milton_santos_por uma outra globalização
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Nestelivro,MiltonSantospropõeumainterpretaçãomultidisciplinardo
mundocontemporâneo,emquerealçaopapelatualdaideologianaproduçãoda
históriaemostraoslimitesdoseudiscursofrenteàrealidadevividapelamaioriadas
nações.
Atiraniadainformaçãoeadodinheirosãoapresentadascomoospilares
deumasituaçãoemqueoprogressotécnicoéaproveitadoporumpequenonúmero
deatoresglobaisemseubenefícioexclusivo.Oresultadoéoaprofundamentoda
competitividade,aproduçãodenovostotalitarismos,aconfusãodosespíritoseo
empobrecimentocrescentedasmassas,enquantoosEstadossetornamincapazes
deregularavidacoletiva.Éumasituaçãoinsustentável.
OautorenxerganasreaçõesagoraperceptíveisnaÁsia,mastambémna
ÁfricaenaAméricaLatinaenosmovimentospopularesprotagonizadospelas
camadasmaispobresdapopulação,asementedeumaevoluçãopositiva,que
deveráconduziraoestabelecimentodeumaoutraglobalização.Atônicadestahora
éamensagemdeesperançanaconstruçãodeumnovouniversalismo,bompara
todosospovosepessoas.
EstenovolivrodeMiltonSantostratadaglobalizaçãocomofábula,como
perversidade e como possibilidade aberta ao futuro de uma nova civilização
planetária.
Osatoresmaispoderososdestanovaetapadaglobalizaçãoreservam-se
osmelhorespedaçosdoTerritórioGlobale deixamrestosparaosoutros.Masa
grandeperversidadenaproduçãodaglobalizaçãoatualnãoresideapenasnapolarização da riqueza e da pobreza, na segmentação dos mercados e das
populações submetidas, nem mesmo na destruição da Natureza. A novidade
aterradora reside na tentativa empírica e simbólica de construção de um único
espaçounipolardedominação.AtiraniadoDinheiroedaInformação,produzidapela
concentração do capital e do poder, tem hoje uma unidade técnica e uma
convergênciadenormassemprecedentesnahistóriadocapitalismo.
Oseucaráterglobalmentedestrutivoacabaporémsendocontraditório,
levandoàresistênciaparcelascrescentesdahumanidadeapartirdeseusdistintos
“lugares”.Ovelhootimismodograndegeógrafobrasileiroreapareceemrelaçãoàs
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cidades,comoespaçodeliberdadeparaaculturapopularemoposiçãoàcultura
midiáticademassas,comoespaçodesolidariedadenalutados“debaixo”contraa
escassezproduzidapelos“decima”.Avisãodeumanovahorizontalidadenaluta
dosoprimidoscontraaverticalidadedosopressoresécomovedoraeestimulante,já
queconduzaumanovautopia.Produz-seassim,dizele,umanovacentralidadedosocialqueconstituia
base para uma nova política. Não podendo a esmagadora maioria “consumir o
Ocidenteglobalizado”emsuasformaspuras(financeira,econômicaecultural),
aumentaráaresistênciaàdominaçãoultraliberaleconsumistapropagandeadapelas
grandesorganizaçõesdosmeiosdecomunicaçãodemassas.Aalienaçãotendea
sersubstituídaporumanovaconsciência,umanovafilosofiamoral,quenãoseráa
dosvaloresmercantismassimadasolidariedadeedacidadania.
Aunificaçãodatécnicaedasnormasinstrumentaispoderáservirentão,
dialeticamente, de trampolim para uma nova humanidade, para novos valores
simbólicosqueemsuainterfecundaçãoeespalhamentoabracaminhosaumanova
civilizaçãoplanetária.AHistóriaUniversalseriaentãoadanossahumanidade
comumenãomaisadosdominadores.
___________________________________________________________________
Milton Santos é geógrafo, professor emérito da Universidade de SãoPaulo,ganhadordoPrêmioInternacionaldeGeografiaVautrinLudem1994eautordemaisde30livrose400artigoscientíficos,publicadosemdiversosidiomas.
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Sumário
Prefácio06
1. Omundocomofábula,comoperversidadeecomopossibilidade 08
Omundotalcomonosfazemcrer:aglobalizaçãocomofábula 08Omundocomoé:aglobalizaçãocomoperversidade 09Omundocomopodeser:umaoutraglobalização 09
Introdução11
2. Aunidadetécnica 11
3. Aconvergênciadosmomentos 13
4. Omotorúnico 13
5. Acognoscibilidadedoplaneta 15
6. Umperíodoqueeumacrise 15
Introdução18
7. Atiraniadainformaçãoedodinheiroeoatualsistemaideológico 18Aviolênciadainformação 18Fábulas 19Aviolênciadodinheiro 21Aspercepçõesfragmentadaseodiscursoúnicodo“mundo” 21
8. Competitividade,consumo,confusãodosespíritos,globalitarismo 22
Acompetitividade,aausênciadecompaixão 22Oconsumoeoseudespotismo 23Ainformaçãototalitáriaeaconfusãodosespíritos 24Doimperialismoaomundodehoje 24Globalitarismoetotalitarismos 25
9. Aviolênciaestruturaleaperversidadesistêmica 26Odinheiroemestadopuro 27Acompetitividadeemestadopuro 27Apotênciaemestadopuro 27Aperversidadesistêmica 28
10. DapolíticadosEstadosàpolíticadasempresas 29
Sistemastécnicos,sistemasfilosóficos 30Tecnociência,globalizaçãoehistóriasemsentido 31Asempresasglobaiseamortedapolítica 32
11. Emmeioséculo,trêsdefiniçõesdapobreza 33
Apobreza“incluída” 33Amarginalidade 34
Apobrezaestruturalglobalizada 34Opapeldosintelectuais 35
12. Oquefazercomasoberania 36
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Introdução38
13. Oespaçogeográfico:compartimentoefragmentação 38
Acompartimentação:passadoepresente 39Rapidez,fluidez,fragmentação 40
Competitividadeversus solidariedade 4114. Aagriculturacientíficaglobalizadaeaalienaçãodoterritório 42
Ademandaexternaderacionalidade 42Acidadedocampo 43
15. Compartimentaçãoefragmentaçãodoespaço:ocasodoBrasil 44
Opapeldaslógicasexógenas 44Asdialéticasendógenas 45
16. Oterritóriododinheiro 46
Definições 46Odinheiroeoterritório:situaçõeshistóricas 46Metamorfosesdasduascategoriasaolongodotempo 47
Odinheirodaglobalização 47Situaçõesregionais 48Efeitosdodinheiroglobal 49Epílogo 50
17. Verticalidadesehorizontalidades 50
Asverticalidades 50Ashorizontalidades 52Abuscadeumsentido 53
18. Aesquizofreniadoespaço 54
Sercidadãonumlugar 54Ocotidianoeoterritório 54Umapedagogiadaexistência 55
Introdução57
19. Avariávelascendente 57
20. Oslimitesdaracionalidadedominante 58
21. Oimagináriodavelocidade 59
Velocidade:técnicaepoder 59Dorelógiodespóticoàstemporalidadesdivergentes 60
22. Just-in-timeversusocotidiano 61
23. Umemaranhadodetécnicas:oreinodoartifícioedaescassez 61
Doartifícioàescassez 62Daescassezaoentendimento 63
24. Papeldospobresnaproduçãodopresenteedofuturo 63
25. Ametamorfosedasclassesmédias 65
Aidadedeouro 65Aescassezchegaàsclassesmédias 66Umdadonovonapolítica 67
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Introdução68
26. Culturapopular,períodopopular 68
Culturademassas,culturapopular 69Ascondiçõesempíricasdamutação 70
Aprecedênciadohomemeoperíodopopular 7027. Acentralidadedaperiferia 71
Limitesàcooperação 72OdesafioaoSul 72
28. Anaçãoativa,anaçãopassiva 74
Ocasodoprojetonacional? 74Alienaçãodanaçãoativa 74Conscientizaçãoeriquezadanaçãopassiva 75
29. Aglobalizaçãoatualnãoéirreversível 76
Adissoluçãodasideologias 76Apertinênciadautopia 77
Outrosusospossíveisparaastécnicasatuais 79Geografiaeaceleraçãodahistória 79Umnovomundopossível 80
30. Ahistóriaapenascomeça 82
Ahumanidadecomoumblocorevolucionário 82Anovaconsciênciadesermundo 83Agrandemutaçãocontemporânea 83
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Prefácio
Estelivroquerserumareflexãoindependentesobreonossotempo,umpensamentosobreosseusfundamentosmateriaisepolíticos,umavontadedeexplicarosproblemasedoresdomundo atual. Mas, apesar das dificuldades da era presente, quer também ser uma mensagemportadoraderazõesobjetivasparaprosseguirvivendoelutando.
Otrabalhointelectualnoqualeleassentaéfrutodenossadedicaçãoaoentendimentodoquehojeéoespaçogeográfico,masétambémtributáriodeoutrasrealidadesedisciplinasacadêmicas.
Diferentementedeoutroslivrosnossos,oleitornãoencontraráaqui listagenscopiosasdecitações.Taislivrosenfocavamquestõesdasociedade,verdadeirasteses,istoé,demonstraçõessustentadaseambiciosas,dirigidassobretudoàsearaacadêmica,levando,porisso,oautorafazer,aopequenomundodoscolegas,aconcessãodasbibliografiascopiosas.Todomundosabequeestasetornouquaseumaobrigaçãodescholarship ,jáqueaacademiagostamuitodecitações,quantasvezesociosaseatémesmo ridículas.Semdúvida,este livro tambémsedirigea estudiosos,massobretudodesejaalcançarovastomundo,oquedispensaaobrigaçãocerimonialdasreferências.Nãoquerissodizerqueoautorimaginehaversozinhoredescobertoaroda;suaexperiênciaemdiferentesmomentosdoséculoeemdiversospaísesecontinentesétambémaexperiênciadosoutrosaquemleuouescutou.Masaoriginalidadeéainterpretaçãoouaênfaseprópria,a forma
individualdecombinaroqueexisteeo queévislumbrado:aprópriadefiniçãodoqueconstituiumaidéia.Estelivroresultadeumlongotrabalho,árduoeagradável.Amaioriagrandedosseus
capítuloséinéditaemsuaformaatual.Eétambém,dealgummodo,umareescrituradeaulas,conferências, artigos de jornais e revistas,entrevistasàmídia,cadaqual oferecendoumníveldediscursoea respectivadificuldade.Somosmuitíssimogratosa todososquecolaboraramparaessediálogo e até mesmo àqueles que desconheciam estar participando de uma troca. Dentre osprimeiros,querodestacarosatuaiscompanheirosdoprojetoacadêmicoambiciosoque,desde1983,venhoconduzindonoDepartamentodeGeografiadaUniversidadedeSãoPaulo:minhaincansávelcolaboradora,doutoraMaríaLauraSilveira,queleuoconjuntodomanuscrito,eaprofessoradoutoraMariaÂngelaFagginPereiraLeite,assimcomoasdoutorandasAdrianaBernardes,CileneGomeseMônicaArroyoeosmestrandosElizaAlmeida,FábioContel,FláviaGrimm,LídiaAntongiovanni,MarcosXavier,PaulaBorineSoraiaRamos.AoDepartamentodeGeografiadaFaculdadede
Filosofia,LetraseCiênciasHumanasquemeacolheeestimulaeparticularmenteaoLaboratóriodeGeografiaPolíticaePlanejamentoTerritorialeAmbiental(Lapoban),coordenadopormeuvelhoamigoArmenMamigonian,vão,também,meusagradecimentos.Estes tambémincluemoscolegasMariaAdéliaA. deSouza,RosaEsterRossinie AnaClaraTorresRibeiro,comquemcolaborohácercade20anos.
