrealidadevividapelamaioriadas

nações.

Atiraniadainformaçãoeadodinheirosãoapresentadascomoospilares

deumasituaçãoemqueoprogressotécnicoéaproveitadoporumpequenonúmero

deatoresglobaisemseubenefícioexclusivo.Oresultadoéoaprofundamentoda

competitividade,aproduçãodenovostotalitarismos,aconfusãodosespíritoseo

empobrecimentocrescentedasmassas,enquantoosEstadossetornamincapazes

deregularavidacoletiva.Éumasituaçãoinsustentável.

OautorenxerganasreaçõesagoraperceptíveisnaÁsia,mastambémna

ÁfricaenaAméricaLatinaenosmovimentospopularesprotagonizadospelas

camadasmaispobresdapopulação,asementedeumaevoluçãopositiva,que

deveráconduziraoestabelecimentodeumaoutraglobalização.Atônicadestahora

éamensagemdeesperançanaconstruçãodeumnovouniversalismo,bompara

todosospovosepessoas.

EstenovolivrodeMiltonSantostratadaglobalizaçãocomofábula,como

perversidade e como possibilidade aberta ao futuro de uma nova civilização

planetária.

Osatoresmaispoderososdestanovaetapadaglobalizaçãoreservam-se

osmelhorespedaçosdoTerritórioGlobale deixamrestosparaosoutros.Masa

grandeperversidadenaproduçãodaglobalizaçãoatualnãoresideapenasnapolarização da riqueza e da pobreza, na segmentação dos mercados e das

populações submetidas, nem mesmo na destruição da Natureza. A novidade

aterradora reside na tentativa empírica e simbólica de construção de um único

espaçounipolardedominação.AtiraniadoDinheiroedaInformação,produzidapela

concentração do capital e do poder, tem hoje uma unidade técnica e uma

convergênciadenormassemprecedentesnahistóriadocapitalismo.

Oseucaráterglobalmentedestrutivoacabaporémsendocontraditório,

levandoàresistênciaparcelascrescentesdahumanidadeapartirdeseusdistintos

“lugares”.Ovelhootimismodograndegeógrafobrasileiroreapareceemrelaçãoàs

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cidades,comoespaçodeliberdadeparaaculturapopularemoposiçãoàcultura

midiáticademassas,comoespaçodesolidariedadenalutados“debaixo”contraa

escassezproduzidapelos“decima”.Avisãodeumanovahorizontalidadenaluta

dosoprimidoscontraaverticalidadedosopressoresécomovedoraeestimulante,já

queconduzaumanovautopia.Produz-seassim,dizele,umanovacentralidadedosocialqueconstituia

base para uma nova política. Não podendo a esmagadora maioria “consumir o

Ocidenteglobalizado”emsuasformaspuras(financeira,econômicaecultural),

aumentaráaresistênciaàdominaçãoultraliberaleconsumistapropagandeadapelas

grandesorganizaçõesdosmeiosdecomunicaçãodemassas.Aalienaçãotendea

sersubstituídaporumanovaconsciência,umanovafilosofiamoral,quenãoseráa

dosvaloresmercantismassimadasolidariedadeedacidadania.

Aunificaçãodatécnicaedasnormasinstrumentaispoderáservirentão,

dialeticamente, de trampolim para uma nova humanidade, para novos valores

simbólicosqueemsuainterfecundaçãoeespalhamentoabracaminhosaumanova

civilizaçãoplanetária.AHistóriaUniversalseriaentãoadanossahumanidade

comumenãomaisadosdominadores.

 ___________________________________________________________________ 

Milton Santos é geógrafo, professor emérito da Universidade de SãoPaulo,ganhadordoPrêmioInternacionaldeGeografiaVautrinLudem1994eautordemaisde30livrose400artigoscientíficos,publicadosemdiversosidiomas.

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Sumário

Prefácio06 

1. Omundocomofábula,comoperversidadeecomopossibilidade 08

Omundotalcomonosfazemcrer:aglobalizaçãocomofábula 08Omundocomoé:aglobalizaçãocomoperversidade 09Omundocomopodeser:umaoutraglobalização 09

Introdução11 

2. Aunidadetécnica 11

3. Aconvergênciadosmomentos 13

4. Omotorúnico 13

5. Acognoscibilidadedoplaneta 15

6. Umperíodoqueeumacrise 15

Introdução18 

7. Atiraniadainformaçãoedodinheiroeoatualsistemaideológico 18Aviolênciadainformação 18Fábulas 19Aviolênciadodinheiro 21Aspercepçõesfragmentadaseodiscursoúnicodo“mundo” 21

8. Competitividade,consumo,confusãodosespíritos,globalitarismo 22

Acompetitividade,aausênciadecompaixão 22Oconsumoeoseudespotismo 23Ainformaçãototalitáriaeaconfusãodosespíritos 24Doimperialismoaomundodehoje 24Globalitarismoetotalitarismos 25

9. Aviolênciaestruturaleaperversidadesistêmica 26Odinheiroemestadopuro 27Acompetitividadeemestadopuro 27Apotênciaemestadopuro 27Aperversidadesistêmica 28

10. DapolíticadosEstadosàpolíticadasempresas 29

Sistemastécnicos,sistemasfilosóficos 30Tecnociência,globalizaçãoehistóriasemsentido 31Asempresasglobaiseamortedapolítica 32

11. Emmeioséculo,trêsdefiniçõesdapobreza 33

Apobreza“incluída” 33Amarginalidade 34

Apobrezaestruturalglobalizada 34Opapeldosintelectuais 35

12. Oquefazercomasoberania 36

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Introdução38 

13. Oespaçogeográfico:compartimentoefragmentação 38

Acompartimentação:passadoepresente 39Rapidez,fluidez,fragmentação 40

Competitividadeversus solidariedade 4114. Aagriculturacientíficaglobalizadaeaalienaçãodoterritório 42

Ademandaexternaderacionalidade 42Acidadedocampo 43

15. Compartimentaçãoefragmentaçãodoespaço:ocasodoBrasil 44

Opapeldaslógicasexógenas 44Asdialéticasendógenas 45

16. Oterritóriododinheiro 46

Definições 46Odinheiroeoterritório:situaçõeshistóricas 46Metamorfosesdasduascategoriasaolongodotempo 47

Odinheirodaglobalização 47Situaçõesregionais 48Efeitosdodinheiroglobal 49Epílogo 50

17. Verticalidadesehorizontalidades 50

Asverticalidades 50Ashorizontalidades 52Abuscadeumsentido 53

18. Aesquizofreniadoespaço 54

Sercidadãonumlugar 54Ocotidianoeoterritório 54Umapedagogiadaexistência 55

Introdução57 

19. Avariávelascendente 57

20. Oslimitesdaracionalidadedominante 58

21. Oimagináriodavelocidade 59

Velocidade:técnicaepoder 59Dorelógiodespóticoàstemporalidadesdivergentes 60

22. Just-in-timeversusocotidiano 61

23. Umemaranhadodetécnicas:oreinodoartifícioedaescassez 61

Doartifícioàescassez 62Daescassezaoentendimento 63

24. Papeldospobresnaproduçãodopresenteedofuturo 63

25. Ametamorfosedasclassesmédias 65

Aidadedeouro 65Aescassezchegaàsclassesmédias 66Umdadonovonapolítica 67

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Introdução68 

26. Culturapopular,períodopopular 68

Culturademassas,culturapopular 69Ascondiçõesempíricasdamutação 70

Aprecedênciadohomemeoperíodopopular 7027. Acentralidadedaperiferia 71

Limitesàcooperação 72OdesafioaoSul 72

28. Anaçãoativa,anaçãopassiva 74

Ocasodoprojetonacional? 74Alienaçãodanaçãoativa 74Conscientizaçãoeriquezadanaçãopassiva 75

29. Aglobalizaçãoatualnãoéirreversível 76

Adissoluçãodasideologias 76Apertinênciadautopia 77

Outrosusospossíveisparaastécnicasatuais 79Geografiaeaceleraçãodahistória 79Umnovomundopossível 80

30. Ahistóriaapenascomeça 82

Ahumanidadecomoumblocorevolucionário 82Anovaconsciênciadesermundo 83Agrandemutaçãocontemporânea 83

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Prefácio

Estelivroquerserumareflexãoindependentesobreonossotempo,umpensamentosobreosseusfundamentosmateriaisepolíticos,umavontadedeexplicarosproblemasedoresdomundo atual. Mas, apesar das dificuldades da era presente, quer também ser uma mensagemportadoraderazõesobjetivasparaprosseguirvivendoelutando.

Otrabalhointelectualnoqualeleassentaéfrutodenossadedicaçãoaoentendimentodoquehojeéoespaçogeográfico,masétambémtributáriodeoutrasrealidadesedisciplinasacadêmicas.

Diferentementedeoutroslivrosnossos,oleitornãoencontraráaqui listagenscopiosasdecitações.Taislivrosenfocavamquestõesdasociedade,verdadeirasteses,istoé,demonstraçõessustentadaseambiciosas,dirigidassobretudoàsearaacadêmica,levando,porisso,oautorafazer,aopequenomundodoscolegas,aconcessãodasbibliografiascopiosas.Todomundosabequeestasetornouquaseumaobrigaçãodescholarship ,jáqueaacademiagostamuitodecitações,quantasvezesociosaseatémesmo ridículas.Semdúvida,este livro tambémsedirigea estudiosos,massobretudodesejaalcançarovastomundo,oquedispensaaobrigaçãocerimonialdasreferências.Nãoquerissodizerqueoautorimaginehaversozinhoredescobertoaroda;suaexperiênciaemdiferentesmomentosdoséculoeemdiversospaísesecontinentesétambémaexperiênciadosoutrosaquemleuouescutou.Masaoriginalidadeéainterpretaçãoouaênfaseprópria,a forma

individualdecombinaroqueexisteeo queévislumbrado:aprópriadefiniçãodoqueconstituiumaidéia.Estelivroresultadeumlongotrabalho,árduoeagradável.Amaioriagrandedosseus

capítuloséinéditaemsuaformaatual.Eétambém,dealgummodo,umareescrituradeaulas,conferências, artigos de jornais e revistas,entrevistasàmídia,cadaqual oferecendoumníveldediscursoea respectivadificuldade.Somosmuitíssimogratosa todososquecolaboraramparaessediálogo e até mesmo àqueles que desconheciam estar participando de uma troca. Dentre osprimeiros,querodestacarosatuaiscompanheirosdoprojetoacadêmicoambiciosoque,desde1983,venhoconduzindonoDepartamentodeGeografiadaUniversidadedeSãoPaulo:minhaincansávelcolaboradora,doutoraMaríaLauraSilveira,queleuoconjuntodomanuscrito,eaprofessoradoutoraMariaÂngelaFagginPereiraLeite,assimcomoasdoutorandasAdrianaBernardes,CileneGomeseMônicaArroyoeosmestrandosElizaAlmeida,FábioContel,FláviaGrimm,LídiaAntongiovanni,MarcosXavier,PaulaBorineSoraiaRamos.AoDepartamentodeGeografiadaFaculdadede

Filosofia,LetraseCiênciasHumanasquemeacolheeestimulaeparticularmenteaoLaboratóriodeGeografiaPolíticaePlanejamentoTerritorialeAmbiental(Lapoban),coordenadopormeuvelhoamigoArmenMamigonian,vão,também,meusagradecimentos.Estes tambémincluemoscolegasMariaAdéliaA. deSouza,RosaEsterRossinie AnaClaraTorresRibeiro,comquemcolaborohácercade20anos.

Aos colaboradores gratuitos, encontrados em inúmeras viagens pelo país ouparticipantesdeconferências,debatesecongressos,soutambémdevedorpelassuasintervençõesesugestões.SougratoàFolhadeS.Paulo eaoCorreioBraziliense pelaautorizaçãopararepublicaçãodeartigosmeusnasuaformaoriginaloumodificada.Aindanocapítulodosagradecimentos,umapalavraespecialvaiàgeógrafaFláviaGrimm,queteveapaciênciadeacolheroscansativosditadosdemanuscritodequeresultaestelivro.AassistênciadageógrafaPaulaBorinoutravezmostrou-sevaliosa.Sou,também,muitosensívelaoapoiorecebidodoConselhoNacionaldeDesenvolvimentoCientífico e Tecnológico (CNPq), daFundaçãodeAmparo à PesquisadoEstadodeSão Paulo

(FAPESP). Essas agências não contribuíram diretamente para este trabalho, mas a produçãointelectual é sempre unitária, uma oba ou pesquisa sendo sempre um subproduto das demais.Também,comosempre,oestímulorecebidodeminhamulher,MarieHélène,foimuitoprecioso.

AocontráriodeumautorfrancêsJoëldeRosnay,que,noprefácioaoseulivroLeMacroscope,sugeriuaosseusleitorescomeçaraleituraporondequiserem,devofazerumaoutraadvertência.Sealguémlerinicialmenteouseparadamenteosprimeiroscapítulos,podeconsideraroautorpessimista;equempreferirosúltimos,poderáimaginá-loumotimista.Narealidade,oquebuscamosfoi,deumlado,tratardarealidadetalcomoelaé,aindaquesemostrepungente;e,deoutrolado,sugerirarealidadetalcomoelapodeviraser,aindaqueparaoscéticosnossovaticínioatualapareçarisonho.

Aênfasecentraldolivrovemdaconvicçãodopapeldaideologianaprodução,disseminação,reproduçãoemanutençãodaglobalizaçãoatual.Essepapelétambém,umanovidadedonossotempo.Daíanecessidadedeanalisarseusprincípiosfundamentais,apontandosuaslinhasdefraquezaedeforça.Nossainsistênciasobreopapeldaideologiaderivadanossaconvicçãodeque,diantedosmesmosmateriaisatualmenteexistentes,tantoépossívelcontinuarafazerdoplanetauminferno,conformenoBrasilestamosassistindo,comotambéméviávelrealizaroseucontrário.Daíarelevânciadapolítica,istoé,daartedepensarmudançasedecriarascondiçõesparatorná-las

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efetivas.Aliás,astransformaçõesqueahistóriaultimamentevemmostrandopermitementreveraemergênciadesituaçõesmaispromissoras.Podemobjetar-nosqueanossacrençanamudançadohomeméinjustificada.Eseoqueestivermudandoforomundo?

Estamos convencidos de que a mudança histórica em perspectiva provirá de ummovimentodebaixoparacima,tendocomoatoresprincipaisospaísessubdesenvolvidosenãoospaíses ricos;osdeserdadoseospobrese nãoosopulentose outrasclassesobesas;o indivíduoliberadoparticipedasnovasmassasenãoohomemacorrentado;opensamentolivreenãoodiscursoúnico.

Comoacreditamosnaforçadasidéias–paraobemeparaomal–nestafasedahistória,emfiligranaaparecerácomoconstanteopapelintelectualnomundodehoje,istoé,opapeldopensamentolivre.Porisso,nosprimeirosprojetosderedaçãohaviaointuitodededicarumcapítuloexclusivoà atividade intelectual genuína. Todavia acheimelhordiscutir esse papel emdiferentesmomentosdaredação,semprequeaocasiãoselevantava.

Olivroéformadodeseispartes,dasquaisaprimeiraéaintrodução.Asegundaincluicincocapítulosebuscamostrarcomosedeuoprocessodeproduçãodaglobalização.Estetemajáhaviasidotratadodealgumaformaemoutraspublicaçõeselivrosmeus.Aterceiraparte,formadaporseis capítulos, busca explicar por que a globalização atual é perversa, fundada na tirania dainformação e dodinheiro, nacompetitividade, naconfusãodos espíritose naviolênciaestrutural,acarretandoodesfalecimentodapolíticafeitapeloEstadoeaimposiçãodeumapolíticacomandadapelasempresas.Aquartapartemostraasrelaçõesmantidasentreaeconomiacontemporânea,sobretudoasfinanças,eo território.Estaparteéconstituídadeseiscapítulos,dosquaiso último

poderiatambémseincluirnaparteseguinte,pois,pormeiodanoçãodeesquizofreniado território,mostramoscomooespaçogeográficoconstituiumdoslimitesaessaglobalizaçãoperversa.Éessaidéiadelimiteàhistóriaatualqueseimpõenaquintaparte,emquesãomostradosaomesmotempoosdescaminhosdaracionalidadedominante,aemergênciadenovasvariáveiscentraiseopapeldospobresnaproduçãodopresenteedofuturo.Asextaparte,umaespéciedeconclusão,édedicadaaoqueimaginamosser,nestapassagemdeséculo,atransiçãoemmarcha.Aqui,ostemasversadosrealçamasmanifestaçõespoucoestudadasdopaísdebaixo,desdeaculturaatéapolítica,raciocínioque se aplica também à própria periferia do sistema capitalista mundial, cuja centralidadeapresentamoscomoumnovofatordinâmicodahistória.É,exatamente,porqueessesatores,eficazesmasaindapoucoestudados,sãolargamentepresentes,queacreditamosnãoseraglobalizaçãoatualirreversíveleestamosconvencidosdequeahistóriauniversalapenascomeça.

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Vivemosnummundoconfuso e confusamente percebido.Haveria nisto umparadoxo

pedindoumaexplicação?Deumlado,é abusivamentemencionadoo extraordinárioprogressodas

ciênciasedastécnicas,dasquaisumdosfrutossãoosnovosmateriaisartificiaisqueautorizama

precisão e a intencionalidade. De outro lado, há, também, referência obrigatória à aceleração

contemporâneaetodasasvertigensquecria,acomeçarpelaprópriavelocidade.Todosesses,

porém,sãodadosdeummundofísicofabricadopelohomem,cujautilização,aliás,permitequeo

mundosetorneessemundoconfusoeconfusamentepercebido.Explicaçõesmecanicistassão,

todavia,insuficientes.Éamaneiracomo,sobreessabasematerial,seproduzahistóriahumanaque

éaverdadeiraresponsávelpelacriaçãodatorredebabelemqueviveanossaeraglobalizada.

Quandotudopermiteimaginarquesetornoupossívelacriaçãodeummundoveraz,oqueéimposto

aosespíritoséummundodefabulações,queseaproveitadoalargamentodetodososcontextos(M.

Santos, A naturezadoespaço ,1996)paraconsagrarumdiscursoúnico.Seusfundamentossãoa

informaçãoeoseuimpério,queencontramalicercenaproduçãodeimagensedoimaginário,ese

põemaoserviçodoimpériododinheiro,fundadoestenaeconomizaçãoenamonetarizaçãodavida

socialedavidapessoal.

Defato,sedesejamosescaparàcrençadequeessemundoassimapresentadoé

verdadeiro,enãoqueremosadmitirapermanênciadesuapercepçãoenganosa,devemosconsiderar

aexistênciadepelomenostrêsmundosnumsó.Oprimeiroseriaomundotalcomonosfazemvê-lo:aglobalizaçãocomofábula;osegundoseriaomundotalcomoeleé:aglobalizaçãocomo

perversidade;eoterceiroomundocomoelepodeser:umaoutraglobalização.

Estemundoglobalizado, vistocomo fábula, erigecomoverdadeumcertonúmerode

fantasias, cuja repetição, entretanto,acabapor se tornar uma base aparentementesólidadesua

interpretação(MariadaConceiçãoTavares,Destruiçãonãocriadora ,1999).

Amáquinaideológicaquesustentaasaçõespreponderantesdaatualidadeéfeitade

peçasquesealimentammutuamenteepõememmovimentooselementosessenciaisàcontinuidade

dosistema.Damosaquialgunsexemplos.Fala-se,porexemplo,emaldeiaglobalparafazercrerque

a difusão instantânea de notícias realmente informa as pessoas. A partir desse mito e do

encurtamentodasdistâncias–paraaquelesquerealmentepodemviajar–tambémsedifundeanoção

detempoeespaçocontraídos.Écomoseomundosehouvessetornado,paratodos,aoalcanceda

mão.Ummercadoavassaladorditoglobaléapresentadocomocapazdehomogeneizaroplaneta

quando,naverdade,asdiferençaslocaissãoaprofundadas.Háumabuscadeuniformidade,ao

serviçodosatoreshegemônicos,masomundosetornamenosunido,tornandomaisdistanteosonho

deumacidadaniaverdadeiramenteuniversal.Enquantoisso,ocultoaoconsumoéestimulado.

Fala-se,igualmente,cominsistência,namortedoEstado,masoqueestamosvendoé

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seu fortalecimento para atender aos reclamos da finança e de outros grandes interesses

internacionais,emdetrimentodoscuidadoscomaspopulaçõescujavidasetornamaisdifícil.

Essespoucosexemplos,recolhidosnumalistainterminável,permitemindagar-se,no

lugardo fimadaideologiaproclamadopelosquesustentamabondadedospresentesprocessosde

globalização,nãoestaríamos,defato,diantedapresençadeumaideologizaçãomaciça,segundoa

qualarealizaçãodomundoatualexigecomocondiçãoessencialoexercíciodefabulações.

Defato,paraagrandemaiorpartedahumanidadeaglobalizaçãoestáseimpondocomo

umafábricadeperversidades.Odesempregocrescentetorna-secrônico.Apobrezaaumentaeas

classesmédiasperdememqualidadedevida.Osaláriomédiotendeabaixar.Afomeeodesabrigo

segeneralizamem todososcontinentes.NovasenfermidadescomoaSIDAse instalame velhas

doenças,supostamenteextirpadas,fazemseuretornotriunfal.Amortalidadeinfantilpermanece,a

despeitodosprogressosmédicosedainformação.Aeducaçãodequalidadeécadavezmais

inacessível.Alastram-seeaprofundam-semalesespirituaisemorais,comoosegoísmos,oscinismos,

acorrupção.

Aperversidadesistêmicaqueestánaraizdessaevoluçãonegativadahumanidadetem

relaçãocomaadesãodesenfreadaaoscomportamentoscompetitivosqueatualmentecaracterizam

asaçõeshegemônicas.Todasessasmazelassãodiretaouindiretamenteimputáveisaopresente

processodeglobalização.

Todavia, podemos pensar na construção de um outro mundo, mediante uma

globalizaçãomaishumana.Asbasesmateriaisdoperíodoatualsão,entreoutras,aunicidadeda

técnica,aconvergênciadosmomentoseoconhecimentodoplaneta.Énessasbasestécnicasqueo

grandecapitalseapóiaparaconstruiraglobalizaçãoperversadequefalamosacima.Mas,essas

mesmasbasestécnicaspoderãoserviraoutrosobjetivos,seforempostasaoserviçodeoutros

fundamentossociaisepolíticos.ParecequeascondiçõeshistóricasdofimdoséculoXXapontavam

paraestaúltimapossibilidade.Taisnovascondiçõestantosedãonoplanoempíricoquantonoplano

teórico.Considerandoo queatualmenteseverifica noplanoempírico, podemos,emprimeiro

lugar,reconhecerumcertonúmerodefatosnovosindicativosdaemergênciadeumanovahistória.O

primeirodessesfenômenoséaenormemisturadepovos,raças,culturas,gostos,emtodosos

continentes.Aissoseacrescente,graçasaosprogressosdainformação,a“mistura”defilosofias,em

detrimentodo racionalismoeuropeu.Umoutrodadodenossaera, indicativodapossibilidadede

mudanças,éaproduçãodeumapopulaçãoaglomeradaemáreascadavezmenores,oquepermite

aindamaiordinamismoàquelamisturaentrepessoasefilosofias.AsmassasdequefalavaOrtegay

Gassetnaprimeirametadedoséculo(Larebelióndelasmasas ,1937),ganhamumanovaqualidade

emvirtudedasuaaglomeraçãoexponencialedesuadiversificação.Trata-sedaexistênciadeuma

verdadeirasociodiversidade,historicamentemuitomaissignificativaqueaprópriabiodiversidade.

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Junte-seaessesfatosaemergênciadeumaculturapopularqueseservedosmeiostécnicosantes

exclusivosdaculturademassas,permitindo-lheexercersobreestaúltimaumaverdadeirarevanche

ouvingança.

É sobre tais alicercesqueseedifica odiscursodaescassez, afinal descoberta pelas

massas.ApopulaçãoaglomeradaempoucospontosdasuperfíciedaTerraconstituiumadasbases

de reconstrução e desobrevivênciadas relações locais, abrindo a possibilidadedeutilização, aoserviçodoshomens,dosistematécnicoatual.

Noplanoteórico,oqueverificamoséapossibilidadedeproduçãodeumnovodiscurso,

deumanovametanarrativa,umnovogranderelato.Essenovodiscursoganharelevânciapelofatode

que,pelaprimeiraveznahistóriadohomem,sepodeconstataraexistênciadeumauniversalidade

empírica.Auniversalidadedeixadeserapenasumaelaboraçãoabstratanamentedosfilósofospara

resultardaexperiênciaordináriadecadahomem.Detalmodo,emummundodatadocomoonosso,

aexplicaçãodoacontecerpodeserfeitaapartirdecategoriasdeumahistóriaconcreta.Éisso,

também,quepermiteconheceraspossibilidadesexistenteseescreverumanovahistória.

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Aglobalizaçãoé,decertafoma,oápicedoprocessodeinternacionalizaçãodomundo

capitalista. Para entendê-la, como, de resto, a qualquer fase da história, há dois elementos

fundamentaisalevaremconta:oestadodastécnicaseoestadodapolítica.

Háumatendênciaasepararumacoisadaoutra.Daímuitasinterpretaçõesdahistóriaa

partirdastécnicas.E,poroutrolado,interpretaçõesdahistóriaapartirdapolítica.Narealidade,

nuncahouvenahistóriahumanaseparaçãoentreasduascoisas.Astécnicassãooferecidascomo

um sistema e realizadas combinadamente através do trabalho e das formas de escolha dos

momentosedoslugaresdeseuuso.Éissoquefezahistória.

NofimdoséculoXXegraçasaosavançosdaciência,produziu-seumsistemade

técnicaspresididopelastécnicasdainformação,quepassaramaexercerumpapeldeeloentreas

demais,unindo-aseassegurandoaonovosistematécnicoumapresençaplanetária.

Sóqueaglobalizaçãonãoéapenasaexistênciadessenovosistemadetécnicas.Elaé

tambémoresultadodasaçõesqueasseguramaemergênciadeummercadoditoglobal,responsável

peloessencialdosprocessospolíticosatualmenteeficazes.Osfatoresquecontribuemparaexplicara

arquiteturadaglobalizaçãoatualsão:aunicidadedatécnica,aconvergênciadosmomentos,a

cognoscibilidadedoplanetaeaexistênciadeummotorúniconahistória,representadopelamais-

valiaglobalizada.Ummercadoglobalutilizandoessesistemadetécnicasavançadasresultanessa

globalizaçãoperversa.Issopoderiaserdiferenteseseuusopolítico fosseoutro.Esseéodebatecentral,oúnicoquenospermiteteraesperançadeutilizarosistematécnicocontemporâneoapartir

deoutrasformasdeação.Pretendemos,aqui,enfrentaressadiscussão,analisandorapidamente

algunsdosseusaspectosconstitucionaismaisrelevantes.

Odesenvolvimentodahistóriavaideparcomodesenvolvimentodastécnicas.Kantdizia

queahistóriaé umprogressosemfim;acrescentemosqueé tambémumprogressosemfimdas

técnicas.Acadaevoluçãotécnica,umanovaetapahistóricasetornapossível.

Astécnicassedãocomofamílias.Nunca,nahistóriadohomem,apareceumatécnica

isolada;oqueseinstalasãogruposdetécnicas,verdadeirossistemas.Umexemplobanalpodeser

dadocomafoice,aenxada,oancinho,queconstituem,numdadomomento,umafamíliadetécnicas.

Essasfamíliasdetécnicastransportamumahistória,cadasistematécnicorepresenta

umaépoca.Emnossaépoca,oqueérepresentativodosistemadetécnicasatualéachegadada

técnicadainformação,pormeiodacibernética,dainformática,daeletrônica.Elavaipermitirduas

grandescoisas:aprimeiraéqueasdiversastécnicasexistentespassamasecomunicarentreelas.

Atécnicadainformaçãoasseguraessecomércio,queantesnãoerapossível.Poroutrolado,elatem

umpapeldeterminantesobreousodotempo,permitindo,emtodososlugares,aconvergênciados

momentos, assegurandoasimultaneidade dasações e, por conseguinte, acelerando oprocesso

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histórico.

Ao surgir uma nova família de técnicas, as outras não desaparecem. Continuam

existindo,masonovoconjuntodeinstrumentospassaaserusadopelosnovosatoreshegemônicos,

enquantoosnãohegemônicoscontinuamutilizandoconjuntosmenosatuaisemenospoderosos.

Quandoumdeterminadoatornãotemascondiçõesparamobilizarastécnicasconsideradasmais

avançadas,torna-se,porissomesmo,umatordemenorimportâncianoperíodoatual.Nahistória dahumanidadeé a primeira vezque tal conjunto de técnicasenvolve o

planetacomoumtodoefazsentir,instantaneamente,suapresença.Isso,aliás,contaminaaformade

existência das outras técnicas, mais atrasadas. As técnicas características do nosso tempo,

presentesquesejamemumsópontodoterritório,têmumainfluênciamarcantesobreorestodopaís,

oqueébemdiferentedassituaçõesanteriores.Porexemplo,aestradadeferroinstaladaemregiões

selecionadas, escolhidas estrategicamente, alcançava uma parte do país, mas não tinha uma

influênciadiretadeterminantesobreorestodoterritório.Agoranão.Atécnicadainformaçãoalcança

atotalidadedecadapaís,diretaouindiretamente.Cadalugartemacessoaoacontecerdosoutros.O

princípiodeseletividadesedátambémcomoprincípiodehierarquia,porquetodososoutroslugaressãoavaliadosedevemse referiràquelesdotadosdastécnicashegemônicas.Esseéumfenômeno

novonahistóriadastécnicasenahistóriadosterritórios.Anteshaviatécnicahegemônicasenão

hegemônicas;hoje,astécnicasnãohegemônicassãohegemonizadas.Naverdade,porém,atécnica

nãopodeservistacomoumdadoabsoluto,mascomotécnicajárelativizada,istoé,talcomousada

pelohomem.Astécnicasapenasserealizam,tornando-sehistória,comaintermediaçãodapolítica,

istoé,dapolíticadasempresasedapolíticadosEstados,conjuntaouseparadamente.

Por outro lado, o sistema técnico dominante no mundo de hoje tem uma outra

característica,istoé, adeser invasor.Elenãosecontentaem ficarali ondeprimeirose instalae

buscaespalhar-se,naproduçãoenoterritório.Podenãooconseguir,maséessasuavocação,queé

tambémfundamentodaaçãodosatoreshegemônicos,como,porexemplo,asempresasglobais.

Estas funcionamapartirdeuma fragmentação,jáqueumpedaçodaproduçãopodeser feitana

Tunísia,outronaMalásia,outroaindanoParaguai,masistoapenasépossívelporqueatécnica

hegemônicadequefalamosépresenteoupassíveldepresençaemtodaaparte.Tudosejuntae

articuladepoismediantea“inteligência”da firma.Senãonãopoderiahaverempresatransnacional.

Há,pois,umarelaçãoestreitaentreesseaspectodaeconomiadaglobalizaçãoeanaturezado

fenômenotécnicocorrespondenteaesteperíodohistórico.Seaproduçãosefragmentatecnicamente,

há,dooutrolado,umaunidadepolíticadecomando.Essaunidadepolíticadocomandofuncionano

interiordasfirmas,masnãohápropriamenteumaunidadedecomandodomercadoglobal.Cada

empresacomandaasrespectivasoperaçõesdentrodasuarespectivatopologia,istoé,doconjunto

delugaresdasuaação,enquantoaaçãodosEstadosedasinstituiçõessupranacionaisnãobasta

paraimporumaordemglobal.Levandoaoextremoesseraciocínio,poder-se-iadizerqueomercado

globalnãoexistecomotal.

Háumarelaçãodecausaeefeitoentreoprogressotécnicoatualeasdemaiscondições

deimplantaçãodoatualperíodohistórico.Éapartirdaunicidadedastécnicas,daqualocomputador

éumapeçacentral,quesurgeapossibilidadedeexistirumafinançauniversal,principalresponsável

pelaimposiçãoatodooglobodeumamais-valiamundial.Semela,seriatambémimpossívelaatualunicidadedotempo,oacontecerlocalsendopercebidocomoumelodoacontecermundial.Poroutro

lado,semamais-valiaglobalizadaesemessaunicidadedotempo,aunicidadedatécnicanãoteria

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eficácia.

Aunicidadedotemponãoéapenasoresultadodeque,nosmaisdiversoslugares,a

horadorelógioéamesma.Nãoésomenteisso.Seahoraéamesma,convergem,também,osmomentosvividos.Háumaconfluênciadosmomentoscomorespostaàquiloque,dopontodevista

dafísica,chama-sedetemporeale,dopontodevistahistórico,seráchamadodeinterdependênciae

solidariedadedoacontecer.Tomadacomofenômenofísico,apercepçãodotemporealnãosóquer

dizerqueahoradosrelógioséamesma,masquepodemosusaressesrelógiosmúltiplosdemaneira

uniforme.Resultadodoprogressocientíficoetécnico,cujabuscaseaceleroucomaSegundaGuerra,

a operação planetária das grandes empresas globais vai revolucionar o mundo das finanças,

permitindoaorespectivomercadoquefuncioneemdiversoslugaresduranteodiainteiro.Otempo

realtambémautorizausaromesmomomentoapartirdemúltiploslugares;etodososlugaresapartir

deumsódeles.E,emambososcasos,deformaconcatenadaeeficaz.

Comessagrandemudançanahistória,tornamo-noscapazes,sejaondefor,deter

conhecimentodoqueéoacontecerdooutro.Nuncahouveantesessapossibilidadeoferecidapela

técnicaànossageraçãodeteremmãosoconhecimentoinstantâneodoacontecerdooutro.Essaéa

grandenovidade,oqueestamoschamandodeunicidadedotempoouconvergênciadosmomentos.

Aaceleraçãodahistória,queofimdoséculoXXtestemunha,vememgrandepartedisto.Masa

informaçãoinstantâneaeglobalizadaporenquantonãoégeneralizadaeverazporqueatualmente

intermediadapelasgrandesempresasdeinformação.

Equemsãoosatoresdotemporeal?Somostodosnós?Estaperguntaéumimperativo

paraquepossamosmelhorcompreendernossaépoca.Aideologiadeummundosóedaaldeia

globalconsideraotemporealcomoumpatrimôniocoletivodahumanidade.Masaindaestamoslonge

desseideal,todaviaalcançável.