Aos colaboradores gratuitos, encontrados em inúmeras viagens pelo país ouparticipantesdeconferências,debatesecongressos,soutambémdevedorpelassuasintervençõesesugestões.SougratoàFolhadeS.Paulo eaoCorreioBraziliense pelaautorizaçãopararepublicaçãodeartigosmeusnasuaformaoriginaloumodificada.Aindanocapítulodosagradecimentos,umapalavraespecialvaiàgeógrafaFláviaGrimm,queteveapaciênciadeacolheroscansativosditadosdemanuscritodequeresultaestelivro.AassistênciadageógrafaPaulaBorinoutravezmostrou-sevaliosa.Sou,também,muitosensívelaoapoiorecebidodoConselhoNacionaldeDesenvolvimentoCientífico e Tecnológico (CNPq), daFundaçãodeAmparo à PesquisadoEstadodeSão Paulo
(FAPESP). Essas agências não contribuíram diretamente para este trabalho, mas a produçãointelectual é sempre unitária, uma oba ou pesquisa sendo sempre um subproduto das demais.Também,comosempre,oestímulorecebidodeminhamulher,MarieHélène,foimuitoprecioso.
AocontráriodeumautorfrancêsJoëldeRosnay,que,noprefácioaoseulivroLeMacroscope,sugeriuaosseusleitorescomeçaraleituraporondequiserem,devofazerumaoutraadvertência.Sealguémlerinicialmenteouseparadamenteosprimeiroscapítulos,podeconsideraroautorpessimista;equempreferirosúltimos,poderáimaginá-loumotimista.Narealidade,oquebuscamosfoi,deumlado,tratardarealidadetalcomoelaé,aindaquesemostrepungente;e,deoutrolado,sugerirarealidadetalcomoelapodeviraser,aindaqueparaoscéticosnossovaticínioatualapareçarisonho.
Aênfasecentraldolivrovemdaconvicçãodopapeldaideologianaprodução,disseminação,reproduçãoemanutençãodaglobalizaçãoatual.Essepapelétambém,umanovidadedonossotempo.Daíanecessidadedeanalisarseusprincípiosfundamentais,apontandosuaslinhasdefraquezaedeforça.Nossainsistênciasobreopapeldaideologiaderivadanossaconvicçãodeque,diantedosmesmosmateriaisatualmenteexistentes,tantoépossívelcontinuarafazerdoplanetauminferno,conformenoBrasilestamosassistindo,comotambéméviávelrealizaroseucontrário.Daíarelevânciadapolítica,istoé,daartedepensarmudançasedecriarascondiçõesparatorná-las
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efetivas.Aliás,astransformaçõesqueahistóriaultimamentevemmostrandopermitementreveraemergênciadesituaçõesmaispromissoras.Podemobjetar-nosqueanossacrençanamudançadohomeméinjustificada.Eseoqueestivermudandoforomundo?
Estamos convencidos de que a mudança histórica em perspectiva provirá de ummovimentodebaixoparacima,tendocomoatoresprincipaisospaísessubdesenvolvidosenãoospaíses ricos;osdeserdadoseospobrese nãoosopulentose outrasclassesobesas;o indivíduoliberadoparticipedasnovasmassasenãoohomemacorrentado;opensamentolivreenãoodiscursoúnico.
Comoacreditamosnaforçadasidéias–paraobemeparaomal–nestafasedahistória,emfiligranaaparecerácomoconstanteopapelintelectualnomundodehoje,istoé,opapeldopensamentolivre.Porisso,nosprimeirosprojetosderedaçãohaviaointuitodededicarumcapítuloexclusivoà atividade intelectual genuína. Todavia acheimelhordiscutir esse papel emdiferentesmomentosdaredação,semprequeaocasiãoselevantava.
Olivroéformadodeseispartes,dasquaisaprimeiraéaintrodução.Asegundaincluicincocapítulosebuscamostrarcomosedeuoprocessodeproduçãodaglobalização.Estetemajáhaviasidotratadodealgumaformaemoutraspublicaçõeselivrosmeus.Aterceiraparte,formadaporseis capítulos, busca explicar por que a globalização atual é perversa, fundada na tirania dainformação e dodinheiro, nacompetitividade, naconfusãodos espíritose naviolênciaestrutural,acarretandoodesfalecimentodapolíticafeitapeloEstadoeaimposiçãodeumapolíticacomandadapelasempresas.Aquartapartemostraasrelaçõesmantidasentreaeconomiacontemporânea,sobretudoasfinanças,eo território.Estaparteéconstituídadeseiscapítulos,dosquaiso último
poderiatambémseincluirnaparteseguinte,pois,pormeiodanoçãodeesquizofreniado território,mostramoscomooespaçogeográficoconstituiumdoslimitesaessaglobalizaçãoperversa.Éessaidéiadelimiteàhistóriaatualqueseimpõenaquintaparte,emquesãomostradosaomesmotempoosdescaminhosdaracionalidadedominante,aemergênciadenovasvariáveiscentraiseopapeldospobresnaproduçãodopresenteedofuturo.Asextaparte,umaespéciedeconclusão,édedicadaaoqueimaginamosser,nestapassagemdeséculo,atransiçãoemmarcha.Aqui,ostemasversadosrealçamasmanifestaçõespoucoestudadasdopaísdebaixo,desdeaculturaatéapolítica,raciocínioque se aplica também à própria periferia do sistema capitalista mundial, cuja centralidadeapresentamoscomoumnovofatordinâmicodahistória.É,exatamente,porqueessesatores,eficazesmasaindapoucoestudados,sãolargamentepresentes,queacreditamosnãoseraglobalizaçãoatualirreversíveleestamosconvencidosdequeahistóriauniversalapenascomeça.
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Vivemosnummundoconfuso e confusamente percebido.Haveria nisto umparadoxo
pedindoumaexplicação?Deumlado,é abusivamentemencionadoo extraordinárioprogressodas
ciênciasedastécnicas,dasquaisumdosfrutossãoosnovosmateriaisartificiaisqueautorizama
precisão e a intencionalidade. De outro lado, há, também, referência obrigatória à aceleração
contemporâneaetodasasvertigensquecria,acomeçarpelaprópriavelocidade.Todosesses,
porém,sãodadosdeummundofísicofabricadopelohomem,cujautilização,aliás,permitequeo
mundosetorneessemundoconfusoeconfusamentepercebido.Explicaçõesmecanicistassão,
todavia,insuficientes.Éamaneiracomo,sobreessabasematerial,seproduzahistóriahumanaque
éaverdadeiraresponsávelpelacriaçãodatorredebabelemqueviveanossaeraglobalizada.
Quandotudopermiteimaginarquesetornoupossívelacriaçãodeummundoveraz,oqueéimposto
aosespíritoséummundodefabulações,queseaproveitadoalargamentodetodososcontextos(M.
Santos, A naturezadoespaço ,1996)paraconsagrarumdiscursoúnico.Seusfundamentossãoa
informaçãoeoseuimpério,queencontramalicercenaproduçãodeimagensedoimaginário,ese
põemaoserviçodoimpériododinheiro,fundadoestenaeconomizaçãoenamonetarizaçãodavida
socialedavidapessoal.
Defato,sedesejamosescaparàcrençadequeessemundoassimapresentadoé
verdadeiro,enãoqueremosadmitirapermanênciadesuapercepçãoenganosa,devemosconsiderar
aexistênciadepelomenostrêsmundosnumsó.Oprimeiroseriaomundotalcomonosfazemvê-lo:aglobalizaçãocomofábula;osegundoseriaomundotalcomoeleé:aglobalizaçãocomo
perversidade;eoterceiroomundocomoelepodeser:umaoutraglobalização.
Estemundoglobalizado, vistocomo fábula, erigecomoverdadeumcertonúmerode
fantasias, cuja repetição, entretanto,acabapor se tornar uma base aparentementesólidadesua
interpretação(MariadaConceiçãoTavares,Destruiçãonãocriadora ,1999).
Amáquinaideológicaquesustentaasaçõespreponderantesdaatualidadeéfeitade
peçasquesealimentammutuamenteepõememmovimentooselementosessenciaisàcontinuidade
dosistema.Damosaquialgunsexemplos.Fala-se,porexemplo,emaldeiaglobalparafazercrerque
a difusão instantânea de notícias realmente informa as pessoas. A partir desse mito e do
encurtamentodasdistâncias–paraaquelesquerealmentepodemviajar–tambémsedifundeanoção
detempoeespaçocontraídos.Écomoseomundosehouvessetornado,paratodos,aoalcanceda
mão.Ummercadoavassaladorditoglobaléapresentadocomocapazdehomogeneizaroplaneta
quando,naverdade,asdiferençaslocaissãoaprofundadas.Háumabuscadeuniformidade,ao
serviçodosatoreshegemônicos,masomundosetornamenosunido,tornandomaisdistanteosonho
deumacidadaniaverdadeiramenteuniversal.Enquantoisso,ocultoaoconsumoéestimulado.
Fala-se,igualmente,cominsistência,namortedoEstado,masoqueestamosvendoé
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seu fortalecimento para atender aos reclamos da finança e de outros grandes interesses
internacionais,emdetrimentodoscuidadoscomaspopulaçõescujavidasetornamaisdifícil.
Essespoucosexemplos,recolhidosnumalistainterminável,permitemindagar-se,no
lugardo fimadaideologiaproclamadopelosquesustentamabondadedospresentesprocessosde
globalização,nãoestaríamos,defato,diantedapresençadeumaideologizaçãomaciça,segundoa
qualarealizaçãodomundoatualexigecomocondiçãoessencialoexercíciodefabulações.
Defato,paraagrandemaiorpartedahumanidadeaglobalizaçãoestáseimpondocomo
umafábricadeperversidades.Odesempregocrescentetorna-secrônico.Apobrezaaumentaeas
classesmédiasperdememqualidadedevida.Osaláriomédiotendeabaixar.Afomeeodesabrigo
segeneralizamem todososcontinentes.NovasenfermidadescomoaSIDAse instalame velhas
doenças,supostamenteextirpadas,fazemseuretornotriunfal.Amortalidadeinfantilpermanece,a
despeitodosprogressosmédicosedainformação.Aeducaçãodequalidadeécadavezmais
inacessível.Alastram-seeaprofundam-semalesespirituaisemorais,comoosegoísmos,oscinismos,
acorrupção.
Aperversidadesistêmicaqueestánaraizdessaevoluçãonegativadahumanidadetem
relaçãocomaadesãodesenfreadaaoscomportamentoscompetitivosqueatualmentecaracterizam
asaçõeshegemônicas.Todasessasmazelassãodiretaouindiretamenteimputáveisaopresente
processodeglobalização.
Todavia, podemos pensar na construção de um outro mundo, mediante uma
globalizaçãomaishumana.Asbasesmateriaisdoperíodoatualsão,entreoutras,aunicidadeda
técnica,aconvergênciadosmomentoseoconhecimentodoplaneta.Énessasbasestécnicasqueo
grandecapitalseapóiaparaconstruiraglobalizaçãoperversadequefalamosacima.Mas,essas
mesmasbasestécnicaspoderãoserviraoutrosobjetivos,seforempostasaoserviçodeoutros
fundamentossociaisepolíticos.ParecequeascondiçõeshistóricasdofimdoséculoXXapontavam
paraestaúltimapossibilidade.Taisnovascondiçõestantosedãonoplanoempíricoquantonoplano
teórico.Considerandoo queatualmenteseverifica noplanoempírico, podemos,emprimeiro
lugar,reconhecerumcertonúmerodefatosnovosindicativosdaemergênciadeumanovahistória.O
primeirodessesfenômenoséaenormemisturadepovos,raças,culturas,gostos,emtodosos
continentes.Aissoseacrescente,graçasaosprogressosdainformação,a“mistura”defilosofias,em
detrimentodo racionalismoeuropeu.Umoutrodadodenossaera, indicativodapossibilidadede
mudanças,éaproduçãodeumapopulaçãoaglomeradaemáreascadavezmenores,oquepermite
aindamaiordinamismoàquelamisturaentrepessoasefilosofias.AsmassasdequefalavaOrtegay
Gassetnaprimeirametadedoséculo(Larebelióndelasmasas ,1937),ganhamumanovaqualidade
emvirtudedasuaaglomeraçãoexponencialedesuadiversificação.Trata-sedaexistênciadeuma
verdadeirasociodiversidade,historicamentemuitomaissignificativaqueaprópriabiodiversidade.
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Junte-seaessesfatosaemergênciadeumaculturapopularqueseservedosmeiostécnicosantes
exclusivosdaculturademassas,permitindo-lheexercersobreestaúltimaumaverdadeirarevanche
ouvingança.
É sobre tais alicercesqueseedifica odiscursodaescassez, afinal descoberta pelas
massas.ApopulaçãoaglomeradaempoucospontosdasuperfíciedaTerraconstituiumadasbases
de reconstrução e desobrevivênciadas relações locais, abrindo a possibilidadedeutilização, aoserviçodoshomens,dosistematécnicoatual.
Noplanoteórico,oqueverificamoséapossibilidadedeproduçãodeumnovodiscurso,
deumanovametanarrativa,umnovogranderelato.Essenovodiscursoganharelevânciapelofatode
que,pelaprimeiraveznahistóriadohomem,sepodeconstataraexistênciadeumauniversalidade
empírica.Auniversalidadedeixadeserapenasumaelaboraçãoabstratanamentedosfilósofospara
resultardaexperiênciaordináriadecadahomem.Detalmodo,emummundodatadocomoonosso,
aexplicaçãodoacontecerpodeserfeitaapartirdecategoriasdeumahistóriaconcreta.Éisso,
também,quepermiteconheceraspossibilidadesexistenteseescreverumanovahistória.
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Aglobalizaçãoé,decertafoma,oápicedoprocessodeinternacionalizaçãodomundo
capitalista. Para entendê-la, como, de resto, a qualquer fase da história, há dois elementos
fundamentaisalevaremconta:oestadodastécnicaseoestadodapolítica.
Háumatendênciaasepararumacoisadaoutra.Daímuitasinterpretaçõesdahistóriaa
partirdastécnicas.E,poroutrolado,interpretaçõesdahistóriaapartirdapolítica.Narealidade,
nuncahouvenahistóriahumanaseparaçãoentreasduascoisas.Astécnicassãooferecidascomo
um sistema e realizadas combinadamente através do trabalho e das formas de escolha dos
momentosedoslugaresdeseuuso.Éissoquefezahistória.
NofimdoséculoXXegraçasaosavançosdaciência,produziu-seumsistemade
técnicaspresididopelastécnicasdainformação,quepassaramaexercerumpapeldeeloentreas
demais,unindo-aseassegurandoaonovosistematécnicoumapresençaplanetária.
Sóqueaglobalizaçãonãoéapenasaexistênciadessenovosistemadetécnicas.Elaé
tambémoresultadodasaçõesqueasseguramaemergênciadeummercadoditoglobal,responsável
peloessencialdosprocessospolíticosatualmenteeficazes.Osfatoresquecontribuemparaexplicara
arquiteturadaglobalizaçãoatualsão:aunicidadedatécnica,aconvergênciadosmomentos,a
cognoscibilidadedoplanetaeaexistênciadeummotorúniconahistória,representadopelamais-
valiaglobalizada.Ummercadoglobalutilizandoessesistemadetécnicasavançadasresultanessa
globalizaçãoperversa.Issopoderiaserdiferenteseseuusopolítico fosseoutro.Esseéodebatecentral,oúnicoquenospermiteteraesperançadeutilizarosistematécnicocontemporâneoapartir
deoutrasformasdeação.Pretendemos,aqui,enfrentaressadiscussão,analisandorapidamente
algunsdosseusaspectosconstitucionaismaisrelevantes.
Odesenvolvimentodahistóriavaideparcomodesenvolvimentodastécnicas.Kantdizia
queahistóriaé umprogressosemfim;acrescentemosqueé tambémumprogressosemfimdas
técnicas.Acadaevoluçãotécnica,umanovaetapahistóricasetornapossível.
Astécnicassedãocomofamílias.Nunca,nahistóriadohomem,apareceumatécnica
isolada;oqueseinstalasãogruposdetécnicas,verdadeirossistemas.Umexemplobanalpodeser
dadocomafoice,aenxada,oancinho,queconstituem,numdadomomento,umafamíliadetécnicas.
Essasfamíliasdetécnicastransportamumahistória,cadasistematécnicorepresenta
umaépoca.Emnossaépoca,oqueérepresentativodosistemadetécnicasatualéachegadada
técnicadainformação,pormeiodacibernética,dainformática,daeletrônica.Elavaipermitirduas
grandescoisas:aprimeiraéqueasdiversastécnicasexistentespassamasecomunicarentreelas.
Atécnicadainformaçãoasseguraessecomércio,queantesnãoerapossível.Poroutrolado,elatem
umpapeldeterminantesobreousodotempo,permitindo,emtodososlugares,aconvergênciados
momentos, assegurandoasimultaneidade dasações e, por conseguinte, acelerando oprocesso
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histórico.
Ao surgir uma nova família de técnicas, as outras não desaparecem. Continuam
existindo,masonovoconjuntodeinstrumentospassaaserusadopelosnovosatoreshegemônicos,
enquantoosnãohegemônicoscontinuamutilizandoconjuntosmenosatuaisemenospoderosos.
Quandoumdeterminadoatornãotemascondiçõesparamobilizarastécnicasconsideradasmais
avançadas,torna-se,porissomesmo,umatordemenorimportâncianoperíodoatual.Nahistória dahumanidadeé a primeira vezque tal conjunto de técnicasenvolve o
planetacomoumtodoefazsentir,instantaneamente,suapresença.Isso,aliás,contaminaaformade
existência das outras técnicas, mais atrasadas. As técnicas características do nosso tempo,
presentesquesejamemumsópontodoterritório,têmumainfluênciamarcantesobreorestodopaís,
oqueébemdiferentedassituaçõesanteriores.Porexemplo,aestradadeferroinstaladaemregiões
selecionadas, escolhidas estrategicamente, alcançava uma parte do país, mas não tinha uma
influênciadiretadeterminantesobreorestodoterritório.Agoranão.Atécnicadainformaçãoalcança
atotalidadedecadapaís,diretaouindiretamente.Cadalugartemacessoaoacontecerdosoutros.O
princípiodeseletividadesedátambémcomoprincípiodehierarquia,porquetodososoutroslugaressãoavaliadosedevemse referiràquelesdotadosdastécnicashegemônicas.Esseéumfenômeno
novonahistóriadastécnicasenahistóriadosterritórios.Anteshaviatécnicahegemônicasenão
hegemônicas;hoje,astécnicasnãohegemônicassãohegemonizadas.Naverdade,porém,atécnica
nãopodeservistacomoumdadoabsoluto,mascomotécnicajárelativizada,istoé,talcomousada
pelohomem.Astécnicasapenasserealizam,tornando-sehistória,comaintermediaçãodapolítica,
istoé,dapolíticadasempresasedapolíticadosEstados,conjuntaouseparadamente.
Por outro lado, o sistema técnico dominante no mundo de hoje tem uma outra
característica,istoé, adeser invasor.Elenãosecontentaem ficarali ondeprimeirose instalae
buscaespalhar-se,naproduçãoenoterritório.Podenãooconseguir,maséessasuavocação,queé
tambémfundamentodaaçãodosatoreshegemônicos,como,porexemplo,asempresasglobais.
Estas funcionamapartirdeuma fragmentação,jáqueumpedaçodaproduçãopodeser feitana
Tunísia,outronaMalásia,outroaindanoParaguai,masistoapenasépossívelporqueatécnica
hegemônicadequefalamosépresenteoupassíveldepresençaemtodaaparte.Tudosejuntae
articuladepoismediantea“inteligência”da firma.Senãonãopoderiahaverempresatransnacional.
Há,pois,umarelaçãoestreitaentreesseaspectodaeconomiadaglobalizaçãoeanaturezado
fenômenotécnicocorrespondenteaesteperíodohistórico.Seaproduçãosefragmentatecnicamente,
há,dooutrolado,umaunidadepolíticadecomando.Essaunidadepolíticadocomandofuncionano
interiordasfirmas,masnãohápropriamenteumaunidadedecomandodomercadoglobal.Cada
empresacomandaasrespectivasoperaçõesdentrodasuarespectivatopologia,istoé,doconjunto
delugaresdasuaação,enquantoaaçãodosEstadosedasinstituiçõessupranacionaisnãobasta
paraimporumaordemglobal.Levandoaoextremoesseraciocínio,poder-se-iadizerqueomercado
globalnãoexistecomotal.
Háumarelaçãodecausaeefeitoentreoprogressotécnicoatualeasdemaiscondições
deimplantaçãodoatualperíodohistórico.Éapartirdaunicidadedastécnicas,daqualocomputador
éumapeçacentral,quesurgeapossibilidadedeexistirumafinançauniversal,principalresponsável
pelaimposiçãoatodooglobodeumamais-valiamundial.Semela,seriatambémimpossívelaatualunicidadedotempo,oacontecerlocalsendopercebidocomoumelodoacontecermundial.Poroutro
lado,semamais-valiaglobalizadaesemessaunicidadedotempo,aunicidadedatécnicanãoteria
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eficácia.
Aunicidadedotemponãoéapenasoresultadodeque,nosmaisdiversoslugares,a
horadorelógioéamesma.Nãoésomenteisso.Seahoraéamesma,convergem,também,osmomentosvividos.Háumaconfluênciadosmomentoscomorespostaàquiloque,dopontodevista
dafísica,chama-sedetemporeale,dopontodevistahistórico,seráchamadodeinterdependênciae
solidariedadedoacontecer.Tomadacomofenômenofísico,apercepçãodotemporealnãosóquer
dizerqueahoradosrelógioséamesma,masquepodemosusaressesrelógiosmúltiplosdemaneira
uniforme.Resultadodoprogressocientíficoetécnico,cujabuscaseaceleroucomaSegundaGuerra,
a operação planetária das grandes empresas globais vai revolucionar o mundo das finanças,
permitindoaorespectivomercadoquefuncioneemdiversoslugaresduranteodiainteiro.Otempo
realtambémautorizausaromesmomomentoapartirdemúltiploslugares;etodososlugaresapartir
deumsódeles.E,emambososcasos,deformaconcatenadaeeficaz.
Comessagrandemudançanahistória,tornamo-noscapazes,sejaondefor,deter
conhecimentodoqueéoacontecerdooutro.Nuncahouveantesessapossibilidadeoferecidapela
técnicaànossageraçãodeteremmãosoconhecimentoinstantâneodoacontecerdooutro.Essaéa
grandenovidade,oqueestamoschamandodeunicidadedotempoouconvergênciadosmomentos.
Aaceleraçãodahistória,queofimdoséculoXXtestemunha,vememgrandepartedisto.Masa
informaçãoinstantâneaeglobalizadaporenquantonãoégeneralizadaeverazporqueatualmente
intermediadapelasgrandesempresasdeinformação.
Equemsãoosatoresdotemporeal?Somostodosnós?Estaperguntaéumimperativo
paraquepossamosmelhorcompreendernossaépoca.Aideologiadeummundosóedaaldeia
globalconsideraotemporealcomoumpatrimôniocoletivodahumanidade.Masaindaestamoslonge
desseideal,todaviaalcançável.
Ahistóriaécomandadapelosgrandesatoresdessetemporeal,quesão,aomesmo
tempo,osdonosdavelocidadeeosautoresdodiscursoideológico.Oshomensnãosãoigualmente
atores desse tempo real. Fisicamente, isto é, potencialmente, ele existe para todos. Mas
efetivamente, isto é, socialmente, ele é excelente e assegura exclusividades, ou, pelo menos,
privilégiosdeuso.Comoeleéutilizadoporumnúmeroreduzidodeatores,devemosdistinguirentrea
noçãodefluidezefetiva.Seatécnicacriaaparentementeparatodosapossibilidadedafluidez,quem,todavia,é fluidorealmente?Queempresas sãorealmente fluidas?Quepessoas?Quem, de fato,
utilizaemseufavoressetemporeal?Aquem,realmente,cabeamais-valiacriadaapartirdessanova
possibilidadedeutilizaçãodotempo?Quempodeequemnãopode?Essadiscussãoleva-nosauma
outra,nafaseatualdocapitalismo,aotomarmosemcontaaemergênciadeumnovofator
determinantedahistória,representadopeloqueaquiestamosdenominandodemotorúnico .