Ahistóriaécomandadapelosgrandesatoresdessetemporeal,quesão,aomesmo

tempo,osdonosdavelocidadeeosautoresdodiscursoideológico.Oshomensnãosãoigualmente

atores desse tempo real. Fisicamente, isto é, potencialmente, ele existe para todos. Mas

efetivamente, isto é, socialmente, ele é excelente e assegura exclusividades, ou, pelo menos,

privilégiosdeuso.Comoeleéutilizadoporumnúmeroreduzidodeatores,devemosdistinguirentrea

noçãodefluidezefetiva.Seatécnicacriaaparentementeparatodosapossibilidadedafluidez,quem,todavia,é fluidorealmente?Queempresas sãorealmente fluidas?Quepessoas?Quem, de fato,

utilizaemseufavoressetemporeal?Aquem,realmente,cabeamais-valiacriadaapartirdessanova

possibilidadedeutilizaçãodotempo?Quempodeequemnãopode?Essadiscussãoleva-nosauma

outra,nafaseatualdocapitalismo,aotomarmosemcontaaemergênciadeumnovofator

determinantedahistória,representadopeloqueaquiestamosdenominandodemotorúnico .

Esteperíododispõedeumsistemaunificadodetécnicas,instaladosobreumplaneta

informadoepermitindoaçõesigualmenteglobais.Atéquepontopodemosfalardeumamais-valiaà

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escalamundial,atuandocomoummotorúnicodetaisações?

Havia,comoimperialismo,diversosmotores,cadaqualcomsuaforçaealcance

próprios:omotorfrancês,omotoringlês,omotoralemão,omotorportuguês,obelga,oespanhol

etc.,queeramtodosmotoresdocapitalismo,masempurravamasmáquinaseoshomenssegundo

ritmosdiferentes,modalidadesdiferentes,combinaçõesdiferentes.Hojehaveriaummotorúnicoque

é,exatamente,amencionadamais-valiauniversal.Estatornou-sepossívelporqueapartirdeagoraaproduçãosedáàescalamundial,por

intermédiodeempresasmundiais,quecompetementresisegundoumaconcorrênciaextremamente

feroz,comojamaisexistiu.Asqueresistemesobrevivemsãoaquelasqueobtêmamais-valiamaior,

permitindo-se,assim,continuaraprocedereacompetir.

Essemotorúnicosetornoupossívelporquenosencontramosemumnovopatamarda

internacionalização,comumaverdadeiramundializaçãodoproduto,dodinheiro,docrédito,dadívida,

doconsumo,dainformação.Esseconjuntodemundializações,umasustentandoearrastandoa

outra,impondo-semutuamente,étambémumfatonovo.

Umelementodainternacionalizaçãoatraioutro,impõeoutro,contémeécontidopelooutro.Essesistemadeforçaspodelevarapensarqueomundoseencaminhaparaalgocomouma

homogeneização,umavocaçãoaumpadrãoúnico,oqueseriadevido,deumlado,àmundialização

datécnica,deoutro,àmundializaçãodamais-valia.

Tudoissoérealidade,mastambémesobretudotendência,porqueemnenhumlugar,em

nenhumpaís,houvecompletainternacionalização.Oqueháemtodaparteéumavocaçãoàsmais

diversascombinaçõesdevetoreseformasdemundialização.

Pretendemosqueahistória,agora,sejamovidaporessemotorúnico.Cabe,assim,

indagarqualseriaasuanatureza.Seráeleabstrato?Queéessamais-valiaconsideradaaonível

global?Ela é fugidia e nos escapa,mas nãoé abstrata. Ela existeeseimpõecomo coisareal,

emboranãosejapropriamentemensurável,jáqueestásempreevoluindo,istoé,mudando.Elaé

“mundial”porqueentretidapelasempresasglobaisquesevalemdosprogressoscientíficosetécnicos

disponíveisnomundoepedem,todososdias,maisprogressocientíficoetécnico.

Aatualcompetitividadeentreasempresaséumaformadeexercíciodessamais-valia

universal,quesetornafugidiaexatamenteporquedeixamosomundodacompetiçãoeentramosno

mundodacompetitividade.Oexercíciodacompetitividadetornaexponencialabrigaentreas

empresaseasconduzaalimentarumademandadiuturnademaisciência,demaistecnologia,de

melhororganização,paramanter-seàfrentedacorrida.

Quando,nauniversidade,somossolicitadostodososdiasatrabalharparamelhorara

produtividade como se fossealgo abstratoe individual,estamos impelidosa oferecer àsgrandes

empresas possibilidades ainda maiores de aumentar sua mais-valia. Novos laboratórios são

chamadosaencontrarasnovastécnicas,osnovosmateriais,asnovassoluçõesorganizacionaise

políticasquepermitamàsempresasfazercrescerasuaprodutividadeeoseulucro.Acadaavanço

deumaempresa,outradomesmoramosolicitainovaçõesquelhepermitampassaràfrentedaque

anteseraacampeã.Porisso,talmais-valiaestásemprecorrendo,querdizer,fugindoparaafrente.

Umcortenotempoéidealmentepossível,masestálongedeexpressararealidadeatualcruelmente

instável.Porissonãosepode,dessemodo,medi-la,maselaexiste.Seelapodeparecerabstrata,amais-valiaagorauniversalnaverdadeseimpõecomoumdadoempírico,objetivo,quandoutilizadano

processodaproduçãoecomoresultadodacompetitividade.

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Operíodohistóricoatualvaipermitiroquenenhumoutroperíodoofereceuaohomem,

istoé,apossibilidadedeconheceroplanetaextensivaeaprofundadamente.Istonuncaexistiuantes,

edeve-se,exatamente,aosprogressosdaciênciaedatécnica(melhorainda,aosprogressosda

técnicadevidosaosprogressosdaciência).Esseperíodotécnico-científicodahistóriapermiteaohomemnãoapenasutilizaroque

encontrananatureza:novosmateriaissãocriadosnoslaboratórioscomoumprodutodainteligência

dohomem,eprecedemaproduçãodosobjetos.Atéanossageração,utilizávamososmateriaisque

estavamànossadisposição.Masapartirdeagorapodemosconceberosobjetosquedesejamos

utilizareentãoproduzimosamatéria-primaindispensávelàsuafabricação.Semissonãoteriasido

possívelfazerossatélitesquefotografamoplanetaaintervalosregulares,permitindoumavisãomais

completaedetalhadadaTerra.Pormeiodossatélites,passamosaconhecertodososlugaresea

observaroutrosastros.Ofuncionamentodosistemasolartorna-semaisperceptível,enquantoaTerra

évistaemdetalhe;pelofatodequeossatélitesrepetemsuasórbitas,podemoscaptarmomentos

sucessivos,istoé,nãomaisapenasretratosmomentâneosefotografiasisoladasdoplaneta.Issonão

querdizerquetenhamos,assim,osprocessoshistóricosquemovemomundo,masficamosmais

perto de identificar momentos dessa evolução. Os objetos retratados nos dão geometrias, não

propriamentegeografias,porquenoschegamcomoobjetosemsi,semasociedadevivendodentro

deles.Osentidoquetêmascoisas,istoé,seuverdadeirovalor,éofundamentodacorreta

interpretaçãodetudooqueexiste.Semisso,corremosoriscodenãoultrapassarumainterpretação

coisicistadealgoqueémuitomaisqueumasimplescoisa,comoosobjetosdahistória.Estesestão

sempremudandodesignificado,comomovimentodassociedadeseporintermédiodasações

humanassemprerenovadas.

Comaglobalizaçãoepormeiodaempiricizaçãodauniversalidadequeelapossibilitou,

estamosmaispertodeconstruirumafilosofiadastécnicasedasaçõescorrelatas,quesejatambém

umaformadeconhecimentoconcretodomundotomadocomoumtodoedasparticularidadesdos

lugares,queincluemcondiçõesfísicas,naturaisouartificiaisecondiçõespolíticas.Asempresas,na

buscadamais-valiadesejada,valorizamdiferentementeaslocalizações.Nãoéqualquerlugarque

interessaa talouqualfirma.Acognoscibilidadedoplanetaconstituiumdadoessencialàoperação

dasempresaseàproduçãodosistemahistóricoatual.

Ahistóriadocapitalismopodeserdivididaemperíodos,pedaçosdetempomarcadospor

certacoerênciaentreassuasvariáveissignificativas,queevoluemdiferentemente,masdentrodeum

sistema.Umperíodosucedeaooutro,masnãopodemosesquecerqueosperíodossão,também,

antecedidosesucedidosporcrises,istoé,momentosemqueaordemestabelecidaentreas

variáveis,mediante umaorganização,écomprometida.Torna-seimpossível harmonizá-lasquando

umadessasvariáveisganhaexpressãomaioreintroduzumprincípiodedesordem.

Essafoiaevoluçãocomumatodaahistóriadocapitalismo,atérecentemente.Operíodo

atualescapaaessacaracterísticaporqueeleé,aomesmotempo,umperíodoeumacrise,istoé,a

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superposiçãoentreperíodoecrise,revelandocaracterísticasdeambasessassituações.

Comoperíodoecomocrise,aépocaatualmostra-se,aliás,comocoisanova.Como

período,assuasvariáveiscaracterísticasinstalam-seemtodaparteeatudoinfluenciam,diretaou

indiretamente.Daíadenominaçãodeglobalização.Comocrise,asmesmasvariáveisconstrutorasdo

sistemaestãocontinuamentechocando-seeexigindonovasdefiniçõesenovosarranjos.Trata-se,

porém,deumacrisepersistentedentrodeumperíodocomcaracterísticasduradouras,mesmosenovoscontornosaparecem.

Esteperíodoeestacrisesãodiferentesdaquelesdopassado,porqueosdadosmotores

eosrespectivossuportes,queconstituemfatoresdemudança,nãoseinstalamgradativamentecomo

antes,nemtampoucosãooprivilégiodealgunscontinentesepaíses,comooutrora.Taisfatoresdão-

seconcomitantementeeserealizamcommuitaforçaemtodaaparte.

Defrontamo-nos, agora, como uma subdivisão extrema do tempo empírico, cuja

documentação tornou-se possível por meio das técnicas contemporâneas. O computador é o

instrumentodemedidae,aomesmotempo,ocontroladordousodotempo.Essamultiplicaçãodo

tempoé,naverdade,potencial,porque,defato,cadaator–pessoa,empresa,instituição,lugar–utilizadiferentementetaispossibilidadeserealizadiferentementeavelocidadedomundo.Poroutrolado,e

graçassobretudoaosprogressosdas técnicasdainformática,os fatoreshegemônicosdemudança

contagiamosdemais,aindaqueaprestezaeoalcancedessecontágiosejamdiferentessegundoas

empresas, osgrupossociais,aspessoas,os lugares.Por intermédio dodinheiro, o contágio das

lógicasredutoras,típicasdoprocessodeglobalização,levaatodaparteumnexocontábil,que

avassalatudo.Osfatoresdemudançaacimaenumeradossão,pelamãodosatoreshegemônicos,

incontroláveis,cegos,egoisticamentecontraditórios.

Oprocessodacriseépermanente,oquetemossãocrisessucessivas.Naverdade,

trata-sedeumacriseglobal,cujaevidência tantose fazpormeiode fenômenosglobaiscomode

manifestaçõesparticulares,nesteounaquepaís,nesteounaquelemomento,masparaproduziro

novoestágiodecrise.Nadaéduradouro.

Então,nesteperíodohistórico,acriseéestrutural.Porisso,quandosebuscamsoluções

nãoestruturais,oresultadoéageraçãodemaiscrise.Oqueéconsideradosoluçãopartedo

exclusivointeressedosatoreshegemônicos,tendendoaparticipardesuapróprianaturezaedesuas

própriascaracterísticas.

Tiraniadodinheiroetiraniadainformaçãosãoospilaresdaproduçãodahistóriaatualdo

capitalismoglobalizado.Semocontroledosespíritosseriaimpossívelaregulaçãopelasfinanças.Daí

o papel avassalador do sistema financeiro e a permissividade do comportamento dos atores

hegemônicos,queagemsemcontrapartida,levandoaoaprofundamentodasituação,istoé,dacrise.

Aassociaçãoentreatiraniadodinheiroeatiraniadainformaçãoconduz,dessemodo,à

aceleraçãodosprocessoshegemônicos,legitimadospelo“pensamentoúnico”,enquantoosdemais

processos acabam por ser deglutidos ou se adaptam passiva ou ativamente, tornando-se

hegemonizados.Emoutraspalavras,osprocessosnãohegemônicostendemsejaadesaparecer

fisicamente,sejaapermanecer,masdeformasubordinada,excetoemalgumasáreasdavidasocial

eemcertasfraçõesdoterritórioondepodemmanter-serelativamenteautônomos,istoé,capazesde

umareproduçãoprópria.Mastalsituaçãoésempreprecária,sejaporqueosresultadoslocalmenteobtidossãomenores,sejaporqueosrespectivosagentessãopermanentementeameaçadospela

concorrênciadasatividadesmaispoderosas.

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Noperíodohistóricoatual,oestrutural(ditodinâmico)é,também,crítico.Issosedeve,

entreoutrasrazões,aofatodequeaerapresentesecaracterizapelousoextremadodetécnicasede

normas.Ousoextremadodastécnicaseaproeminênciadopensamentotécnicoconduzemà

necessidadeobsessivadenormas.Essapletoranormativaéindispensávelàeficáciadaação.Como,

porém,asatividadeshegemônicastendemaumacentralização,consecutivaàconcentraçãoda

economia,aumentaainflexibilidadedoscomportamentos,acarretandoummal-estarnocorposocial.Aissoseacrescenteofatodeque,graçasaocasamentoentreastécnicasnormativase

anormalizaçãotécnicaepolíticadaaçãocorrespondente,aprópriapolíticaacabaporinstalar-seem

todososinterstíciosdocorposocial,sejacomonecessidadeparaoexercíciodasaçõesdominantes,

sejacomoreaçãoaessasmesmasações.Masnãoépropriamentedepolíticaquesetrata,masde

simplesacúmulodenormatizaçõesparticularistas,conduzidasporatoresprivadosqueignoramo

interessesocialouqueotratamdemodoresidual.Éumaoutrarazãopelaqualasituaçãonormalé

decrise,aindaqueosfamososequilíbriosmacroeconômicosseinstalem.

Omesmosistemaideológicoquejustificaoprocessodeglobalização,ajudandoa

considerá-looúnicocaminhohistórico,acaba,também,porimporumacertavisãodacriseeaceitaçãodosremédiossugeridos.Emvirtudedisso,todosospaíses,lugaresepessoaspassamase

comportar,istoé,aorganizarsuaação,comosetal“crise”fosseamesmaparatodosecomosea

receitaparaafastá-ladevessesergeralmenteamesma.Naverdade,porém,aúnicacrisequeos

responsáveisdesejamafastaréacrisefinanceiraenãoqualqueroutra.Aíestá,naverdade,uma

causaparamaisaprofundamentodacrisereal–econômica,social,política,moral–quecaracterizao

nossotempo.

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OsúltimosanosdoséculoXXtestemunharamgrandesmudançasemtodaa faceda

Terra.Omundotorna-seunificado–emvirtudedasnovascondiçõestécnicas,basessólidasparauma

açãohumanamundializada.Esta,entretanto,impões-seàmaiorpartedahumanidadecomouma

globalizaçãoperversa.

Consideramos,emprimeirolugar,aemergênciadeumaduplatirania,adodinheiroea

dainformação,intimamenterelacionadas.Ambas,juntas, fornecemasbasesdosistemaideológico

quelegitimaasaçõesmaiscaracterísticasdaépocae,aomesmotempo,buscamconformarsegundo

um novo ethos  as relações sociais e interpessoais, influenciando o caráter das pessoas. A

competitividade, sugeridapela produção epelo consumo, é a fontedenovostotalitarismos,mais

facilmenteaceitosgraçasàconfusãodosespíritosqueseinstala.Temasmesmasorigensa

produção,nabasemesmadavidasocial,deumaviolênciaestrutural,facilmentevisívelnasformasde

agirdosEstados,dasempresasedosindivíduos.Aperversidadesistêmicaéumdosseuscorolários.

Dentro dessequadro,as pessoas sentem-sedesamparadas,o que tambémconstitui

umaincitaçãoaqueadotem,emseuscomportamentosordinários,práticasquealgunsdecêniosatrás

erammoralmentecondenadas.Háumverdadeiroretrocessoquantoànoçãodebempúblicoede

solidariedade,doqualéemblemáticooencolhimentodasfunçõessociaisepolíticasdoEstadocoma

ampliaçãodapobrezaeoscrescentesagravosàsoberania,enquantoseampliaopapelpolíticodas

empresasnaregulaçãodavidasocial.

Entreosfatoresconstitutivosdaglobalização,emseucaráterperversoatual,encontram-

seaformacomoainformaçãoéoferecidaàhumanidadeeaemergênciadodinheiroemestadopuro

comomotordavidaeconômicaesocial.Sãoduasviolênciascentrais,alicercesdosistemaideológico

quejustificaasaçõeshegemônicaselevaaoimpériodasfabulações,apercepçõesfragmentadase

aodiscursoúnico domundo,basedos novostotalitarismos – istoé, dos globalitarismos – a que

estamosassistindo.

Umdostraçosmarcantesdoatual períodohistóricoé, pois,opapel verdadeiramente

despótico da informação. Conforme já vimos, as novas condições técnicas deveriam permitir a

ampliaçãodoconhecimentodoplaneta,dosobjetosqueoformam,dassociedadesqueohabitame

doshomensemsuarealidadeintrínseca.Todavia,nascondiçõesatuais,astécnicasdainformaçãosãoprincipalmenteutilizadasporumpunhadodeatoresemfunçãodeseusobjetivosparticulares.

Essas técnicasda informação (por enquanto) são apropriadaspor algunsEstadose poralgumas

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empresas, aprofundandoassimosprocessos decriaçãode desigualdades. É dessemodoque a

periferiadosistemacapitalistaacabasetornandoaindamaisperiférica,sejaporquenãodispõe

totalmentedosnovosmeiosdeprodução,sejaporquelheescapaapossibilidadedecontrole.

Oqueétransmitidoàmaioriadahumanidadeé,defato,umainformaçãomanipulada

que,emlugardeesclarecer,confunde.Issotantoémaisgraveporque,nascondiçõesatuaisdavida

econômicaesocial,ainformaçãoconstituiumdadoessencialeimprescindível.Masnamedidaemqueoquechegaàspessoas,comotambémàsempresaseinstituiçõeshegemonizadas,é,já,o

resultadodeumamanipulação,talinformaçãoseapresentacomoideologia.Ofatodeque,nomundo

dehoje,odiscursoantecedequaseobrigatoriamenteumapartesubstancialdasaçõeshumanas–

sejamelasatécnica,aprodução,oconsumo,opoder–explicaoporquêdapresençageneralizadado

ideológicoemtodosessespontos.Nãoédeestranhar,pois,querealidadeeideologiaseconfundam

naapreciaçãodohomemcomum,sobretudoporqueaideologiaseinserenosobjetoseapresenta-se

comocoisa.

Estamosdiantedeumnovo“encantamentodomundo”,noqualdodiscursoearetórica

sãooprincípioeofim.Esseimperativoeessaonipresençadainformaçãosãoinsidiosos,jáqueainformaçãoatualtemdoisrostos,umpeloqualelabusca instruir,e umoutro,peloqualelabusca

convencer.Esteéotrabalhodapublicidade.Seainformaçãotem,hoje,essasduascaras,acarado

convencersetornamuitomaispresente,namedidaemqueapublicidadesetransformouemalgo

queantecipaaprodução.Brigandopelasobrevivênciaehegemonia,emfunçãodacompetitividade,

asempresasnãopodemexistirsempublicidade,quesetornouonervodocomércio.

Háumarelaçãocarnalentreomundodaproduçãodanotíciaeomundodaprodução

dascoisasedasnormas.Apublicidadetem,hoje,umapenetraçãomuitograndeemtodasas

atividades.Antes,haviaumaincompatibilidadeéticaentreanunciareexercercertasatividades,como

naprofissãomédica,ounaeducação.Hoje,propaga-setudo,eaprópriapolíticaé,emgrandeparte,

subordinadaàssuasregra.

Asmídiasnacionaisseglobalizam,nãoapenaspelachaticeemesmicedasfotografiase

dos títulos, mas pelos protagonistas mais presentes. Falsificam-se os eventos, já que não é

propriamenteofatooqueamídianosdá,masumainterpretação,istoé,anotícia.PierreNora,emum

bonitotexto,cujotítuloé“Oretornodefato”(inHistória:Novosproblemas,1974 ),lembraque,na

aldeia,otestemunhodaspessoasqueveiculamoqueaconteceupodesercotejadocomo

testemunhodovizinho.Numasociedadecomplexacomoanossa,somentevamossaberoquehouve

naruaaoladodoisdiasdepois,medianteumainterpretaçãomarcadapeloshumores,visões,

preconceitoseinteressesdasagências.Oeventojáéentreguemaquiadoaoleitor,aoouvinte,ao

telespectador,eétambémporissoqueseproduzemnomundodehoje,simultaneamente,fábulase

mitos.

Umadessasfabulaçõeséatãorepetidaidéiadealdeiaglobal(OctávioIanni,Teoriasda

globalização,1996 ).O fatodequeacomunicaçãosetornoupossívelàescaladoplaneta,deixando

saberinstantaneamenteoquesepassaemqualquerlugar,permitiuquefossecunhadaessaexpressão,quando,naverdade,aocontráriodoquesedánasverdadeirasaldeias,éfreqüentemente

maisfácilcomunicarcomquemestálongedoquecomovizinho.Quandoessacomunicaçãosefaz,

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narealidade,elasedácomaintermediaçãodeobjetos.Ainformaçãosobreoqueacontecenãovem

dainteraçãoentrepessoas,masdoqueéveiculadopelamídia,umainterpretaçãointeressada,senão

interesseira,dosfatos.

Umoutromitoéodoespaçoedotempocontraídos,graças,outravez,aosprodígiosda

velocidade.Sóqueavelocidadeapenasestáaoalcancedeumnúmerolimitadodepessoas,detal

formaque,segundoaspossibilidadesdecadaum,asdistânciastêmsignificaçõeseefeitosdiversoseousodomesmorelógionãopermiteigualeconomiadotempo.

Aldeiaglobaltantoquantoespaço-tempocontraídopermitiriamimaginararealizaçãodo

sonhodeummundosó,jáque,pelasmãosdomercadoglobal,coisas,relações,dinheiros,gostos

largamentesedifundemporsobrecontinentes,raças,línguas,religiões,comoseasparticularidades

tecidasaolongodeséculoshouvessemsidotodasesgarçadas.Tudoseriaconduzidoe,aomesmo

tempo,homogeneizadopelomercadoglobalregulador.Será,todavia,essemercadoregulador?Será

eleglobal?Ofatoéqueapenastrêspraças,NovaIorque,LondreseTóquio,concentrammaisde

metadedetodasastransaçõeseações;asempresastransnacionaissãoresponsáveispelamaior

partedocomércioditomundial;os47paísesmenosavançadosrepresentamjuntosapenas0,3%docomérciomundial,emlugardos2,3%em1960(Y.Berthelot,“Globalisationetrégionalisation:une

miseenperspective”,inL'integrationrégionaledanslemonde ,GEMDEV,1994),enquanto40%do

comérciodosEstadosUnidosocorremnointeriordasempresas(N.Chomsky,FolhadeSãoPaulo ,

25deabrilde1993).

Fala-se,também,deumahumanidadedesterritorializada,umadesuascaracterísticas

sendoodesfalecimentodasfronteirascomoimperativodaglobalização,eaessaidéiadever-se-ia

umaoutra:adaexistência,jáagora,deumacidadaniauniversal.Defato,asfronteirasmudaramde

significação,masnuncaestiveramtãovivas,namedidaemqueopróprioexercíciodasatividades

globalizadas não prescinde de uma ação governamental capaz de torná-las efetivas dentro do

território. A humanidade desterritorializada é apenas um mito. Por outro lado, o exercício da

cidadania,mesmoseavançaanoçãodemoralidadeinternacional,é,ainda,umfatoquedependeda

presençaedaaçãodosEstadosnacionais.

Emmundocomofábulaéalimentadoporoutrosingredientes,entreosquaisapolitização

dasestatísticas,acomeçarpelaformapelaqualéfeitaacomparaçãodariquezaentreasnações.No

fundo,nascondiçõesatuais,ochamadoProdutoNacionalBrutoéapenasumnomefantasiadoque

poderíamoschamardeprodutoglobal,jáqueasquantidadesqueentramnessacontabilidadesão

aquelasquesereferemàsoperaçõesquecaracterizamaprópriaglobalização.

Afirma-se,também,quea“mortedoEstado”melhorariaavidadoshomenseasaúde

dasempresas,namedidaemquepermitiriaaampliaçãodaliberdadedeproduzir,deconsumirede

viver.Talneoliberalismoseriao fundamentodademocracia.Observandoo funcionamentoconcreto

dasociedadeeconômicae da sociedadecivil,nãoédifícilconstatarquesãocadavezemmenor

númeroasempresasquesebeneficiamdessedesmaiodoEstado,enquantoadesigualdadeentreos

indivíduosaumenta.

Semessas fábulasemitos,esteperíodohistóriconãoexistiriacomoé: Tambémnão

seriapossívelaviolênciadodinheiro.Estesósetornaviolentoetirânicoporqueéservidopela

violênciadainformação.Estaseprevalecedofatodeque,nofimdoséculoXX,alinguagemganhaautonomia,constituindosuapróprialei.Issofacilitaaentronizaçãodeumsubsistemaideológico,sem

oqualaglobalização,emsuaformaatual,nãoseexplicaria.

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A internacionalizaçãodocapital financeiroamplia-se,recentemente,porváriasrazões.

Nafasehistóricaatual,asmegafirmasdevem,obrigatoriamente,preocupar-secomousofinanceiro

dodinheiroqueobtêm.Asgrandesempresassão,quasequecompulsoriamente,ladeadasporgrandesempresasfinanceiras.

Essasempresasfinanceirasdasmultinacionaisutilizamemgrandeparteapoupançados

paísesemqueseencontram.QuandoumafirmadequalqueroutropaísseinstalanumpaísCouD,

as poupanças internas passam a participar da lógica financeira e do trabalho financeiro dessa

multinacional.Quandoexpatriado,essedinheiropoderegressaraopaísdeorigemnaformade

créditoededívida,querdizer,porintermédiodasgrandesempresasglobais.Oqueseriapoupança

internatransforma-seempoupançaexterna,pelaqualospaísesrecipiendáriosdevempagarjuros

extorsivos. O que sai dopaís como royalties ,inteligênciacomprada,pagamentodeserviçosou

remessadelucrosvoltacomocréditoedívida.Essaéalógicaatualdainternacionalizaçãodocréditoedadívida.Aaceitaçãodeummodeloeconômicoemqueopagamentodadívidaéprioritárioimplica

aaceitaçãodalógicadessedinheiro.

Nascondiçõesatuais deeconomia internacional,o financeiro ganha uma espécie de

autonomia.Porisso,arelaçãoentrea finançaeaprodução,entreoqueagorasechamaeconomia

realeomundodafinança,dálugaràquiloqueMarxchamavadeloucuraespeculativa,fundadano

papel do dinheiro em estado puro. Este se torna o centro do mundo. É o dinheiro como,

simplesmente,dinheiro,recriandoseufetichismopelaideologia.Osistemafinanceirodescobre

fórmulasimaginosas,inventasemprenovosinstrumentos,multiplicaoquechamadederivativos,que

sãoformassemprerenovadasdeofertadessamercadoriaaosespeculadores.Oresultadoéquea

escalaçãoexponencialassimredefinidavaisetornaralgoindispensável,intrínseco,aosistema,

graçasaosprocessostécnicosdanossaépoca.Éotemporealquevaipermitirarapidezdas

operações e a volatilidade dos assets .Eafinançamoveaeconomiaeadeforma,levandoseus

tentáculosatodososaspectosdavida.Porisso,élícitofalardetiraniadodinheiro.

Seodinheiroemestadopurosetornoudespótico,issotambémsedeveaofatodeque

tudosetornavalordetroca.Amonetarizaçãodavidacotidianaganhou,nomundointeiro,umenorme

terrenonosúltimos25anos.Essapresençadodinheiroemtodaparteacabaporconstituirumdado

ameaçadordanossaexistênciacotidiana.

Éapartirdessageneralizaçãoedessacoisificaçãodaideologiaque,deum lado,se

multiplicamaspercepçõesfragmentadase,deoutro,podeestabelecer-seumdiscursoúnicodo

“mundo”,comimplicaçõesnaproduçãoeconômicaenasvisõesdahistóriacontemporânea,na

culturademassaenomercadoglobal.

Asbasesmateriaishistóricasdessamitificaçãoestãonarealidadedatécnicaatual.A

técnicaapresenta-seaohomemcomumcomoummistérioeumabanalidade.Defato,atécnicaémaisaceitadoquecompreendida.Comotudoparecedeladepender,elaseapresentacomouma

necessidade universal, uma presença indiscutível, dotada de uma força quase divina à qual os

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homensacabamserendendosembuscarentendê-la.Éumfatocomumnocotidianodetodos,por

conseguinte,umabanalidade,masseusfundamentoseseualcanceescapamàpercepçãoimediata,

daíseumistério.Taiscaracterísticasalimentamseuimaginário,alicerçadonassuasrelaçõescoma

ciência,nasuaexigênciaderacionalidade,noabsolutismocomque,aoserviçodomercado,

conformaoscomportamento;tudoissofazendocrernasuainevitabilidade.

Quandoosistemapolíticoformadopelosgovernosepelasempresasutilizaossistemastécnicoscontemporâneoseseuimaginárioparaproduziraatualglobalização,aponta-nospara

formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão e exigem obediência

imediata, sem a qual os atores são expulsosda cenaoupermanecemescravos deuma lógica

indispensávelaofuncionamentodosistemacomoumtodo.

Éumaformadetotalitarismomuitoforteeinsidiosa,porquesebaseiaemnoçõesque

parecemcentraisà própria idéiadademocracia – liberdade deopinião, de imprensa,tolerância-,

utilizadasexatamenteparasuprimirapossibilidadedeconhecimentodoqueéomundo,edoquesão

ospaíseseoslugares.

Neste mundo globalizado, a competitividade, o consumo, a confusão dos espíritos

constituembaluartesdopresenteestadodecoisas.Acompetitividadecomandanossasformasde

ação.Oconsumocomandanossasformasdeinação.Eaconfusãodosespíritosimpedeonosso

entendimentodomundo,dopaís,dolugar,dasociedadeedecadaumdenósmesmos.

Nosúltimoscincoséculosdedesenvolvimentoeexpansãogeográficadocapitalismo,a

concorrência seestabelececomo regra.Agora, a competitividade toma o lugar dacompetição.A

concorrênciaatualnãoémaisavelhaconcorrência,sobretudoporquechegaeliminandotodaforma

decompaixão.Acompetitividadetemaguerracomonorma.Há,atodocusto,quevencerooutro,

esmagando-o,paratomarseulugar.OsúltimosanosdoséculoXXforamemblemáticos,porqueneles

se realizaram grandesconcentrações, grandes fusões, tanto naórbitadaproduçãocomo nadas

finançasedainformação.Essemovimentomarcaumápicedosistemacapitalista,masétambémindicadordoseuparoxismo,jáqueaidentidadedosatores,atéentãomaisoumenosvisível,agora

finalmenteapareceaosolhosdetodos.

Essaguerracomonormajustificatodaformadeapeloàforça,aqueassistimosem

diversospaíses,umapelonãodissimulado,utilizadoparadirimirosconflitoseconseqüênciadessa

ética da competitividade que caracteriza nosso tempo. Ora, é isso também que justifica os

individualismosarrebatadoresepossessivos:individualismosnavidaeconômica(amaneiracomoas

empresasbatalhamumascomasoutras);individualismosnaordemdapolítica(amaneiracomoos

partidosfreqüentementeabandonamaidéiadepolíticaparasetornaremsimplesmenteeleitoreiros);

individualismos na ordem do território (as cidades brigando umas com as outras, as regiões

reclamandosoluçõesparticularistas).Tambémnaordemsocialeindividualsãoindividualismos

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arrebatadoresepossessivos,queacabamporconstituirooutrocomocoisa.Comportamentosque

 justificam tododesrespeitoàspessoassão, afinal, umadas basesda sociabilidadeatual.Aliás,a

maneiracomoasclassesmédias,noBrasil,seconstituíramentronizaalógicadosinstrumentos,em

lugardalógicadasfinalidades,econvocaospragmatismosaquesetornemtriunfantes.

Paratudoisso,tambémcontribuiuaperdadeinfluênciadafilosofianaformulaçãodas

ciências sociais, cuja interdisciplinaridade acaba por buscar inspiração na economia. Daí oempobrecimentodasciênciashumanasea conseqüentedificuldadeparainterpretaroquevaipelo

mundo,jáqueaciênciaeconômicasetorna,cadavezmais,umadisciplinadaadministraçãodas

coisasaoserviçodeumsistemaideológico.Éassimqueseimplantamnovasconcepçõessobreo

valoraatribuiracadaobjeto,acadaindivíduo,acadarelação,acadalugar,legitimandonovas

modalidades e novas regras da produção e do consumo. E novas formas financeiras e da

contabilidade nacional. Esta, aliás, se reduz a ser, apenas, um nome fantasia de uma suposta

contabilidadeglobal,algoqueinexistedefato,masétomadocomoparâmetro.Estáéumadasbases

dosubsistemaideológicoquecomandaoutrossubsistemasdavidasocial,formandoumaconstelação

quetantoorientaedirigeaproduçãodaeconomiacomotambémaproduçãodavida.Essanovaleidovalor–queéumaleiideológicadovalor–éumafilhadiletadacompetitividadeeacabaporser

responsáveltambémpeloabandonodanoçãoedofatodasolidariedade.Daíasfragmentações

resultantes.Daíaampliaçãododesemprego.Daíoabandonodaeducação.Daíodesapreçoàsaúde

comoumbemindividualesocial inalienável.Daí todasasnovasformasperversasdesociabilidade

quejáexistemouseestãopreparandonestepaís,parafazerdele–aindamais–umapaís

fragmentado, cujas diversas parcelas, de modo a assegurar sua sobrevivência imediata, serão

 jogadasumascontraasoutraseconvidadasaumabatalhasemquartel.

Tambémoconsumomudadefiguraaolongodotempo.Falava-se,antes,deautonomia

da produção, para significar que uma empresa, ao assegurar uma produção, buscava também

manipularaopiniãopelaviadapublicidade.Nessecaso,ofatogeradordoconsumoseriaaprodução.