Esteperíododispõedeumsistemaunificadodetécnicas,instaladosobreumplaneta
informadoepermitindoaçõesigualmenteglobais.Atéquepontopodemosfalardeumamais-valiaà
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escalamundial,atuandocomoummotorúnicodetaisações?
Havia,comoimperialismo,diversosmotores,cadaqualcomsuaforçaealcance
próprios:omotorfrancês,omotoringlês,omotoralemão,omotorportuguês,obelga,oespanhol
etc.,queeramtodosmotoresdocapitalismo,masempurravamasmáquinaseoshomenssegundo
ritmosdiferentes,modalidadesdiferentes,combinaçõesdiferentes.Hojehaveriaummotorúnicoque
é,exatamente,amencionadamais-valiauniversal.Estatornou-sepossívelporqueapartirdeagoraaproduçãosedáàescalamundial,por
intermédiodeempresasmundiais,quecompetementresisegundoumaconcorrênciaextremamente
feroz,comojamaisexistiu.Asqueresistemesobrevivemsãoaquelasqueobtêmamais-valiamaior,
permitindo-se,assim,continuaraprocedereacompetir.
Essemotorúnicosetornoupossívelporquenosencontramosemumnovopatamarda
internacionalização,comumaverdadeiramundializaçãodoproduto,dodinheiro,docrédito,dadívida,
doconsumo,dainformação.Esseconjuntodemundializações,umasustentandoearrastandoa
outra,impondo-semutuamente,étambémumfatonovo.
Umelementodainternacionalizaçãoatraioutro,impõeoutro,contémeécontidopelooutro.Essesistemadeforçaspodelevarapensarqueomundoseencaminhaparaalgocomouma
homogeneização,umavocaçãoaumpadrãoúnico,oqueseriadevido,deumlado,àmundialização
datécnica,deoutro,àmundializaçãodamais-valia.
Tudoissoérealidade,mastambémesobretudotendência,porqueemnenhumlugar,em
nenhumpaís,houvecompletainternacionalização.Oqueháemtodaparteéumavocaçãoàsmais
diversascombinaçõesdevetoreseformasdemundialização.
Pretendemosqueahistória,agora,sejamovidaporessemotorúnico.Cabe,assim,
indagarqualseriaasuanatureza.Seráeleabstrato?Queéessamais-valiaconsideradaaonível
global?Ela é fugidia e nos escapa,mas nãoé abstrata. Ela existeeseimpõecomo coisareal,
emboranãosejapropriamentemensurável,jáqueestásempreevoluindo,istoé,mudando.Elaé
“mundial”porqueentretidapelasempresasglobaisquesevalemdosprogressoscientíficosetécnicos
disponíveisnomundoepedem,todososdias,maisprogressocientíficoetécnico.
Aatualcompetitividadeentreasempresaséumaformadeexercíciodessamais-valia
universal,quesetornafugidiaexatamenteporquedeixamosomundodacompetiçãoeentramosno
mundodacompetitividade.Oexercíciodacompetitividadetornaexponencialabrigaentreas
empresaseasconduzaalimentarumademandadiuturnademaisciência,demaistecnologia,de
melhororganização,paramanter-seàfrentedacorrida.
Quando,nauniversidade,somossolicitadostodososdiasatrabalharparamelhorara
produtividade como se fossealgo abstratoe individual,estamos impelidosa oferecer àsgrandes
empresas possibilidades ainda maiores de aumentar sua mais-valia. Novos laboratórios são
chamadosaencontrarasnovastécnicas,osnovosmateriais,asnovassoluçõesorganizacionaise
políticasquepermitamàsempresasfazercrescerasuaprodutividadeeoseulucro.Acadaavanço
deumaempresa,outradomesmoramosolicitainovaçõesquelhepermitampassaràfrentedaque
anteseraacampeã.Porisso,talmais-valiaestásemprecorrendo,querdizer,fugindoparaafrente.
Umcortenotempoéidealmentepossível,masestálongedeexpressararealidadeatualcruelmente
instável.Porissonãosepode,dessemodo,medi-la,maselaexiste.Seelapodeparecerabstrata,amais-valiaagorauniversalnaverdadeseimpõecomoumdadoempírico,objetivo,quandoutilizadano
processodaproduçãoecomoresultadodacompetitividade.
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Operíodohistóricoatualvaipermitiroquenenhumoutroperíodoofereceuaohomem,
istoé,apossibilidadedeconheceroplanetaextensivaeaprofundadamente.Istonuncaexistiuantes,
edeve-se,exatamente,aosprogressosdaciênciaedatécnica(melhorainda,aosprogressosda
técnicadevidosaosprogressosdaciência).Esseperíodotécnico-científicodahistóriapermiteaohomemnãoapenasutilizaroque
encontrananatureza:novosmateriaissãocriadosnoslaboratórioscomoumprodutodainteligência
dohomem,eprecedemaproduçãodosobjetos.Atéanossageração,utilizávamososmateriaisque
estavamànossadisposição.Masapartirdeagorapodemosconceberosobjetosquedesejamos
utilizareentãoproduzimosamatéria-primaindispensávelàsuafabricação.Semissonãoteriasido
possívelfazerossatélitesquefotografamoplanetaaintervalosregulares,permitindoumavisãomais
completaedetalhadadaTerra.Pormeiodossatélites,passamosaconhecertodososlugaresea
observaroutrosastros.Ofuncionamentodosistemasolartorna-semaisperceptível,enquantoaTerra
évistaemdetalhe;pelofatodequeossatélitesrepetemsuasórbitas,podemoscaptarmomentos
sucessivos,istoé,nãomaisapenasretratosmomentâneosefotografiasisoladasdoplaneta.Issonão
querdizerquetenhamos,assim,osprocessoshistóricosquemovemomundo,masficamosmais
perto de identificar momentos dessa evolução. Os objetos retratados nos dão geometrias, não
propriamentegeografias,porquenoschegamcomoobjetosemsi,semasociedadevivendodentro
deles.Osentidoquetêmascoisas,istoé,seuverdadeirovalor,éofundamentodacorreta
interpretaçãodetudooqueexiste.Semisso,corremosoriscodenãoultrapassarumainterpretação
coisicistadealgoqueémuitomaisqueumasimplescoisa,comoosobjetosdahistória.Estesestão
sempremudandodesignificado,comomovimentodassociedadeseporintermédiodasações
humanassemprerenovadas.
Comaglobalizaçãoepormeiodaempiricizaçãodauniversalidadequeelapossibilitou,
estamosmaispertodeconstruirumafilosofiadastécnicasedasaçõescorrelatas,quesejatambém
umaformadeconhecimentoconcretodomundotomadocomoumtodoedasparticularidadesdos
lugares,queincluemcondiçõesfísicas,naturaisouartificiaisecondiçõespolíticas.Asempresas,na
buscadamais-valiadesejada,valorizamdiferentementeaslocalizações.Nãoéqualquerlugarque
interessaa talouqualfirma.Acognoscibilidadedoplanetaconstituiumdadoessencialàoperação
dasempresaseàproduçãodosistemahistóricoatual.
Ahistóriadocapitalismopodeserdivididaemperíodos,pedaçosdetempomarcadospor
certacoerênciaentreassuasvariáveissignificativas,queevoluemdiferentemente,masdentrodeum
sistema.Umperíodosucedeaooutro,masnãopodemosesquecerqueosperíodossão,também,
antecedidosesucedidosporcrises,istoé,momentosemqueaordemestabelecidaentreas
variáveis,mediante umaorganização,écomprometida.Torna-seimpossível harmonizá-lasquando
umadessasvariáveisganhaexpressãomaioreintroduzumprincípiodedesordem.
Essafoiaevoluçãocomumatodaahistóriadocapitalismo,atérecentemente.Operíodo
atualescapaaessacaracterísticaporqueeleé,aomesmotempo,umperíodoeumacrise,istoé,a
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superposiçãoentreperíodoecrise,revelandocaracterísticasdeambasessassituações.
Comoperíodoecomocrise,aépocaatualmostra-se,aliás,comocoisanova.Como
período,assuasvariáveiscaracterísticasinstalam-seemtodaparteeatudoinfluenciam,diretaou
indiretamente.Daíadenominaçãodeglobalização.Comocrise,asmesmasvariáveisconstrutorasdo
sistemaestãocontinuamentechocando-seeexigindonovasdefiniçõesenovosarranjos.Trata-se,
porém,deumacrisepersistentedentrodeumperíodocomcaracterísticasduradouras,mesmosenovoscontornosaparecem.
Esteperíodoeestacrisesãodiferentesdaquelesdopassado,porqueosdadosmotores
eosrespectivossuportes,queconstituemfatoresdemudança,nãoseinstalamgradativamentecomo
antes,nemtampoucosãooprivilégiodealgunscontinentesepaíses,comooutrora.Taisfatoresdão-
seconcomitantementeeserealizamcommuitaforçaemtodaaparte.
Defrontamo-nos, agora, como uma subdivisão extrema do tempo empírico, cuja
documentação tornou-se possível por meio das técnicas contemporâneas. O computador é o
instrumentodemedidae,aomesmotempo,ocontroladordousodotempo.Essamultiplicaçãodo
tempoé,naverdade,potencial,porque,defato,cadaator–pessoa,empresa,instituição,lugar–utilizadiferentementetaispossibilidadeserealizadiferentementeavelocidadedomundo.Poroutrolado,e
graçassobretudoaosprogressosdas técnicasdainformática,os fatoreshegemônicosdemudança
contagiamosdemais,aindaqueaprestezaeoalcancedessecontágiosejamdiferentessegundoas
empresas, osgrupossociais,aspessoas,os lugares.Por intermédio dodinheiro, o contágio das
lógicasredutoras,típicasdoprocessodeglobalização,levaatodaparteumnexocontábil,que
avassalatudo.Osfatoresdemudançaacimaenumeradossão,pelamãodosatoreshegemônicos,
incontroláveis,cegos,egoisticamentecontraditórios.
Oprocessodacriseépermanente,oquetemossãocrisessucessivas.Naverdade,
trata-sedeumacriseglobal,cujaevidência tantose fazpormeiode fenômenosglobaiscomode
manifestaçõesparticulares,nesteounaquepaís,nesteounaquelemomento,masparaproduziro
novoestágiodecrise.Nadaéduradouro.
Então,nesteperíodohistórico,acriseéestrutural.Porisso,quandosebuscamsoluções
nãoestruturais,oresultadoéageraçãodemaiscrise.Oqueéconsideradosoluçãopartedo
exclusivointeressedosatoreshegemônicos,tendendoaparticipardesuapróprianaturezaedesuas
própriascaracterísticas.
Tiraniadodinheiroetiraniadainformaçãosãoospilaresdaproduçãodahistóriaatualdo
capitalismoglobalizado.Semocontroledosespíritosseriaimpossívelaregulaçãopelasfinanças.Daí
o papel avassalador do sistema financeiro e a permissividade do comportamento dos atores
hegemônicos,queagemsemcontrapartida,levandoaoaprofundamentodasituação,istoé,dacrise.
Aassociaçãoentreatiraniadodinheiroeatiraniadainformaçãoconduz,dessemodo,à
aceleraçãodosprocessoshegemônicos,legitimadospelo“pensamentoúnico”,enquantoosdemais
processos acabam por ser deglutidos ou se adaptam passiva ou ativamente, tornando-se
hegemonizados.Emoutraspalavras,osprocessosnãohegemônicostendemsejaadesaparecer
fisicamente,sejaapermanecer,masdeformasubordinada,excetoemalgumasáreasdavidasocial
eemcertasfraçõesdoterritórioondepodemmanter-serelativamenteautônomos,istoé,capazesde
umareproduçãoprópria.Mastalsituaçãoésempreprecária,sejaporqueosresultadoslocalmenteobtidossãomenores,sejaporqueosrespectivosagentessãopermanentementeameaçadospela
concorrênciadasatividadesmaispoderosas.
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Noperíodohistóricoatual,oestrutural(ditodinâmico)é,também,crítico.Issosedeve,
entreoutrasrazões,aofatodequeaerapresentesecaracterizapelousoextremadodetécnicasede
normas.Ousoextremadodastécnicaseaproeminênciadopensamentotécnicoconduzemà
necessidadeobsessivadenormas.Essapletoranormativaéindispensávelàeficáciadaação.Como,
porém,asatividadeshegemônicastendemaumacentralização,consecutivaàconcentraçãoda
economia,aumentaainflexibilidadedoscomportamentos,acarretandoummal-estarnocorposocial.Aissoseacrescenteofatodeque,graçasaocasamentoentreastécnicasnormativase
anormalizaçãotécnicaepolíticadaaçãocorrespondente,aprópriapolíticaacabaporinstalar-seem
todososinterstíciosdocorposocial,sejacomonecessidadeparaoexercíciodasaçõesdominantes,
sejacomoreaçãoaessasmesmasações.Masnãoépropriamentedepolíticaquesetrata,masde
simplesacúmulodenormatizaçõesparticularistas,conduzidasporatoresprivadosqueignoramo
interessesocialouqueotratamdemodoresidual.Éumaoutrarazãopelaqualasituaçãonormalé
decrise,aindaqueosfamososequilíbriosmacroeconômicosseinstalem.
Omesmosistemaideológicoquejustificaoprocessodeglobalização,ajudandoa
considerá-looúnicocaminhohistórico,acaba,também,porimporumacertavisãodacriseeaceitaçãodosremédiossugeridos.Emvirtudedisso,todosospaíses,lugaresepessoaspassamase
comportar,istoé,aorganizarsuaação,comosetal“crise”fosseamesmaparatodosecomosea
receitaparaafastá-ladevessesergeralmenteamesma.Naverdade,porém,aúnicacrisequeos
responsáveisdesejamafastaréacrisefinanceiraenãoqualqueroutra.Aíestá,naverdade,uma
causaparamaisaprofundamentodacrisereal–econômica,social,política,moral–quecaracterizao
nossotempo.
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OsúltimosanosdoséculoXXtestemunharamgrandesmudançasemtodaa faceda
Terra.Omundotorna-seunificado–emvirtudedasnovascondiçõestécnicas,basessólidasparauma
açãohumanamundializada.Esta,entretanto,impões-seàmaiorpartedahumanidadecomouma
globalizaçãoperversa.
Consideramos,emprimeirolugar,aemergênciadeumaduplatirania,adodinheiroea
dainformação,intimamenterelacionadas.Ambas,juntas, fornecemasbasesdosistemaideológico
quelegitimaasaçõesmaiscaracterísticasdaépocae,aomesmotempo,buscamconformarsegundo
um novo ethos as relações sociais e interpessoais, influenciando o caráter das pessoas. A
competitividade, sugeridapela produção epelo consumo, é a fontedenovostotalitarismos,mais
facilmenteaceitosgraçasàconfusãodosespíritosqueseinstala.Temasmesmasorigensa
produção,nabasemesmadavidasocial,deumaviolênciaestrutural,facilmentevisívelnasformasde
agirdosEstados,dasempresasedosindivíduos.Aperversidadesistêmicaéumdosseuscorolários.
Dentro dessequadro,as pessoas sentem-sedesamparadas,o que tambémconstitui
umaincitaçãoaqueadotem,emseuscomportamentosordinários,práticasquealgunsdecêniosatrás
erammoralmentecondenadas.Háumverdadeiroretrocessoquantoànoçãodebempúblicoede
solidariedade,doqualéemblemáticooencolhimentodasfunçõessociaisepolíticasdoEstadocoma
ampliaçãodapobrezaeoscrescentesagravosàsoberania,enquantoseampliaopapelpolíticodas
empresasnaregulaçãodavidasocial.
Entreosfatoresconstitutivosdaglobalização,emseucaráterperversoatual,encontram-
seaformacomoainformaçãoéoferecidaàhumanidadeeaemergênciadodinheiroemestadopuro
comomotordavidaeconômicaesocial.Sãoduasviolênciascentrais,alicercesdosistemaideológico
quejustificaasaçõeshegemônicaselevaaoimpériodasfabulações,apercepçõesfragmentadase
aodiscursoúnico domundo,basedos novostotalitarismos – istoé, dos globalitarismos – a que
estamosassistindo.
Umdostraçosmarcantesdoatual períodohistóricoé, pois,opapel verdadeiramente
despótico da informação. Conforme já vimos, as novas condições técnicas deveriam permitir a
ampliaçãodoconhecimentodoplaneta,dosobjetosqueoformam,dassociedadesqueohabitame
doshomensemsuarealidadeintrínseca.Todavia,nascondiçõesatuais,astécnicasdainformaçãosãoprincipalmenteutilizadasporumpunhadodeatoresemfunçãodeseusobjetivosparticulares.
Essas técnicasda informação (por enquanto) são apropriadaspor algunsEstadose poralgumas
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empresas, aprofundandoassimosprocessos decriaçãode desigualdades. É dessemodoque a
periferiadosistemacapitalistaacabasetornandoaindamaisperiférica,sejaporquenãodispõe
totalmentedosnovosmeiosdeprodução,sejaporquelheescapaapossibilidadedecontrole.
Oqueétransmitidoàmaioriadahumanidadeé,defato,umainformaçãomanipulada
que,emlugardeesclarecer,confunde.Issotantoémaisgraveporque,nascondiçõesatuaisdavida
econômicaesocial,ainformaçãoconstituiumdadoessencialeimprescindível.Masnamedidaemqueoquechegaàspessoas,comotambémàsempresaseinstituiçõeshegemonizadas,é,já,o
resultadodeumamanipulação,talinformaçãoseapresentacomoideologia.Ofatodeque,nomundo
dehoje,odiscursoantecedequaseobrigatoriamenteumapartesubstancialdasaçõeshumanas–
sejamelasatécnica,aprodução,oconsumo,opoder–explicaoporquêdapresençageneralizadado
ideológicoemtodosessespontos.Nãoédeestranhar,pois,querealidadeeideologiaseconfundam
naapreciaçãodohomemcomum,sobretudoporqueaideologiaseinserenosobjetoseapresenta-se
comocoisa.
Estamosdiantedeumnovo“encantamentodomundo”,noqualdodiscursoearetórica
sãooprincípioeofim.Esseimperativoeessaonipresençadainformaçãosãoinsidiosos,jáqueainformaçãoatualtemdoisrostos,umpeloqualelabusca instruir,e umoutro,peloqualelabusca
convencer.Esteéotrabalhodapublicidade.Seainformaçãotem,hoje,essasduascaras,acarado
convencersetornamuitomaispresente,namedidaemqueapublicidadesetransformouemalgo
queantecipaaprodução.Brigandopelasobrevivênciaehegemonia,emfunçãodacompetitividade,
asempresasnãopodemexistirsempublicidade,quesetornouonervodocomércio.
Háumarelaçãocarnalentreomundodaproduçãodanotíciaeomundodaprodução
dascoisasedasnormas.Apublicidadetem,hoje,umapenetraçãomuitograndeemtodasas
atividades.Antes,haviaumaincompatibilidadeéticaentreanunciareexercercertasatividades,como
naprofissãomédica,ounaeducação.Hoje,propaga-setudo,eaprópriapolíticaé,emgrandeparte,
subordinadaàssuasregra.
Asmídiasnacionaisseglobalizam,nãoapenaspelachaticeemesmicedasfotografiase
dos títulos, mas pelos protagonistas mais presentes. Falsificam-se os eventos, já que não é
propriamenteofatooqueamídianosdá,masumainterpretação,istoé,anotícia.PierreNora,emum
bonitotexto,cujotítuloé“Oretornodefato”(inHistória:Novosproblemas,1974 ),lembraque,na
aldeia,otestemunhodaspessoasqueveiculamoqueaconteceupodesercotejadocomo
testemunhodovizinho.Numasociedadecomplexacomoanossa,somentevamossaberoquehouve
naruaaoladodoisdiasdepois,medianteumainterpretaçãomarcadapeloshumores,visões,
preconceitoseinteressesdasagências.Oeventojáéentreguemaquiadoaoleitor,aoouvinte,ao
telespectador,eétambémporissoqueseproduzemnomundodehoje,simultaneamente,fábulase
mitos.
Umadessasfabulaçõeséatãorepetidaidéiadealdeiaglobal(OctávioIanni,Teoriasda
globalização,1996 ).O fatodequeacomunicaçãosetornoupossívelàescaladoplaneta,deixando
saberinstantaneamenteoquesepassaemqualquerlugar,permitiuquefossecunhadaessaexpressão,quando,naverdade,aocontráriodoquesedánasverdadeirasaldeias,éfreqüentemente
maisfácilcomunicarcomquemestálongedoquecomovizinho.Quandoessacomunicaçãosefaz,
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narealidade,elasedácomaintermediaçãodeobjetos.Ainformaçãosobreoqueacontecenãovem
dainteraçãoentrepessoas,masdoqueéveiculadopelamídia,umainterpretaçãointeressada,senão
interesseira,dosfatos.
Umoutromitoéodoespaçoedotempocontraídos,graças,outravez,aosprodígiosda
velocidade.Sóqueavelocidadeapenasestáaoalcancedeumnúmerolimitadodepessoas,detal
formaque,segundoaspossibilidadesdecadaum,asdistânciastêmsignificaçõeseefeitosdiversoseousodomesmorelógionãopermiteigualeconomiadotempo.
Aldeiaglobaltantoquantoespaço-tempocontraídopermitiriamimaginararealizaçãodo
sonhodeummundosó,jáque,pelasmãosdomercadoglobal,coisas,relações,dinheiros,gostos
largamentesedifundemporsobrecontinentes,raças,línguas,religiões,comoseasparticularidades
tecidasaolongodeséculoshouvessemsidotodasesgarçadas.Tudoseriaconduzidoe,aomesmo
tempo,homogeneizadopelomercadoglobalregulador.Será,todavia,essemercadoregulador?Será
eleglobal?Ofatoéqueapenastrêspraças,NovaIorque,LondreseTóquio,concentrammaisde
metadedetodasastransaçõeseações;asempresastransnacionaissãoresponsáveispelamaior
partedocomércioditomundial;os47paísesmenosavançadosrepresentamjuntosapenas0,3%docomérciomundial,emlugardos2,3%em1960(Y.Berthelot,“Globalisationetrégionalisation:une
miseenperspective”,inL'integrationrégionaledanslemonde ,GEMDEV,1994),enquanto40%do
comérciodosEstadosUnidosocorremnointeriordasempresas(N.Chomsky,FolhadeSãoPaulo ,
25deabrilde1993).
Fala-se,também,deumahumanidadedesterritorializada,umadesuascaracterísticas
sendoodesfalecimentodasfronteirascomoimperativodaglobalização,eaessaidéiadever-se-ia
umaoutra:adaexistência,jáagora,deumacidadaniauniversal.Defato,asfronteirasmudaramde
significação,masnuncaestiveramtãovivas,namedidaemqueopróprioexercíciodasatividades
globalizadas não prescinde de uma ação governamental capaz de torná-las efetivas dentro do
território. A humanidade desterritorializada é apenas um mito. Por outro lado, o exercício da
cidadania,mesmoseavançaanoçãodemoralidadeinternacional,é,ainda,umfatoquedependeda
presençaedaaçãodosEstadosnacionais.
Emmundocomofábulaéalimentadoporoutrosingredientes,entreosquaisapolitização
dasestatísticas,acomeçarpelaformapelaqualéfeitaacomparaçãodariquezaentreasnações.No
fundo,nascondiçõesatuais,ochamadoProdutoNacionalBrutoéapenasumnomefantasiadoque
poderíamoschamardeprodutoglobal,jáqueasquantidadesqueentramnessacontabilidadesão
aquelasquesereferemàsoperaçõesquecaracterizamaprópriaglobalização.
Afirma-se,também,quea“mortedoEstado”melhorariaavidadoshomenseasaúde
dasempresas,namedidaemquepermitiriaaampliaçãodaliberdadedeproduzir,deconsumirede
viver.Talneoliberalismoseriao fundamentodademocracia.Observandoo funcionamentoconcreto
dasociedadeeconômicae da sociedadecivil,nãoédifícilconstatarquesãocadavezemmenor
númeroasempresasquesebeneficiamdessedesmaiodoEstado,enquantoadesigualdadeentreos
indivíduosaumenta.