Mas,atualmente,asempresashegemônicasproduzemoconsumidorantesmesmodeproduziros

produtos.Umdadoessencialdoentendimentodoconsumoéqueaproduçãodoconsumidor,hoje,

precedeàproduçãodosbense dos serviços.Então,nacadeia casual,achamadaautonomiada

produçãocedelugaraodespotismodoconsumo.Daí,oimpériodainformaçãoedapublicidade.Tal

remédioteria1%demedicinae99%depublicidade,mastodasascoisasnocomércioacabamporter

essacomposição:publicidade+materialidade;publicidade+serviços,eesseéocasodetantas

mercadoriascujacirculaçãoéfundadanumapropagandainsistenteefreqüentementeenganosa.Há

todaessamaneiradeorganizaroconsumoparapermitir,emseguida,aorganizaçãodaprodução.

Taisoperaçõespodemtornar-sesimultâneasdiantedotempodorelógio,mas,doponto

devistadalógica,éaproduçãodainformaçãoedapublicidadequeprecede.Dessemodo,vivemos

cercados, por todos os lados, por esse sistema ideológico tecido ao redor do consumo e da

informaçãoideologizados.Esseconsumoideologizadoeessainformaçãoideologizadaacabampor

seromotordeaçõespúblicaseprivadas.Esseparé,aomesmotempo,fortíssimoefragilíssimo.Deumladoémuitoforte,pelasuaeficáciaatualsobreaproduçãoeoconsumo.Mas,deoutrolado,eleé

muitofraco,muitodébil,desdequeencontremosamaneiradedefini-locomoumdadodeumsistema

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mais amplo.O consumo é o grande emoliente, produtor ou encorajador de imobilismos. Ele é,

também,umveículodenarcisismos,pormeiodosseusestímulosestéticos,morais,sociais;e

aparececomoograndefundamentalismodonossotempo,porquealcançaeenvolvetodagente.Por

isso,oentendimentodoqueéomundopassapeloconsumoepelacompetitividade,ambosfundados

nomesmosistemadaideologia.

Consumismoecompetitividadelevamaoemagrecimentomoraleintelectualdapessoa,àreduçãodapersonalidadeedavisãodomundo,convidando,também,aesqueceraoposição

fundamentalentreafiguradoconsumidoreafiguradocidadão.ÉcertoquenoBrasiltaloposiçãoé

menossentida,porqueemnossopaísjamaishouveafiguradocidadão.Asclasseschamadas

superiores,incluindoasclassesmédias,jamaisquiseramsercidadãs;ospobresjamaispuderamser

cidadãos.Asclassesmédiasforamcondicionadasaapenasquererprivilégiosenãodireitos.Eissoé

umdadoessencialdoentendimentodoBrasil:decomoospartidosseorganizamefuncionam;de

comoapolíticasedá,decomoasociedadesemove.Eaítambémascamadasintelectuaistêm

responsabilidade,porquetrasladaram,semmaior imaginaçãoe originalidade,à condiçãodaclasse

médiaeuropéia, lutandopela ampliação dosdireitospolíticos, econômicose sociais, parao casobrasileiroeatribuindo,assim,porequívoco,àclassemédiabrasileiraumpapeldemodernizaçãoede

progressoque,pelasuaprópriaconstituição,elanãopoderiater.

Tudoissosedeve,emgrandeparte,aofatodequeofimdoséculoXXerigiucomoum

dadocentraldoseufuncionamentoodespotismodainformação,relacionando,emcertamedida,com

opróprionívelalcançadopelodesenvolvimentodatécnicaatual,tãonecessitadadeumdiscurso.

Comoasatividadeshegemônicassão,hoje,todaselas,fundadasnessatécnica,odiscursoaparece

comoalgocapitalnaproduçãodaexistênciadetodos.Essaimprescindibilidadedeumdiscursoque

antecedeatudo–acomeçarpelaprópriatécnica,aprodução,oconsumoeopoder–abreaportaà

ideologia.

Antes,eracorrentediscutir-searespeitodaoposiçãoentreoqueerarealeoquenão

era;entreoerroeoacerto;oerroeaverdade;aessênciaeaaparência.Hoje,essadiscussãotalvez

não tenha sequer cabimento, porque a ideologia se torna real e está presente como realidade,

sobretudopormeiodosobjetos.Osobjetossãocoisas,sãoreais.Elesseapresentamdiantedenós

nãoapenascomoumdiscurso,mascomoumdiscursoideológico,quenosconvoca,malgradonós,a

umaformadecomportamento.Eesseimpériodosobjetostemumpapelrelevantenaproduçãodesse

novohomemapequenadoqueestamostodosameaçadosdeser.AtéaSegundaGuerraMundial,

tínhamosemtornodenósalgunsobjetos,osquaiscomandávamos.Hoje,meioséculodepois,oque

háem tornoé umamultidãodeobjetos, todosouquasetodosquerendonoscomandar.Umadas

grandesdiferençasentreomundodehácinqüentaanoseomundodeagoraéessepapelde

comandoatribuídoaosobjetos.Esãoobjetoscarregandoumaideologiaquelheséentreguepelos

homensdomarketing edodesign aoserviçodomercado.

Ocapitalismoconcorrencialbuscouaunificaçãodoplaneta,masapenasobteveuma

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unificaçãorelativa,aprofundadasobocapitalismomonopolistagraçasaosprogressostécnicos

alcançados nos últimos dois séculos e possibilitando uma transição para a situação atual de

neoliberalismo. Agora se pode, de alguma forma, falar numa vontade de unificação absoluta

alicerçadanatiraniadodinheiroedainformaçãoproduzindoemtodapartesituaçõesnasquaistudo,

istoé,coisas,homens,idéias,comportamentos,relações,lugares,éatingido.

Emcadaumdessesmomentos,sãodiferentesasrelaçõesentreoindivíduoeasociedade,entreomercadoeasolidariedade.Atérecentemente,haviaabuscadeumrelativoreforço

mútuodasidéiasedarealidadedeautonomiaindividual(comavontadedeproduçãodeindivíduos

fortes e de cidadãos) e da idéia e da realidade de uma sociedade solidária (com o Estado

crescentementeempenhadoemexercerumaregulaçãoredistributiva).Assituaçõeseramdiferentes

segundooscontinentesepaísese,seoquadroacimareferidonãoconstituíaumarealidade

completa,essaeraumaaspiraçãogeneralizada.

Ao longodahistóriapassada docapitalismo,paralelamenteà evoluçãodas técnicas,

idéiasmoraisefilosóficassedifundem,assimcomoasuarealizaçãopolíticaejurídica,demodoque

oscostumes,asleis,osregulamentos,asinstituiçõesjurídicaseestataisbuscavamrealizar,aomesmotempo,maiscontrolesociale,também,maiscontrolesobreasaçõesindividuais,limitandoa

açãodaquelesvetoresque,deixadossozinhos,levariamàeclosãodeegoísmos,aoexercíciodaforça

brutaeadesníveissociaiscadavezmaisagudos.

Nafase atualdeglobalização,o usodas técnicasconheceuma importantemudança

qualitativaequantitativa.Passamosdeumuso“imperialista”,queera,também,umusodesiguale

combinado,segundooscontinenteselugares,aumapresençaobrigatóriaemtodosospaísesdos

sistemastécnicoshegemônicos,graçasaopapelunificadordastécnicasdeinformação.

Ousoimperialistadastécnicaspermitia,pelaviadapolítica,umacertaconvivênciade

níveisdiferentesdeformastécnicasedeformasorganizacionaisnosdiversosimpérios.Talsituação

permanecepraticamentepor umséculo,semqueasdiferençasdepoder entreos impérios fosse

causadeconflitosduráveisentreelese dentro deles. Opróprio imperialismoera“diferencial”, tal

característica sendo conseqüência da subordinação do mercado à política, seja a política

internacional,sejaapolíticainterioracadapaísouacadaconjuntoimperial.Comaglobalização,as

técnicassetornammaiseficazes,suapresençaseconfundecomoecúmeno,seuencadeamento

praticamenteespontâneosereforçae,aomesmotempo,oseuusoescapa,sobmuitosaspectos,ao

domíniodapolíticaesetornasubordinadoaomercado.

Comoas técnicashegemônicasatuaissão, todaselas, filhas daciência,e comosua

utilizaçãosedáaoserviçodomercado,esseamálgamaproduzumideáriodatécnicaedomercado

queésantificadopelaciência,considerada,elaprópria,infalível.Essa,aliás,éumadasfontesdo

poderdopensamentoúnico.Tudooqueéfeitopelamãodosvetoresfundamentaisdaglobalização

partedeidéiascientíficas,indispensáveisaprodução,aliásacelerada,denovasrealidades,detal

modoqueasaçõesassimcriadasseimpõemcomosoluçõesúnicas.

Nascondiçõesatuais,aideologiaéreforçadadeumaformaqueseriaimpossívelaindaháumquartodeséculo,jáque,primeiroasidéiase,sobretudo,asideologiassetransformamem

situações, enquanto as situações se tornam entre si mesmas “idéias”, “idéias do que fazer”,

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“ideologia”,e impregnam,devolta,aciênciacadavezmaisredutorae reduzida,maisdistanteda

busca da “verdade”. Desse conjunto de variáveis decorrem, também, outras condições da vida

contemporânea, fundadas na matematização da existência, carregando consigo uma crescente

seduçãopelosnúmeros,umusomágicodasestatísticas.

ÉtambémapartirdessequadroquesepodeinterpretaraserializaçãodequefalavaJ.-

P.Satreem Questionsdeméthode,CritiquedelaRaisondialectique ,1960.Emtaiscondições,instalam-se a competitividade, o salve-se-quem-puder, a volta ao canibalismo, a supressão da

solidariedade,acumulandodificuldadesparaumconvíviosocialsaudáveleparaoexercícioda

democracia.Enquantoestaéreduzidaaumademocraciademercadoeamesquinhadacomo

eleitoralismo,istoé,consumodeeleições,as“pesquisas”perfilam-secomoumaferidorquantitativo

daopinião,daqualacabaporserumadasformadoras,levando tudo issoaoempobrecimentodo

debatedeidéiaseaprópriamortedapolítica.Naesferadasociabilidade,levantam-seutilitarismos

comoregradevidamedianteaexacerbaçãodoconsumo,dosnarcisismos,doimediatismo,do

egoísmo,doabandonodasolidariedade,comaimplantação,galopante,deumaéticapragmática

individualista.Édessaformaqueasociedadeeos indivíduosaceitamdaradeusàgenerosidade,àsolidariedadeeaemoçãocomaentronizaçãodoreinodocálculo(apartirdocálculoeconômico)eda

competitividade.

São,todasessas,condiçõesparaadifusãodeumpensamentoedeumaprática

totalitárias.Essestotalitarismossedãonaesferadotrabalhocomo,porexemplo,nummundoagrícola

modernizadoondeosatoressubalternizadosconvivem,comonumexército,submetidosauma

disciplinamilitar.Ototalitarismonãoé,porém,limitadoàesferadotrabalho,escorrendoparaaesfera

políticaedasrelaçõesinterpessoaiseinvadindooprópriomundodapesquisaedoensino

universitários,medianteumcercoàsidéiascadavezmenosdissimulado.Cabe-nos,mesmo,indagar

diante dessas novas realidades sobre a pertinência da presente utilização de concepções já

ultrapassadasdedemocracia,opiniãopública,cidadania,conceitosquenecessitamurgenterevisão,

sobretudonoslugaresondeessascategoriasnuncaforamclaramentedefinidasnemtotalmente

exercitadas.

Nossagrandetarefa,hoje,éaelaboraçãodeumnovodiscurso,capazdedesmitificara

competitividadeeoconsumoedeatenuar,senãodesmanchar,aconfusãodosespíritos.

Fala-se,hoje,muitoemviolênciaeégeralmenteadmitidoqueéquaseumestado,uma

situaçãocaracterísticadonossotempo.Todavia,dentreasviolênciasdequesefala,amaiorparteé

sobretudoformadadeviolênciasfuncionaisderivadas,enquantoaatençãoémenosvoltadaparao

quepreferimoschamardeviolênciaestrutural,queestánabasedaproduçãodasoutraseconstituia

violência central original. Por isso, acabamos por apenas condenar as violências periféricas

particulares.

Aonossover,aviolênciaestruturalresultadapresençaedasmanifestaçõesconjuntas,

nessaeradaglobalização,dodinheiroemestadopuro,dacompetitividadeemestadopuroeda

potênciaemestadopuro,cujaassociaçãoconduzàemergênciadenovostotalitarismosepermitepensarquevivemosnumaépocadeglobalitarismomuitomaisquedeglobalização.Paralelamente,

evoluímosdesituaçõesemqueaperversidadesemanifestavadeformaisoladaparaumasituaçãona

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qualseinstalaumsistemadaperversidade,que,aomesmotempo,éresultadoecausada

legitimaçãododinheiroemestadopuro,dacompetitividadeemestadopuroedapotênciaemestado

puro,consagrando,afinal,ofimdaéticaeofimdapolítica.

Com a globalização impõe-se uma nova noção de riqueza, de prosperidade e deequilíbriomacroeconômico, conceitos fundadosnodinheiroemestado puroe aos quais todasas

economiasnacionaissãochamadasaseadaptar.Anoçãoearealidadedadívidainternacional

tambémderivamdessamesmaideologia.Oconsumo,tornadoumdenominadorcomumparatodos

osindivíduos,atribuiumpapelcentralaodinheironassuasdiferentesmanifestações;juntos,o

dinheiroeoconsumoaparecemcomoreguladoresdavidaindividual.Onovodinheirotorna-se

onipresente.Fundadonumaideologia,essedinheirosemmedidasetornaamedidageral,reforçando

avocaçãoparaconsideraraacumulaçãocomoumametaemsimesma.Narealidade,oresultado

dessabuscatantopodelevaràacumulação(paraalguns)comooendividamento(paraamaioria).

Nessas condições, firma-se um círculo vicioso dentro do qual o medo e o desamparo se criammutuamenteeabuscadesenfreadadodinheirotantoéumacausacomoumaconseqüênciado

desamparoedomedo.

O resultadoobjetivoéanecessidade, real ou imaginada, debuscarmaisdinheiro,e,

comoeste,emseuestadopuro,éindispensávelàexistênciadaspessoas,dasempresasedas

nações,asformaspelasquaiseleéobtido,sejamquaisforem,jáseencontramantecipadamente

 justificadas.

Anecessidadedecapitalizaçãoconduzaadotarcomoregraanecessidadedecompetir

em todos os planos. Diz-se que as nações necessitam competir entre elas –o que, todavia, é

duvidoso-easempresascertamentecompetemporumquinhãosempremaiornomercado.Masa

estabilidadedeumaempresapodedependerdeumapequenaaçãodessemercado.Asobrevivência

estásempreporumfio.Nummundoglobalizado,regiõesecidadessãochamadasacompetire,

diantedas regras atuaisdaproduçãoedos imperativosatuaisdoconsumo, a competitividadese

tornatambémumaregradaconvivênciaentreaspessoas.Anecessidadedecompetiré,aliás,

legitimadaporumaideologialargamenteaceitaedifundida,namedidaemqueadesobediênciaàs

suasregrasimplicaperderposiçõese,atémesmo,desaparecerdocenárioeconômico.Criam-se,

destemodo,novos“valores”emtodososplanos,umanova“ética”pervasivaeoperacionalfaceaos

mecanismosdaglobalização.

Concorrer ecompetirnãosãoamesmacoisa.A concorrência podeaté sersaudável

semprequeabatalhaentreagentes,paramelhorempreenderumatarefaeobtermelhoresresultados

finais,exigeorespeitoacertasregrasdeconvivênciapreestabelecidasounão.Jáacompetitividade

sefundanainvençãodenovasarmasdeluta,numexercícioemqueaúnicaregraéaconquistada

melhorposição.Acompetitividadeéumaespéciedeguerraemquetudovalee,dessemodo,sua

práticaprovocaumafrouxamentodosvaloresmoraiseumconviteaoexercíciodaviolência.

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Paraexerceracompetitividadeemestadopuroeobterodinheiroemestadopuro,o

poder(apotência)devesertambémexercidoemestadopuro.Ousodaforçaacabasetornandouma

necessidade. Não há outro telos , outra finalidade que o próprio uso da força, já que ela é

indispensávelparacompetirefazermaisdinheiro;issovemacompanhadopeladesnecessidadede

responsabilidadeperanteooutro,acoletividadepróximaeahumanidadeemgeral.Porexemplo,aidéiadequeodesempregoéoresultadodeumjogosimplórioentre

formastécnicasedecisõesmicroeconômicasdasempresaséumasimplificação,originadadessa

confusão,comoseanaçãonãodevessesolidariedadeacadaumdosseusmembros.Oabandonoda

idéiadesolidariedadeestáportrásdesseentendimentodaeconomiaeconduzaodesamparoemque

vivemoshoje.Jamaishouvenahistóriaumperíodoemqueomedofossetãogeneralizadoe

alcançassetodasasáreasdanossavida:medododesemprego,medodafome,medodaviolência,

medodooutro.Talmedoseespalhaeseaprofundaapartirdeumaviolênciadifusa,masestrutural,

típicadonossotempo,cujoentendimentoéindispensávelparacompreender,demaneiramais

adequada,questõescomoadívidasocialeaviolênciafuncional,hojetãopresentesnocotidianodetodos.

Sejaqualforoângulopeloqualseexaminemassituaçõescaracterísticasdoperíodo

atual,a realidadepodeservistacomoumafábricadeperversidade.A fomedeixadeserum fato

isoladoouocasionale passaaserumdadogeneralizadoepermanente.Elaatinge800milhõesde

pessoasespalhadasportodososcontinentes,semexceção.Quandoosprogressosdamedicinaeda

informaçãodeviamautorizarumareduçãosubstancialdosproblemasdesaúde,sabemosque14

milhõesdepessoasmorremtodososdias,antesdoquintoanodevida.

Doisbilhõesdepessoassobrevivemsemáguapotável.Nuncanahistóriahouveumtão

grandenúmerodedeslocadoserefugiados.Ofenômenodossem-teto,curiosidadenaprimeira

metadedoséculoXX,hojeé um fatobanal,presenteemtodasasgrandescidadesdomundo.O

desempregoéalgotornadocomum.Aomesmotempo,ficoumaisdifícildoqueantesatribuir

educaçãodequalidadee,mesmo,acabarcomoanalfabetismo.Apobrezatambémaumenta.Nofim

doséculoXXhaviamais600milhõesdepobresdoqueem1960;e1,4bilhãodepessoasganham

menosdeumdólarpordia.Taisnúmerospodemser,naverdade,ampliadosporque,aindaaqui,os

métodosquantitativosdaestatísticaenganam:serpobrenãoéapenasganharmenosdoqueuma

soma arbitrariamente fixada;ser pobreé participardeuma situaçãoestrutural, comuma posição

relativainferiordentrodasociedadecomoumtodo.Eessacondiçãoseampliaparaumnúmerocada

vezmaiordepessoas.Ofato,porém,équeapobrezatantoquantoodesempregoagorasão

considerados comoalgo “natural”, inerente ao seupróprio processo. Junto ao desemprego eà

pobrezaabsoluta, registre-seo empobrecimentorelativodecamadas cada vezmaioresgraçasà

deterioraçãodovalordotrabalho.NoMéxico,apartedetrabalhonarendanacionalcaide36%na

décadade1970para23%em1992.Vivemosnummundodeexclusões,agravadaspeladesproteção

social,apanágiodomodeloneoliberal,queétambém,criadordeinsegurança.Naverdade,aperversidadedeixadesemanisfestarporfatosisolados,atribuídosa

distorçõesdapersonalidade,paraseestabelecercomoumsistema.Aonossover,acausaessencial

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daperversidadesistêmicaéa instituição,porleigeraldavidasocial,dacompetitividadecomoregra

absoluta,umacompetitividadequeescorresobretodooedifíciosocial.O outro ,sejaeleempresa,

instituiçãoou indivíduo,aparececomoumobstáculoà realizaçãodosfinsdecadaume deveser

removido, por isso sendo considerado umacoisa. Decorrem daí a celebração dos egoísmos, o

alastramentodosnarcisismos,abanalizaçãodaguerradetodoscontratodos,comautilizaçãode

qualquerquesejaomeioparaobtero fimcolimado,istoé, competire, sepossível,vencer.Daíadifusão,tambémgeneralizada,deoutrosubprodutodacompetitividade,istoé,acorrupção.

EssesistemadaperversidadeincluiamortedaPolítica(comumPmaiúsculo),jáquea

conduçãodoprocessopolíticopassaaseratributodasgrandesempresas.Junte-seaissooprocesso

deconformaçãodaopiniãopelasmídias,umdadoimportantenomovimentodealienaçãotrazidocom

asubstituiçãododebatecivilizatóriopelodiscursoúnicodomercado.Daíoensinamentoeo

aprendizadodecomportamentosdosquaisestãoausentesobjetivosfinalísticoseéticos.

Assim elaborado, o sistema da perversidade legitima a preeminência de uma ação

hegemônicamassemresponsabilidade,eainstalaçãosemcontrapartidadeumaordementrópica,

comaprodução“natural”dadesordem.Paratudoisso,tambémcontribuioestabelecimentodoimpériodoconsumo,dentrodo

qualseinstalamconsumidoresmaisqueperfeitos(M.Santos,Oespaçodocidadão ,1988),levadosà

negligênciaemrelaçãoàcidadaniaeseucorolário,istoé,omenosprezoquantoàliberdade,cujo

cultoésubstituídopelapreocupaçãocomaincolumidade.Estareacendeegoísmoseéumdos

fermentosdaquebradasolidariedadeentrepessoas,classeseregiões.Incluam-setambém,nessa

lista dos processos característicos da instalação do sistema da perversidade, a ampliação das

desigualdades de todo gênero: interpessoais, de classes, regionais, internacionais. Às antigas

desigualdades,somam-senovas.

Ospapéisdominantes,legitimadospelaideologiaepelapráticadacompetitividade,são

amentira,comonomedesegredodamarca;oengodo,comonomedemarketing;adissimulaçãoe

ocinismo,comosnomesdetáticaeestratégia.Éumasituaçãonaqualseproduzaglorificaçãoda

esperteza,negandoasinceridade,eaglorificaçãodaavareza,negandoagenerosidade.Desse

modo,ocaminhoficaabertoaoabandonodassolidariedadeseaofimdaética,mas,também,da

política.Paraotriunfodasnovasvirtudespragmáticas,oidealdedemocraciaplenaésubstituídopela

construçãodeumademocraciademercado,naqualadistribuiçãodopoderétributáriadarealização

dos finsúltimosdoprópriosistemaglobalitário.Estassãoasrazõespelasquaisavidanormal de

todososdiasestásujeitaaumaviolênciaestruturalque,aliás,éamãedetodasasoutrasviolências.

Façamosumregresso,muitobreve,aocomeçodahistóriahumana,quandoohomem

emsociedade,relacionando-sediretamentecomanatureza,constróiahistória.Nessecomeçodos

tempos,oslaçosentreterritório,política,economia,culturaelinguagemeramtransparentes.Nas

sociedades que os antropólogos europeus e norte-americanos orgulhosamente chamaram de

primitivas, a relação entre setores da vida social também se dava diretamente. Não havia

praticamenteintermediações.Poder-se-iaconsiderarqueexistiaumaterritorialidadegenuína.Aeconomiaeacultura

dependiamdoterritório,alinguagemeraumaemanaçãodousodoterritóriopelaeconomiaepela

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cultura,eapolíticatambémestavacomeleintimamenterelacionada.

Havia, por conseguinte, uma territorialidade absoluta, no sentido que, em todas as

manifestaçõesessenciaisdesuaexistência,osmoradorespertenciamàquiloquelhespertencia,isto

é,oterritório.Issocriavaumsentidodeidentidadeentreaspessoaseoseuespaçogeográfico,que

lhesatribuía,emfunçãodaproduçãonecessáriaàsobrevivênciadogrupo,umanoçãoparticularde

limites,acarretando,paralelamente,umacompartimentaçãodoespaço,oquetambémproduziaumaidéiadedomínio.Paramanteraidentidadeeoslimites,eraprecisoterclaraessaidéiadedomínio,de

poder.Apolíticadoterritóriotinhaasmesmasbasesqueapolíticadaeconomia,dacultura,da

linguagem,formandoumconjuntoindissociável.Criava-se,paralelamente,aidéiadecomunidade,um

contextolimitadonoespaço.

Todarelaçãodohomemcomanaturezaéportadoraeprodutoradetécnicasquese

foram enriquecendo, diversificando e avolumando ao longo do tempo. Nos últimos séculos,conhecemosumavançodossistemas técnicos,atéque,noséculoXVIII, surgemas técnicasdas

máquinas,quemaistardevãose incorporaraosolocomopróteses,proporcionandoaohomemum

menoresforçonaprodução,notransporteenascomunicações,mudandoafacedaTerra,alterando

asrelaçõesentrepaíseseentresociedadeseindivíduos.Astécnicasoferecemrespostasàvontade

deevoluçãodoshomense,definidaspelaspossibilidadesquecriam,sãoamarcadecadaperíododa

história.

Avidaassimrealizadapormeiodessastécnicasé,pois,cadavezmenossubordinadaao

aleatórioecadavezmaisexigedoshomenscomportamentosprevisíveis.Essaprevisibilidadede

comportamentoassegura, dealgumamaneira,uma visãomais racionaldomundoe tambémdos

lugaresqueconduzaumaorganizaçãosociotécnicadotrabalho,doterritórioedofenômenodo

poder.Daíodesencantamentoprogressivodomundo.

NoséculoXVIII,aconteceramdoisfenômenosextremamenteimportantes.Uméa

produçãodastécnicasdasmáquinas,querevalorizamotrabalhoeocapital,requalificamos

territórios,permitema conquistadenovosespaçose abremhorizontes paraa humanidade.Esse

séculomarcaoreforçodocapitalismoetambémaentradaemcenadohomemcomoumvaloraser

considerado.Onascimentodatécnicadasmáquinas,oreforçodacondiçãotécnicanavidasociale

individualeasnovasconcepçõessobreohomemsecorporificamcomasidéiasfilosóficasquese

iriamtornarforçasdapolítica.Esteéumoutrodadoimportante.

OséculoXVIIIproduziuosenciclopedistasearevoluçãoamericanaeaRevolução

Francesa,respostaspolíticasàsidéiasfilosóficas.Nummomentoemqueocapitalismotambémse

reforçava,seastécnicashouvessemsidoentreguesinteiramenteàsmãoscapitalistassemque,pelo

outro lado, surgissemas idéias filosóficas (que também eram idéiasmorais), o mundo teria se

organizadodeformadiferente.

Seaoladodessesprogressosdatécnicaaserviçodaproduçãoedocapitalismonão

houvesseaprogressãodas idéias,teríamostidoumaeclosãomuitomaiordoutilitarismo,comuma

práticamaisavassaladoradolucroedaconcorrência.Aocontrário,foiestabelecidaapossibilidadedeenriquecermoralmenteoindivíduo.Amesmaéticaglorificavaoindivíduoresponsáveleacoletividade

responsável.Amboseramresponsáveis.Indivíduoecoletividadeeramchamadosacriarjuntosum

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enriquecimento recíprocoque iria apontarparaa buscadademocracia,porintermédiodoEstado

Nacional, do Estado de Direito e do Estado Social, e para a produção da cidadania plena,

reivindicaçãoquesefoiafirmandoaolongodessesséculos.Certamenteacidadanianuncachegoua

serplena,masquasealcançouesseestágioemcertospaíses,duranteoschamadostrintaanos

gloriososdepoisdofimdaSegundaGuerraMundial.Eessaquaseplenitudeeraparalelaàquase

plenitudedademocracia.Acidadaniaplenaéumdiquecontraocapitalpleno.

Aglobalizaçãomarcaummomentoderupturanesseprocessodeevoluçãosociale

moralquesevinhafazendonos séculosprecedentes.É irônico recordarqueoprogressotécnico

aparecia,desdeosséculosanteriores,comoumacondiçãopararealizaressasonhadaglobalização

comamaiscompletahumanizaçãodavidanoplaneta.Finalmente,quandoesseprogressotécnico

alcançaumnívelsuperior,aglobalizaçãoserealiza,masnãoaserviçodahumanidade.

Aglobalizaçãomataanoçãodesolidariedade,devolveohomemàcondiçãoprimitivadocadaumporsie,comosevoltássemosaseranimaisdaselva,reduzasnoçõesdemoralidade

públicaeparticularaumquasenada.

Operíodoatualtemcomoumadasbasesessecasamentoentreciênciaetécnica,essa

tecnociência,cujousoécondicionadopelomercado.Porconseguinte,trata-sedeumatécnicaede

umaciência seletivas.Como, freqüentemente,a ciênciapassaa produzir aquilo que interessaao

mercado,enãoàhumanidadeemgeral,oprogressotécnicoecientíficonãoésempreumprogresso

moral.Pior,talvez,doqueisso:aausênciadesseprogressomoraletudooqueéfeitoapartirdessa

ausênciavaipesarfortementesobreomodelodeconstruçãohistóricadominantenoúltimoquarteldo

séculoXX.

Essaglobalizaçãotemdeserencaradaapartirdedoisprocessosparalelos.Deumlado,

dá-seaproduçãodeumamaterialidade,ouseja,dascondiçõesmateriaisquenoscercamequesão

abasedaproduçãoeconômica,dostransportesedascomunicações.Deoutroháaproduçãode

novasrelaçõessociaisentrepaíses,classesepessoas.Anovasituação,conforme jáacentuamos,

vaisealicerçaremduascolunascentrais.Umatemcomobaseodinheiroeaoutrasefundana

informação. Dentro de cada país, sobretudo entre os mais pobres, informação e dinheiro

mundializadosacabamporseimporcomoalgoautônomofaceàsociedadee,mesmo,àeconomia,

tornando-seumelementofundamentaldaprodução,eaomesmotempodageopolítica,istoé,das

relaçõesentrepaísesedentrodecadanação.

Ainformaçãoécentralizadanasmãosdeumnúmeroextremamentelimitadodefirmas.

Hoje,oessencialdoquenomundoselê,tantoemjornaiscomoemlivros,éproduzidoapartirde

meia dúzia de empresas que, na realidade, não transmitemnovidades, mas as reescrevem de

maneira específica. Apesar de as condições técnicas da informação permitirem que toda a

humanidadeconheçatudoqueomundoé,acabamosnarealidadepornãosabê-lo,porcausadessa

intermediaçãodeformante.

O mundose torna fluido, graças à informação, mas tambémao dinheiro. Todosos

contextosseintrometemesuperpõem,corporificandoumcontextoglobal,noqualasfronteirassetornamporosasparaodinheiroeparaainformação.Alémdisso,oterritóriodeixadeterfronteiras

rígidas,oquelevaaoenfraquecimentoeàmudançadenaturezadosEstadosnacionais.

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Odiscursoqueouvimostodososdias,paranosfazercrerquedevehavermenos

Estado,vale-sedessamencionadaporosidade,massuabaseessencialéofatodequeos

condutoresdaglobalizaçãonecessitamdeumEstadoflexívelaseusinteresses.Asprivatizaçõessão

amostradequeocapitalsetornoudevorante,gulosoaoextremo,exigindosempremais,querendo

tudo.Alémdisso,ainstalaçãodessescapitaisglobalizadossupõequeoterritórioseadapteàssuas

necessidadesdefluidez,investindopesadamenteparaalterarageografiadasregiõesescolhidas.Detalforma,oEstadoacabaportermenosrecursosparatudooqueésocial,sobretudonocasodas

privatizaçõescaricatas,comonomodelobrasileiro,quefinanciaasempresasestrangeirascandidatas

àcompradocapitalsocialnacional.NãoéqueoEstadoseausenteousetornemenor.Eleapenasse

omitequantoaointeressedaspopulaçõesesetornamaisforte,maiságil,maispresente,aoserviço

daeconomiadominante.

Apolíticaagoraé feitanomercado.Sóqueessemercadoglobalnãoexistecomoator,mas como uma ideologia, um símbolo. Os atores são as empresas globais, que não têm

preocupaçõeséticas,nemfinalísticas.Dir-se-áque,nomundodacompetitividade,ouseécadavez

maisindividualista,ousedesaparece.Então,apróprialógicadesobrevivênciadaempresaglobal

sugerequefuncionesemnenhumaltruísmo.Mas,seoEstadonãopodesersolidárioeaempresa

nãopodeseraltruísta,asociedadecomoumtodonãotemquemavalha.Agorasefalamuitonum

terceirosetor,emque asempresasprivadasassumiriam um trabalhodeassistênciasocial antes

deferidoaopoderpúblico.Caber-lhes-ia,dessemodo,escolherquaisosbeneficiários,privilegiando

umaparceladasociedadeedeixandoamaiorpartedefora.Haveriafraçõesdoterritórioeda

sociedadeaseremdeixadasporconta,desdequenãoconvenhamaocálculodasfirmas.Essa

“política”dasempresaseqüivaleàdecretaçãodemortedaPolítica.

Apolítica,pordefinição,ésempreamplaesupõeumavisãodeconjunto.Elaapenasse

realizaquandoexisteaconsideraçãodetodosedetudo.Quemnãotemvisãodeconjuntonãochega

aserpolítico.Enãohápolíticaapenasparaospobres,comonãoháapenasparaosricos.A

eliminaçãodapobrezaéumproblemaestrutural.Foradaíoquesepretendeéencontrarformasde

proteçãoacertospobresecertosricos,escolhidossegundoosinteressesdosdoadores.Masa

políticatemdecuidardoconjuntoderealidadesedoconjuntoderelações.

Nascondiçõesatuais,edeummodogeral,estamosassistindoànão-política,istoé,à

políticafeitapelasempresas,sobretudoasmaiores.Quandoumagrandeempresaseinstala,chega

comsuasnormas,quasetodasextremamenterígidas.Comoessasnormasrígidassãoassociadasao

usoconsideradoadequadodastécnicascorrespondentes,omundodasnormasseadensaporqueas

técnicasemsimesmastambémsãonormas.Pelofatodequeastécnicasatuaissãosolidárias,

quandoumaseimpõecria-seanecessidadedetrazeroutras,semasquaisaquelanãofuncionabem.

Cada técnica propõe uma maneira particular de comportamento, envolve suas próprias

regulamentaçõese,porconseguinte,trazparaoslugaresnovasformasderelacionamento.Omesmo

sedácomasempresas.Éassimquetambémsealteramasrelaçõessociaisdentrodecada

comunidade.Muda a estruturadoemprego,assimcomo asoutrasrelaçõeseconômicas,sociais,culturaisemoraisdentrodecadalugar,afetandoigualmenteoorçamentopúblico,tantonarubricada

receitacomonocapítulodadespesa.Umpequenonúmerodegrandesempresasqueseinstala

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acarretaparaasociedadecomoumtodoumpesadoprocessodedesequilíbrio.

Todavia,medianteodiscursooficial, taisempresassãoapresentadascomosalvadoras

doslugaresesãoapontadascomocredorasdereconhecimentopelosseusaportesdeempregoe

modernidade.Daíacrençadesuaindispensabilidade, fatordapresenteguerraentrelugarese,em

muitoscasos,desuaatitudedechantagemfrenteaopoderpúblico,ameaçandoiremboraquando

não atendidas em seus reclamos. Assim, o poder público passa a ser subordinado, compelido,arrastado. À medida que se impõeesse nexo dasgrandes empresas, instala-se a semente da

ingovernabilidade, já fortemente implantada no Brasil, ainda que sua dimensão não tenha sido

adequadamenteavaliada.Àmedidaqueosinstitutosencarregadosdecuidardointeressegeralsão

enfraquecidos,comoabandonodanoçãoedapráticadasolidariedade,estamos,pelomenosa

médioprazo,produzindoasprecondiçõesdafragmentaçãodadesordem,claramentevisíveisnopaís,

pormeiodocomportamento dos territórios, isto é,dacrisepraticamentegeraldos estadose dos

municípios.

Os países subdesenvolvidos conheceram pelo menos três formas de pobreza e,

paralelamente, três formas de dívida social, no último meio século. A primeira seria o que

ousadamentechamaremosdepobrezaincluída ,umapobrezaacidental,àsvezesresidualousazonal,

produzida em certos momentos do ano, uma pobreza intersticial e, sobretudo, sem vasos

comunicantes

Depoischegaumaoutra,reconhecidaeestudadacomoumadoençadacivilização.

Entãochamadademarginalidade ,talpobrezaeraproduzidapeloprocessoeconômicodadivisãodo

trabalho,internacionalouinterna.Admitia-sequepoderiasercorrigida,oqueerabuscadopelasmãos

dosgovernos.

Eagorachegamosaoterceirotipo,apobrezaestrutural,quedeumpontodevistamoral

epolíticoeqüivaleaumadívidasocial.Elaéestruturalenãomaislocal,nemmesmonacional;torna-

seglobalizada,presenteemtodaapartedomundo.Háumadisseminaçãoplanetáriaeumaprodução

globalizadadapobreza,aindaqueestejamaispresentenospaísesjápobres.Masétambémuma

produçãocientífica,portantovoluntáriadadívidasocial,paraaqual,namaiorpartedoplaneta,nãose

buscamremédios.

Antes,assituaçõesdepobrezapodiamserdefinidascomoreveladorasdeumapobreza

acidental,residual,estacional,intersticial,vistacomodesadaptaçãolocalaosprocessosmaisgerais

demudança,oucomoinadaptaçãoentrecondiçõesnaturaisecondiçõessociais.Eraumapobreza

queseproduzianumlugarenãosecomunicavaaoutrolugar.

Então,nemacidade,nemoterritório,nemaprópriasociedadeeramexclusivaou

majoritariamente movidos por driving forces  compreendidas pelo processo de racionalização. A

presençadastécnicas,coladasaoterritórioouinerentesàvidasocial,erarelativamentepoucoexpressiva,reduzindo,assim,aeficáciadosprocessosracionalizadoresporventuravigentesnavida

econômica,cultural,social,epolítica.Dessemodo,a racionalidadedaexistêncianãoconstituíaum

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dadoessencialdoprocessohistórico,limitando-seaalgunsaspectosisoladosdasociabilidade.A

produçãodapobrezairiabuscarsuascausasemoutrosfatores.

Na situação que estamos descrevendo, as soluções ao problema eram privadas,

assistencialistas,locais,eapobrezaerafreqüentementeapresentadacomoumacidentenaturalou

social.Emummundoondeoconsumoaindanãoconstituíaumnexosocialobrigatório,apobrezaera

menosdiscriminatória.Daípoder-sefalardepobresincluídos.

Numsegundomomento,apobrezaéidentificadacomoumadoençadacivilização,cuja

produçãoacompanhaopróprioprocessoeconômico.Agora,oconsumoseimpõecomoumdado

importante,poisconstituiocentrodaexplicaçãodasdiferençasedapercepçãodassituações.Dois

fatoresjogamumpapelfundamental.Ampliam-se,deumlado,aspossibilidadesdecirculação,ede

outro,graçasàsformasmodernasdedifusãodasinovações,ainformaçãoconstituiumdado

revolucionárionasrelaçõessociais.Oradiotransistoreraograndesímbolo.Aampliaçãodoconsumoganha,assim,ascondiçõesmateriaisepsicológicasnecessárias,dandoàpobrezanovosconteúdos

e novasdefinições. Além dapobrezaabsoluta, cria-se e recria-se incessantemente uma pobreza

relativa,quelevaaclassificarosindivíduospelasuacapacidadedeconsumir,epelaformacomoo

fazem.Oestabelecimentode“índices”depobrezaemisériautilizaessescomponentes.

Aindanessesegundomomento,quecoincidecomageneralizaçãoeosucessodaidéia

desubdesenvolvimentoedasteoriasdestinadasacombatê-lo,ospobreseramchamadosde

marginais. Para superar tal situação, considerada indesejável, torna-se, também, generalizada a

preocupaçãodosgovernosedassociedadesnacionais,pormeiodesuaselitesintelectuaise

políticas,como fenômenodapobreza,oque levaa umabuscadesoluçõesdeEstadoparaesse

problema,consideradogravemasnãoinsolúvel.Oêxitodoestadodobem-estaremtantospaísesda

Europaocidentaleanotíciadaspreocupaçõesdospaísessocialistasparacomapopulaçãoemgeral

funcionavamcominspiraçãoaospaísespobres,todoscomprometidos,aomenos ideologicamente,

comalutacontraapobrezae suasmanifestações,aindaquenão lhes fossepossívelalcançara

realizaçãodoestadodebem-estar.Mesmoempaísescomoonosso,opoderpúblicoéforçadoa

encontrarfórmulas, saídas, arremedos desolução.Havia uma certavergonha denãoenfrentara

questão.

O último período, noqual nos encontramos, revela uma pobreza denovo tipo, uma

pobrezaestruturalglobalizada,resultantedeumsistemadeaçãodeliberada.Examinandooprocesso

peloqualodesempregoégeradoearemuneraçãodoempregosetornacadavezpior,aomesmo

tempoemqueopoderpúblicoseretiradastarefasdeproteçãosocial,élícitoconsiderarqueaatual

divisão“administrativa”dotrabalhoeaausênciadeliberadadoEstadodesuamissãosocialde

regulaçãoestejamcontribuindoparaumaproduçãocientífica,globalizadaevoluntáriadapobreza.

Agora,ao contrário dasduas fases anteriores, trata-se deumapobrezapervasiva, generalizada,permanente,global.Pode-se,dealgummodo,admitiraexistênciadealgocomoumplanejamento

centralizadodapobrezaatual:aindaqueseusautoressejammuitos,oseumotoressencialéo

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mesmodosoutrosprocessosdefinidoresdenossaépoca.

A pobreza atual resulta daconvergência decausas que sedão emdiversosníveis,

existindocomovasoscomunicantesecomoalgoracional,umresultadonecessáriodopresente

processo,umfenômenoinevitável,consideradoatémesmoumfatonatural.

Alcançamos,assim,umaespéciedenaturalizaçãodapobreza,queseriapoliticamente

produzida pelos atores globais com a colaboração consciente dos governos nacionais e,contrariamenteàssituaçõesprecedentes,comaconvivênciadeintelectuaiscontratados–ouapenas

contratados–paralegitimaressanaturalização.

Nessaúltima fase,ospobresnãosão incluídosnemmarginais,elessãoexcluídos.A

divisãodotrabalhoera,atérecentemente,algomaisoumenosespontâneo.Agoranão.Hoje,ela

obedeceacânonescientíficos–porissoaconsideramosumadivisãodotrabalhoadministrada–eé

movidaporummecanismosquetrazconsigoaproduçãodasdívidassociaiseadisseminaçãoda

pobrezanumaescalaglobal.Saímosdeumapobrezaparaentraremoutra.Deixa-sedeserpobreem

umlugarparaserpobreemoutro.Nascondiçõesatuais,éumapobrezaquasesemremédio,trazida

nãoapenaspelaexpansãododesemprego,como,também,pelareduçãodovalordotrabalho.Éocaso,porexemplo,dosEstadosUnidos,apresentadocomoopaísquetemresolvidoumpouco

menosmalaquestãododesemprego,masondeovalormédiodosaláriocaiu.Eessaquedado

desempregonãoatingeigualmentetodaapopulação,porqueosnegroscontinuamsememprego,em

proporçãotalvezpiordoqueantes,easpopulaçõesdeorigemlatinaseencontramnabasedaescala

salarial.

Essaproduçãomaciçadapobrezaaparececomoumfenômenobanal.Umadasgrande

diferençasdopontodevistaéticoéqueapobrezadeagorasurge,impõe-seeexplica-secomoalgo

naturaleinevitável.Maséumapobrezaproduzidapoliticamentepelasempresaseinstituições

globais.Estas,deumlado,pagamparacriarsoluçõeslocalizadas,parcializadas,segmentadas,como

éocasodoBancoMundial,que,emdiferentespartesdomundo,financiaprogramasdeatençãoaos

pobres,querendopassaraimpressãodeseinteressarpelosdesvalidos,quando,estruturalmente,éo

grande produtor da pobreza. Acatam-se, funcionalmente, manifestações da pobreza, enquanto

estruturalmentesecriaapobrezaaoníveldomundo.Eissosedácomacolaboraçãopassivaouativa

dosgovernosnacionais.

Vejam,então,adiferençaentreousodapalavrapobrezaedaexpressãodívidasocial

nessescinqüentaanos.Ospobres,istoé,aquelesquesãooobjetodadívidasocial,foramjá

incluídos e,depois,marginalizados ,eacabamporseroquehojesão,istoé,excluídos .Estaexclusão

atual,comaproduçãodedívidassociais,obedeceaumprocessoracional,umaracionalidadesem

razão,masquecomandaasaçõeshegemônicasearrastaasdemaisações.Osexcluídossãoofruto

dessaracionalidade.Poraísevêqueaquestãocapitaléoentendimentodonossotempo,semoqual

seráimpossívelconstruirodiscursodaliberação.Este,desdequesejasimpleseveraz,poderásera

baseintelectualdapolítica.Eissoécentralnomundodehoje,ummundonoqualnadadeimportante

sefazsemdiscurso.

Oterrívelé que,nessemundodehoje,aumentaonúmerodeletradosediminuiode

intelectuais. Não é este um dos dramas atuais da sociedade brasileira? Tais letrados,

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equivocadamente assimilados aos intelectuais, ou não pensam para encontrar a verdade, ou,

encontrandoaverdade,nãoadizem.Nessecaso,nãosepodemencontrarcomofuturo,renegandoa

funçãoprincipaldaintelectualidade,istoé,ocasamentopermanentecomoporvir,pormeiodabusca

incansadadaverdade.

Assim como o território é hoje um território nacional da economia internacional (M.

Santos, Anaturezadoespaço ,1996),apobreza,hoje,éapobrezanacionaldaordeminternacional.Essarealidadeobrigaadiscutiralgumasdassoluçõespropostasparaoproblema,como,por

exemplo,quandoseimaginapodercompensarumapolíticaneoliberalnoplanonacionalcoma

possibilidadedeumapolíticasocialnoplanosubnacional.Nocasobrasileiro,élamentávelque

políticosepartidosditosdeesquerdaseentreguemaumapolíticadedireita,jogandoparaumladoa

buscadesoluçõesestruturaiselimitando-seaproporpaliativos,quenãosãoverdadeiramente

transformadoresdasociedade,porqueserãoinócuos,nomédioenolongoprazos.Aschamadas

políticaspúblicas,quandoexistentes,nãopodemsubstituirapolíticasocial,consideradaumelenco

coerentecomasdemaispolíticas(econômica,territorialetc.).

Nãosetrata,pois,dedeixaraosníveisinferioresdegoverno–municípios,estados–abuscadepolíticascompensatórias paraaliviar as conseqüênciasdapobreza,enquanto, aonível

federal,asaçõesmaisdinâmicasestãoorientadascadavezmaisparaaproduçãodepobreza.O

desejável seriaque,a partirdeumavisãode conjunto,houvesse redistribuiçãodospoderese de

recursosentrediversasesferaspolítico-administrativasdopoder,assimcomoumaredistribuiçãodas

prerrogativasetarefasentreasdiversasescalasterritoriais,atémesmocomareformulaçãoda

federação.Mas,paraisso,énecessáriohaverumprojetonacional,eestenãopodeseruma

formulaçãoautomaticamentederivadadoprojetohegemônicoe limitativodaglobalizaçãoatual.Ao

contrário,partindodasrealidadesedasnecessidadesdecadanação,devenãosóentendê-las,como

tambémconstituirumapromessadereformulaçãodaprópriaordemmundial.

Nascondiçõesatuais,umgrandecomplicadorvemdofatodequeaglobalizaçãoé

freqüentementeconsideradaumafatalidade,baseadanumexageradoencantamentopelastécnicas

de ponta e comnegligência quanto ao fator nacional, deixando-se de lado o papel do território

utilizadopelasociedadecomoumseuretratodinâmico.Talvisãodomundo,umaespéciedevoltaà

velhanoçãodetechnologicalfix (umaúnicatecnologiaeficaz),acabaporconsagraraadoçãodeum

pontodepartidafechadoeporaceitarcomoindiscutívele inelutáveloreinodanecessidade,coma

mortedaesperançaedagenerosidade.Exclusãoedívidasocialaparecemcomosefossemalgofixo,

imutável,indeclinável,quando,comoqualqueroutraordem,podesersubstituídaporumaordemmais

humana.

Dequemaneiraaglobalizaçãoafetaasoberaniadasnações,asfronteirasdospaísese

agovernabilidadeplenaéumaquestãoque,voltaemeia,ocupaosespíritos,sejateoricamente,seja

emfunçãodefatosconcretos.Nesseterreno,comoemmuitosoutros,aproduçãodemeias-verdades

éinfinitaesomosfreqüentementeconvocadosarepeti-lassemmaioranálisedoproblema.Há,

mesmo,quemsearrisqueafalardedesterritorialidade,fimdasfronteiras,mortedoEstado.Háosotimistasepessimistas,osdefensoreseosacusadores.

TomemosocasoparticulardoBrasilparadiscutirmaisdepertoessaquestão,aindaque

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nossarealidadeseaparenteàdemuitosoutrospaísesdoplaneta.Comaglobalização,oquetemosé

um território nacional daeconomia internacional, istoé, o território continua existindo, asnormas

públicasqueoregemsãodaalçadanacional,aindaqueasforçasmaisativasdoseudinamismoatual

tenhamorigemexterna.Emoutraspalavras, a contradiçãoentreo externoe o internoaumentou.

Todavia,éoEstadonacional,emúltimaanálise,quedetémomonopóliodasnormas,semasquais

os poderosos fatores externos perdemeficácia. Sem dúvida, a noção de soberania tevede serrevista, faceaossistemas transgressores de âmbito planetário, cujo exercício violento acentuaa

porosidadedasfronteiras.Estes,são,sobretudo,ainformaçãoeafinança,cujaafluidezsemultiplica

graçasàsmaravilhasdatécnicacontemporânea.Maséumequívocopensarqueainformaçãoea

finança exercem sempre sua força sem encontrar contrapartida interna. Esta depende de uma

vontadepolíticainterior,capazdeevitarqueainfluênciadosditosfatoressejaabsoluta.

Aocontráriodoqueserepeteimpunemente,oEstadocontinuaforteeaprovadissoé

quenemasempresastransnacionais,nemasinstituiçõessupranacionaisdispõemdeforçanormativa

paraimpor,sozinhas,dentrodecadaterritório,suavontadepolíticaoueconômica.Porintermédiode

suas normas deprodução, de trabalho, de financiamento e decooperaçãocomoutras firmas, asempresastransnacionaisarrastamoutrasempresaseinstituiçõesdoslugaresondeseinstalam,

impondo-lhescomportamentoscompatíveiscomseusinteresses.Masavidadeumaempresavai

alémdomero processo técnico deproduçãoe alcança todoo entorno, a começar pelo próprio

mercadoeincluindotambémasinfra-estruturasgeográficasdeapoio,semoqueelanãopodeter

êxito.ÉoEstadonacionalque,afinal,regulaomundofinanceiroeconstróiinfra-estruturas,atribuindo,

assim,agrandesempresasescolhidasacondiçãodesuaviabilidade.Omesmopodeserditodas

instituiçõessupranacionais(FMI,BancoMundial,NaçõesUnidas,OrganizaçãoMundialdoComércio),

cujoseditosourecomendaçõesnecessitamdedecisõesinternasacadapaísparaquetenham

eficácia. O Banco Central é, freqüentemente, essa correia de transmissão (situada acima do

Parlamento)entreumavontadepolíticaexternaeumaausênciadevontadeinterior.Porisso,tornou-

secorriqueiroentregaradireçãodessesbancoscentraisapersonagensmaiscomprometidascomos

postuladosideológicosdafinançainternacionaldoquecomosinteressesconcretosdassociedades

nacionais.

Masacessãodesoberanianãoéalgonatural, inelutável,automático,poisdependeda

formacomoogovernodecadapaísdecidefazersuainserçãonomundodachamadaglobalização.

OEstadoalterasuasregrase feiçõesnum jogocombinadodeinfluênciasexternase

realidadesinternas.Masnãoháapenasumcaminhoeestenãoéobrigatoriamenteodapassividade.

Porconseguinte,nãoéverdadequeaglobalizaçãoimpeçaaconstituiçãodeumprojetonacional.

Semisso,osgovernosficamàmercêdeexigênciasexternas,pormaisdescabidasquesejam.Este

pareceserocasodoBrasilatual.Cremos,todavia,quesempreétempodecorrigirosrumos

equivocadose,mesmonummundoglobalizado,fazertriunfarosinteressesdanação.

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No mundo da globalização, o espaço geográfico ganha novos contornos, novas

características,novasdefinições.E,também,umanovaimportância,porqueaeficáciadasaçõesestá

estreitamenterelacionadacomasualocalização.Osatoresmaispoderosossereservamosmelhores

pedaçosdoterritórioedeixamorestoparaosoutros.

Numa situação de extremacompetitividade como esta em que vivemos, os lugaresrepercutemosembatesentreosdiversosatoreseoterritóriocomoumtodorevelaosmovimentosde

fundodasociedade. Aglobalização, comaproeminência dos sistemas técnicoseda informação,

subverteoantigojogodaevoluçãoterritorialeimpõenovaslógicas.

Os territórios tendema uma compartimentaçãogeneralizada,ondeseassociame se

chocamomovimentogeraldasociedadeplanetáriaeomovimentoparticulardecadafração,regional

oulocal,dasociedadenacional.Essesmovimentossãoparalelosaumprocessodefragmentação

que rouba às coletividades o comandodo seu destino, enquanto os novos atores também não

dispõemdeinstrumentosderegulaçãoqueinteressemàsociedadeemseuconjunto.Aagricultura

moderna,cientifizadaemundializada,talcomoaassistimossedesenvolverempaísescomooBrasil,constituiumexemplodessatendênciaeumdadoessencialaoentendimentodoquenopaís

constituemacompartimentaçãoeafragmentaçãoatuaisdoterritório.

Outrofenômenoalevaremcontaéopapeldasfinançasnareestruturaçãodoespaço

geográfico.Odinheirousurpaemseufavorasperspectivasdefluidezdoterritório,buscando

conformarsobseucomandoasoutrasatividades.

Masoterritórionãoéumdadoneutronemumatorpassivo.Produz-seumaverdadeira

esquizofrenia, já que os lugares escolhidos acolhem e beneficiam osvetores da racionalidade

dominantemas tambémpermitema emergência deoutras formas devida.Essaesquizofreniado

territórioedolugartemumpapelativonaformaçãodaconsciência.Oespaçogeográficonãoapenas

revelaotranscursodahistóriacomoindicaaseusatoresomododenelaintervirdemaneira

consciente.

Aolongodahistóriahumana,olhadooplanetacomoumtodoouobservadoatravésdos

continentesepaíses,oespaçogeográficosemprefoiobjetodeumacompartimentação.Nocomeço

haviailhasdeocupaçãodevidasàpresençadegrupos,tribos,nações,cujosespaçosdevidaformariamverdadeirosarquipélagos.Aolongodotempoeàmedidadoaumentodaspopulaçõesedo

intercâmbio,essatramafoi setornandocadavezmaisdensa.Hoje,comaglobalização, pode-se

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dizerqueatotalidadedasuperfíciedaTerraé compartimentada,nãoapenaspelaaçãodiretado

homem,mastambémpelasuapresençapolítica.Nenhumafraçãodoplanetaescapaaessa

influência.Dessemodo,avelhanoçãodeecúmenoperdeaantigadefiniçãoeganhaumanova

dimensão;tantosepodedizer quetodaasuperfíciedaTerrasetornouecúmenoquantosepode

afirmarqueessapalavrajánãoseaplicaapenasaoplanetaefetivamentehabitado.Coma

globalização,todoequalquerpedaçodasuperfíciedaTerrasetornafuncionalàsnecessidades,usoseapetitesdeEstadoseempresasnestafasedahistória.

Dessemodo,asuperfíciedaTerraéinteiramentecompartimentadaeorespectivo

caleidoscópioseapresentasemsoluçãodecontinuidade.Redefinidaem funçãodoscaracterísticos

deumaépoca,acompartimentaçãoatualdistingue-sedaqueladopassadoefreqüentementesedá

comofragmentação.Seuconteúdoedefiniçãovariamatravésdostempos,massemprerevelamum

cotidianocompartidoecomplementaraindaquetambémconflitivoehierárquico,umacontecer

solidárioidentificadocomomeio,aindaquesemexcluirrelaçõesdistantes.Talsolidariedadeetal

identificaçãoconstituemagarantiadeumapossívelregulaçãointerna.Jáafragmentaçãorevelaum

cotidianoemqueháparâmetrosexógenos,semreferênciaaomeio.Aassimetrianaevoluçãodasdiversasparteseadificuldadeoumesmoaimpossibilidadederegulação,tantointernaquanto

externa,constituemumacaracterísticamarcante.

Até recentemente, a humanidade vivia o mundo da lentidão, no qual a prática de

velocidades diferentes não separava os respectivos agentes. Eram ritmos diversos, mas não

incompatíveis.Dentrodecadaárea,oscompartimentoseramsoldadosporregras,aindaquenão

houvessecontigüidadeentreeles.Omesmopodeserditoemrelaçãoaoquesepassavanaescala

internacional.Omelhorexemplo,desdeoúltimoquarteldoséculoXIX,éodaconstituiçãodos

impérios,fundadocadaqualnumabasetécnicadiferente,oquenãoimpediaasuacoexistência,nem

apossibilidadedecooperaçãonadiferença.Duranteumséculoconviveramimpérioscomoo

britânico, portador das técnicas mais avançadas da produção material, dos transportes, das

comunicaçõesedodinheiro,comimpériosdessepontodevistamenosavançados,porexemploo

impérioportuguêsouoimpérioespanhol.Pode-sedizerqueapolíticacompensavaadiversidadeea

diferenciaçãodopodertécnicooudopodereconômico,assegurando,aomesmotempo,aordem

internaacadaumdesses impérioseaordeminternacional.Por intermédiodapolítica, cadapaís

imperialregulavaaproduçãoprópriaeadassuascolônias,ocomércioentreestaseosoutros

países,ofluxodeprodutos,mercadoriasepessoas,ovalordodinheiroeasformasdegoverno.O

famosopactocolonialacabavaporcompreendertodasasmanifestaçõesdavidahistóricaeos

equilíbrios no interior de cada império se davam paralelamente ao equilíbrio entre as nações

imperiais.Dealgummodo,aordeminternacionaleraproduzidapormeiodapolíticadosEstados.

Dentrodecadapaís,acompartimentaçãoeasolidariedadepresumiamapresençadecertas

condições,todaspraticamenterelacionadascomoterritório:umaeconomiaterritorial,umacultura

territorial,regidasporregras,igualmenteterritorializadas,naformadeleisedetratados,mastambém

decostumes.Por meio da regulação, a compartimentação dos territórios, na escala nacional e

internacional,permitequesejamneutralizadasdiferençasemesmoasoposiçõessejampacificadas,

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medianteumprocessopolíticoqueserenova,adaptando-seàsrealidadesemergentesparatambém

renovar,dessemodo,asolidariedade.

Noplanointernacional,esseprocessocumulativodeadaptaçõeslevaàsmodificações

doestatutocolonial,aceleradascomofimdaSegundaGuerraMundial.Noplanointerno,abuscade

solidariedade conduz ao enriquecimento dos direitos sociais com a instalação de diferentes

modalidadesdedemocraciasocial.

Hoje,vivemosummundodarapidezedafluidez.Trata-sedeumafluidezvirtual,

possívelpelapresençadosnovossistemastécnicos,sobretudoossistemasdainformação,edeuma

fluidezefetiva,realizadaquandoessafluidezpotencialéutilizadanoexercíciodaação,pelas

empresaseinstituiçõeshegemônicas.Afluidezpotencialaparecenoimaginárioenaideologiacomo

sefosseumbemcomum,umafluidezparatodos,quando,naverdade,apenasalgunsagentestêma

possibilidadedeutiliza-la,tornando-se,dessemodo,osdetentoresefetivosdavelocidade.Oexercíciodestaé,pois,oresultadodadisponibilidadesmateriaisetécnicasexistentesedaspossibilidadesde

ação.Assim,omundodarapidezedafluidezsomenteseentendeapartirdeumprocessoconjunto

noqual participamdeum ladoas técnicas atuaise,de outro,a política atual, sendoque estaé

empreendidatantopelasinstituiçõespúblicas,nacionais,intranacionaiseinternacionais,comopelas

empresasprivadas.

Asatuaiscompartimentaçõesdosterritóriosganhamessenovoingrediente.Criam-se,

paralelamente, incompatibilidades entre velocidades diversas; e os portadores das velocidades

extremas buscam induzir os demais atores a acompanhá-los, procurando disseminar as infra-

estruturas necessárias à desejada fluidez nos lugares que consideram necessários para a sua

atividade.Há,todavia,sempre,umaseletividadenessadifusão,separandoosespaçosdapressa

daquelesoutrospropíciosàlentidão,edessaformaacrescentandoaoprocessodecompartimentação

nexosverticaisquesesuperpõemàcompartimentaçãohorizontal,característicadahistóriahumana

atédatarecente.Ofenômenoégeral,jáque,conformevimosantes,tudohojeestácompartimentado;

incluindotodaasuperfíciedoplaneta.

Épormeiodessaslinhasdemenorresistênciae,porconseguinte,demaiorfluidez,que

omercadoglobalizadoprocurainstalarasuavocaçãodeexpansão,medianteprocessosquelevamà

buscada unificaçãoenãopropriamenteàbuscadaunião.Ochamadomercadoglobalseimpõe

comorazãoprincipaldaconstituiçãodessesespaçosdafluideze,logo,dasuautilização,impondo,

pormeiodetaislugares,umfuncionamentoquereproduzassuasprópriasbases(JohnGray, Falso

amanhecer, os equívocos do capitalismo , 1999), a começar pela competitividade. A literatura

apologéticadaglobalizaçãofaladecompetitividadeentreEstados,mas,naverdade,trata-sede

competitividadeentreempresas,que,àsvezes,arrastamoEstadoesuaforçanormativanaprodução

decondiçõesfavoráveisàquelasdotadasdemaispoder.Édessaformaquesepotencializaa

vocação de rapidez e de urgência de algumas empresas em detrimento de outras, uma

competitividadequeagravaasdiferençasdeforçaeasdisparidades,enquantooterritório,pelasua

organização,constitui-senuminstrumentodoexercíciodessasdiferençasdepoder.Cada empresa, porém, utiliza o território em função dos seus fins próprios e

exclusivamenteemfunçãodessesfins.Asempresasapenastêmolhosparaosseuspróprios

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objetivosesãocegasparatudoomais.Dessemodo,quantomaisracionaisforemasregrasdesua

ação individual tantomenos taisregrasserão respeitosasdo entorno econômico, social, político,

cultural,moralougeográfico,funcionando,asmaisdasvezes,comoumelementodepertubaçãoe

mesmo de desordem. Nesse movimento, tudo que existia anteriormente à instalação dessas

empresashegemônicaseconvidadoaadaptar-seàssuasformasdeseredeagir,mesmoque

provoque,noentornopreexistente,grandesdistorções,inclusiveaquebradasolidariedadesocial.

Pode-sedizerentãoque,emúltimaanálise,acompetitividadeacabapordestroçaras

antigassolidariedades,freqüentementehorizontais,eporimporumasolidariedadevertical,cujo

epicentroéaempresahegemônica,localmenteobedienteainteressesglobaismaispoderosose,

desse modo, indiferente ao entorno. As solidariedades horizontais preexistentes refaziam-se

historicamenteapartirdeumdebateinterno,levandoaajustesinspiradosnavontadedereconstruir,

emnovostermos,aprópriasolidariedadehorizontal.Jáagora,asolidariedadeverticalqueseimpõeexcluiqualquerdebatelocaleficaz,jáqueasempresashegemônicastêmapenasdoiscaminhos:

permanecerparaexercerplenamenteseusobjetivosindividualistasouretirar-se.

Comocadaempresahegemônicanoobjetivodesemantercomotaldeverealçartais

interessesindividuais,suaaçãoéraramentecoordenadacomadeoutras,oucomopoderpúblico,e

taldescoordenaçãoagravaadesorganização,istoé,reduzaspossibilidadesdoexercíciodeuma

buscadesentidoparaavidalocal.

Cadaempresahegemônicaagesobreumaparceladoterritório.Oterritóriocomoum

todoéobjetodaaçãodeváriasempresas,cadaqual,conformejávimos,preocupadacomsuas

própriasmetasearrastando,apartirdessasmetas,ocomportamentodorestodasempresase

instituições.Querestaentãodanaçãodiantedessanovarealidade?Comoanaçãoseexercediante

daverdadeirafragmentaçãodoterritório,funçãodasformascontemporâneasdeaçãodasempresas

hegemônicas?

A palavra fragmentação impõe-se com toda força porque, nas condições acima

descristas,nãoháregulaçãopossívelouestaapenasconsagraalgunsatoreseestes,enquanto

produzemumaordememcausaprópria,criam,paralelamente,desordemparatudoomais.Como

essaordemdesordeira églobal,inerenteaopróprioprocessoprodutivodaglobalizaçãoatual,elanão

temlimites;masnãotemlimitesporquetambémnãotemfinalidadee,dessemodo,nenhuma

regulaçãoé possível, porque não desejada. Esse novopoder das grandesempresas, cegamente

exercido,é,pornatureza,desagregador,excludente,fragmentador,seqüestrandoautonomiaaoresto

dosatores.

Osfragmentos resultantesdesseprocessoarticulam-seexternamentesegundo lógicas

duplamenteestranhas:porsuasededistante,longínquaquantoaoespaçodaação,epelasua

inconformidadecomosentidopreexistentedavidanaáreaemqueseinstala.Dessemodo,produz-

seumaverdadeiraalienaçãoterritorialàqualcorrespondemoutrasformasdealienação.

Dentrodeummesmopaíssecriamformaseritmosdiferentesdeevolução,governados

pelasmetasedestinosespecíficosdecadaempresahegemônica,quearrastamcomsuapresençaoutrosatoressociais,medianteaaceitaçãooumesmoaelaboraçãodediscursos“nacionais-

regionais”alienígenasoualienados.

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Outrareaçãoconduzàelaboraçãoparaleladediscursosreativosdotadosdeconteúdo

específicoedestinadosa mostrarinconformidadecomasformasvigentesdeinserçãono“mundo”.

Criam-se, em certos casos, novas soberanias, como, por exemplo, na antiga Iugoslávia, ou

autonomias ampliadas, entronizando o que se poderiam chamar regiões-países ,cujoexemplo

emblemáticonosvemdaEspanha.Comoresolverquestãodedentrodeummesmopaís,quandoo

passadonãoofereceucomoherançaconjuntaaexistênciadeculturasparticularessolidamenteestabelecidas,juntoaumavontadepolíticaregionaljáexercidacomopoder?

Esseproblemasetornamaisagudonamedidaemqueascompartimentaçõesatuaisdo

territórionãosãoenxergadascomofragmentação.Issosedá,geralmente,quandoainterpretaçãodo

fatonacionaléentregueavisõesaparentementetotalizantes,masnarealidadeparticularistas,como

certosenfoquesdaeconomiae,mesmo,daciênciapolítica,quenãoseapropriamdanoçãodo

território consideradocomo território usado  e visto, desse modo, como estrutura dotada de um

movimentopróprio.Émelhorfazeranaçãoporintermédiodoseuterritório,porqueneletudooqueé

vidaestárepresentado.

Desdeoprincípiodostempos,aagriculturacomparececomoumaatividadereveladora

dasrelaçõesprofundasentreassociedadeshumanaseoseuentorno.Nocomeçodahistóriatais

relaçõeseram,abemdizer,entreosgruposhumanoseanatureza.Oavançodacivilizaçãoatribuiao

homem,pormeiodoaprofundamentodastécnicasedesuadifusão,umacapacidadecadavezmais

crescentedealterarosdadosnaturaisquandopossível,reduziraimportânciadoseuimpactoe,

também,pormeiodaorganizaçãosocial,demodificaraimportânciadosseusresultados.Osúltimos

séculos marcam, para a atividade agrícola, com a humanização e a mecanização do espaço

geográfico,umaconsiderávelmudançadequalidade,chegando-se,recentemente,àconstituiçãode

ummeiogeográficoaquepodemoschamardemeiotécnico-científico-informacional,característico

nãoapenasdavidaurbanamastambémdomundorural,tantonospaísesavançadoscomonas

regiõesmaisdesenvolvidasdospaísespobres.Édessemodoqueseinstalaumaagricultura

propriamentecientífica,responsávelpormudançasprofundasquantoàproduçãoagrícolaequantoà

vidaderelações.

Podemosagorafalardeumaagriculturacientíficaglobalizada.Quandoaprodução

agrícolatemumareferênciaplanetária,elarecebeinfluênciadaquelasmesmasleisqueregemosoutrosaspectosdaproduçãoeconômica.Assim,acompetitividade,característicadasatividadesde

caráterplanetário,levaaumaprofundamentodatendênciaàinstalaçãodeumaagriculturacientífica.

Esta,comovimos,éexigentedeciência,técnicaeinformação,levandoaoaumentoexponencialdas

quantidadesproduzidasemrelaçãoàssuperfíciesplantadas.Porsuanaturezaglobal,conduzauma

demandaextremadecomércio.Odinheiropassaaseruma“informação”indispensável.