Semessas fábulasemitos,esteperíodohistóriconãoexistiriacomoé: Tambémnão
seriapossívelaviolênciadodinheiro.Estesósetornaviolentoetirânicoporqueéservidopela
violênciadainformação.Estaseprevalecedofatodeque,nofimdoséculoXX,alinguagemganhaautonomia,constituindosuapróprialei.Issofacilitaaentronizaçãodeumsubsistemaideológico,sem
oqualaglobalização,emsuaformaatual,nãoseexplicaria.
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A internacionalizaçãodocapital financeiroamplia-se,recentemente,porváriasrazões.
Nafasehistóricaatual,asmegafirmasdevem,obrigatoriamente,preocupar-secomousofinanceiro
dodinheiroqueobtêm.Asgrandesempresassão,quasequecompulsoriamente,ladeadasporgrandesempresasfinanceiras.
Essasempresasfinanceirasdasmultinacionaisutilizamemgrandeparteapoupançados
paísesemqueseencontram.QuandoumafirmadequalqueroutropaísseinstalanumpaísCouD,
as poupanças internas passam a participar da lógica financeira e do trabalho financeiro dessa
multinacional.Quandoexpatriado,essedinheiropoderegressaraopaísdeorigemnaformade
créditoededívida,querdizer,porintermédiodasgrandesempresasglobais.Oqueseriapoupança
internatransforma-seempoupançaexterna,pelaqualospaísesrecipiendáriosdevempagarjuros
extorsivos. O que sai dopaís como royalties ,inteligênciacomprada,pagamentodeserviçosou
remessadelucrosvoltacomocréditoedívida.Essaéalógicaatualdainternacionalizaçãodocréditoedadívida.Aaceitaçãodeummodeloeconômicoemqueopagamentodadívidaéprioritárioimplica
aaceitaçãodalógicadessedinheiro.
Nascondiçõesatuais deeconomia internacional,o financeiro ganha uma espécie de
autonomia.Porisso,arelaçãoentrea finançaeaprodução,entreoqueagorasechamaeconomia
realeomundodafinança,dálugaràquiloqueMarxchamavadeloucuraespeculativa,fundadano
papel do dinheiro em estado puro. Este se torna o centro do mundo. É o dinheiro como,
simplesmente,dinheiro,recriandoseufetichismopelaideologia.Osistemafinanceirodescobre
fórmulasimaginosas,inventasemprenovosinstrumentos,multiplicaoquechamadederivativos,que
sãoformassemprerenovadasdeofertadessamercadoriaaosespeculadores.Oresultadoéquea
escalaçãoexponencialassimredefinidavaisetornaralgoindispensável,intrínseco,aosistema,
graçasaosprocessostécnicosdanossaépoca.Éotemporealquevaipermitirarapidezdas
operações e a volatilidade dos assets .Eafinançamoveaeconomiaeadeforma,levandoseus
tentáculosatodososaspectosdavida.Porisso,élícitofalardetiraniadodinheiro.
Seodinheiroemestadopurosetornoudespótico,issotambémsedeveaofatodeque
tudosetornavalordetroca.Amonetarizaçãodavidacotidianaganhou,nomundointeiro,umenorme
terrenonosúltimos25anos.Essapresençadodinheiroemtodaparteacabaporconstituirumdado
ameaçadordanossaexistênciacotidiana.
Éapartirdessageneralizaçãoedessacoisificaçãodaideologiaque,deum lado,se
multiplicamaspercepçõesfragmentadase,deoutro,podeestabelecer-seumdiscursoúnicodo
“mundo”,comimplicaçõesnaproduçãoeconômicaenasvisõesdahistóriacontemporânea,na
culturademassaenomercadoglobal.
Asbasesmateriaishistóricasdessamitificaçãoestãonarealidadedatécnicaatual.A
técnicaapresenta-seaohomemcomumcomoummistérioeumabanalidade.Defato,atécnicaémaisaceitadoquecompreendida.Comotudoparecedeladepender,elaseapresentacomouma
necessidade universal, uma presença indiscutível, dotada de uma força quase divina à qual os
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homensacabamserendendosembuscarentendê-la.Éumfatocomumnocotidianodetodos,por
conseguinte,umabanalidade,masseusfundamentoseseualcanceescapamàpercepçãoimediata,
daíseumistério.Taiscaracterísticasalimentamseuimaginário,alicerçadonassuasrelaçõescoma
ciência,nasuaexigênciaderacionalidade,noabsolutismocomque,aoserviçodomercado,
conformaoscomportamento;tudoissofazendocrernasuainevitabilidade.
Quandoosistemapolíticoformadopelosgovernosepelasempresasutilizaossistemastécnicoscontemporâneoseseuimaginárioparaproduziraatualglobalização,aponta-nospara
formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão e exigem obediência
imediata, sem a qual os atores são expulsosda cenaoupermanecemescravos deuma lógica
indispensávelaofuncionamentodosistemacomoumtodo.
Éumaformadetotalitarismomuitoforteeinsidiosa,porquesebaseiaemnoçõesque
parecemcentraisà própria idéiadademocracia – liberdade deopinião, de imprensa,tolerância-,
utilizadasexatamenteparasuprimirapossibilidadedeconhecimentodoqueéomundo,edoquesão
ospaíseseoslugares.
Neste mundo globalizado, a competitividade, o consumo, a confusão dos espíritos
constituembaluartesdopresenteestadodecoisas.Acompetitividadecomandanossasformasde
ação.Oconsumocomandanossasformasdeinação.Eaconfusãodosespíritosimpedeonosso
entendimentodomundo,dopaís,dolugar,dasociedadeedecadaumdenósmesmos.
Nosúltimoscincoséculosdedesenvolvimentoeexpansãogeográficadocapitalismo,a
concorrência seestabelececomo regra.Agora, a competitividade toma o lugar dacompetição.A
concorrênciaatualnãoémaisavelhaconcorrência,sobretudoporquechegaeliminandotodaforma
decompaixão.Acompetitividadetemaguerracomonorma.Há,atodocusto,quevencerooutro,
esmagando-o,paratomarseulugar.OsúltimosanosdoséculoXXforamemblemáticos,porqueneles
se realizaram grandesconcentrações, grandes fusões, tanto naórbitadaproduçãocomo nadas
finançasedainformação.Essemovimentomarcaumápicedosistemacapitalista,masétambémindicadordoseuparoxismo,jáqueaidentidadedosatores,atéentãomaisoumenosvisível,agora
finalmenteapareceaosolhosdetodos.
Essaguerracomonormajustificatodaformadeapeloàforça,aqueassistimosem
diversospaíses,umapelonãodissimulado,utilizadoparadirimirosconflitoseconseqüênciadessa
ética da competitividade que caracteriza nosso tempo. Ora, é isso também que justifica os
individualismosarrebatadoresepossessivos:individualismosnavidaeconômica(amaneiracomoas
empresasbatalhamumascomasoutras);individualismosnaordemdapolítica(amaneiracomoos
partidosfreqüentementeabandonamaidéiadepolíticaparasetornaremsimplesmenteeleitoreiros);
individualismos na ordem do território (as cidades brigando umas com as outras, as regiões
reclamandosoluçõesparticularistas).Tambémnaordemsocialeindividualsãoindividualismos
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arrebatadoresepossessivos,queacabamporconstituirooutrocomocoisa.Comportamentosque
justificam tododesrespeitoàspessoassão, afinal, umadas basesda sociabilidadeatual.Aliás,a
maneiracomoasclassesmédias,noBrasil,seconstituíramentronizaalógicadosinstrumentos,em
lugardalógicadasfinalidades,econvocaospragmatismosaquesetornemtriunfantes.
Paratudoisso,tambémcontribuiuaperdadeinfluênciadafilosofianaformulaçãodas
ciências sociais, cuja interdisciplinaridade acaba por buscar inspiração na economia. Daí oempobrecimentodasciênciashumanasea conseqüentedificuldadeparainterpretaroquevaipelo
mundo,jáqueaciênciaeconômicasetorna,cadavezmais,umadisciplinadaadministraçãodas
coisasaoserviçodeumsistemaideológico.Éassimqueseimplantamnovasconcepçõessobreo
valoraatribuiracadaobjeto,acadaindivíduo,acadarelação,acadalugar,legitimandonovas
modalidades e novas regras da produção e do consumo. E novas formas financeiras e da
contabilidade nacional. Esta, aliás, se reduz a ser, apenas, um nome fantasia de uma suposta
contabilidadeglobal,algoqueinexistedefato,masétomadocomoparâmetro.Estáéumadasbases
dosubsistemaideológicoquecomandaoutrossubsistemasdavidasocial,formandoumaconstelação
quetantoorientaedirigeaproduçãodaeconomiacomotambémaproduçãodavida.Essanovaleidovalor–queéumaleiideológicadovalor–éumafilhadiletadacompetitividadeeacabaporser
responsáveltambémpeloabandonodanoçãoedofatodasolidariedade.Daíasfragmentações
resultantes.Daíaampliaçãododesemprego.Daíoabandonodaeducação.Daíodesapreçoàsaúde
comoumbemindividualesocial inalienável.Daí todasasnovasformasperversasdesociabilidade
quejáexistemouseestãopreparandonestepaís,parafazerdele–aindamais–umapaís
fragmentado, cujas diversas parcelas, de modo a assegurar sua sobrevivência imediata, serão
jogadasumascontraasoutraseconvidadasaumabatalhasemquartel.
Tambémoconsumomudadefiguraaolongodotempo.Falava-se,antes,deautonomia
da produção, para significar que uma empresa, ao assegurar uma produção, buscava também
manipularaopiniãopelaviadapublicidade.Nessecaso,ofatogeradordoconsumoseriaaprodução.
Mas,atualmente,asempresashegemônicasproduzemoconsumidorantesmesmodeproduziros
produtos.Umdadoessencialdoentendimentodoconsumoéqueaproduçãodoconsumidor,hoje,
precedeàproduçãodosbense dos serviços.Então,nacadeia casual,achamadaautonomiada
produçãocedelugaraodespotismodoconsumo.Daí,oimpériodainformaçãoedapublicidade.Tal
remédioteria1%demedicinae99%depublicidade,mastodasascoisasnocomércioacabamporter
essacomposição:publicidade+materialidade;publicidade+serviços,eesseéocasodetantas
mercadoriascujacirculaçãoéfundadanumapropagandainsistenteefreqüentementeenganosa.Há
todaessamaneiradeorganizaroconsumoparapermitir,emseguida,aorganizaçãodaprodução.
Taisoperaçõespodemtornar-sesimultâneasdiantedotempodorelógio,mas,doponto
devistadalógica,éaproduçãodainformaçãoedapublicidadequeprecede.Dessemodo,vivemos
cercados, por todos os lados, por esse sistema ideológico tecido ao redor do consumo e da
informaçãoideologizados.Esseconsumoideologizadoeessainformaçãoideologizadaacabampor
seromotordeaçõespúblicaseprivadas.Esseparé,aomesmotempo,fortíssimoefragilíssimo.Deumladoémuitoforte,pelasuaeficáciaatualsobreaproduçãoeoconsumo.Mas,deoutrolado,eleé
muitofraco,muitodébil,desdequeencontremosamaneiradedefini-locomoumdadodeumsistema
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mais amplo.O consumo é o grande emoliente, produtor ou encorajador de imobilismos. Ele é,
também,umveículodenarcisismos,pormeiodosseusestímulosestéticos,morais,sociais;e
aparececomoograndefundamentalismodonossotempo,porquealcançaeenvolvetodagente.Por
isso,oentendimentodoqueéomundopassapeloconsumoepelacompetitividade,ambosfundados
nomesmosistemadaideologia.