Nas áreas onde essa agricultura científica globalizada se instala, verifica-se umaimportantedemandadebenscientíficos(sementes,inseticidas,fertilizantes,corretivos)e,também,de

assistênciatécnica.Osprodutossãoescolhidossegundoumabasemercantil,oquetambémimplica

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umaestritaobediênciaaosmandamentoscientíficosetécnicos.Sãoessascondiçõesqueregemos

processos deplantação, colheita,armazenamento,empacotamento, transportesecomercialização,

levandoàintrodução,aprofundamentoedifusãodeprocessosderacionalizaçãoquesecontagiam

mutuamente,propondoainstalaçãodesistemismos,queatravessamoterritórioeasociedade,

levando,comaracionalizaçãodaspráticas,aumacertahomogeneização.

Da-se,narealidade,também,umacertamilitarizaçãodotrabalho,jáqueocritériodosucessoéaobediênciaàsregrassugeridaspelasatividadeshegemônicas,semcujautilizaçãoos

agentesrecalcitrantesacabamporserdeslocados.Seentendermosoterritóriocomoumconjuntode

equipamentos,deinstituições,práticasenormas,queconjuntamentemovemesãomovidaspela

sociedade, a agricultura científica, moderna e globalizada acaba por atribuir aos agricultores

modernosavelhacondiçãodeservosdagleba.Éatenderataisimperativosousair.

Nasáreasondetalfenômenoseverifica,registra-seumatendênciaaumduplo

desemprego: odosagricultorese outrosempregadose o dosproprietários;por isso, forma-seno

mundo ruralemprocessodemodernizaçãoumanovamassadeemigrantes, que tantose podem

dirigiràscidadesquantoparticipardaproduçãodenovasfrentespioneiras,dentrodoprópriopaísounoestrangeiro,comoéocasodosbrasiguaios.

Assituaçõesassimcriadassãovariadasemúltiplas,produzindoumatipologiade

atividadescujossubtiposdependemdascondiçõesfundiárias,técnicaseoperacionaispreexistentes.

Numamesmaárea,aindaqueasproduçõespredominantesseassemelhem,aheterogeneidadeéde

regra. Há, na verdade, heterogeneidade e complementaridade. Desse modo, pode-se falar na

existênciasimultâneadecontinuidadesedescontinuidades.Édessamaneiraqueseenriqueceo

papeldavizinhançae,adespeitodasdiferençasexistentesentreosdiversosagentes,elesvivemem

comumcertasexperiências,como,porexemplo,asubordinaçãoaomercadodistante.

Talexperiênciaétantomaissensívelporquedecorredeumademanda“externa”de

“racionalidade”edasrespectivasdificuldadesdeoferecerumaresposta.Resta,comoconseqüência,

atomadadeconsciênciadaimportânciadefatores“externos”:ummercadolongínquo,atécertoponto

abstrato;umaconcorrênciadecertomodo“invisível”;preçosinternacionaisenacionaissobreosquais

não há controle local, improvável, também, para outros componentes do cotidiano, igualmente

elaboradosdefora, comoovalorexternodamoeda (câmbio),dequedependeo valorinternoda

produção,ocustododinheiroeopesosobreoprodutordoslucrosauferidosportodosostiposde

intermediação.

Aagriculturamodernaserealizapormeiodosseusbelts,spots,áreas,masasua

relaçãocomomundoecomasáreasdinâmicasdopaíssedápormeiodepontos.Éoqueexplica,

porexemplo,oimportanterelacionamentoexistenteentrecidadesregionaiseSãoPaulo.Nessas

localidadesdá-seumaofertadeinformação,imediataepróxima,ligadaàatividadeagrícolae

produzindoumaatividadeurbanadefabricaçãoedeserviçosque,frutodaproduçãoregional,é

largamente“especializada”e,paralelamente,umoutro tipodeatividadeurbanaligadaaoconsumo

dasfamíliasedaadministração.Acidadeéumpóloindispensávelaocomandotécnicodaprodução,acujanaturezaseadapta,eéumlugarderesidênciadefuncionáriosdaadministraçãopúblicaedas

empresas,mastambémdepessoasquetrabalhamnocampoeque,sendoagrícolas,sãotambém

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urbanas, isso é, urbano-residentes. Às atividades e profissões tradicionais juntam-se novas

ocupaçõeseàsburguesiaseclassesmédiastradicionaisjuntam-seasmodernas,formandouma

mescladeformasdevida,atitudesevalores.Talcidade,cujopapeldecomandotécnicodaprodução

ébastanteamplo,temtambémumpapelpolíticofrenteaessamesmaprodução.Mas,namedidaem

queaproduçãoagrícolatemumavocaçãoglobal,essepapelpolíticoélimitado,incompletoeindireto.

Omundo,confusamenteenxergadoapartirdesseslugares,évistocomoumparceiroinconstante.Sem dúvida, os diversos atores têm interesses diferentes, às vezes convergentes, certamente

complementares.Trata-sedeumaproduçãolocalmista,matizada,contraditóriadeidéias.Sãovisões

domundo,dopaísedolugarelaboradasnacooperaçãoenoconflito.Talprocessoécriadorde

ambigüidadesedeperplexidades,mastambémdeumacertezadadapelaemergênciadacidade

comoumlugarpolítico,cujopapeléduplo:elaéumreguladordotrabalhoagrícola,sequiosodeuma

interpretaçãodomovimentodomundo,eéasededeumasociedadelocalcompósitaecomplexa,

cujadiversidadeconstituiumpermanenteconviteaodebate.

O exame do caso brasileiro quanto à modernização agrícola revela a grande

vulnerabilidadedasregiõesagrícolasmodernasfaceà“modernizaçãoglobalizadora”.Examinandoo

quesignificanamaiorpartedosestadosdoSuledoSudesteenosestadosdeMatoGrossoeMato

Grosso do Sul, bem como em manchas isoladas de outros estados, verifica-se que o campo

modernizadosetornoupraticamentemaisabertoàexpansãodasformasatuaisdocapitalismoqueas

cidades.Dessemodo,enquantoourbanosurge,sobmuitosaspectosecomdiferentesmatizes,comoolugardaresistência,asáreasagrícolassetransformamagoranolugardavulnerabilidade.

De tais áreas pode-se dizer que atualmente funcionamsob um regime obediente a

preocupações subordinadasa lógicasdistantes, externasemrelaçãoàáreadaação;masessas

lógicassãointernasaossetoreseàsempresasglobaisqueasmobilizam.Daísecriaremsituações

dealienaçãoqueescapamaregulaçõeslocaisounacionais,emboraarrastandocomportamentos

locais,regionais,nacionaisemtodososdomíniosdavida,influenciandoocomportamentodamoeda,docrédito,dogastopúblicoedoemprego,incidindosobreofuncionamentodaeconomiaregionale

urbana,porintermédiodesuasrelaçõesdeterminantessobreocomércio,aindústria,ostransportese

osserviços.Paralelamente,alteram-seoscomportamentospolíticoseadministrativoseoconteúdo

dainformação.

Esseprocessodeadaptaçãodasregiõesagrícolasmodernassedácomgranderapidez,

impondo-lhes,numpequenoespaçodetempo,sistemasdevidacujarelaçãocomomeioéreflexa,

enquantoasdeterminaçõesfundamentaisvêmdefora.

Nummundoglobalizado,idênticomovimentopodesertambémrapidamenteimplantado

emoutras áreas, nummesmopaís ouemoutro continente. Assim, a noção de competitividade

mostra-seaquicomtodaforça,politicamenteajudadapelasmanipulaçõesdocomércioexteriorou

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dasbarreirasalfandegárias.Cabeperguntar,nessascircunstâncias,oquepodeacontecerauma

áreaagrícolaque,medianteumdessesprocessos,sejaesvaziadadoseuconteúdoeconômico.Que

acontecerá,porexemplo,àsnovasáreasdeagriculturaglobalizadadoestadodeSãoPaulonocaso

damudançainternacional daconjunturadaeconomiadalaranja,doaçúcar ouo álcool?E como,

diantedetalmudança,poderãoreagiraregião,oestadodeSãoPauloeanação?

Aapreciaçãodasperspectivasabertasaessasáreasmodernizadas,comtendênciaaparticularizaçõesextremas,develevaremcontaofatodequeosentidoqueéimpressoàvida,em

todasassuasdimensões,baseia-se,emmaioroumenorgrau,emfatoresexógenos.Deumpontode

vistanacional,redefine-seumadiversidaderegionalqueagoranãoécontroladanemcontrolável,seja

pelasociedadelocal,sejapelasociedadenacional.Éumadiversidaderegionaldenovotipo,emque

seagravamasdisparidadesterritoriais(emequipamento,recursos,informação,forçaeconômicae

política,característicasdapopulação,níveisdevidaetc.).

Aomenosemumprimeiromomentoesoboimpulsodacompetitividadeglobalizadora,

produzem-seegoísmoslocaisouregionaisexacerbados,justificadospelanecessidadededefesadas

condiçõesdesobrevivênciaregional,mesmoqueissotenhadesedaràcustadaidéiadeintegridadenacional.Essecaldodeculturapodelevaràquebradasolidariedadenacionaleconduzirauma

fragmentaçãodoterritórioedasociedade.

Há,todavia,umadialéticainternaacadaumdosfragmentosresultantes.Oproduto(ou

produtos)comaresponsabilidadedecomandodaeconomiaregionalincluiatorescomdiferentes

perfiseinteresses,cujoíndicedesatisfaçãotambémédiferente.Dentrodecadaregião,asaliançase

acordoseoscontratossociaisimplícitosouexplícitosestãosempreserefazendoeahegemoniadeve

sersemprerevista.

Oprocessoprodutivo reúneaspectos técnicose aspectospolíticos.Osprimeiros têm

maisavercomaproduçãopropriamenteditaesuaáreadeincidênciaseverificamormentedentroda

própriaregião.Aparcelapolíticadoprocessoprodutivo,aocontrário,relacionadacomocomércio,os

preços,ossubsídios,ocustododinheiroetc.,temsuasedeforadaregiãoeseusprocessos

freqüentementeescapamaocontrole(eatémesmoaoentendimento)dosprincipaisinteressados.É

issoquelevaàtomadagradativadeconsciênciapelasociedadelocaldequelheescapaapalavra

finalquantoàproduçãolocaldovalor.

Nessascircunstâncias,acidadeganhaumanovadimensãoeumnovopapel,mediante

umavidaderelaçõestambémrenovada,cujadensidadeincluiastarefasligadasàprodução

globalizada.Porisso,acidadesetornaolugarondemelhorseesclarecemasrelaçõesdaspessoas,

dasempresas, dasatividadesedos “fragmentos”doterritóriocomo paísecomo“mundo”.Esse

papeldeencruzilhadaagoraatribuídoaoscentrosregionaisdaproduçãoagrícolamodernizadafaz

delesolugardaproduçãoativadeumdiscurso(compretensõesaserunitário)edeumapolíticacom

pretensãoasermaisqueumconjuntoderegrasparticulares.Todavia,taispolíticasacabam,nolongo

prazoemesmonomédioprazo,porrevelarsuadebilidade,suarelatividade,suaineficácia,suanão-

operacionalidade.Oquereclamardopoderlocalvistososlimitesdasuacompetência;quereivindicaraosestadosfederados;quesolicitareficazmenteaosagenteseconômicosglobais,quandosesabe

queestespodemencontrarsatisfaçãoaosseusapetitesdeganhosimplesmentemudandoolugarde

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suaoperação?Paraencontrarumcomeçoderesposta,oprimeiropassoéregressaràsnoçõesde

nação,solidariedadenacional,Estadonacional.Deumpontodevistaprático,voltaríamosàidéia,já

expressapornósemoutraocasião,daconstituiçãodeumafederaçãodelugares,comareconstrução

dafederaçãobrasileiraapartirdacélulalocal,feitadeformaaqueoterritórionacionalvenhaa

conhecerumacompartimentaçãoquenãosejatambémumafragmentação.Dessemodo,afederação

seriarefeitadebaixoparacima,aocontráriodatendênciaaqueagoraestásendoarrastadapelasubordinaçãoaosprocessosdeglobalização.

Aqueda-de-braçoentregovernosmunicipaiseestaduaiseogovernofederalémaisque

umadiscussãotécnicaparasaberquemdevearcarcomoônusdasdificuldadesfinanceirasdos27

estadosedosmaisde5.500municípios.Aquestãoéafederaçãoesuainadequaçãoaostemposda

novahistóriacomaemergênciadaglobalização.Oqueestáemjogoéoprópriosistemaderelações

constituído,deumlado,pelosnovosconteúdosdemográfico,econômico,socialdeestadose

municípioseamanutençãodoconteúdonormativodoterritório,agoraquefaceàglobalizaçãose

produzumembateentreumdinheiroglobalizadoeasinstânciaspolítico-administrativasdoEstado

brasileiro.

O território não é apenas o resultado da superposiçãodeumconjunto desistemas

naturaise umconjuntodesistemasdecoisascriadaspelohomem.Oterritórioé o chãoemaisa

população, istoé,uma identidade,o fatoeosentimentodepertenceràquiloquenospertence.O

territórioéabasedotrabalho,daresidência,dastrocasmateriaiseespirituaisedavida,sobreos

quaiseleinflui.Quandosefalaemterritóriodeve-se,pois,delogo,entenderqueseestáfalandoem

territóriousado,utilizadoporumadadapopulação.Umfazooutro,àmaneiradacélebrefrasede

Churchill:primeirofazemosnossascasas,depoiselasnosfazem...Aidéiadetribo,povo,naçãoe,

depois,deEstadonacionaldecorredessarelaçãotornadaprofunda.

Odinheiroéumainvençãodavidaderelaçõeseaparececomodecorrênciadeuma

atividadeeconômicaparacujointercâmbioosimplesescambojánãobasta.Quandoacomplexidade

éumfrutodeespecializaçõesprodutivaseavidaeconômicasetornacomplexa,odinheiroacabasendoindispensáveleterminaseimpondocomoumequivalentegeraldetodasascoisasquesão

objetodecomércio.Naverdade,odinheiroconstitui,também,umdadodoprocesso,facilitandoseu

aprofundamento,jáqueelesetornarepresentativodovaloratribuídoàproduçãoeaotrabalhoeaos

respectivosresultados.

Numprimeiromomentotrata-sedodinheirolocal,expressivodeumhorizontecomercial

elementar,abrangentedecontextosgeográficoslimitadosouparaatenderàsnecessidadesdeumcomércioedeumacirculaçãolongínquos,nasmãosdecomerciantesitinerantes,avalistasdovalor

dasmercadorias.Talmundoécaracterizadoporcompartimentaçõesmuitonumerosas,masum

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mundosemmovimento,lento,estávelecujosfragmentosquaseseriamautocontidos.Taismônadas,

numerosas,existiriamparalelamente,massemoprincípiogeralsugeridoporLeibniz.

Nesseprimeiromomento,ofuncionamentodoterritóriodevemuitoàssuasfeições

naturais,àsquaisoshomensseadaptam,compequenaintermediaçãotécnica.As relaçõessociais

presentessãopouconumerosas,simplesepoucodensas.Oentornodoshomensacabaporlheser

conhecidoeosseusmistériossãoapenasdevidosàsforçasnaturaisdesconhecidas.Taiscondiçõesmateriaisterminamporseimporsobreorestodavidasocial,numasituaçãonaqualovalordecada

pedaçodechãolheéatribuídopeloseuuso.Assim,aexistênciapodeserinterpretadaapartirde

relaçõesobservadasdiretamenteentreoshomenseentreoshomenseomeio.Oterritóriousado

pelasociedadelocalregeasmanifestaçõesdavidasocial,inclusiveodinheiro.

Com a ampliação do comércio produz-se uma interdependência crescente entre

sociedadesatéentãorelativamenteisoladas,cresceonúmerodeobjetosevaloresatrocar,asprópriastrocasestimulamadiversificaçãoeoaumentodevolumedeumaproduçãodestinadaaum

consumolongínquo.Odinheiroseinstalacomocondição,tantodesseescamboquantodaprodução

decadagrupo,tornando-seinstrumentalàregulaçãodavidaeconômicaeassegurando,assim,o

alargamentodoseuâmbitoeafreqüênciadoseuuso.

Narealidade,oquecresce,seexpandeesetornamaiscomplexoedenso,nãoéapenas

ocomérciointernacional,mas,também,ointerno.Assim,cadavezmaiscoisastendematornar-se

objetodeintercâmbio,valorizadocadavezmaispelatrocadoquepelousoe,dessemodo,

reclamando uma medida homogênea e permanente. Assim, o dinheiro aumenta sua

indispensabilidadeeinvademaisnumerososaspectosdavidaeconômicaesocial.

Paralelamente,oterritórioseapresentacomoumaarenademovimentoscadavezmais

numerosos,fundadossobreumaleidovalorquetantodeveaocaráterdaproduçãopresenteemcada

lugarcomoàspossibilidadeserealidadesdacirculação.Odinheiroé,cadavezmais,umdado

essencialparaousodoterritório.

Masaleidovalortambémseestendeaospróprioslugares,cadaqualrepresentando,em

dadacircunstânciaeemfunçãodocomérciodequeparticipam,umcertoíndicedevalorqueé,

também,abasedosmovimentosquedelespartemouqueaeleschegam.

Quanto mais movimento, maior se torna a complexidade das relações internas e

externas e aprofunda-se a necessidade de uma regulação, da qual o dinheiro constitui um dos

elementos,aindaqueoseupapelnãosejaopapelcentral.Esteéatribuídoàcategoriaestado,cuja

necessidade se levanta como um imperativo, atribuindo-se limites externos (as fronteiras

estabelecidas), limites internos (as subdivisões político-administrativas em diversos níveis) e

conteúdosnormativos(asleisecostumes),emmatériadecompetênciaserecursos.Éassimquese

instalamnahistória,categoriasinterdependentes:oEstadoterritorial,o territórionacional,o Estado

nacional.Sãoelesque,emconjunto,regemodinheiro.

Há, por conseguinte, um dinheiro nacional que, apesar de um comércio externo

crescente, temacaradopaíseé reguladopelopaís.Dir-se-iaqueessedinheiroé relativamentecomandadodedentro.

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Comaglobalização,ousodastécnicasdisponíveispermiteainstalaçãodeumdinheiro

fluido,relativamenteinvisível,praticamenteabstrato.

Comoequivalentegeral,odinheirosetornaumequivalenterealmenteuniversal,ao

mesmotempoemqueganhaumaexistênciapraticamenteautônomaemrelaçãoaorestodaeconomia. Assim autonomizado, pode-se até dizer que esse dinheiro, em estado puro, é um

equivalentegeraldelepróprio.Talvezporissosuaexistênciaconcretaesuaeficáciasejamresultado

dasnormascomasquaisseimpõeaosoutrosdinheiroseatodosospaíses,permitindo-se,desse

modo,aelaboraçãodeumdiscurso,semoqualsuaeficáciaseriainfinitamentemenoreasuaforça

menosevidente.É,aliás,apartirdestecaráterideológico,equivalenteaumaverdadeirafalsificação

docritério,queodinheiroglobalétambémdespótico.

Nascondiçõesatuais,aslógicasdodinheiroimpõem-seàquelasdavidasocioeconômica

epolítica,foçandomimetismos,adaptações,rendições.Taislógicassedãosegundoduasvertentes:

umaéadodinheirodasempresasque,responsáveisporumsetordaprodução,são,também,agentesfinanceiros,mobilizadosemfunçãodasobrevivênciaedaexpansãodecadafirmaem

particular; mas, há, também, a lógica dos governos financeiros globais, Fundo Monetário

Internacional,BancoMundial,bancostravestidosemregionaiscomooBID.Éporintermédiodeles

queasfinançassedãocomointeligênciageral.

Essainteligênciaglobaléexercidapeloquesechamariadecontabilidadeglobal,cuja

baseéumconjuntodeparâmetrossegundoosquaisaquelesgovernosglobaismedem,avaliame

classificamaseconomiasnacionais,pormeiodeuma escolhaarbitrária devariáveisqueapenas

contemplacertaparceladaprodução,deixandopraticamentedeladoorestodaeconomia.Porisso,

pode-sedizerque,adotadoessecritériodeavaliação,oProdutoNacionalBrutoapenasconstituium

nome-fantasiaparaessafamosacontabilidadeglobal.

Épormeiodessemecanismoqueodinheiroglobalautonomizado,enãomaisocapital

comoumtodo,setorna,hoje,oprincipalregedordoterritório,tantooterritórionacionalcomosuas

frações.

Antes, o território continha o dinheiro, em uma dupla acepção: o dinheiro sendo

representativodoterritórioqueoabrigavaesendo,emparte,reguladopeloterritório,considerado

comoterritóriousado.Hoje,sobinfluênciadodinheiroglobal,oconteúdodoterritórioescapaa toda

regulaçãointerna,objetoqueeleédeumapermanenteinstabilidade,daqualosdiversosagentes

apenasconstituemtestemunhaspassivas.

A ação territorial dodinheiro global emestadopuroacaba por ser uma ação cega,

gerandoingovernabilidades,emvirtudedosseusefeitossobreavidaeconômica,mastambém,sobre

avidaadministrativa.

Noterritório,afinançaglobalinstala-secomoaregradasregras,umconjuntodenormas

queescorre, imperioso,sobreatotalidadedoedifíciosocial, ignorandoasestruturasvigentes,para

melhorpodercontrariá-las,impondooutrasestruturas.Nolugar,afinançaglobalseexercepela

existência das pessoas, das empresas, das instituições, criando perplexidades e sugerindo

interpretações,quepodemconduziràampliaçãodaconsciência.

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Avontadedehomogeneizaçãododinheiroglobalécontrariadapelasresistênciaslocais

à sua expansão. Desse modo, seu processo tende a ser diferente, segundo os espaços

socioeconômicosepolíticos.

Há,também,umavontadedeadaptaçãoàsnovascondiçõesdodinheiro,jáqueafluidez

financeiraéconsideradaumanecessidadeparasercompetitivoe,conseqüentemente,exitosonomundoglobalizado.

A constituição do Mercado Comum Europeu, isto é, da Comunidade Econômica

Européia,ainstituiçãodaASEANeopretendidoestabelecimentodaALCAobedecemaessemesmo

princípio,demodoapermitiràsrespectivaseconomias,massobretudoaosEstadoslídereseàs

empresasnelessituadas,quepossamparticipardemodomaisagressivodocomérciomundial,

buscando–oquelhesparecenecessário–acobiçadahegemonia.

AEuropaéosubcontinentemaisavançadonoquetocaaessaquestão.Éverdadequeo

processodeunificaçãoeuropéiaseiniciaapósaSegundaGuerraMundialevemrealizandoetapas

sucessivas,sendoaúltima,emdata,aconstituiçãodomercadocomumfinanceiro,doqualamoedaúnica,oeuro,constituiosímbolo.Asetapasprecedentesconstituíramumaespéciedepreparação

paraunificaçãofinanceiraeincluírammedidasobjetivandoafluidezdasmercadorias,doshomens,da

mão-de-obraedopróprioterritório,inclusivenospaísesmenosdesenvolvidos,demodoaquea

Europacomoumtodosepudessetornarumcontinenteigualmentefluido.Semissoesemoreforço

daidéiadecidadania–umacidadaniaagoramultinacionalparaossignatáriosdoTratadode

Schengen-,seriaimpossívelpensarnumamoedaúnicasemaumentarasdiferençasedesequilíbrios

 jáexistentes.

Completandoessepanodefundo,aunificaçãomonetáriaéconsideradaumfator

indispensávelaoestabelecimentodeumaeconomiaeuropéiacompetitivaaonívelglobal,mediante

umadivisãodetrabalhorenovada,segundoaqualalgunspaísesvêemreforçadasalgumasdesuas

atividadesedevemrenunciaraoutras,apósumaconcertação,àsvezeslongaepenosa,em

Bruxelas.Naverdade,porém,essaunificaçãoeequalizaçãointra-européiaacabaporsermaisum

episódio de umaguerra, porque destinadas a fortalecer a Europa para competir comos outros

membrosdaTríadeetirarproveitodesuasrelaçõesassimétricascomorestodomundo.

Ocasolatino-americanoebrasileiroédiferente.OpróprioMercosulmantém,por

enquanto,umapráticalimitadaaocomércio,eseupróprioprojetoémenosabrangentequantoàs

relaçõessociais,culturaisepolíticas.Nãoháumaclarapreocupaçãodebuscarumdesenvolvimento

homogêneoeasiniciativasdeinvestimentotêmmuitomaisavercomocrescimentodoproduto,isto

é,comoflorescimentodecertonúmerodeempresasvoltadasparaocomércioregional,dasquais,

aliás,algumassãoigualmenteinseridasnocomérciomundial.Poroutrolado,diferentementedocaso

europeu,asmoedasnacionaisnãosãopropriamenteconversíveis,nemcomunicáveisdiretamente

entreelas.Suarelaçãocomomundoépobre,tantoquantitativacomoqualitativamente,jáquesão

moedasdependentes,cujodesvalimentoaumentafaceàglobalização,constituindoumelementoa

maisdeagravamentodesuaprópriadependência.

Estaéumadasrazõespelasquaisadecisãodeparticiparpassivamentedaglobalização

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acabaporserdanosa.Quantomelhoréoexercíciodomodelo,pioréparaopaís.Essasituaçãoé

aindamaisgravenospaísescomplexosegrandes,namedidaemqueavocaçãohomogeneizadora

docapitalglobalvaiserexercidasobreumabaseformadaporparcelasmuitodiferentesumasdas

outrasecujasdiferençasedesigualdadessãoampliadassobtalaçãounitária.

O dinheiro regulador e homogeneizador agrava heterogeneidades e aprofunda as

dependências. É assim que ele contribui para quebrar a solidariedade nacional, criando ouaumentandoasfraturassociaiseterritoriaiseameaçandoaunidadenacional.

Oconteúdodoterritóriocomoumtodoedecadaumdosseuscompartimentosmudade

formabruscae,também,rapidamenteperdeumaparcelamaioroumenordesuaidentidade,emfavor

deformasderegulaçãoestranhasaosentidolocaldavida.

Époresseprismaquedeveriaservistaaquestãodafederaçãoedagovernabilidadeda

nação:namedidaemqueogovernodanaçãosesolidarizacomosdesígniosdasforçasexternas,

levantam-seproblemascruciaisparaestadosemunicípios.

Aquestãoéestruturale,dessemodo,oproblemadeestadosemunicípiosé,nofundo,

umsó;esseproblemaéconstituídopelasformasatuaisdecompartimentaçãodoterritórioeoseunovoconteúdo,queincluiasformasdeaçãododinheirointernacional.

AquestãoquesepõecomoumaespadadeDâmoclessobreasnossascabeçaséa

seguinte:vamosreconstruirafederaçãoparaservirmelhoraodinheiroouparaatenderàpopulação?

Agora,tudoestásendo feitopara refazer a federaçãodemodoaqueseja instrumental às forças

financeiras.SãooBancoCentraleoMinistériodaFazenda,emcombinaçãocomasinstituições

financeirasinternacionais,queorientamasgrandesreformasoraemcurso.Devemos,então,nos

prepararparaanovaetapaque,aliás,jáseanuncia–adareconstruçãodoarcabouçopolítico-

territorialdopaísaoserviçodasociedade,istoé,dapopulação.

Otemadasverticalidadesedashorizontalidadesjáhaviasidotratadopormimnolivro A

naturezadoespaço.Técnicae tempo.Razãoe emoção  (1996), sobretudonocapítulo12.Vamos

agoraabordá-losegundonovosânguloseambicionandoumavisãoprospectiva,apartirdessesdoisrecortessuperpostosecomplementaresdoespaçogeográficoatual.

As verticalidades podemser definidas, num território, como um conjunto de pontos

formandoumespaçodefluxos.Aidéia,decertomodo,remontaaosescritosdeFrançoisPerroux

(L'économie du XX siède, 1961 ), quando ele descreveu o espaço econômico. Tal noção foi

recentementereapropriadaporManuelCastells.( Asociedadeemrede,1999 ).Esseespaçodefluxos

seria, na realidade, um subsistema dentro da totalidade-espaço, já que para os efeitos dosrespectivos atores o que conta é, sobretudo, esse conjunto de pontos adequados às tarefas

produtivas hegemônicas, características das atividades econômicas que comandameste período

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histórico.

Osistemadeproduçãoqueseservedesseespaçodefluxoséconstituídoporredes–um

sistemareticular-,exigentedefluidezesequiosodevelocidade.Sãoosatoresdotemporápido,que

plenamenteparticipamdoprocesso,enquantoosdemaisraramentetiramtodoproveitodafluidez.

Taisespaçosdefluxosvivemumasolidariedadedotipoorganizacional,istoé,asrelaçõesque

mantêmaagregaçãoeacooperaçãoentreagentesresultamemumprocessodeorganização,noqual predominam fatoresexternosàs áreas de incidênciadosmencionadosagentes. Chamemos

macroatoresàquelesquedeforadaáreadeterminamasmodalidadesinternasdeação.Éaesses

macroatoresque,emúltimaanálise,cabediretaouindiretamenteatarefadeorganizarotrabalhode

todososoutros,osquaisdeumaformaoudeoutradependemdasuaregulação.Ofatodequecada

umdevaadaptarcomportamentoslocaisaosinteressesglobais,queestãosempremudando,levao

processoorganizacionalasedarcomdescontinuidades,cujoritmodependedonúmeroedopoder

correspondenteacadamacroagente.

Por intermédio dos mencionados pontos do espaço de fluxos, as macroempresas

acabamporganharumpapelderegulaçãodoconjuntodoespaço.Junte-seaessecontroleaaçãoexplícitaoudissimuladadoEstado,emtodososseusníveisterritoriais.Trata-sedeumaregulação

freqüentementesubordinadaporque,emgrandenúmerodecasos,destinadaa favorecerosatores

hegemônicos. Tomada em consideração determinada área, o espaço de fluxos temo papel de

integraçãocomníveiseconômicoseespaciaismaisabrangentes.Talintegração,todavia,évertical,

dependenteealienadora,jáqueasdecisõesessenciaisconcernentesaosprocessoslocaissão

estranhasaolugareobedecemamotivaçõesdistantes.

Nessascondições, a tendênciaé a prevalênciados interessescorporativossobreos

interessespúblicos,quantoàevoluçãodoterritório,daeconomiaedassociedadeslocais.Dentro

desse quadro, a política das empresas – isto é, sua policy  – aspira e consegue, mediante uma

governance ,tornar-sepolítica;naverdade,umapolíticacega,poisdeixaaconstruçãododestinode

umaáreaentregueaosinteressesprivatísticosdeumaempresaquenãotemcompromissoscoma

sociedadelocal.

Nasituaçãoacimadescrita,instalam-seforçascentrífugascertamentedeterminantes,

commaioroumenorforça,doconjuntodecomportamentos.E,emcertoscasos,quandoconseguem

contagiarotodoouamaioriadocorpoprodutivo,taisforçascentrífugassão,aomesmotempo,

determinantesedominantes.Taldominânciaétambémportadoradaracionalidadehegemônicae

cujopoderdecontágiofacilitaabuscadeumaunificaçãoedeumahomogeneização.

Asfraçõesdoterritórioqueconstituemesseespaçodefluxosconstituemoreinodo

temporeal,subordinando-seaumrelógiouniversal,aferidopelatemporalidadeglobalizadadas

empresashegemônicaspresentes.Dessemodoordenado,oespaçodefluxostemvocaçãoaser

ordenadordoespaçototal,tarefaquelheéfacilitadapelofatodeaelesersuperposto.

Omodeloeconômicoassimestabelecidotendeareproduzir-se,aindaquemostrando

topologiasespecíficas,ligadasànaturezadosprodutos,àforçadasempresasimplicadaseà

resistência do espaço preexistente. O modelo hegemônico é planejado para ser, em sua ação

individual,indiferenteaseuentorno.Masestedealgummodoseopõeàplenitudedessahegemonia.

Esta,porém,éexercidaemsuaformalimite,poisaempresaseesforçaporesgotarasvirtualidadeseperspectivasdesuaação“racional”.Oníveldesselimitedefineaoperaçãorespectivadopontode

vistadesuarentabilidade,comparadaàdeoutrasempresasedeoutroslugares.Seconsiderada

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insatisfatória,levaàsuamigração.

Asverticalidadessão,pois,portadorasdeumaordemimplacável,cujaconvocação

incessanteasegui-larepresentaumconviteaoestranhamento.Assim,quantomais“modernizados”e

penetradosporessalógica,maisosespaçosrespectivossetornamalienados.Oelencodas

condiçõesderealizaçãodasverticalidadesmostraque,parasuaefetivação,terumsentidoé

desnecessário, enquanto a grande força motora seria aquele instinto animal das empresasmencionado,hádecênios,porStephanHymereagoramultiplicadoepotencializadoapartirda

globalização.

AsverticalidadesrealizamdemodoindiscutívelaquelaidéiadeJeanGottmann(“The

evolutionoftheconceptofterritory”,InformationsurlesSciencesSociales ,1975)segundoaqualo

territóriopodeservistocomoumrecurso,justamenteapartirdousopragmáticoqueoequipamento

modernizadodepontosescolhidosassegura.

As horizontalidades são zonas da contigüidade que formam extensões contínuas.

Valemo-nos,outravez,dovocabuláriodeFrançoisPerrouxquandosereferiu aexistênciadeum

“espaçobanal”emoposiçãoaoespaçoeconômico.Oespaçobanalseriaoespaçodetodos:

empresas,instituições,pessoas;oespaçodasvivências.

Esseespaçobanal,essaextensãocontinuada,emqueosatoressãoconsideradosna

suacontigüidade,sãoespaçosquesustentameexplicamumconjuntodeproduçõeslocalizadas,

interdependentes, dentro de uma área cujas características constituem, também, um fator de

produção.Todososagentessão,deumaformaoudeoutra,implicados,eosrespectivostempos,

maisrápidosoumaisvagarosos,sãoimbricados.Emtaiscircunstânciaspode-sedizerqueapartirdo

espaçogeográfico cria-seuma solidariedadeorgânica, o conjuntosendo formadopela existência

comumdosagentesexercendo-sesobreumterritóriocomum.Taisatividades,nãoimportaonível,

devemsuacriaçãoealimentaçãoàsofertasdomeiogeográficolocal.Talconjuntoindissociável

evoluiemuda,mastalmovimentopodeservistocomoumacontinuidade,exatamenteemvirtudedo

papelcentralqueéjogadopelomencionadomeiogeográficolocal.