Consumismoecompetitividadelevamaoemagrecimentomoraleintelectualdapessoa,àreduçãodapersonalidadeedavisãodomundo,convidando,também,aesqueceraoposição
fundamentalentreafiguradoconsumidoreafiguradocidadão.ÉcertoquenoBrasiltaloposiçãoé
menossentida,porqueemnossopaísjamaishouveafiguradocidadão.Asclasseschamadas
superiores,incluindoasclassesmédias,jamaisquiseramsercidadãs;ospobresjamaispuderamser
cidadãos.Asclassesmédiasforamcondicionadasaapenasquererprivilégiosenãodireitos.Eissoé
umdadoessencialdoentendimentodoBrasil:decomoospartidosseorganizamefuncionam;de
comoapolíticasedá,decomoasociedadesemove.Eaítambémascamadasintelectuaistêm
responsabilidade,porquetrasladaram,semmaior imaginaçãoe originalidade,à condiçãodaclasse
médiaeuropéia, lutandopela ampliação dosdireitospolíticos, econômicose sociais, parao casobrasileiroeatribuindo,assim,porequívoco,àclassemédiabrasileiraumpapeldemodernizaçãoede
progressoque,pelasuaprópriaconstituição,elanãopoderiater.
Tudoissosedeve,emgrandeparte,aofatodequeofimdoséculoXXerigiucomoum
dadocentraldoseufuncionamentoodespotismodainformação,relacionando,emcertamedida,com
opróprionívelalcançadopelodesenvolvimentodatécnicaatual,tãonecessitadadeumdiscurso.
Comoasatividadeshegemônicassão,hoje,todaselas,fundadasnessatécnica,odiscursoaparece
comoalgocapitalnaproduçãodaexistênciadetodos.Essaimprescindibilidadedeumdiscursoque
antecedeatudo–acomeçarpelaprópriatécnica,aprodução,oconsumoeopoder–abreaportaà
ideologia.
Antes,eracorrentediscutir-searespeitodaoposiçãoentreoqueerarealeoquenão
era;entreoerroeoacerto;oerroeaverdade;aessênciaeaaparência.Hoje,essadiscussãotalvez
não tenha sequer cabimento, porque a ideologia se torna real e está presente como realidade,
sobretudopormeiodosobjetos.Osobjetossãocoisas,sãoreais.Elesseapresentamdiantedenós
nãoapenascomoumdiscurso,mascomoumdiscursoideológico,quenosconvoca,malgradonós,a
umaformadecomportamento.Eesseimpériodosobjetostemumpapelrelevantenaproduçãodesse
novohomemapequenadoqueestamostodosameaçadosdeser.AtéaSegundaGuerraMundial,
tínhamosemtornodenósalgunsobjetos,osquaiscomandávamos.Hoje,meioséculodepois,oque
háem tornoé umamultidãodeobjetos, todosouquasetodosquerendonoscomandar.Umadas
grandesdiferençasentreomundodehácinqüentaanoseomundodeagoraéessepapelde
comandoatribuídoaosobjetos.Esãoobjetoscarregandoumaideologiaquelheséentreguepelos
homensdomarketing edodesign aoserviçodomercado.
Ocapitalismoconcorrencialbuscouaunificaçãodoplaneta,masapenasobteveuma
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unificaçãorelativa,aprofundadasobocapitalismomonopolistagraçasaosprogressostécnicos
alcançados nos últimos dois séculos e possibilitando uma transição para a situação atual de
neoliberalismo. Agora se pode, de alguma forma, falar numa vontade de unificação absoluta
alicerçadanatiraniadodinheiroedainformaçãoproduzindoemtodapartesituaçõesnasquaistudo,
istoé,coisas,homens,idéias,comportamentos,relações,lugares,éatingido.
Emcadaumdessesmomentos,sãodiferentesasrelaçõesentreoindivíduoeasociedade,entreomercadoeasolidariedade.Atérecentemente,haviaabuscadeumrelativoreforço
mútuodasidéiasedarealidadedeautonomiaindividual(comavontadedeproduçãodeindivíduos
fortes e de cidadãos) e da idéia e da realidade de uma sociedade solidária (com o Estado
crescentementeempenhadoemexercerumaregulaçãoredistributiva).Assituaçõeseramdiferentes
segundooscontinentesepaísese,seoquadroacimareferidonãoconstituíaumarealidade
completa,essaeraumaaspiraçãogeneralizada.
Ao longodahistóriapassada docapitalismo,paralelamenteà evoluçãodas técnicas,
idéiasmoraisefilosóficassedifundem,assimcomoasuarealizaçãopolíticaejurídica,demodoque
oscostumes,asleis,osregulamentos,asinstituiçõesjurídicaseestataisbuscavamrealizar,aomesmotempo,maiscontrolesociale,também,maiscontrolesobreasaçõesindividuais,limitandoa
açãodaquelesvetoresque,deixadossozinhos,levariamàeclosãodeegoísmos,aoexercíciodaforça
brutaeadesníveissociaiscadavezmaisagudos.
Nafase atualdeglobalização,o usodas técnicasconheceuma importantemudança
qualitativaequantitativa.Passamosdeumuso“imperialista”,queera,também,umusodesiguale
combinado,segundooscontinenteselugares,aumapresençaobrigatóriaemtodosospaísesdos
sistemastécnicoshegemônicos,graçasaopapelunificadordastécnicasdeinformação.
Ousoimperialistadastécnicaspermitia,pelaviadapolítica,umacertaconvivênciade
níveisdiferentesdeformastécnicasedeformasorganizacionaisnosdiversosimpérios.Talsituação
permanecepraticamentepor umséculo,semqueasdiferençasdepoder entreos impérios fosse
causadeconflitosduráveisentreelese dentro deles. Opróprio imperialismoera“diferencial”, tal
característica sendo conseqüência da subordinação do mercado à política, seja a política
internacional,sejaapolíticainterioracadapaísouacadaconjuntoimperial.Comaglobalização,as
técnicassetornammaiseficazes,suapresençaseconfundecomoecúmeno,seuencadeamento
praticamenteespontâneosereforçae,aomesmotempo,oseuusoescapa,sobmuitosaspectos,ao
domíniodapolíticaesetornasubordinadoaomercado.
Comoas técnicashegemônicasatuaissão, todaselas, filhas daciência,e comosua
utilizaçãosedáaoserviçodomercado,esseamálgamaproduzumideáriodatécnicaedomercado
queésantificadopelaciência,considerada,elaprópria,infalível.Essa,aliás,éumadasfontesdo
poderdopensamentoúnico.Tudooqueéfeitopelamãodosvetoresfundamentaisdaglobalização
partedeidéiascientíficas,indispensáveisaprodução,aliásacelerada,denovasrealidades,detal
modoqueasaçõesassimcriadasseimpõemcomosoluçõesúnicas.
Nascondiçõesatuais,aideologiaéreforçadadeumaformaqueseriaimpossívelaindaháumquartodeséculo,jáque,primeiroasidéiase,sobretudo,asideologiassetransformamem
situações, enquanto as situações se tornam entre si mesmas “idéias”, “idéias do que fazer”,
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“ideologia”,e impregnam,devolta,aciênciacadavezmaisredutorae reduzida,maisdistanteda
busca da “verdade”. Desse conjunto de variáveis decorrem, também, outras condições da vida
contemporânea, fundadas na matematização da existência, carregando consigo uma crescente
seduçãopelosnúmeros,umusomágicodasestatísticas.
ÉtambémapartirdessequadroquesepodeinterpretaraserializaçãodequefalavaJ.-
P.Satreem Questionsdeméthode,CritiquedelaRaisondialectique ,1960.Emtaiscondições,instalam-se a competitividade, o salve-se-quem-puder, a volta ao canibalismo, a supressão da
solidariedade,acumulandodificuldadesparaumconvíviosocialsaudáveleparaoexercícioda
democracia.Enquantoestaéreduzidaaumademocraciademercadoeamesquinhadacomo
eleitoralismo,istoé,consumodeeleições,as“pesquisas”perfilam-secomoumaferidorquantitativo
daopinião,daqualacabaporserumadasformadoras,levando tudo issoaoempobrecimentodo
debatedeidéiaseaprópriamortedapolítica.Naesferadasociabilidade,levantam-seutilitarismos
comoregradevidamedianteaexacerbaçãodoconsumo,dosnarcisismos,doimediatismo,do
egoísmo,doabandonodasolidariedade,comaimplantação,galopante,deumaéticapragmática
individualista.Édessaformaqueasociedadeeos indivíduosaceitamdaradeusàgenerosidade,àsolidariedadeeaemoçãocomaentronizaçãodoreinodocálculo(apartirdocálculoeconômico)eda
competitividade.
São,todasessas,condiçõesparaadifusãodeumpensamentoedeumaprática
totalitárias.Essestotalitarismossedãonaesferadotrabalhocomo,porexemplo,nummundoagrícola
modernizadoondeosatoressubalternizadosconvivem,comonumexército,submetidosauma
disciplinamilitar.Ototalitarismonãoé,porém,limitadoàesferadotrabalho,escorrendoparaaesfera
políticaedasrelaçõesinterpessoaiseinvadindooprópriomundodapesquisaedoensino
universitários,medianteumcercoàsidéiascadavezmenosdissimulado.Cabe-nos,mesmo,indagar
diante dessas novas realidades sobre a pertinência da presente utilização de concepções já
ultrapassadasdedemocracia,opiniãopública,cidadania,conceitosquenecessitamurgenterevisão,
sobretudonoslugaresondeessascategoriasnuncaforamclaramentedefinidasnemtotalmente
exercitadas.
Nossagrandetarefa,hoje,éaelaboraçãodeumnovodiscurso,capazdedesmitificara
competitividadeeoconsumoedeatenuar,senãodesmanchar,aconfusãodosespíritos.
Fala-se,hoje,muitoemviolênciaeégeralmenteadmitidoqueéquaseumestado,uma
situaçãocaracterísticadonossotempo.Todavia,dentreasviolênciasdequesefala,amaiorparteé
sobretudoformadadeviolênciasfuncionaisderivadas,enquantoaatençãoémenosvoltadaparao
quepreferimoschamardeviolênciaestrutural,queestánabasedaproduçãodasoutraseconstituia
violência central original. Por isso, acabamos por apenas condenar as violências periféricas
particulares.
Aonossover,aviolênciaestruturalresultadapresençaedasmanifestaçõesconjuntas,
nessaeradaglobalização,dodinheiroemestadopuro,dacompetitividadeemestadopuroeda
potênciaemestadopuro,cujaassociaçãoconduzàemergênciadenovostotalitarismosepermitepensarquevivemosnumaépocadeglobalitarismomuitomaisquedeglobalização.Paralelamente,
evoluímosdesituaçõesemqueaperversidadesemanifestavadeformaisoladaparaumasituaçãona
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qualseinstalaumsistemadaperversidade,que,aomesmotempo,éresultadoecausada
legitimaçãododinheiroemestadopuro,dacompetitividadeemestadopuroedapotênciaemestado
puro,consagrando,afinal,ofimdaéticaeofimdapolítica.
Com a globalização impõe-se uma nova noção de riqueza, de prosperidade e deequilíbriomacroeconômico, conceitos fundadosnodinheiroemestado puroe aos quais todasas
economiasnacionaissãochamadasaseadaptar.Anoçãoearealidadedadívidainternacional
tambémderivamdessamesmaideologia.Oconsumo,tornadoumdenominadorcomumparatodos
osindivíduos,atribuiumpapelcentralaodinheironassuasdiferentesmanifestações;juntos,o
dinheiroeoconsumoaparecemcomoreguladoresdavidaindividual.Onovodinheirotorna-se
onipresente.Fundadonumaideologia,essedinheirosemmedidasetornaamedidageral,reforçando
avocaçãoparaconsideraraacumulaçãocomoumametaemsimesma.Narealidade,oresultado
dessabuscatantopodelevaràacumulação(paraalguns)comooendividamento(paraamaioria).
Nessas condições, firma-se um círculo vicioso dentro do qual o medo e o desamparo se criammutuamenteeabuscadesenfreadadodinheirotantoéumacausacomoumaconseqüênciado
desamparoedomedo.
O resultadoobjetivoéanecessidade, real ou imaginada, debuscarmaisdinheiro,e,
comoeste,emseuestadopuro,éindispensávelàexistênciadaspessoas,dasempresasedas
nações,asformaspelasquaiseleéobtido,sejamquaisforem,jáseencontramantecipadamente
justificadas.