Nesseespaçobanal,aaçãoatualdoEstado,alémdesuasfunçõesigualmentebanais,é

limitada.Naverdade,mudadasascondiçõespolíticas,énesseespaçobanalqueopoderpúblico

encontraria asmelhores condições para sua intervenção.O fato de que o Estado se preocupe

sobretudocomodesempenhodasmacroempresas,àsquaisofereceregrasdenaturezageralque

desconhecem particularidades criadas a partir do meio geográfico, leva à ampliação das

verticalidadese,paralelamente,permiteoaprofundamentodapersonalidadedashorizontalidades.

Nestas,aindaqueestejampresentesempresascomdiferentesníveisdetécnicas,decapitalede

organização,oprincípioquepermiteasobrevivênciadecadaumaéodabuscadecertaintegração

noprocessodaação.

Trata-se, aqui, da produção local de uma integração solidária, obtida mediante

solidariedades horizontais internas, cuja natureza é tanto econômica, social e cultural como

propriamentegeográfica.Asobrevivênciadoconjunto,nãoimportaqueosdiversosagentestenhaminteressesdiferentes,dependedesseexercíciodasolidariedade,indispensávelaotrabalhoequegera

avisibilidadedointeressecomum.Talaçãocomumnãoéobrigatoriamenteoresultadodepactos

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explícitosnemdepolíticasclaramenteestabelecidas.Aprópriaexistência,adaptando-seasituações

cujocomandofreqüentementeescapaaosrespectivosatores,acabaporexigirdecadaqualum

permanenteestadodealerta,nosentidodeapreenderasmudançasedescobrirassoluções

indispensáveis.

Pode-se dizer que talsituaçãoasseguraa permanência de forçascentrípetas. Estas,

aindaquenãosejamdeterminantes(jáqueashorizontalidadesrecebeminfluxosdasverticalidades)sãodominantes.Taisforçascentrípetasgarantemsuasobrevivênciapelofatodequeoâmbitode

realização dos atoresé limitado,confundindo-se todosnumespaço geográfico restrito,que é,ao

mesmotempo,abasedesuaatuação.

Ashorizontalidades,pois,alémdasracionalidadestípicasdaverticalidadesqueas

admitemapresençade outrasracionalidades(chamadasdeirracionalidadespelosquedesejariam

vercomoúnicaaracionalidadehegemônica).Naverdade,sãocontra-racionalidades, istoé, formas

deconvivênciaederegulaçãocriadasapartirdopróprioterritórioequesemantêmnesseterritórioa

despeitodavontadedeunificaçãoehomogeneização,característicasdaracionalidadehegemônica

típicadasverticalidades.Apresençadessasverticalidadesproduztendênciasàfragmentação,comaconstituição de alvéolos representativos de formas específicas de ser horizontal a partir das

respectivasparticularidades.

Ao contrário das verticalidades, regidas por um relógio único, implacável, nas

horizontalidadesassimparticularizadasfuncionam,aomesmotempo,váriosrelógios,realizando-se,

paralelamente,diversastemporalidades.

Trata-sedeumespaçoàvocaçãosolidária,sustentodeumaorganizaçãoemsegundo

nível,enquantosobreeleseexerceumavontadepermanentededesorganização,aoserviçodos

atoreshegemônicos.Esseprocessodialéticoimpedequeopoder,semprecrescenteecadavezmais

invasor,dosatoreshegemônicos,fundadosnosespaçosdefluxos,sejacapazdeeliminaroespaço

banal,queépermanentementereconstituídosegundoumanovadefinição.

Pode-sedizerque,aocontráriodaordemimposta,nosespaçosdefluxos,pelosatores

hegemônico e da obediência alienadados atores subalternizados, hegemonizados, nosespaços

banaisserecriaaidéiaeofatodaPolítica,cujoexercíciosetornaindispensável,paraprovidenciaros

ajustamentosnecessáriosaofuncionamentodoconjunto,dentrodeumaáreaespecífica.Pormeiode

encontrosedesencontrosedoexercíciododebateedosacordos,busca-seexplícitaoutacitamentea

readaptaçãoàsnovasformasdeexistência.

Oprocessoacimadescritoé tambémaquelepeloqualumasociedadeeum território

estãosempreàbuscadeumsentidoeexercem,porisso,umavidareflexiva.Nestecaso,oterritório

nãoéapenasolugardeumaaçãopragmáticaeseuexercíciocomporta,também,umaportedavida,

umaparceladeemoção,quepermiteaosvaloresrepresentarumpapel.Oterritóriosemetamorfoseia

emalgomaisdoqueumsimplesrecursoe,parautilizarumaexpressão,queétambémdeJean

Gottmann,constituiumabrigo.

Narealidade,amesmafraçãodoterritóriopodeserrecursoeabrigo,podecondicionarasaçõesmaispragmáticase,aomesmotempo,permitirvocaçõesgenerosas.Osdoismovimentos

sãoconcomitantes.Nascondiçõesatuais,omovimentodeterminante,comtendênciaaumadifusão

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avassaladora,éodacriaçãodaordemdaracionalidadepragmática,enquantoaproduçãodoespaço

banaléresidual.Pode-se,todavia,imaginaroutrocenário,noqualocomportamentodoespaçode

fluxossejasubordinadonãocomoagoraàrealizaçãododinheiroeencontreumfreioaessaformade

manifestação,tornando-sesubordinadoàrealizaçãoplenadavida,demodoqueosespaçosbanais

aumentemsuacapacidadedeserviràplenitudedohomem.

Comosabemos,omundo,comoumconjuntodeessênciasedepossibilidades,não

existeparaelepróprio,eapenasofazparaosoutros.Éoespaço,istoé,oslugares,querealizame

revelamomundo,tornando-ohistoricizadoegeografizado,istoé,empiricizado.

Oslugaressão,pois,omundo,queelesreproduzemdemodosespecíficos,individuais,

diversos.Elessãosingulares,massãotambémglobais,manifestaçõesdatotalidade-mundo,daqual

sãoformasparticulares.

Nascondiçõesatuais,ocidadãodolugarpretendeinstalar-setambémcomocidadãodo

mundo.Averdade,porém,équeo“mundo”nãotemcomoregularoslugares.Emconseqüência,a

expressãocidadãodomundotorna-seumvoto,umapromessa,umapossibilidadedistante.Comoos

atores globais eficazes são, em última análise, anti-homem e anticidadão, a possibilidade de

existência de um cidadão domundo é condicionada pelas realidades nacionais. Na verdade, o

cidadãosóoé(ounãooé)comocidadãodeumpaís.

Ser“cidadãodeumpaís”,sobretudoquandooterritórioéextensoeasociedademuito

desigual,podeconstituir;apenas,umaperspectivadecidadaniaintegral,aseralcançadanasescalas

sub-nacionais,acomeçarpelonívellocal.Esseéocasobrasileiro,emquearealizaçãodacidadania

reclama,nascondiçõesatuais,umarevalorizaçãodos lugares e umaadequação deseuestatuto

político.

Amultiplicidadedesituaçõesregionaisemunicipais,trazidacomaglobalização,instala

umaenormevariedadedequadrosdevida,cujarealidadepresideocotidianodaspessoasedeveser

abaseparaumavidacivilizadaemcomum.Assim,apossibilidadedecidadaniaplenadaspessoas

dependedesoluçõesaserembuscadaslocalmente,desdeque,dentrodanação,sejainstituídaumafederaçãodelugares,umanovaestruturaçãopolítico-territorial,comaindispensávelredistribuiçãode

recursos,prerrogativaseobrigações.Apartirdopaíscomofederaçãodelugaresserápossível,num

segundomomento,construirummundocomofederaçãodepaíses.

Trata-se,emambasasetapas,deumaconstruçãodebaixoparacimacujopontocentral

éaexistênciadeindividualidadesfortesedasgarantiasjurídicascorrespondentes.Abasegeográfica

dessaconstruçãoseráolugar,consideradocomoespaçodeexercíciodaexistênciaplena.Estamos,

porém,muitolongedarealizaçãodesseideal.Como,então,poderemosalcançá-lo?

Oterritóriotantoquantoolugarsãoesquizofrênicos,porquedeumladoacolhemos

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doimediatismoàsvisõesfinalísticas;edeumpontodevistadaação,oproblemaéultrapassaras

soluçõesimediatistas(porexemplo,eleitoralismosinteresseiroseapenasprovisoriamenteeficazes)e

alcançarabuscapolíticagenuínaeconstitucionalderemédiosestruturaiseduradouros.

Nesseprocesso,afirma-se,também,segundonovosmoldes,a antigaoposiçãoentreo

mundo eo lugar.A informaçãomundializadapermiteavisão,mesmoem flashes ,deocorrências

distantes.Oconhecimentodeoutroslugares,mesmosuperficiale incompleto,aguçaacuriosidade.Eleécertamenteumsubprodutodeumainformaçãogeralenviesada,mas,seforajudadoporum

conhecimentosistêmicodoacontecerglobal,autorizaavisãodahistóriacomoumasituaçãoeum

processo,amboscríticos.Depois,oproblemacrucialé:comopassardeumasituaçãocríticaauma

visãocrítica–e,emseguida,alcançarumatomadadeconsciência.Paraisso,éfundamentalvivera

própriaexistênciacomoalgodeunitárioeverdadeiro,mastambémcomoumparadoxo:obedecer

parasubsistire resistirparapoderpensaro futuro.Entãoaexistênciaé produtoradesuaprópria

pedagogia.

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Aanálisedofenômenodaglobalizaçãoficariaincompletase,apósreconhecerosfatores

quepossibilitaramsuaemergência,apenasnosdetivéssemosnaapreciaçãodosseusaspectos

atualmentedominantes,dequeresultamtantosinconvenientesparaamaiorpartedahumanidade.

Cabe,agora, verificaros limitesdessaevoluçãoe reconhecera emergênciadecerto

númerodesinaisindicativosdequeoutrosprocessosparalelamenteselevantam,autorizadopensar

quevivemosumaverdadeirafasedetransiçãoparaumnovoperíodo.

Emprimeirolugar,odensosistemaideológicoqueenvolveesustentaasações

determinantesparecenãoresistiràevidênciadosfatos.Avelocidadenãoéumbemquepermitauma

distribuiçãogeneralizada,easdisparidadesnoseuusogarantemaexacerbaçãodasdesigualdades.

Avidacotidianatambémrevelaaimpossibilidadedefruiçãodasvantagensdochamadotemporeal

paraamaioriadahumanidade.Apromessadequeastécnicascontemporâneaspudessemmelhorar

aexistênciadetodoscaemporterraeoqueseobservaéaexpansãoaceleradadoreinodaescassez,atingindoasclassesmédiasecriandomaispobres.

Aspopulaçõesenvolvidasnoprocessodeexclusãoassimfortalecidoacabampor

relacionarsuascarênciasevicissitudesaoconjuntodenovidadesqueasatingem.Umatomadade

consciênciatorna-sepossívelalimesmoondeo fenômenodaescassezémaissensível.Por isso,a

compreensãodoqueseestápassandochegacomclarezacrescenteaospobreseaospaísespobres,

cadavezmaisnumerososecarentes.Daíorepúdioàsidéiaseàspráticaspolíticasquefundamentam

oprocessosocioeconômicoatualeademanda,cadavezmaispressurosa,denovassoluções.Estas

nãomaisseriamcentradasnodinheiro,comonaatualfasedaglobalização,paraencontrarnopróprio

homemabaseeomotordaconstruçãodeumnovomundo.

Osfenômenosaquemuitoschamamdeglobalizaçãoeoutrosdepós-modernidade

(Renato Ortiz, Mundializaçãoecultura ,1994)naverdadeconstituem,juntos,ummomentobem

demarcadodoprocessohistórico.Preferimosconsidera-loumperíodo.Comoemqualqueroutro

período histórico, funcionam de forma concertada diversas variáveis cuja visão sistêmica é

indispensávelparaentenderoqueseestárealizando.Tambémcomoemtodoperíodo,apartirde

certomomento hávariáveisqueperdem vigor, verdadeirasvariáveisdescendentes, e outras que

passamaseimpor.Sãoasvariáveisascendentesquerevelamaproduçãodeumnovoperíodo,isto

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é,apontamparaofuturo.

Omomentoatualdahistóriadomundopareceaindaindicaraemergênciadenumerosas

variáveisascendentescujaexistênciaésistêmica.Isso,exatamente,permitepensarqueseestão

produzindoascondiçõesderealizaçãodeumanovahistória.

Porenquanto,renunciamos,aqui,afornecerumalistaexaustivadosfenômenos,mas

nãoaapontaralgunsfatosquenosparecembemcaracterísticosdasmudançasemcurso.Umdeleséocrescentedesencantocomastécnicas,acompanhadoporumagradativarecuperaçãodobom

senso,emoposiçãoaosensocomum,istoé,emoposiçãoàpretensaracionalidadesugeridatanto

pelastécnicasemsimesmacomopelapolíticadoseuuso.Outrodadosignificativoselevantacoma

impossibilidaderelativamentecrescentedeacessoaessastécnicas,emvirtudedoaumentoda

pobrezaemtodososcontinentes.Junte-seaessedadoofatodeque,apesardacapacidadeinvasora

dastécnicashegemônicas,sobrevivemecriam-senovastécnicasnãohegemônicas.Pode-searriscar

umvaticínioereconhecer,noconjuntodoprocesso,oanúnciodeumnovoperíodohistórico,

substitutodoatualperíodo.Estaríamosnaauroradeumanovaera,emqueapopulação,istoé,as

pessoasconstituiriamsuaprincipalpreocupação,umverdadeiroperíodopopulardahistória,jáentremostradopelasfragmentaçõeseparticularizaçõessensíveisemtodapartedevidasàculturaeo

território.

OProjetoRacionalcomeçaamostrarsuaslimitaçõestalvezporqueestejamosatingindo

aqueleparoxismoprevistoporWeber(Economía y sociedad ,1922)pararealizar-sequandoo

processodeexpansãodaracionalidadecapitalistasetornasseilimitado.Tudoindicaqueestamos

atingindoessafronteira,agoraque,nosdiversosníveisdavidaeconômica,social,individual,vivemos

umaracionalidadetotalitáriaquevemacompanhadadeumaperdadarazão.Odebochedecarência

edeescassezqueatingeumaparcelacadavezmaiordasociedadehumanapermitereconhecera

realidadedessaperdição.

Umaboaparceladahumanidade,pordesinteresseouincapacidade,nãoémaiscapaz

de obedecer a leis, normas, regras, mandamentos, costumes derivados dessa racionalidade

hegemônica.Daíaproliferaçãode“ilegais”,“irregulares”,“informais”.

Essa incapacidade mistura, num processo de vida, práticas e teorias herdadas e

inovadas,religiõestradicionaisenovasconvicções.Énessecaldodeculturaquenumerosasfraçõesdasociedadepassamdasituaçãoanteriordeconformidadeassociadaaoconformismoaumaetapa

superiordaproduçãodaconsciência,istoé,aconformidadesemoconformismo.Produz-sedessa

maneiraaredescobertapeloshomensdaverdadeirarazãoenãoéespantosoquetaldescobrimento

sedêexatamentenosespaçossociais,econômicosegeográficostambém“nãoconformes”à

racionalidadedominante.

Naesferadaracionalidadehegemônica,pequenamargemédeixadaparaavariedade,a

criatividade,a espontaneidade.Enquantoisso,surgem,nasoutrasesferas,contra-racionalidadese

racionalidades paralelas corriqueiramente chamadas de irracionalidades, mas que na realidade

constituemoutrasformasderacionalidade.Estassãoproduzidasemantidaspelosqueestão“embaixo”, sobretudo os pobres, que desse modo conseguem escapar ao totalitarismo da

racionalidadedominante.RecordemosoensinamentodeSartre,paraquemaescassezéquetornaa

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históriapossível,graçasà“unidadenegativadamultiplicidadeconcretadoshomens”.

Tal situação é objetivamente esperançosa porque agora assistimos ao fim das

espectativasnutridasnoapós-guerrae, ao contrário, testemunhamosa ampliaçãodonúmero de

pobres, assim como o estreitamento das possibilidades e das certezas que as classes médias

acalentavamatéadécadade1980.Outrodadoobjetivoéo fatodequearealizaçãocadavezmais

densa do processo de globalização enseja o caldeamento, ainda que elementar, das filosofiasproduzidasnosdiversoscontinentes,emdetrimentodoracionalismoeuropeu,queéobisavôdas

idéiasderacionalismotecnocráticohojedominantes.

Nafamíliadosimagináriosdaglobalizaçãoedastécnicas,encontra-seaidéia,difundida

comexuberância,dequeavelocidadeconstituiumdadoirreversívelnaproduçãodahistória,

sobretudoaoalcançarosparoxismosdostemposatuais.Naverdade,porém,somentealgumas

pessoas,firmaseinstituiçõessãoaltamentevelozes,esãoaindaemmenornúmeroasqueutilizam

todasasvirtualidadestécnicasdasmáquinas.Naverdade,orestodahumanidadeproduz,circulae

vivedeoutramaneira.Graçasàimposturaideológicaofatodaminoriaacabasendorepresentativoda

totalidade,graçasexatamenteàforçadoimaginário.

Essa transformação de uma fluidez potencial numa fluidez efetiva, por meio da

velocidadeexacerbada,todavianãotemenembuscaumsentido.Semdúvida,elaserveaoexercício

deumacompetitividadedesabrida,masestaéumacoisaqueninguémsabeparaoquerealmente

serve.

Pode-sedizerqueavelocidadeassimutilizadaéduplamenteumdadodapolíticaenão

datécnica.Deumlado,trata-sedeumaescolharelacionadacomopoderdosagentese,deoutro,da

legitimaçãodessaescolha,pormeiodajustificaçãodeummodelodecivilização.Énessesentidoque

estamosafirmandotratar-semaisdeumdadodapolíticaque,propriamente,datécnica,jáqueesta

poderiaserusadadiferentementeemfunçãodoconjuntodeescolhassociais.Defato,ousoextremo

davelocidadeacabaporsero imperativodasempresashegemônicase nãodasdemais,paraas

quaisosentidodeurgêncianãoéumaconstante.MaséapartirdesseedeoutroscomportamentosqueapolíticadasempresasarrastaapolíticadosEstadosedasinstituiçõessupranacionais.

No passado, a ordemmundial se construía mediante uma combinação política que

conduziaànão-obediênciaaosditamesdatécnicamaismoderna.Pensemos,porexemplo,noséculo

doimperialismo,noscemanosquevãodoquartoquarteldoséculoXIXaoterceirodoséculoXX.Os

impérios,emsuaqualidadedegrandesconjuntospolíticoseterritoriais,viviameevoluíamsegundo

idades técnicas diversas,utilizando, cadaqual,dentro dosseusdomínios, conjuntosdeavanços

técnicosdisparatados e quemostravamníveisdiferentes.O império britânicoestavaà frente dos

demaisquantoàpossederecursostécnicosavançados.Masissonãoimediasuaconvivênciacom

outrosimpérios.Dentrodecadaum,ousodoconjuntodosrecursostécnicoseracomandadoporumconjuntodenormasrelacionadasaocomércio,àproduçãoeaoconsumo,oquepermitiaacadabloco

umaevoluçãoprópria,nãoperturbadapelaexistênciaemoutrosimpériosdeavançostécnicosmais

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significativos.Nofundo,apoliticacomercialaplicadadentrodecadaimpérioasseguravaapolíticado

conjuntodomundoocidental(M.Santos, Anaturezadoespaço ,1996,pp.36-37epp.152-153).O

exemplomostranãosercertoquehajaumimperativotécnico.Oimperativoépolítico.Dessemodo,

nãoháumainelutabilidadefaceaossistemastécnicos,nemmuitomenosumdeterminismo.Aliás,a

técnicasomenteéumabsolutoenquantoirrealizada.Assim,existindoapenasnavitrine,mas

historicamenteinexistente,equivaleriaaumaabstração.Quandonosreferimosàhistoricizaçãoeàgeografizaçãodastécnicas,estamoscuidandodeentenderoseuusopelohomem,suaqualidadede

intermediáriodaação,istoé,suarelativização.

Noperíododaglobalização,omercadoexterno,comsuasexigênciasdecompetitividade,

obrigaaaumentara velocidade.Masapopulaçãoemseusdiferentesníveis,ospobreseosque

vivemlongedosgrandesmercadosobrigamacombinaçõesdeformaseníveisdecapitalismo.Éo

mercadointernoquefreiaavontadedevelocidadedequejáfalavaM.Sorre( Annalesdegéographie ,

1948), porque todos os atores dele participam. Todavia, os dois mercados são intercorrentes,

interdependentes. Invadindoa economiae o território comgrandevelocidade, o circuito superior

buscadestruirasformaspreexistentes.Masoterritórioresiste,sobretudonagrandecidade,graças,entreoutrascoisas,àmenorfricçãodadistância.Aspequenasemédiasempresaslocaistêmmais

acessopotencialque,porexemplo,umagrandeempresadeManaus,poispodemalcançarumaparte

significativadacidade(porexemplo,ossupermercadosmenores).Contribuirátambémparaesse

maioracessopotencialofatodeestaremnummeioqueéumtecidoeumemaranhadodenormas

concernentes,oquetornaessasempresasmenosdependentesdeumaúnicanormaparasubsistir.

Mas,comaglobalizaçãoeseuimagináriocomumaodatécnicahegemônica,umaeoutrasãodadas

comoindispensáveisàparticipaçãoplenanoprocessohistórico.

Éfato,também,que,comainterdependênciaglobalizadadoslugareseaplanetarização

dos sistemas técnicos dominantes, estes parecem se impor como invasores, servindo como

parâmetronaavaliaçãodaeficáciadeoutroslugaresedeoutrossistemastécnico.Énessesentido

queossistematécnicohegemônicoaparececomoalgoabsolutamenteindispensáveleavelocidade

resultante como um dado desejável a todos que pretendem participar de pleno direito, da

modernidadeatual.Todavia,avelocidadeatualetudoquevemcomela,equedeladecorre,nãoé

inelutávelnemimprescindível.Naverdade,elanãobeneficianeminteressaàmaioriadahumanidade.

Paraquê,defato,serveesserelógiodespóticodomundoatual?Ascrisesatuaissão,emúltima

análise,umaresultantedaaceleraçãocontemporânea,medianteousoprivilegiado,poralgunsatores

econômicos,das possibilidadesatuaisde fluidez.Como talexercícionão respondeaumobjetivo

morale, dessemodo,édesprovidode sentido,o resultadoéa instalaçãodesituaçõesemqueo

movimentoencontrajustificativaemsimesmo–comoéocasodomercadodecapitaisespeculativos–

talautonomiasendoumadasrazõesdadesordemcaracterísticadoperíodoatual.

Quandoaceitamospensaratécnicaemconjuntocomapolíticaeadmitimosatribuir-lhe

outrouso,ficamosconvencidosdequeépossívelacreditaremumaoutraglobalizaçãoeemumoutro

mundo.Oproblemacentraléoderetomarocursodahistória,istoé,recolocarohomemnoseulugarcentral.

Talpreocupaçãodemudançaincluiumarevisãodosignificadodaspalavras-chavedo

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nossoperíodo,todascontaminadaspelorespectivosistemaideológico.Fiquemoscomaquestãoda

velocidade ,quepodeservistacomoumparadigmadaépoca,mastambémcomooqueela

representadeemblemático.Naverdade,sejaqualforocorposocial,avelocidadehegemônica

constituiumadassuascaracterísticas,masadefiniçãodarealidadesomentepodeserobtida

considerando-seasdiversasvelocidadesempresença.E,sejacomofor,aeficáciadavelocidadenão

provémdatécnicasubjacente.Aeficáciadavelocidadehegemônicaédenaturezapolíticaedependedo sistema socioeconômico político em ação. Pode-se dizer que, em uma dada situação, tal

velocidadehegemônicaéumavelocidadeimpostaideologicamente.

Comoemtudomais,ainterpretaçãodahistórianãopodeserdeixadaaoentendimento

imediato do fenômeno técnico, exigindoentendercomo, nessamesma situação, se relacionama

técnicaeapolítica,atribuindoaestaopapelcentralnoentendimentodasaçõesqueconformamo

presenteatualequepodemtornarpossívelumoutrofuturo.

O tema das verticalidades e das horizontalidades pode comportar numerosas

reinterpretações.Umadelas,refletindoojogocontraditórioentreessascategorias,éaverdadeira

oposição existente entre a natureza das atividades  just-in-time ,quetrabalhamcomumrelógio

universal,earealidadedasatividadesque,juntas,constituemavidacotidiana.

Noprimeirocasotrata-sedavocaçãoparaumaracionalidadeúnica,reitoradetodasas

outras,desejosadehomogeneizaçãoedeunificação,pretendendosempretomarolugardasdemais,

umaracionalidadeúnica,masracionalidadesemrazão,quetransformaaexistênciadaquelesaquem

subordinanumaperspectivadealienação.Jánocotidiano,arazão,istoé,arazãodeviver,ébuscada

pormeiodoque,faceaessaracionalidadehegemônica,éconsideradacomo“irracionalidade”,

quandonarealidadeoquesedásãooutrasformasdeserracional.

Omundodotemporeal,dojust-in-time,éaquelesubsistemadarealidadetotalque

buscaemsualógicanessamencionadaracionalidadeúnica,cujacriaçãoé,todavia,limitada,atributo

deumpequenonúmerodeagentes.Omundodocotidianoé tambémodaprodução ilimitadade

outras racionalidades,que são,aliás, tãodiversasquantoasáreasconsideradas, jáqueabrigam

todasasmodalidadesdeexistência.

O funcionamento dos espaços hegemônicos supõe uma demanda desesperada de

regras;quandoascircunstânciasmudame,porisso,asnormasreguladorastêmdemudar,nemporissosuademandadeixadeserdesesperada.Talregulaçãoobedeceàconsideraçãodeinteresses

privatísticos.JáocotidianosupõeumademandadesesperadadePolítica,resultadodaconsideração

conjuntademúltiplosinteresses.

Nocasodasatividades just-in-time ,umasótemporalidadeéconsiderada:éafórmulade

sobrevivência no mundo da competitividade à escala planetária. Como dado motor, uma só

existência,a dosagenteshegemônicos,é,aomesmotempo,origemefinalidadedasações.Avida

cotidiana abrange várias temporalidades simultaneamente presentes, o que permite considerar,

paralelaesolidariamente,aexistênciadecadaumedetodos,como,aomesmotempo,suaorigeme

finalidade.Oconjuntodascondiçõesacimaenunciadaspermitedizerqueomundodotemporeal

buscaumahomogeneizaçãoempobrecedoraelimitada,enquantoouniversodocotidianoéomundo

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daheterogeneidadecriadora.

Sabemos jáqueas técnicaspresentesemumadada situaçãonãosãohomogêneas.

Enquantoastécnicashegemônicassedãoemredes,alémdelasoutrastécnicasseimpõem.Mas,em

umadadasituação,todasastécnicaspresentesacabamporserinextricáveis.Talsolidariedadenão

é,propriamente,entreastécnicas,masofrutodavidasolidáriadasociedade.

Hoje,tantoosobjetivosquantoasaçõesderivamdatécnica.Astécnicasestão,pois,em

todaparte:naprodução,nacirculação,noterritório,napolítica,nacultura.Elasestãotambém–e

permanente–nocorpoenoespíritodohomem.Vivemostodosnumemaranhadodetécnicas,oque

emoutraspalavrassignificaqueestamostodosmergulhadosnoreinodoartifício.Namedidaemque

astécnicashegemônicas,fundadasnaciênciaeobedientesaosimperativosdomercado,sãohoje

extremamentedotadasdeintencionalidade,háigualmentetendênciaàhegemoniadeumaprodução

“racional” de coisas e de necessidades; e desse modo uma produção excludente de outras

produções,comamultiplicaçãodeobjetostécnicosestritamenteprogramadosqueabremespaço

paraessaorgiadecoisasenecessidadesqueimpõemrelaçõesenosgovernam.Cria-seum

verdadeiro totalitarismo tendencial da racionalidade – isto é, dessa racionalidade hegemônica,

dominante-,produzindo-seapartirdorespectivosistemacertascoisas,serviços,relaçõeseidéias.Esta,aliás,éabaseprimeiradaproduçãodecarênciasedeescassez,jáqueumaparcela

considerável da sociedade não pode ter acesso às coisas, serviços, relações, idéias que se

multiplicamnabasedaracionalidadehegemônica.

Asituaçãocontemporânearevela,entreoutrascoisas,trêstendências:1.umaprodução

aceleradaeartificialdenecessidades;2.umaincorporaçãolimitadademodosdevidaditosracionais;

3.umaproduçãolimitadadecarênciaeescassez.

Nessa situação, as técnicas a velocidade, a potência criam desigualdades e,

paralelamente,necessidades,porquenãohásatisfaçãoparatodos.Nãoéqueaproduçãonecessária

sejaglobalmenteimpossível.Masoqueéproduzido–necessáriaoudesnecessariamente–édesigualmentedistribuído.Daíasensaçãoe,depois,aconsciênciadeescassez:aquiloquefaltaa

mim,masqueooutromaisbemsituadonasociedadepossui.AidéiavemdeSartre,quandoregistra

que“nãohábastanteparatodoomundo”.Porissoooutroconsomeenãoeu.Ohomem,cada

homem,éafinaldefinidopelasomadospossíveisquelhecabem,mastambémpelasomadosseus

impossíveis.

Oreinodanecessidadeexisteparatodos,massegundoformasdiferentes,asquais

simplificamosmedianteduassituações–tipo:paraos“possuidores”,paraos“nãopossuidores”.

Quanto aos “possuidores”, torna-se viável, mediante possibilidades reais ou artifícios

renovados,afugaàescassezeasuperaçãoaindaqueprovisóriadaescassez.Comooprocessoda

criaçãodenecessidadeséinfinito,impõe-seumareadaptaçãopermanente.Cria-seumcírculovicioso

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comarotinadafaltaedasatisfação.Narealidade,paraessaparceladasociedadeafaltajáécriada

como a expectativa e a perspectivade satisfação. As negociaçõespara regressar ao status de

consumidorsatisfeito conduzem à repetiçãodeexperiênciasexitosas. Dessemodo,a parcela de

consumidorescontumazesobtémumaconvivênciarelativamentepacíficacomaescassez.Masa

buscapermanentedebensfinitoseporissocondenadosaoesgotamento(eàsubstituiçãoporoutros

bensfinitos)condenaosaparentementevitoriososàaceitaçãodacontrafinalidadecontidanascoisaseemconseqüênciaaoenfraquecimentodaindividualidade.

Quantoaos“não-possuidores”suaconvivênciacomaescassezéconflituosaeatépode

serguerreira.Paraeles,viver naesferadoconsumoécomoquerer subirumaescada rolanteno

sentidodadescida.Cadadiaacabaoferecendoumanovaexperiênciadaescassez.Porissonãohá

lugarparaorepousoeaprópriavidaacabaporserumverdadeirocampodebatalha.Nabriga

cotidianapelasobrevivência,nãohánegociaçãopossívelparaeles,e,individualmente,nãoháforça

de negociação. A sobrevivência só é assegurada porque as experiências imperativamente se

renovam.Ecomoasurpresasedácomorotina,ariquezados“não-possuidores”éaprontidãodos

sentidos.Écomessaforçaqueelesseeximemdacontrafinalidadeeaoladodabuscadebensmateriaisfinitoscultivamaprocuradebensinfinitoscomoasolidariedadeealiberdade:estes,quanto

maissedistribuem,maisaumentam.

Aexperiênciadaescassezéaponteentreocotidianovividoeomundo.Porisso,

constituiuminstrumentoprimordialnapercepçãodasituaçãodecadaumeumapossibilidadede

conhecimentoedetomadadeconsciência.

Onossotempoconsagraamultiplicaçãodasfontesdeescassez,sejapelonúmero

avassaladordosobjetospresentesnomercado,sejapelochamadoincessanteaoconsumo.Cada

dia,nessaépocadeglobalização,apresenta-seumobjetonovo,quenosémostradoparaprovocaro

apetite.Anoçãodeescassezsematerializa,seaguçaesereaprendecotidianamente,assimcomo,já

agora,acertezadequecadadiaédiadeumanovaescassez.Asociedadeatualvaidessamaneira,

mediante o mercado e a publicidade, criando desejos insatisfeitos, mais também reclamando

explicações.Dir-se-iaquetalmovimentoserepete,enriquecendoomovimentointelectual.

Aescassezdeumpodesepareceràescassezdooutroeaescassezdehojeàescassezdeontem,

masquandonãoésatisfeitaelaacabaporseimporcomodiferentedadeontemedadooutro.

Alteridadeeindividualidadesereforçamcomarenovaçãodanovidade.Quantomaisdiferentessão

osqueconvivemnumespaçolimitado,maisidéiasdomundoaíestarãoparaserlevantadas,

cotejadase,dessemodo,tantomaisricoseráodebatesilenciosoouruidosoqueentreaspessoasse

estabelece.Nessesentido,pode-sedizerqueacidadeéumlugarprivilegiadoparaessarevelaçãoe

que,nessafasedaglobalização,aaceleraçãocontemporâneaétambémaceleraçãonaproduçãoda

escassezenadescobertadasuarealidade,jáque,multiplicandoeapressandooscontatos,exibea

multiplicidadedeformasdeescassezcontemporânea,asquaisvãomudandomaisrapidamentepara

setornaremmaisnumerosasemaisdiversas.Paraospobres,aescassezéumdadopermanenteda

existência,mascomosuapresençanavidadetodososdiaséoresultadodeumametamorfosetambémpermanente,otrabalhoacabaporser,paraeles,olugardeumadescobertacotidianaede

umcombatecotidiano,mastambémumaponteentreanecessidadeeoentendimento(M.Santos,

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JornaldoBrasil ,06.04.1997).

Oexamedopapelatualdospobresnaproduçãodopresenteedofuturoexige,em

primeirolugar,distinguir entrepobrezaemiséria.Amisériaacabaporseraprivaçãototal,comoaniquilamento,ouquase,dapessoa.Apobrezaéumasituaçãodecarência,mastambémdeluta,um

estadovivo,devidaativa,emqueatomadadeconsciênciaépossível.

Miseráveissãoosqueseconfessamderrotados.Masospobresnãoseentregam.Eles

descobremcadadiaformasinéditasdetrabalhoedeluta.Assim,elesenfrentamebuscamremédio

parasuasdificuldades.Nessacondiçãodealertapermanente,nãotêmrepousointelectual.A

memóriaseriasuainimiga.Aherançadopassadoétemperadapelosentimentodeurgência,essa

consciênciadonovoqueé,também,ummotordoconhecimento.

A socialidadeurbanapodeescaparaoseus intérpretes, nasfaculdades; ouaos seus

vigias,nasdelegaciasdepolícia.Masnãoaosatoresativosdodrama,sobretudoquando,para

prosseguirvivendo,sãoobrigadosalutartodososdias.Haveráquemdescrevaoquadromaterial

dessabatalhacomosefosseumteatro,quando,porexemplo,sefalaemestratégiadesobrevivência,

masnarealidadeessepalco,juntocomseusatores,constituiaprópriavidaconcretadamaioriadas

populações.Acidade,prontaaenfrentarseutempoapartirdoseuespaço,criaerecriaumacultura

comacaradoseutempoedoseuespaçoedeacordoouemoposiçãoaos“donosdotempo”,que

sãotambémosdonosdoespaço.

Édessaformaque,naconvivênciacomanecessidadeecomooutro,seelaborauma

política,apolíticadosdebaixo,constituídaapartirdassuasvisõesdomundoedoslugares.Trata-se

deumapolíticadenovotipo,quenadatemavercomapolíticainstitucional.Estaúltimasefundana

ideologia do crescimento, da globalização etc. e é conduzida pelo cálculo dos partidos e das

empresas.Apolíticadospobresébaseadanocotidianovividoportodos,pobresenãopobres,eé

alimentadapelasimplesnecessidadedecontinuarexistindo.Noslugares,umaeoutraseencontram

e confundem, daí a presença simultânea de comportamentos contraditórios, alimentados pela

ideologia do consumo. Este, ao serviço das forças socioeconômicas hegemônicas, também se

entranhanavidaospobres,suscitandonelesexpectativasedesejosquenãopodemcontentar.

Nummundotãocomplexo,podeescaparaospobresoentendimentosistêmicodo

sistemadomundo.Estelhesaparecenebuloso,constituídoporcausaspróximaseremotas,pormotivaçõesconcretaseabstratas,pelaconfusãoentreosdiscursoseassituações,entreaexplicação

dascoisaseasuapropaganda.

Mashátambémadesilusãodasdemandasnãosatisfeitas,oexemplodovizinhoque

prospera,ocotidianocontraditório.Talvezporaíchegueodespertar.Numprimeiromomento,esteé,

apenas, o encontro de uns poucos fragmentos, de algumas peças do puzzle ,mastambéma

dificuldadeparaentrarnolabirinto:falta-lhesoprópriosistemadomundo,dopaísedolugar.Masa

sementedoentendimentojáestáplantadaeopassoseguinteéoseuflorescimentoematitudesde

inconformidadee,talvez,rebeldia.

Semdúvida,osbrotesindividuaisdeinsatisfaçãopodemnãoformarumacorrente.Masosmovimentosdemassanemsempreresultamdediscursosclarosebemarticulados,nemsempre

se dãopormeiodeorganizaçõesconseqüentese estruturadas. O entendimento sistemático das

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situaçõeseacorrespondentesistematicidadedasmanifestaçõesdeinconformidadeconstituem,via

deregra,umprocessolento.Masissonãoimpedeque,noâmagodasociedade,jáseestejam,aquie

ali,levantandovulcões,mesmoqueaindapareçamsilenciososedormentes.

Narealidade,umacoisasãoasorganizaçõeseosmovimentosestruturadoseoutra

coisaéoprópriocotidianocomoumtecidoflexívelderelações,adaptávelàsnovascircunstâncias,

sempre em movimento. A organização é importante, como o instrumento de agregação emultiplicaçãodeforçasafins,masseparadas.Elatambémpodeconstituiromeiodenegociação

necessárioavenceretapaseencontrarumovopatamarderesistênciaedeluta.Masaobtençãode

resultados,pormaiscompensadoresquepareçam,nãodeveestimularacristalizaçãodomovimento,

nemencorajararepetiçãodeestratégiasetáticas.Osmovimentosorganizadosdevemimitaro

cotidianodaspessoas,cujaflexibilidadeeadaptabilidadelheasseguramumautênticopragmatismo

existencialeconstituemasuariquezaefonteprincipaldeveracidade.

Cadaépocacrianovosatoreseatribuipapéisnovosaosjáexistentes.Esteétambémo

casodasclassesmédiasbrasileiras,desafiadasagoraparaodesempenhodeumaimportantetarefa

histórica,nareconstituiçãodoquadropolíticonacional.

Ochamadomilagreeconômicobrasileiropermiteadifusão,àescaladopaís,dofatoda

classemédia.Narealidade,entreasmuitas“explosões”característicasdoperíodo,estáesse

crescimento contínuo das classes médias, primeiro nas grandes cidades e depois nas cidades

menoresenocampomodernizado.Essaexplosãodasclassesmédiasacompanha,nestemeio

século, a explosãodemográfica, a explosãourbanae a explosãodo consumo e docrédito. Tal

conjuntodefenômenostemrelaçãoestruturalcomoaumentodaproduçãoindustrialeagrícola,como

tambémdocomércio,dostransportes,dastrocasdetodosostipos,dasobraspúblicas,da

administraçãoedanecessidadedeinformação.Há,paralelamente,umaexpansãoediversificaçãodo

emprego, comadifusãodosnovosterciáriosea consolidação,emmuitasáreasdopaís,deuma

pequenaburguesiaoperária.Comoamodernizaçãocapitalistatendeaoesvaziamentodocampoeé

sempreseletiva,umaparcelaimportantedosquesedirigiramàscidadesnãopôdeparticipardocircuitosuperiordaeconomia,deixandodeincluir-seentreosassalariadosformaisesóencontrando

trabalhonocircuitoinferiordaeconomia,impropriamentechamadodesetor“informal”.

ValerealçarquenoBrasildomilagre,eatéduranteboapartedadécadade1980,a

classemédiaseexpandeesedesenvolvesemquehouvesseverdadeiracompetiçãodentrodela

quantoaousodosrecursosqueomercadoouoEstadolheofereciamparaamelhoriadoseupoder

aquisitivoedoseubem-estarmaterial.Todos iamsubindojuntos,emboraparaandaresdiferentes.

Mastodosdasclassesmédiasestavamcônsciosdesuaascensãosocialeesperançososde

conseguiraindamais.Daísuarelativacoesãoeosentimentodesehavertornadoumpoderoso

estamento.Acompetiçãofoi,narealidade,comospobres,cujooacessoaosbenseserviçossetornacadavezmaisdifícil,àmedidaqueestessemultiplicam.Valeapenalembrarasfacilidadesparaa

aquisição da casa própria, mediante programas governamentais com que foram privilegiados,

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enquantoosbrasileirosmaispobresapenasforamincompletamenteatendidosnosúltimosanosdo

regimeautoritário. A classemédiaé a grandebeneficiáriadocrescimentoeconômico,domodelo

políticoedosprojetosurbanísticosadotados.

Talclassemédia,aomesmotempoemquesediversificaprofissionalmente,aumenta

seupoderaquisitivoemelhoraqualitativamentepormeiodasoportunidadesdeeducaçãoquelhesão

abertas,tudoissolevantadoàampliaçãodoseubem-estar(oquehojesechamadequalidadedevida),conduzindo-aaacreditarqueapreservaçãodassuasvantagenseperspectivasestivesse

assegurada.ConformemostraramAméliaRosaS.BarretoeAnaClaraT.Ribeiro(“Adúvidadadívida

eaclassemédia”,Lastro ,IPPUR,ano3,nº6,abrilde1999)“oacessoaocréditotransforma-seem

instrumentoparaalcançaraestabilidadesocial”.Tudooquealimentaaclassemédiadá-lhe,também

um sentimento de inclusão no sistema político e econômico e um sentimento de segurança,

estimuladopelaconstantesmedidasdopoderpúblicoemseufavor.Tratava-se,narealidade,deuma

moedadetroca,jáqueaclassemédiaconstituíaumabasedeapoioàsaçõesdogoverno.

Forma-se, dessa maneira, uma classe média sequiosa de bens materiais, a começar pela

propriedade,emaisapegadaaoconsumoqueàsecidadania,sóciadespreocupadadocrescimentoedopodercomosquaisseconfundia.Daíatolerância,senãoacumplicidadecomoregimeautoritário.

Omodeloeconômicoimportavamaisqueomodelocívico.Eramessas,aliás,condiçõesobjetivas

necessáriasaumcrescimentoeconômicosemdemocracia.Quandooregimemilitaresgotaoseu

ciclo,ademocraciaseinstalaincompletamentenadécadade1980,guardandotodosessesvíciosde

origem e sustentando um regime representativo falsificado pela ausência de partidos políticos

conseqüentes.Seguindoessalógica,asprópriasesquerdassãolevadasadarmaisespaçoàs

preocupaçõeseleitorasemenosàpedagogiapropriamentepolítica.Agêneseeasformasde

expansão das classes médias brasileiras têm relação direta com a maneira como hoje se

desempenhamospartidos.

Talsituaçãotendeamudar,quandoaclassemédiacomeçaaconheceraexperiênciada

escassez,oquepoderálevá-laaumareinterpretaçãodesuasituação.Nosanosrecentes,primeiro

deformalentaouesporádicaejáagorademodomaissistemáticoecontinuado,aclassemédia

conhece dificuldadesque lheapontamparaumasituação existencial bemdiferentedaquela que

conhecerahápoucosanos.Taisdificuldades chegamememumtropel:a educaçãodos filhos, o

cuidadocomasaúde,aaquisiçãooualugueldamoradia,apossibilidadedepagarpelolazer,afalta

de garantia no emprego, a deteorização dos salários, a poupança negativa e o crescente

endividamentoestãolevandoaodesconfortoquantoaopresenteeàinsegurançaquantoaofuturo,

tantoofuturoremotoquantooimediato.Tais incertezassãoagravadaspelasnovasperspectivada

previdênciasocialedoregimedeaposentadorias,daprometidareformadossegurosprivadoseda

legislaçãodotrabalho.Atudoissoseacrescentam,dentrodoprópriolar,aapreensãodosfilhosem

relaçãoaofuturoprofissionaleasmanifestaçõescotidianasdessedesassossego.

Jáquenãomaisencontramosremédiosquelheeramoferecidospelomercadooupelo

Estadocomosoluçãoaosseusproblemasindividuaisemergentes,asclassesmédiasganhamapercepçãodequejánãomandam,oudequejánãoparticipamdapartilhadopoder.Acostumadasa

atribuiraospolíticosasoluçãodosseusproblemas,proclamam,agora,seudescontentamento,

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distanciando-sedeles.Elasjánãovêemespelhadasnospartidoseporissoseinstalamnum

desencantomaisabrangentequantoàpolíticapropriamentedita.Issoéjustificado,emparte,pela

visãodeconsumidordesabusadoquealimentoudurantedécadas,agravadacomafragmentaçãopela

mídia,sobretudotelevisiva,dainformaçãoedainterpretaçãodoprocessosocial.Acertezadenão

mais influir politicamente é fortalecida nas classes médias, levando-as, não raro, a reagir

negativamente,istoé,adesejarmenospolíticaemenosparticipação,quandoareaçãocorretapoderiaedeveriaserexatamenteaoposta.

Aatualexperiênciadeescassezpodenãoconduzirimediatamenteàdesejávelexpansão

da consciência. E quando esta se impõe, não o faz igualmente, segundo as pessoas. Visto

esquematicamente, tal processo pode ter, como primeiro degrau, a preocupação de defender

situaçõesindividuaisameaçadasequesedesejareconstituir,retomandooconsumoeoconforto

materialcomooprincipalmotordeumaluta,que,dessemodo,podeselimitaranovasmanifestações

deindividualismo.Énumsegundomomentoquetaisreivindicações,frutodereflexãomaisprofunda,

podemalcançarumnívelqualitativosuperior,apartirdeumentendimentomaisamplodoprocesso

socialedeumavisãosistêmicadesituaçõesaparentementeisoladas.Opassoseguintepodelevaràdecisãodeparticipardeumalutapelasuatransformação,quandooconsumidorassumeopapelde

cidadão.Nãoimportaqueessemovimentodetomadadeconsciêncianãosejageral,nemigualpara

todasaspessoas.Oimportanteéqueseinstale.

Sejacomofor,asclassesmédiasbrasileiras,jánãomaisaduladas,eferidasdemorte

nosseusinteressesmateriaiseespirituais,constituem,emsuacondiçãoatual,umdadonovodavida

socialepolítica.Masseupapelnãoestarácompletoenquantonãoseidentificarcomosclamoresdos

pobres,contribuindo,juntos,paraorearranjoearegeneraçãodospartidos,inclusiveospartidosdo

progresso.Dentrodestes,sãomuitoosqueaindaaceitamastentaçõesdotriunfalismooposicionista–

semprequeasocasiõesseapresentam–eserendemaooportunismoeleitoreiro,limitando-seàs

respectivasmobilizaçõesocasionais,desgarrando-se,assim,doseupapeldeformadoresnãoapenas

daopiniãomasdaconsciênciacívicasemaqualnãopodehavernestepaíspolíticaverdadeira.

As classes média brasileira, agora mais ilustradas e, também, mais despojadas

materialmente,têm,agora,atarefahistóricadeforçarospartidosacomplementar,noBrasil,o

trabalho,apenascomeçado,deimplantaçãodeumademocraciaquenãosejaapenaseleitoral,mas,

também, econômica, política e social. A experiência da escassez, um revelador cotidiano da

verdadeirasituaçãodecadapessoaé,dessemodo,umdadofundamentalnaaceleraçãodatomada

deconsciência.Nascondiçõesbrasileirasatuais,asnovascircunstânciaspodemlevarasclasses

médiasaforçarumamudançasubstancialdoideárioedaspráticaspolíticas,queincluamumamaior

responsabilidadeideológicaeacorrespondenterepresentatividadepolítico-eleitoraldospartidos.

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Agestaçãodonovo,nahistória,dá-se,freqüentemente,demodoquaseimperceptível

paraoscontemporâneos,jáquesuassementescomeçamaseimporquandoaindaovelhoé

quantitativamente dominante. É exatamente por isso que a “qualidade” do novo pode passar

despercebida.Masahistóriasecaracterizacomoumasucessãoininterruptadeépocas.Essaidéiade

movimentoemudançaéinerenteàevoluçãodahumanidade.Édessaformaqueosperíodos

nascem,amadurecememorrem.

Nocasodomundoatual,temosaconsciênciadeviverumnovoperíodo,masonovoque

maisfacilmenteapreendemoséautilizaçãodeformidáveisrecursosdatécnicaedaciênciapelas

novasformasdograndecapital,apoiadoporformasinstitucionaisigualmentenovas.Nãosepode

dizerqueaglobalizaçãosejasemelhanteàsondasanteriores,nemmesmoumacontinuaçãodoque

haviaantes,exatamenteporqueascondiçõesdesuarealizaçãomudaramradicalmente.Ésomenteagoraqueahumanidadeestápodendocontarcomessanovaqualidadedatécnica,providenciada

peloqueseestáchamandodetécnicainformacional.Chegamosaumoutroséculoeohomem,por

meiodosavançosdaciência,produzumsistemadetécnicaspresididopelastécnicasdainformação.

Estaspassamaexercerumpapeldeeloentreasdemais,unindo-aseassegurandoapresença

planetáriadessenovosistematécnico.

Todavia,paraentenderoprocessoqueconduziuàglobalizaçãoatual,énecessáriolevar

em conta dois elementos fundamentais: o estado das técnicas e o estado da política. Há,

freqüentemente,tendênciaasepararumacoisadaoutra.Daínascemasmuitasinterpretaçõesda

históriaapartirdastécnicasoudapolítica,exclusivamente.Naverdade,nuncahouve,nahistóriahumana,separaçãoentreasduascoisas.Ahistóriaforneceoquadromaterialeapolíticamoldaas

condições que permitem a ação. Na prática social, sistemas técnicos e sistemas de ação se

confundemeépormeiodascombinaçõesentãopossíveisedaescolhadosmomentoselugaresde

seuusoqueahistóriaeageografiasefazemeserefazemcontinuadamente.

Paraamaiorpartedahumanidade,oprocessodeglobalizaçãoacabatendo,diretaou

indiretamente,influênciasobretodososaspectosdaexistência:avidaeconômica,avidacultural,as

relaçõesinterpessoaiseaprópriasubjetividade.Elenãoseverificademodohomogêneo,tantoem

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extensãoquantoemprofundidade,eoprópriofatodequesejacriadordeescassezéumdosmotivos

da impossibilidade da homogeneização. Os individuos não são igualmente atingidos por esse

fenômeno, cuja difusão encontra obstáculos na diversidade das pessoas e na diversidade dos

lugares.Narealidade,aglobalizaçãoaheterogeneidade,dando-lhemesmoumcaráteraindamais

estrutural.

Umadasconseqüênciasdetalevoluçãoéanovasignificaçãodaculturapopular,tornadacapazderivalizarcomaculturademassas.Outraéaproduçãodascondiçõesnecessáriasà

reemergênciadasprópriasmassas,apontandoparaosurgimentodeumnovoperíodohistórico,aque

chamamosdeperíododemográficooupopular(M.Santos,Espaçoesociedade ,1979).

Umexemploéacultura.Umesquemagrosseiro,apartirdeumaclassificaçãoarbitrária,

mostraria,emtodaaparte,apresençaeainfluênciadeumaculturademassasbuscando

homogeneizareimpor-sesobreaculturapopular;mastambém,eparalelamente,asreaçõesdestaculturapopular.Umprimeiromovimentoéresultadodoempenhoverticalunificador,homogeneizador,

conduzidoporummercadocego,indiferenteàsherançaseàsrealidadesatuaisdoslugaresedas

sociedades.Semdúvida,omercadovaiimpondo,commaioroumenorforça,aquieali,elementos

maisoumenosmaciçosdaculturademassa,indispensável,comoelaé,aoreinodomercado,ea

expansão paralela das formas de globalização econômica, financeira, técnica e cultural. Essa

conquista,maisoumenoseficazsegundooslugareseassociedades,jamaisécompleta,pois

encontraaresistênciadaculturapreexistente.Constituem-se,assim,formasmistassincréticas,

dentreasquais,oferecidacomoespetáculo,umaculturapopulardomesticadaassociandoumfundo

genuínoaformasexóticasqueincluemnovastécnicas.

Mashátambém–efelizmente–apossibilidade,cadavezmaisfreqüente,deuma

revanchedaculturapopularsobreaculturademassa,quando,porexemplo,elasedifundemediante

ousodosinstrumentosquenaorigemsãoprópriosdaculturademassas.Nessecaso,acultura

popularexercesuaqualidadedediscursodos“debaixo”,pondoemrelevoocotidianodospobres,

dasminorias,dosexcluídos,pormeiodaexaltaçãodavidadetodososdias.Seaquiosinstrumentos

daculturademassasãoreutilizados,oconteúdonãoé,todavia,“global”,nemaincitaçãoprimeiraéo

chamadomercadoglobal,jáquesuabaseseencontranoterritórioenaculturalocaleherdada.Tais

expressõesdaculturapopularsãotantomaisfortesecapazesdedifusãoquantoreveladorasdaquilo

que poderíamos chamar de regionalismos universalistas, forma de expressão que associa a

espontaneidadeprópriaàingenuidadepopularàbuscadeumdiscursouniversal,queacabaporser

umalimentodapolítica.

Nofundo,a questãodaescassezapareceoutravezcomocentral.Os“debaixo”não

dispõemdemeios(materiaiseoutros)paraparticiparplenamentedaculturamodernademassas.

Massuacultura,porserbaseadanoterritório,notrabalhoenocotidiano,ganhaaforçanecessária

paradeformar,alimesmooimpactodaculturademassas.Gentejuntacriaculturae,paralelamente,

criaumaeconomiaterritorializada,umaculturaterritorializada,umdiscursoterritorializado,uma

políticaterritorializada.Essaculturadavizinhançavaloriza,aomesmotempo,aexperiênciadaescassezeaexperiênciadaconvivênciaedasolidariedade.Édessemodoque,geradadedentro,

essa cultura endógena impõe-se como um alimento da política dos pobres, que se dá

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independentementeeacimadospartidosedasorganizações.Talculturarealiza-sesegundoníveis

maisbaixosdetécnicas,decapitaledeorganização,daísuasformastípicasdecriação.Istoseria,

aparentemente,umafraqueza,masnarealidadeéumaforça,jáqueserealiza,dessemodo,uma

integraçãoorgânicacomoterritóriodospobreseoseuconteúdohumano.Daíaexpressividadedos

seussímbolos,manifestadosnafala,namúsicaenariquezadasformasdeintercursoesolidariedade

entreaspessoas.Etudoissoevoluidemodoinseparável,oqueasseguraapermanênciadomovimento.

Aculturademassasproduzcertamentesímbolos.Masestes,diretaouindiretamenteao

serviçodopoderoudomercado,são,acadavez,fixos.Frenteaomovimentosocialenoobjetivode

nãopareceremenvelhecidos,sãosubstituídos,masporumaoutrasimbologiatambémfixa:oque

vemdecimaestásempremorrendoepode,porantecipação,jáservistocomocadáverdesdeoseu

nascimento.Éessaasimbologiaideológicadaculturademassas.

Jáossímbolos“debaixo”,produtosdaculturapopular,sãoportadoresdaverdadeda

existênciaereveladoresdoprópriomovimentodasociedade.

Éapartirdepremissascomoessasquesepodepensarumareemergênciadasmassas.

Paraissodevemcontribuir,apartirdasmigraçõespolíticasoueconômicas,aampliaçãodavocação

atual para a mistura intercontinental e intranacional de povos, religiões, gostos, assim como a

tendênciacrescenteàaglomeraçãodapopulaçãoemalgunslugares,essaurbanizaçãoconcentrada

 járeveladanosúltimosvinteanos.

Dacombinaçãodessasduastendênciaspode-sesuporqueoprocessoiniciadohámeio

séculolevaráaumaverdadeiracolorizaçãodoNorte,à“infomalização”departedesuaeconomiae

de suas relações sociais e à generalização de certo esquema dual presente nos países

subdesenvolvidosdoSuleagoraaindamaisevidente.

Talsociedadeetaleconomiaurbanadual(masnãodualista)conduzirãoaduasformas

imbricadasdeacumulação,duasformasdedivisãodotrabalhoeduaslógicasurbanasdistintase

associadas,tendocomobasedeoperaçãoummesmolugar.Ofenômenojáentrevistodeuma

divisãodotrabalhoporcimaedeumaoutraporbaixotenderáaserreforçar.Aprimeiraprende-seao

usoobedientedastécnicasdaracionalidadehegemônica,enquantoasegundaéfundadana

redescobertacotidianadascombinaçõesquepermitemavidae,segundooslugares,operamem

diferentesgrausdequalidadeedequantidade.

Dadivisãodotrabalhoporcimacria-seumasolidariedadegeradadeforaedependente

devetoresverticaisederelaçõespragmáticasfreqüentementelongínquas.Aracionalidadeémantida

àcustadenormasférreas,exclusivas, implacáveis,radicais.Semobediênciaceganãoháeficácia.

Nadivisãodotrabalhoporbaixo,oqueseproduzéumasolidariedadecriadadedentroedependente

de vetores horizontais cimentados no território e na cultura locais. Aqui são as relações de

proximidadequeavultam,esteéodomíniodaflexibilidadetropicalcomaadaptabilidadeextremados

atores,umaadaptabilidadeendógena.Acadamovimentonovo,háumnovoreequilíbrioemfavorda

sociedadelocalereguladoporela.Adivisãodotrabalhoporcimaéumacampodemaiorvelocidade.Nela,arigidezdas

normaseconômicas(privadasepúblicas)impedeapolítica.Porbaixohámaiordinamismointrínseco,

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maiormovimentoespontâneo,maisencontrosgratuitos,maoircomplexidade,maisriqueza(ariqueza

eomovimentodoshomenslentos),maiscombinações.Produz-seumanovacentralidadedosocial,

segundoafórmulasugeridaporAnaClaraTorresRibeiro,oqueconstitui, também,umanovabase

paraaafirmaçãodoreinodapolítica.

Umaoutraglobalizaçãosupõeumamudançaradicaldascondiçõesatuais,demodoque

acentralidadedetodasasaçõessejalocalizadanohomem.Semdúvida,essadesejadamudança

apenasocorreránofimdoprocesso,duranteoqualreajustamentossucessivosseimporão.

Nas presentes circunstâncias, conforme já vimos, a centralidade é ocupada pelo

dinheiro, em suas formas mais agressivas, um dinheiro em estado puro sustentado por uma

informaçãoideológica,comaqualseencontraemsimbiose.Daíabrutaldistorçãodosentidodavida

emtodasassuasdimenções,incluindootrabalhoeolazer,ealcançandoavaloraçãoíntimadecada

pessoaeaprópriaconstituiçãodoespaçogeográfico.Comaprevalênciadodinheiroemestadopurocomomotorprimeiroeúltimodasações,ohomemacabaporserconsideradomelementoresidual.

Dessaforma,oterritório,oEstado-naçãoeasolidariedadesocialtambémsetornamresiduais.

Aprimaziadohomemsupõequeeleestarácolocadonocentrodaspreocupaçõesdo

mundo,comoumdadofilosóficoecomoumainspiraçãoparaasações.Dessaforma,estarão

asseguradosoimpériodacompaixãonasrelaçõesinterpessoaiseoestímuloàsolidariedadesocial,a

serexercidaentreindivíduos,entreoindivíduoeasociedadeeavice-versaeentreasociedadeeo

Estado,reduzindoasfraturassociais,impondoumanovaética,e,destarte,assentandobasessólidas

paraumanovasociedade,umanovaeconomia,umnovoespaçogeográfico.Opontodepartidapara

pensaralternativasseria,então,apráticadavidaeaexistênciadetodos.

Anovapaisagemsocialresultariadoabandonoedasuperaçãodomodeloatualesua

substituiçãopor umoutro, capazdegarantir paraomaiornúmeroa satisfação dasnecessidades

essenciaisaumavidahumanadigna,relegandoaumaposiçãosecundárianecessidadesfabricadas,

impostaspormeiodapublicidadeedoconsumoconspícuo.Assimointerressesocialsuplantariaa

atualprecedênciadointeresseeconômicoetantolevariaaumanovaagendadeinvestimentoscomo

a uma nova hierarquia nos gastos público, empresarais e privados. Tal esquema conduziria,

paralelamente,aoestabelecimentodenovasrelaçõesinternacionas.Nummundoemquefosse

abolidaaregradacompetitividadecomopadrãoessencialderelacionamento,avontadedeser

potêncianãoseriamaisumnorteparaocomportamentodosestados,eaidéiademercadointerno

seráumapreocupaçãocentral.

Agora,oqueestásendoprivilegiadosãoasrelaçõespontuaisentregrandesatores,mas

faltasentidoaoqueelesfazem.Assim,abuscadeumfuturodiferentetemdepassarpeloabandono

daslógicasinfernaisque,dentrodessaracionalidadeviciada,fundamentamepresidemasatuais

práticaseconômicasepolíticashegemônicas.

Aatualsubordinaçãoaomodoeconômicoúnicotemconduzidoaquesedêprioridadeàs

exportaçõeseimportações,umadasformascomasquaissematerializaochamadomercadoglobal.

Isso,todavia,temtrazidocomoconseqüênciapartodosospaísesumabaixadequalidadedevidaparaamaioriadapopulaçãoeaampliaçãodonúmerodepobresemtodososcontinentes,pois,com

aglobalizaçãoatual,deixaram-sedeladopolíticassociaisqueamparavam,empassadorecenteos

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menosfavorecidos,soboargumentodequeosrecursossociaiseosdinheirospúblicosdevem

primeiramenteserutilizadosparafacilitaraincorporaçãodospaísesnaondaglobalitária.Mas,sea

preocupaçãocentraléohomem,talmodelonãoterámaisrazãodeser.

Aidéiadairreversibilidadedaglobalizaçãoatualéaparentementereforçadacadavez

queconstatamosainter-relçãoatualentrecadapaíseoquechamamosde“mundo”,assimcomoa

interdependência,hojeindiscutível,entreahitóriagerale ashistóriasparticulares.Naverdade,isso

tambémtemhavercomaidéia,tambémestabelicida,dequeahistóriaseriasemprefeitaapartirdos

paísescentrais,istoé,daEuropaedosEstadosUnidos,aosquais,demodogeral,opresenteestado

decoisasinteressa.

Quando, porém, observamos de perto aspectos mais estruturais da situação atual,

verificamosqueocentrodosistemabuscaimporumaglobalizaçãodecimaparabaixoaosdemais

países,enquandonoseuâmagoreinaumadisputaentreEuropa,JapãoeEstadosUnidos,quelutam

paraguardar eampliarsuapartedomercadoglobale afirmarahegemoniaeconômica,política e

militarsobreasnaçõesquelhessãomaisdiretamentetributáriassem,todavia,abandonaraidéiade

ampliarsuaprópriaáreadeinfluência.Então,qualquerfraçãodemercado,nãoimportaondeesteja,

setornafundamentalàcompetitividadeexitosadasempresas.Estaspõememaçãosuasforçase

incitamosgovernosrespectivosaapoiá-las.OlimitedacooperaçãodentrodaTríade(Estados

Unidos,Europa,Japão)éessamesmacompetição,demodoquecadaumnãopercaterrenofrente

aooutro.

Entretanto, já que nesses países a idéia de cidadania ainda é forte, é impossível

descuidardointeressedaspopulaçõesousuprimirinteiramentedireitosadquiridosmediantelutas

seculares.OquepermanececomolembrançadoEstadodebem-estarbastaparacontrariaras

pretensõesdecompletaautonomiadasempresastransnacionaisecontribuiparaaemergência,

dentrodecadanação,denovascontradições.Comoasempresastendemaexercersuavontadede

podernoplanoglobal,alutaentreelasseagrava,arrastandoospaísesnessacompetição.Trata-se,

naverdade,deumaguerra,protagonizadatantopelosEstadoscomopelasrespectivasempressasglobai,daqualparticipamcomoparceirosmaisfrágeisospaísessubdesenvolvidos.

Agoramesmo,aexperiênciadosmercadoscomunsregionaisjámostraaospaíses

chamados“emergentes”queacooperaçãodatríade,emconjuntoouseparadamente,émais

representativa do interesse próprio das grandes potências que de uma vontade de efetiva

colaboração.Nessaguerra,osorganismosinternacionaiscapitaneadospeloFundoMonetário,pelo

BancoMundial,peloBIDetc.,exercemumpapeldeterminante,emsuaqualidadedeintérpretesdos

interessescomunsaosEstadosUnidos,àEuropaeaoJapão.Taisrealidadeslevamaduvidarda

vontade de cada um e do conjunto desses atores hegemônicos de construir um verdadeiro

universalismoepermitepensarque,nascondiçõesatuais,essaduplacompetiçãoperdurará.

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Os países subdesenvolvidos, parceiros cada vez mais fragilizados nesse jogo tão

desigual,mascedooumaistardecompreenderãoquenessasituaçãoacooperaçãolhesaumentaa

dependência.Daía inutilidadedosesforçosdeassociaçãodependentefaceaospaísescentrais,no

quadrodaglobalizaçãoatual.Essemundoglobalizadoproduazumaracionalidadedeterminante,mas

quevai,poucoapouco,deixandodeserdominante.Éumaracionalidadequecomandaosgrandesnegócioscadavezmaisabrangentesemaisconcentradosempoucasmãos.Essegrandesnegócios

sãodeinteressediretodeumnúmerocadavezmenordepessoaseempressas.Comoamaiorparte

dahumanidadeédiretaouindiretamentedointeressedeles,poucoapoucoessarealidadeé

desvendadapelaspessoasepelospaísesmaispobres.

Há, em tudo isso, uma grande contradição. Abandonamos as teorias do

subdesenvolvimento,oterceiro-mundismo,queeramnossabandeiranasdécadasde1950-60.

Todavia, graças à globalização, está ressurgindo algo muito forte: a história da maioria da

humanidadeconduzàconsciênciadasobrevivênciadessatercermundização (que,dealgumaforma

inclui,também,umapartedapopulaçãodospaísesricos)(SamuelPinheiroGuimarães, Quinhentos

anosdeperiferia,1999).

Écertoqueatomadadeconsciênciadessasituaçãoestruturaldeinferioridadenão

chegará aomesmo tempo para todos os países subdesenvolvidos e, muitomenos será, neles,

sincrônicaavontadedemudançafrenteaessetipoderelação.Pode-se,noentanto,admitirque,

maiscedooumaistardeascondiçõesinternasacadapaís,provocadasemboapartepelassuas

relações externas, levarãoa umarevisãodospactosqueatualmenteconformam aglobalização.

Haverá,então,umavontadededistanciamentoeposteriormentededesengajamento,conforme

sugeridoporSamirAmin,rompendo-se,dessemodo,aunidadedeobediênciahojepredominante.

Jungidos sob o peso de uma dívida externa que não podempagar, os píses subdesenvolvidos

assistemàcriaçãoincessantedecarênciasedepobresecomeçamareconhecerusaatualsituação

deingovernabilidade,forçadosqueestãoatransferirparaosetoreconômicorecursosquedeveriam

serdestinadosàáreasocial.

Na verdade, já são muito numerosas as manifestações de desconforto com as

conseqüênciasdanovadependênciaedonovoimperialismo(ReinaldoGonçalves,Globalizaçãoe

desnacionalização,1999).tornam-seevidentesoslimitesdaaceitaãodetalsituação.Pordiferentes

razõesemeiosdiversos,asmanifestaçõesdeirredentismojásãoclaramenteevidentesempaíses

comooIrã,oIraque,oAfeganistão,mas,também,aMalásia,oPaquistão,semcontarcomasformas

particularesdeinclusãodaÍndiaedaChinanaglobalizaçãoatual,quenadatêmdesimples

obediênciaouconformidade,comoapropagandoocidentalquerfazercrer.PaísescomoaChinae

Índia,comumterçodapopulaçãomundialeumapresençainternacionalcadavezmaisativa,

dificilmenteaceitarão,umaououtra,assimcomoaRússia,jogaropapelpassivodenação-mercado

para os blocos economicamente hegemônicos. Uma reação em cadeia poderá ensejar o

renascimento de algo como o antigo élan  terceiromundista tal como o presidente Nyerere, da

Tanzânia,haviasugeridoemseulivroOdesafioaoSul .

Alémdessatendênciaverossímil,considerem-seasformasdedesordemdavidasocial

quejásemultiplicamemnumerosospaísesequetendemaaumentar.OBrasiléemblemáticocomoexemplo,nãosesabendo,porém,atéquandoserápossívelmanteromodeloeconômicoglobalitárioe

aomesmotempoacalmaraspopulaçõescrescentementeinsatisfeitas.

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Aspotênciascentrais(EstadosUnidos,Europa,Japão),apesardasdivergênciaspela

competiçãoquantoaomercadoglobaltêminteressescomunsqueasincitarãoabuscaradaptarsuas

regrasdeconvivênciaàpretensãodemanterahegemonia.Como,todavia,aglobalizaçãoatualéum

período de crise permanente, a renovação do papel hegemônico da Tríade levará a maiores

sacrifíciosparaorestodacomunidadedasnações,incentivando,assim,nestas,abuscadeoutras

soluções.A combinaçãohegemônicadeque resultam as formaseconômicasmodernasatinge

diferentementeosdiversospaíses,asdiversasculturas,asdiferentesáreasdentrodeummesmo

país. A diversidade sociogeográfica atual o exemplifica. Sua realidade revela um movimento

globalizadorseletivo,comamaiorpartedapopuaçãodoplanetasendomenosdiretamenteatingida-

eemcertoscasospoucoatingida–pelaglobalizaçãoeconômicavigente.NaÁsia,naÁfricaemesmo

naAméricaLatina,avidalocalsemanifestaoumesmotempocomoumarespostaeumareaçãoa

essaglobalização.NãopodendoessaspopulaçõesmajoritáriasconsumiroOcidenteglobalizadoem

suasformaspuras(financeira,econômicaecultural),asrespectivasáreasacabamporseroslugares

ondeaglobalizaçãoérelativizadaourecusada.Umacoisaparececerta:asmudançasaseremintroduzidas,nosentidodealcançarmos

umaoutraglobalização,nãoviramdocentrodosistema,comoemoutrasfsesderupturanamargem

decapitalismo.Asmudançassairãodospaísessubdesenvolvidos.

Éprevisívelqueosistemismosobreoqualtrabalhaaglobalizaçãoatualerga-secomo

umobstáculoetornedifícilamanifestaçãodavontadededesengajamento.Masnãoimpediraque

cadapaíselabore,a partirdecaracterísticaspróprias,modelosalternativos,nemtãopoucoproibirá

que associações de tipo horizontal se dêem entre países vizinhos igualmente hegemonizados,

atribuindoumanovafeiçãoaosblocosregionaiseultrapassandoaetapadasrelaçõesmeramente

comerciais para alcançar um estágio mais elevado de cooperação. Então, uma globalização

constituídadebaixoparacima,emqueabuscadeclassificaçãoentrepotênciasdeixedeseruma

meta,poderápermitirquepreocupaçõesdeordemsocial,culturalemoralpossamprevalecer.

Aglobalizaçãoatual e as formas brutas que adotou para impor mudanças levamà

urgentenecessidadedereveroquefazercomascoisas,asidéiasetambémcomaspalavras.

Qualquerquesejaodebate,hoje,reclamaaexplicitaçãoclaraecoerentedosseustermos,semoquesepodefacilmentecairnovazioounaabigüidade.Éocasodoprópriodebatenacional,exigente

denovasdefiniçõesevocabuláriorenovado.Comosempre,opaísdeveservistocomoumasituação

estruturalemmovimento,naqualcadaelementoestáintimamenterelacionadocomosdemais.

Agora,porém,nomundodaglobalização,oreconhecimentodessaestruturaédifícil,do

mesmomodoqueavizualizaçãodeumprojetonacionalpodetornar-seobscura.Talvezporisso,os

projetosdasgrandesempresas,impostospelatiraniadasfinançasetrombeteadospelamídia,acabam,deumjeitooudeoutro,guiandoaevoluçãodospaíses,emacordoounãocomasinstâncias

públicasfreqüentementedóceisesubservientes,deixandodeladoodesenhodeumageopolítica

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propriaacadanaçãoequeleveemcontasuascaracterísticaseinteresses.

Assim,as noçõesdedestinonacionale deprojetonacional cedemfreqüentementea

frentedacenaapreocupaçõesmenores,pragmáticas,imediatistas,inclusiveporque,pelasrazõesjá

expostas,ospartidospolíticosnacionaisraramenteapresentamplataformasconduzidasporobjetivos

políticose sociaisclarose que exprimamvisõesdeconjunto (cesarBenjamine outros,  Aopção

brasileira ,1998).Aidéiadehistória,sentido,destinoéamesquinhadaemnomedaobtençãodemetasestatísticas,cujaúnicapreocupaçãoéoconformismofrenteàsdeterminaçõesdoprocesso

atualdeglobalização.Daíaproduçãosemcontrapartidadedesequilíbriosedistorçõesestruturais,

acarretandomaisfragmentaçãoedesigualdade,tantomaisgravesquantomaisabertoseobedientes

semostremospaíses.

Tomemos o casodo Brasil.É maisqueuma simplesmetáforapensarque uma das

formasdeabordagemdaquestãoseriaconsiderar,dentrodanação,aexistência,narealidade,deduasnações.Umanaçãopassivaeumaativa.Dofatodeseremascontabilidadesnacionais

globalizadas–eglobalizantes!-,agrandeironiaéquepassaaconsiderarcomonaçãoativaaquela

queobeececegamenteaodesígnioglobalitário,enquantoorestoacabaporcostituir,dessepontode

vista,a naçãopassiva.A fazervaler taispostulados,a naçãoativaseriaa daquelesqueaceitam,

pregameconduzemumamodernizaçãoquedápreeminênciaaosajustesqueinteressamaodinheiro,

enquantoanaçãopassivaseriaformadaportudooumais.

Serãomesmoadequadasessasexpressões?Ouaquiloaque,dessemodo,seestá

chamadodenaçãoativaseria,narealidade,anaçãopassiva,enquantoanaçãochamadapassiva

seria,defato,anaçãoativa?

Achamadanaçãoativa,istoé,aquelaquecompareceeficazmentenacontabilidade

nacionalenacontablilidadeinternacional,temseumodeloconduzidopelasburguesiasinternacionais

epelasburguesiasnacionaisassociadas.Éverdade,também,queoseudiscursoglobalizado,para

tereficácialocal,necessitadeumsotaquedomésticoeporissoestimulaumpensamentonacional

associadoproduzidopormentescativas,subvencionadasounão.Anaçãochamadaativaalimenta

suaaçãocomaprevalênciadeumsistema ideológicoquedefineas idéiasdeprosperidadeede

riquezae,paralelamente,aproduçãodaconformidade.A “naçãoativa”aparececomofluida,veloz,

externamentearticulada,internamentedesarticuladora,entrópica.Seráeladinâmica?Comoessa

idéiaémuitodifundida,cabelembraquevelocidadenãoédinamismo.Essemovimentonãoépróprio,

masatribuído, tomadoemprestadoaummotorexterno;ele nãoé genuíno, nãotem finalidade, é

desprovidodetecnologia.Trata-sedeumaagitaçãocega,umprojetoequivocado,umdinamismodo

diabo.

Anaçãochamadapassivaéconstituídapelagrossamaiorpartedapopulaçãoeda

economia,aquelesqueapenasparticipamdemodoresidualdomercadoglobaloucujasatividadesconseguemsobreviveràsuamargem,sem, todavia,entrarcabalmentenacontabilidadepúblicaou

nasestatísticasoficiais.Opensamentoquedefineecompreendeosseusatoreséodointelectual

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públicoengajadonadefesadosinteressesdamaioria.

Asatividadesdessanaçãopassivasãofreqüentementemarcadaspelacontradiçãoentre

aexigênciapráticadaconformidade,istoé,anecessidadedeparticipardiretaouindiretamenteda

racionalidadedominante,eainsatisfaçãoeinconformismodosatoresdiantederesultadossempre

limitados, daí o encontrocotidiano deuma situaçãode inferiorização, tornadapermanente, o que

reforçaemseusparticipantesanoçãodeescassezeconvocaareinterpretaçãodaprópriasituaçãoindividualdiantedolugar,dopaísedomundo.

A“naçãopassiva”éestaticamentelenta,colodaàsrugosidadesdoseumeiogeográfico,

localmente enraizada e orgânica. É tambéma nação que mantém relações de simbiose como

entornoimediato,relaçõescotidianasquecriam,espontaneamentee à contracorrente,umacultura

própria,endógena,resistente,quetambémconstituiumalicerce,umabasesólidaparaaproduçãode

umapolítica. Essa naçãopassiva mora ,aliondeviveeevolui,enquantoaoutraapenascircula,

utilizandooslugarescomomaisumrecursoaseuserviço,massemoutrocompromisso.

Numprimeiromomento,desarticuladapela“naçãoativa”,a“naçãopassiva”nãopode

alcançar um projeto conjunto. Aliás, o império dos interesses imediatos que se manifestam noexercício praguimáticoda vida contribui, sem dúvida, para taldesarticulação.Mas, numsegundo

momento,atomadadecoinsciênciatrazidapeloseuenraizamentonomeioe,sobretudopelasua

experiênciadeescassez,tornapossívelaproduçãodeumprojeto,cujaaviabilidadeprovémdofato

dequeanaçãochamadapassivaéformadapelamaiorpartedapopulação,alémdeserdotadade

umdinamismopróprio,autêntico,fundadoemsuaprópriaexistência.Daí,suaveracidadeeriqueza.

Podemos desse modo admitir que aquilo que, mediante o jogo de espelhos da

globalização,aindasechamadenaçãoativaé,naverdade,anaçãopassiva,enquantooque,pelo

mesmoparâmetros,éconsideradoanaçãopassiva,contitui,jánopresente,massobretudonaótica

dofuturo,a verdadeiranaçãoativa.Suaemergênciaserá tantomaisviável, rápidae eficazsese

reconhecemerevelamaconfluênciadosmodosdeexistênciaedetrabalhodosrespectivosatorese

aprofundaunidadedoseudestino.

Aqui,opapeldosintelectuaisserá,talvez,muitomaisdoquepromoverumsimples

combate às formas de ser da “nação ativa” - tarefa importante mas insuficiente, nas atuais

circunstâncias- ,devendoempenhar-sepormostraranaliticamente,dentrodotodonacional,avida

sistêmicadanaçãopassivaesuasmanifestaçõesderesitênciasaumaconquistaindiscriminadae

totalitáriadoespaçosocialpelachamadanaçãoativa.Talvisãorenovadadarealidadecontraditória

decadafraçãodoterritóriodeveseroferecidaàreflexãodasociedadeemgeral,tantoàsociedade

organizada nas associações, sindicatos, igrejas, partidos comoà sociedade desorganizada,que

encontrarãonessanovainterpretaçãooselementosnecessáriosparaapostulaçãoeoexercíciode

umaoutrapolítica,mascondizentecomabuscadointeressesocial.

Aglobalizaçãoatualémuitomenosumprodutodasidéiasatualmentepossíveise,muito

mais,oresultadodeumaideologiarestritivaadredeestabelecida.Jávimosquetodasasrealizações

atuais,oriundasdeaçõeshegemônicas,têmcomobasecontruçõesintelectuaisfrabricadasantesmesmodafabricaçãodascoisasedasdecisõesdeagir.Aintelectualizaçãodavidasocial,

recentementealcançada,vemacompanhadadeumaforteideologização.

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Todavia,oqueagoraestamosassistindoemtodaaparteéumatendênciaàdissolução

dessasideologiasnoconfrontocomaexperiênciavividadospovosedosindivíduos.Oprópriocredo

financeiro,vistopelaslentesdosistemaeconômicoaquedeuorigem,ouexaminadoisoladamente,emcadapaís,aparecemenosaceitávele,apartirdesuacontestação,outroselementosdaideologia

dopensamentoúnicoperdemforça.

Além das múltiplas formas com que, no período histórico atual, o discurso da

globalizaçãoservedealicerceàsaçõeshegemônicasdosEstados,dasempressasedasinstituições

internacionais,opapeldaideologianaproduçãodascoisaseopapelideológicodosobjetosquenos

rodeiamcontribuem,juntos,paraagravaressasensaçãodequeagoranãoháoutrofuturo  senão

aquelequenosvirácomoumpresenteampliado  e nãocomooutracoisa.Daía pesadaondade

conformismoeinaçãoquecaracterizanossotempo,contaminandoosjovense,atémesmouma

densacamadadeintelectuais.Émuitodifundidaaidéiasegundoaqualoprocessoeaformaatuaisdaglobalização

seriamirreverssíveis.Issotambémtemavercomaforçacomaqualofenômenoserevelaeinstala

emtodososlugareseemtodasasesferasdavida,levandoapensarquenãoháalternativasparao

presenteestadodecoisas.

Noentanto, essavisão repetitiva domundo confundeo que já foi realizado com as

perspectivasderealização.Paraexorcizaresserisco,devemosconsiderarqueomundoé formado

nãoapenaspeloquejáexiste(aqui,ali,emtodaparte),maspeloquepodeefetivamenteexistir(aqui,

ali,emtodaparte).Omundodatadodehojedeveserenxergadocomooquenaverdadeelenostraz,

isto é, somente, o conjunto presente de possibilidades reais, concretas, todas factíveis sob

determinadascondições.

Omundodefinidopelaliteraturaoficialdopensamentoúnicoé,somente,oconjuntode

formasparticularesderealizaçãodeapenascertonúmerodessaspossibilidades.Noentanto,um

mundoverdadeirosedefiniráapartirdalistacompletadepossibilidadespresentesemcertadatae

queincluemnãosóoquejáexistesobreafacedaterra,comotambémoqueaindanãoexiste,masé

empiricamentefactível.Taispossibilidades,aindanãorealizadas,jáestãopresentescomotendência

ou como promessa de realização. Por isso, situações como a que agora defrontamosparecem

definitivas,masnãosãoverdadeseternas.

Ésomenteapartirdessaconstatação,fundadanahistóriarealdonossotempo,quese

tornapossivélretornar,demaneiraconcreta,aidéiadeutopiaedeprojeto.Esteseráoresultadoda

conjugaçãodedoistiposdevalores.Deumlado,estãoosvaloresfundamentais,essenciais,

fundadoresdohomem,válidosemqualquertempoelugar,comoaliberdade,adignidade,afelicida;

deoutrolado,surgemosvalorescontingentes,devidosàhistóriadopresente,istoé,àhistoriaatual.

Adensidadeeafactibilidadehistóricadoprojeto,hoje,dependemdamaneiracomoempreendamossuacombinação.

Porisso,élícitodizerqueofuturosãomuitos;eresultarãodearranjosdiferentes,

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segundonossograudecoinsciência,entreo reinodaspossibilidadesedavontade.É assimque

iniciativas serão articuladas e obstáculos serão superados, permitindo contrariar a força das

estruturas dominantes, sejam elas presentes ou herdadas. A identificação das etapas e os

ajustamentosaempreenderduranteocaminhodependerãodanecessáriaclarezadoprojeto.

Conforme já mencionamos, alguns dados do presente nos abrem, desde já, a

perspectivadeumfuturodiferente,entreoutros:atendênciaàmisturageneralizadaentrepovos;avocaçãoparaumaurbanizaçãoconcentrada;opesodaideologianascontruçõeshistóricasatuais;o

empobrecimentorelativoeabsolutodaspopulaçõeseaperdadequalidadedevidadasclasses

médias;ograuderelativa“docilidade”dastécnicascontemporâneas;a“politizaçãogeneralizada”

permitidapelo exessodenormas ( MaríaLauraSilveira, Umpaís,umaregião.Fimdeséculoe

modernidadesnaArgentina ,1999);ea realizaçãopossivéldohomemcoma grandemutaçãoque

desponta.

Lembramos, também, que um dos elementos, ao mesmo tempo ideológico e

empiricamenteexistencial,dapresenteformadeglobalizaçãoéacentralidadedoconsumo,coma

qualmuitotêmaveravidadetodososdiasesuasrepercussõesaprodução,asformaspresentesdeexistênciaeasperspectivasdaspessoas.Masasatuaisrelaçõesinstáveisdetrabalho,aexpansão

dedesempregoeabaixadosaláriomédioconstituemumcontrasteemrelaçãoàmultiplicaçãodos

objetoseserviços,cujaaacessibilidadesetorna,dessemodo,improvável,aomesmotempoqueaté

osconsumostradicionaisacabamsendodifíceisouimpossíveisparaumaparcelaimportanteda

população.Écomoseofeitiçovirassecontraofeiticeiro.

Essarecriaçãodanecessidade,dentrodeummundodecoisaseserviçosabundantes,

atingecadavezmaisasclassesmédias,cujadefinição,agora,serenova,àmediaque,como

tambémjávimos,passamaconheceraexperiênciadaescassez.Esseéumdadorelevantepara

compreenderamudançanavisibilidadedahistóriaqueestáprocessando.Detalmodo,àsvisões

oferecidaspelapropagandaostensivaoupelaideologiacontidanosobjetosenosdiscursosopõem-

seasvisõespropociadaspelaexistência.Épormeiodesseconjuntodemovimentos,quese

reconheceumasaturaçãodossímbolospré-construídosequeoslimitesdatolerânciaàs ideologias

sãoultrapassados,oquepermiteaampliaçãodocampodaconsciência.

Nas condições atuais, essa evolução pode parecer impossível, em vista de que as

soluçõesatéaqualoúnicodinamismopossíveléodagrandeeconomia,combasenosreclamosdo

sistemafinanceiro.Porexemplo,osesforçospararestabeleceroempregodirigem-se,sobretudo,

quandonãoexclusivamente,aocircuitosuperiordaeconomia.Masessenãoéoúnicocaminhoe

outrosremédiospodemserbuscados,segundoaorientaçãopolítico-ideológicadosresponsáveis,

levando em conta uma divisão do trabalho vinda “de baixo”, fenômeno típico dos países

subdesenvolvidos(M.Santos,Oespaçodividido ,1978),masqueagoratambémseverificanomundo

chamadodesenvolvido.

Poroutrolado,namedidaemqueastécnicascadavezmaissedãocomonormasea

vidasedesenrolanointeriordeumoceanodetécnicas,acabamosporviverumapolitização

generalizada.A rapidez dos processos conduza uma rapidez nasmudançase,porconseguinte,

aprofundaanecessidadedeproduçãodenovosentesorganizadores.Issosedánosdiversosníves

davidasocial.Nadaderelevanteéfeitosemnormas.NestefimdoséculoXX,tudoépolítica.E,graças às técnicas ultilizadas no período contemporâneo e ao papel centralizador dos agentes

hegemônicos,quesãoplanetários,torna-seubíquaapresençadeprocessosdistorcidoseexigentes

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de reordenamento. Por isso a política aparece como um dado indispensável e onipresente,

abrangendopraticamenteatotalidadedasações.

Assistimos,assim,aoimpériodasnormas,mastambémaoconflitoentreelas,incluindo

opapelcadavezmaisdominantedasnormasprivadasnaproduçãodaesferapública.Nãoéraroque

asregrasestabelecidaspelasempresasafetemmaisqueasregrascriadaspeloEstado.Tudoisso

atingeedesnorteiaosindivíduos,produzindoumaatmosferadeinsegurançaeatémesmodemedo,maslevandoosquenãosucumbeminteiramenteaoseuimpérioàbuscadaconsciênciaquantoao

destinodoPlanetae,logo,doHomem.

Ossistemastécnicosdequesevalemosatuaisatoreshegemônicosestãosendo

ultilizadosparareduziroescopodavidahumanasobreoplaneta.Noentanto,jamaishouvena

história sistemas tão propícios a facilitar a vida e a proporcionar a felicidade dos homens. A

materialidadequeomundodaglobalizaçãoestárecriandopermiteumusoradicalmentediferente

daquelequeeraodabasematerialdaindustrializaçãoedoimperialismo.Atécnicadasmáquinasexigiainvestimentosmaciços,seguindo-seamassividadeea

concentração dos capitais e do próprio sistema técnico. Daí a inflexibilidade física e moral das

operações,levandoaumusolimitado,direcionado,dainteligênciaedacriatividade.Jáocomputador,

símbolodasdtécnicasda informação,reclamacapitaisfixosrelativamentepequenos,enquantoseu

usoémais exigentede inteligência. O investimentonecessário pode ser fragmentado e torna-se

possívelsuaadptaçãoaosmaisdiversosmeios.Pode-seatéfalardaemergênciadeumartesanato

denovotipo,servidoporvelozesinstrumentosdeproduçãoededistribuição.

Dir-se-á,então,queocomputadorreduz–tendencialmente–oefeitodapretensalei

segundoaqualainovaçãotécnicaconduzparalelamenteaumaconcentraçãoeconômica.Osnovos

instrumentos,pelasuapróprianatureza,abrempossibilidadesparasuadisseminaçãonocorposocial,

superandoasclivagenssocioeconômicaspreexistentes.

Sobcondiçõespolíticasfavoráveis,amaterialidadesimbolizadapelocomputadoré

capaznãosódeasseguraraliberaçãodainventividadecomotorná-laefetiva.Asdenecessidade,nas

sociedadescomplexase socioeconomicamentedesiguais,de adotaruniversalmentecomputadores

deúltimageraçãoafastará,também,oriscodequedistorçõesedesequilíbriossejamagravados.Ea

idéiadedistânciacultural,subjacenteàteoraeàpráticadoimperialismo,atinge,também,seulimite.

Astécnicasconteporâneassãomaisfáceisdeinventar, imitaroureproduzirqueosmodosdefazer

queasprecederam.

AsfamíliasdetécnicasemegentescomofimdoséculoXX–combinandoinformáticae

eletrônica, sobretudo – oferecem a possibilidade de superação do imperativo da tecnologia

hegemônicaeparalelamenteadmitemaproliferaçãonovosarranjos,comaretomadadacriatividade.

Isso,aliás,jáestásedandonasáreasdasociedadeemqueadivisãodotrabalhoseproduzdebaixo

paracima.Aqui,aproduçãodonovoeousoeadifusãodonovodeixamdesermonopolizadospor

umcapitalcadavezmaisconcentradoparapertenceraodomíniodomaiornúmero,possibilitando

afinalaemergênciadeumverdadeiromundodainteligência.Dessemodo,atécnicapodevoltaraser

oresultadodoencontrodoengenhohumanocomumpedaçodeterminadodanatureza–cadavezmaismodificada-,permitindoqueessarelaçãosejafundadanasvirtualidadesdoentornogeográfico

esocial,demodoaassegurararestauraçãodohomememsuaessência.

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imaginosaeemocionada,atribuindo-se,assim,umpapeldiametralmenteopostoaoquelheéhoje

conferidonosistemadamídia.

Apartirdessasmetamorfoses,pode-sepensarnaproduçãolocaldeumentendimentoprogressivodomundoedolugar,comaproduçãoindígenadeimagens,discursos,filosofias,juntoà

elaboraçãodeumnovoethosedenovasideologiasenovascrençaspolíticas,amparadasna

ressurreiçãodaidéiaedapráticadasolidariedade.

Omundodehojetambémautorizaumaoutrapercepçãodahistóriapormeioda

contemplação da universalidade empírica constituída com a emergência das novas técnicas

planetarizadaseaspossibilidadesabertaaseuuso.Adialéticaentreessauniversalidadeempíricae

as particularidades encorajará a superação das práxis invertidas, até agora comandadas pela

ideologiadominante,eapossibilidadedeultrapassaroreinodanecessidade,abrindolugarparaa

utopiaeparaaesperança.Nascondiçõeshistóricasdopresente,essanovamaneiradeenxergara globalização permitirá distinguir, na totalidade, aquilo que já é dado e existe como um fato

consumado,eaquiloqueépossível,masaindanãorealizado,vistosumeoutrodeformaunitária.

Lembremo-nosda liçãodeA.Schmidt(TheconceptofnatureinMarx ,1971)quandodiziaque“a

realidadeé,alémdisso,tudoaquiloemqueaindanãonostornamos,ouseja,tudoaquiloqueanós

mesmosnosprojetamoscomosereshumanos,porintermédiodosmitos,dasescolhas,dasdecisões

edaslutas”.

Acriseporquepassahojeosistema,emdiferentespaísesecontinentes,põeàmostra

nãoapenasaperversidade,mastambémafraquezadarespectivaconstrução.Isso,conformevimos,

 jáestálevandoaodescréditodosdiscursosdominantes,mesmoqueoutrodiscurso,decríticaede

proposição,aindanãohajasidoelaboradodemodosistêmico.

Oprocessodetomadadeconsciência–jáovimos–nãoéhomogêneo,nemsegundoos

lugares,nemsegundoasclassessociaisousituaçõesprofissionais,nemquantoaosindivíduos.A

velocidadecomquecadapessoaseapropriadaverdadecontidanahistóriaédiferente,tantoquanto

aprofundidadeecoerênciadessaapropriação.Adescobertaindividualé,já,umconsiderávelpassoà

frente, aindaquepossapareceraoseuportadorumcaminhopenoso,àmedidadas resistências

circundantesaessenovomododepensar.Opassoseguinteéaobtençãodeumavisãosistêmica,

istoé,apossibilidadedeenxergarassituaçõeseascausasatuantescomoconjuntosedelocalizá-los

comoumtodo,mostrandosuainterdependência.Apartirdaí,adiscussãosilenciosaconsigomesmoe

odebatemaisoumenospúblicocomosdemaisganhamumanovaclarezaedensidade,permitindo

enxergarasrelaçõesdecausaeefeitocomoumacorrentecontínua,emquecadasituaçãoseinclui

numarededinâmica,estruturada,àescaladomundoeàescaladoslugares.

Éapartirdessavisãosistêmicaqueseencontram,interpenetramecompletamas

noçõesdemundoedelugar,permitindoentendercomocadalugar,mastambémcadacoisa,cada

pessoa,cadarelaçãodependemdomundo.

Taisraciocíniosautorizamumavisãocríticadahistórianaqualvivemos,oqueincluiuma

apreciaçãofilosóficadanossaprópriasituaçãofrenteàcomunidade,ànação,aoplaneta,juntamentecomumanovaapreciaçãodenossoprópriopapelcomopessoa.Édessemodoque,atémesmoa

partirdanoçãodoqueéserumconsumidor,poderemosalcançaraidéiadehomemintegralede

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cidadão.Essavalorizaçãoradicaldoindivíduocontribuiráparaarenovaçãoqualitativadaespécie

humana,servindodealicerceaumanovacivilização.

A reconstrução vertical do mundo, tal como a atual globalização perversa está

realizando,pretendeimporatodosospaísesnormascomunsdeexistênciae,sepossível,aomesmo

tempoerapidamente.Masistonãoédefinitivo.Aevoluçãoqueestamosentrevendoterásua

aceleraçãoemmomentosdiferenteseempaísesdiferentes,e serápermitidapeloamadurecimentodacrise.

Essemundonovoanunciadonãoseráumaconstruçãodecimaparabaixo,comoaque

estamoshojeassistindoedeplorando,masumaedificaçãocujatrajetóriavaisedardebaixopara

cima.

Ascondiçõesacimaenumeradasdeverãopermitiraimplantaçãodeumnovomodelo

econômico,socialepolítico,que,apartirdeumanovadistribuiçãodosbenseserviços,conduzaà

realizaçãodeumavidacoletivasolidáriae,passandodaescaladolugaràescaladoplaneta,

assegureumareformadomundo,porintermédiodeoutramaneiraderealizaraglobalização.

Aocontráriodoquetantosedisse,ahistórianãoacabou;elaapenascomeça.Anteso

que havia era uma história de lugares, regiões, países. As histórias podiam ser, no máximo,

continentais,emfunçãodosimpériosqueseestabeleceramaumaescalamaisampla.Oqueaté

entãosechamavadehistóriauniversaleraavisãopretensiosadeumpaísoucontinentesobreos

outros,consideradosbárbarosouirrelevantes.Chegava-seadizerdetaloutalpovoqueeleerasem

história...

O ecúmeno era formado de frações separadas ou escassamente relacionadas do

planeta.Somenteagoraahumanidadepodeidentificar-secomoumtodoereconhecersuaunidade,

quandofazsuaentradanacenahistóricacomoumbloco.Éumaentradarevolucionária,graçasà

interdependênciasdaseconomias,dosgovernos,doslugares.Omovimentodomundorevelaumasó

pulsação,aindaqueascondiçõessejamdiversassegundocontinentes,países,lugares,valorizados

pelasuaformadeparticipaçãonaproduçãodessanovahistória.Vivemos em um mundo complexo, marcado na ordem material pela multiplicação

incessantedonúmerodeobjetosenaordemimaterialpelainfinidadederelaçõesqueaosobjetos

nosunem.Nosúltimoscinqüentaanoscriaram-semaiscoisasdoquenoscinqüentamilprecedentes.

Nossomundoécomplexoeconfusoaomesmotempo,graçasàforçacomaqualaideologiapenetra

objetoseações.Porissomesmo,aeradaglobalização,maisdoquequalqueroutraantesdela,é

exigentedeumainterpretaçãosistêmicacuidadosa,demodoapermitirquecadacoisa,naturalou

artificial,sejaredefinidaemrelaçãocomotodoplanetário.Essatotalidade-mundosemanifestapela

unidadedastécnicasedasações.

Agrandesortedosquedesejampensaranossaépocaéaexistênciadeumatécnicaglobalizada,diretaouindiretamentepresenteemtodososlugares,edeumapolíticaplanetariamente

exercida,queuneenorteiaosobjetostécnicos.Juntas,elasautorizamumaleitura,aomesmotempo

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geraleespecífica,filosóficaeprática,decadapontodaTerra.

Nesseemaranhadodetécnicasdentrodoqualestamosvivendo,ohomempoucoa

poucodescobresuasnovasforças.Jáqueomeioambienteécadavezmenosnatural,ousodo

entornoimediatopodesermenosaleatório.Ascoisasvalempelasuaconstituição,istoé,peloque

podemoferecer.Osgestosvalempelaadequaçãoàscoisasaquesedirigem.Ampliam-see

diversificam-seasescolhas,desdequesepossamcombinaradequadamentetécnicaepolítica.Aumentamaprevisibilidadeeaeficáciadasações.

Umdadoimportantedenossaépocaéacoincidênciaentreaproduçãodessahistória

universal e a relativa liberação do homem em relação à natureza. A denominação de era da

inteligência poderia ter fundamento neste fato concreto: os materiais hoje responsáveis pelas

realizaçõespreponderantessãocadavezmaisobjetosmateriaismanufaturadosenãomaismatérias-

primasnaturais.Pensamosousadamenteassoluçõesmaisfantasiosaseemseguidabuscamosos

instrumentosadequadosàsuarealização.Naeradaecologiatriunfante,éohomemquemfabricaa

natureza,oulheatribuivaloresentido,pormeiodesuasaçõesjárealizadas,emcursooumeramente

imaginadas.Porisso,tudooqueexisteconstituiumaperspectivadevalor.Todosos lugaresfazempartedahistória.Aspretensõeseacobiçapovoamevalorizamterritóriosdesertos.

Graçasaosprogressosfulminantesdainformação,omundoficamaispertodecadaum,

nãoimportaondeesteja.Ooutro,istoé,orestodahumanidade,pareceestarpróximo.Criam-se,para

todos,acertezae,logodepois,aconsciênciadesermundoedeestarnomundo,mesmoseainda

nãooalcançamosemplenitudematerialouintelectual.Oprópriomundoseinstalanoslugares,

sobretudoasgrandescidades,pelapresençamaciçadeumahumanidademisturada,vindadetodos

osquadrantesetrazendoconsigointerpretaçõesvariadasemúltiplas,queaomesmosechocame

colaboramnaproduçãorenovadadoentendimentoedacríticadaexistência.Assim,ocotidianode

cadaumseenriquece,pelaexperiênciaprópriaepeladovizinho,tantopelasrealizaçõesatuaiscomo

pelasperspectivasdefuturo.Asdialéticasdavidanoslugares,agoramaisenriquecidas,são

paralelamenteocaldodeculturanecessárioàproposiçãoeaoexercíciodeumanovapolítica.

Funda-se,defato,umnovomundo.Parasermosaindamaisprecisos,oque,afinal,se

criaéomundo comorealidadehistóricaunitária,aindaqueelesejaextremamentediversificado.Eleé

datadocomumadatasubstantivamenteúnica,graçasaostraçoscomunsdesuaconstituiçãotécnica

eàexistênciadeumúnicomotorparaasaçõeshegemônicas,representadopelolucroàescala

global. É isso, aliás,que, juntoa informação generalizada, assegurará a cada lugar a comunhão

universalcomtodososoutros.

Ousamos,dessemodo,pensarqueahistóriadohomemsobreaTerradispõeafinaldas

condiçõesobjetivas,materiaiseintelectuais,parasuperaroendeusamentododinheiroedosobjetos

técnicoseenfrentarocomeçodeumanovatrajetória.Aqui,nãosetratadeestabelecerdatas,nemde

fixarmomentosdafolhinha,marcosnumcalendário.Comoorelógio,afolhinhaeocalendáriosão

convencionais,repetitivosehistoricamentevazios.Oquecontamesmoéotempodaspossibilidades

efetivamentecriadas,oque,àsuaépoca,cadageraçãoencontradisponível, issoaquechamamostempoempírico ,cujasmudançassãomarcadaspelairrupçãodenovosobjetos,denovasaçõese

relaçõesedenovasidéias.

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Diantedoqueéomundoatual,comodisponibilidadeecomopossibilidade,acreditamos

queascondiçõesmateriaisjáestãodadasparaqueseimponhaadesejadagrandemutação,mas

seudestinovaidependerdecomodisponibilidadesepossibilidadesserãoaproveitadaspelapolítica.Nasuaformamaterial,unicamentecorpórea,as técnicastalvezsejamirreversíveis,porqueaderem

aoterritórioeaocotidiano.Deumpontodevistaexistencial,elaspodemobterumoutrousoeuma

outrasignificação.Aglobalizaçãoatualnãoéirreversível.

Agoraqueestamosdescobrindoosentidodenossapresençanoplaneta,pode-sedizer

que uma história universal verdadeiramente humana está, finalmente, começando. A mesma

materialidade,atualmenteutilizadaparaconstruirummundoconfusoeperverso,podeviraseruma

condiçãodaconstruçãodeummundomaishumano.Bastaquesecompletemasduasgrandes

mutaçõesoraemgestação:amutaçãotecnológicaeamutaçãofilosóficadaespéciehumana.

Agrandemutaçãotecnológicaédadacomaemergênciadastécnicasdainformação,asquais–aocontráriodastécnicasdasmáquinas–sãoconstitucionalmentedivisíveis,flexíveisedóceis,

adaptáveisatodososmeioseculturas,aindaqueseuusoperversoatualsejasubordinadoaos

interessesdosgrandescapitais.Mas,quandosuautilizaçãofordemocratizada,essastécnicasdoces

estarãoaoserviçodohomem.

Muitofalamoshojenosprogressosenaspromessasdaengenhariagenética,que

conduziriamaumamutaçãodohomembiológico,algoqueaindaédodomíniodahistóriadaciênciae

datécnica.Pouco,noentanto,sefaladascondições,tambémhojepresentes,quepodemassegurar

umamutaçãofilosóficadohomem,capazdeatribuirumnovosentidoàexistênciadecadapessoae,

também,doplaneta.