Anecessidadedecapitalizaçãoconduzaadotarcomoregraanecessidadedecompetir
em todos os planos. Diz-se que as nações necessitam competir entre elas –o que, todavia, é
duvidoso-easempresascertamentecompetemporumquinhãosempremaiornomercado.Masa
estabilidadedeumaempresapodedependerdeumapequenaaçãodessemercado.Asobrevivência
estásempreporumfio.Nummundoglobalizado,regiõesecidadessãochamadasacompetire,
diantedas regras atuaisdaproduçãoedos imperativosatuaisdoconsumo, a competitividadese
tornatambémumaregradaconvivênciaentreaspessoas.Anecessidadedecompetiré,aliás,
legitimadaporumaideologialargamenteaceitaedifundida,namedidaemqueadesobediênciaàs
suasregrasimplicaperderposiçõese,atémesmo,desaparecerdocenárioeconômico.Criam-se,
destemodo,novos“valores”emtodososplanos,umanova“ética”pervasivaeoperacionalfaceaos
mecanismosdaglobalização.
Concorrer ecompetirnãosãoamesmacoisa.A concorrência podeaté sersaudável
semprequeabatalhaentreagentes,paramelhorempreenderumatarefaeobtermelhoresresultados
finais,exigeorespeitoacertasregrasdeconvivênciapreestabelecidasounão.Jáacompetitividade
sefundanainvençãodenovasarmasdeluta,numexercícioemqueaúnicaregraéaconquistada
melhorposição.Acompetitividadeéumaespéciedeguerraemquetudovalee,dessemodo,sua
práticaprovocaumafrouxamentodosvaloresmoraiseumconviteaoexercíciodaviolência.
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Paraexerceracompetitividadeemestadopuroeobterodinheiroemestadopuro,o
poder(apotência)devesertambémexercidoemestadopuro.Ousodaforçaacabasetornandouma
necessidade. Não há outro telos , outra finalidade que o próprio uso da força, já que ela é
indispensávelparacompetirefazermaisdinheiro;issovemacompanhadopeladesnecessidadede
responsabilidadeperanteooutro,acoletividadepróximaeahumanidadeemgeral.Porexemplo,aidéiadequeodesempregoéoresultadodeumjogosimplórioentre
formastécnicasedecisõesmicroeconômicasdasempresaséumasimplificação,originadadessa
confusão,comoseanaçãonãodevessesolidariedadeacadaumdosseusmembros.Oabandonoda
idéiadesolidariedadeestáportrásdesseentendimentodaeconomiaeconduzaodesamparoemque
vivemoshoje.Jamaishouvenahistóriaumperíodoemqueomedofossetãogeneralizadoe
alcançassetodasasáreasdanossavida:medododesemprego,medodafome,medodaviolência,
medodooutro.Talmedoseespalhaeseaprofundaapartirdeumaviolênciadifusa,masestrutural,
típicadonossotempo,cujoentendimentoéindispensávelparacompreender,demaneiramais
adequada,questõescomoadívidasocialeaviolênciafuncional,hojetãopresentesnocotidianodetodos.
Sejaqualforoângulopeloqualseexaminemassituaçõescaracterísticasdoperíodo
atual,a realidadepodeservistacomoumafábricadeperversidade.A fomedeixadeserum fato
isoladoouocasionale passaaserumdadogeneralizadoepermanente.Elaatinge800milhõesde
pessoasespalhadasportodososcontinentes,semexceção.Quandoosprogressosdamedicinaeda
informaçãodeviamautorizarumareduçãosubstancialdosproblemasdesaúde,sabemosque14
milhõesdepessoasmorremtodososdias,antesdoquintoanodevida.
Doisbilhõesdepessoassobrevivemsemáguapotável.Nuncanahistóriahouveumtão
grandenúmerodedeslocadoserefugiados.Ofenômenodossem-teto,curiosidadenaprimeira
metadedoséculoXX,hojeé um fatobanal,presenteemtodasasgrandescidadesdomundo.O
desempregoéalgotornadocomum.Aomesmotempo,ficoumaisdifícildoqueantesatribuir
educaçãodequalidadee,mesmo,acabarcomoanalfabetismo.Apobrezatambémaumenta.Nofim
doséculoXXhaviamais600milhõesdepobresdoqueem1960;e1,4bilhãodepessoasganham
menosdeumdólarpordia.Taisnúmerospodemser,naverdade,ampliadosporque,aindaaqui,os
métodosquantitativosdaestatísticaenganam:serpobrenãoéapenasganharmenosdoqueuma
soma arbitrariamente fixada;ser pobreé participardeuma situaçãoestrutural, comuma posição
relativainferiordentrodasociedadecomoumtodo.Eessacondiçãoseampliaparaumnúmerocada
vezmaiordepessoas.Ofato,porém,équeapobrezatantoquantoodesempregoagorasão
considerados comoalgo “natural”, inerente ao seupróprio processo. Junto ao desemprego eà
pobrezaabsoluta, registre-seo empobrecimentorelativodecamadas cada vezmaioresgraçasà
deterioraçãodovalordotrabalho.NoMéxico,apartedetrabalhonarendanacionalcaide36%na
décadade1970para23%em1992.Vivemosnummundodeexclusões,agravadaspeladesproteção
social,apanágiodomodeloneoliberal,queétambém,criadordeinsegurança.Naverdade,aperversidadedeixadesemanisfestarporfatosisolados,atribuídosa
distorçõesdapersonalidade,paraseestabelecercomoumsistema.Aonossover,acausaessencial
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daperversidadesistêmicaéa instituição,porleigeraldavidasocial,dacompetitividadecomoregra
absoluta,umacompetitividadequeescorresobretodooedifíciosocial.O outro ,sejaeleempresa,
instituiçãoou indivíduo,aparececomoumobstáculoà realizaçãodosfinsdecadaume deveser
removido, por isso sendo considerado umacoisa. Decorrem daí a celebração dos egoísmos, o
alastramentodosnarcisismos,abanalizaçãodaguerradetodoscontratodos,comautilizaçãode
qualquerquesejaomeioparaobtero fimcolimado,istoé, competire, sepossível,vencer.Daíadifusão,tambémgeneralizada,deoutrosubprodutodacompetitividade,istoé,acorrupção.
EssesistemadaperversidadeincluiamortedaPolítica(comumPmaiúsculo),jáquea
conduçãodoprocessopolíticopassaaseratributodasgrandesempresas.Junte-seaissooprocesso
deconformaçãodaopiniãopelasmídias,umdadoimportantenomovimentodealienaçãotrazidocom
asubstituiçãododebatecivilizatóriopelodiscursoúnicodomercado.Daíoensinamentoeo
aprendizadodecomportamentosdosquaisestãoausentesobjetivosfinalísticoseéticos.
Assim elaborado, o sistema da perversidade legitima a preeminência de uma ação
hegemônicamassemresponsabilidade,eainstalaçãosemcontrapartidadeumaordementrópica,
comaprodução“natural”dadesordem.Paratudoisso,tambémcontribuioestabelecimentodoimpériodoconsumo,dentrodo
qualseinstalamconsumidoresmaisqueperfeitos(M.Santos,Oespaçodocidadão ,1988),levadosà
negligênciaemrelaçãoàcidadaniaeseucorolário,istoé,omenosprezoquantoàliberdade,cujo
cultoésubstituídopelapreocupaçãocomaincolumidade.Estareacendeegoísmoseéumdos
fermentosdaquebradasolidariedadeentrepessoas,classeseregiões.Incluam-setambém,nessa
lista dos processos característicos da instalação do sistema da perversidade, a ampliação das
desigualdades de todo gênero: interpessoais, de classes, regionais, internacionais. Às antigas
desigualdades,somam-senovas.
Ospapéisdominantes,legitimadospelaideologiaepelapráticadacompetitividade,são
amentira,comonomedesegredodamarca;oengodo,comonomedemarketing;adissimulaçãoe
ocinismo,comosnomesdetáticaeestratégia.Éumasituaçãonaqualseproduzaglorificaçãoda
esperteza,negandoasinceridade,eaglorificaçãodaavareza,negandoagenerosidade.Desse
modo,ocaminhoficaabertoaoabandonodassolidariedadeseaofimdaética,mas,também,da
política.Paraotriunfodasnovasvirtudespragmáticas,oidealdedemocraciaplenaésubstituídopela
construçãodeumademocraciademercado,naqualadistribuiçãodopoderétributáriadarealização
dos finsúltimosdoprópriosistemaglobalitário.Estassãoasrazõespelasquaisavidanormal de
todososdiasestásujeitaaumaviolênciaestruturalque,aliás,éamãedetodasasoutrasviolências.
Façamosumregresso,muitobreve,aocomeçodahistóriahumana,quandoohomem
emsociedade,relacionando-sediretamentecomanatureza,constróiahistória.Nessecomeçodos
tempos,oslaçosentreterritório,política,economia,culturaelinguagemeramtransparentes.Nas
sociedades que os antropólogos europeus e norte-americanos orgulhosamente chamaram de
primitivas, a relação entre setores da vida social também se dava diretamente. Não havia
praticamenteintermediações.Poder-se-iaconsiderarqueexistiaumaterritorialidadegenuína.Aeconomiaeacultura
dependiamdoterritório,alinguagemeraumaemanaçãodousodoterritóriopelaeconomiaepela
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cultura,eapolíticatambémestavacomeleintimamenterelacionada.
Havia, por conseguinte, uma territorialidade absoluta, no sentido que, em todas as
manifestaçõesessenciaisdesuaexistência,osmoradorespertenciamàquiloquelhespertencia,isto
é,oterritório.Issocriavaumsentidodeidentidadeentreaspessoaseoseuespaçogeográfico,que
lhesatribuía,emfunçãodaproduçãonecessáriaàsobrevivênciadogrupo,umanoçãoparticularde
limites,acarretando,paralelamente,umacompartimentaçãodoespaço,oquetambémproduziaumaidéiadedomínio.Paramanteraidentidadeeoslimites,eraprecisoterclaraessaidéiadedomínio,de
poder.Apolíticadoterritóriotinhaasmesmasbasesqueapolíticadaeconomia,dacultura,da
linguagem,formandoumconjuntoindissociável.Criava-se,paralelamente,aidéiadecomunidade,um
contextolimitadonoespaço.
Todarelaçãodohomemcomanaturezaéportadoraeprodutoradetécnicasquese
foram enriquecendo, diversificando e avolumando ao longo do tempo. Nos últimos séculos,conhecemosumavançodossistemas técnicos,atéque,noséculoXVIII, surgemas técnicasdas
máquinas,quemaistardevãose incorporaraosolocomopróteses,proporcionandoaohomemum
menoresforçonaprodução,notransporteenascomunicações,mudandoafacedaTerra,alterando
asrelaçõesentrepaíseseentresociedadeseindivíduos.Astécnicasoferecemrespostasàvontade
deevoluçãodoshomense,definidaspelaspossibilidadesquecriam,sãoamarcadecadaperíododa
história.
Avidaassimrealizadapormeiodessastécnicasé,pois,cadavezmenossubordinadaao
aleatórioecadavezmaisexigedoshomenscomportamentosprevisíveis.Essaprevisibilidadede
comportamentoassegura, dealgumamaneira,uma visãomais racionaldomundoe tambémdos
lugaresqueconduzaumaorganizaçãosociotécnicadotrabalho,doterritórioedofenômenodo
poder.Daíodesencantamentoprogressivodomundo.
NoséculoXVIII,aconteceramdoisfenômenosextremamenteimportantes.Uméa
produçãodastécnicasdasmáquinas,querevalorizamotrabalhoeocapital,requalificamos
territórios,permitema conquistadenovosespaçose abremhorizontes paraa humanidade.Esse
séculomarcaoreforçodocapitalismoetambémaentradaemcenadohomemcomoumvaloraser
considerado.Onascimentodatécnicadasmáquinas,oreforçodacondiçãotécnicanavidasociale
individualeasnovasconcepçõessobreohomemsecorporificamcomasidéiasfilosóficasquese
iriamtornarforçasdapolítica.Esteéumoutrodadoimportante.
OséculoXVIIIproduziuosenciclopedistasearevoluçãoamericanaeaRevolução
Francesa,respostaspolíticasàsidéiasfilosóficas.Nummomentoemqueocapitalismotambémse
reforçava,seastécnicashouvessemsidoentreguesinteiramenteàsmãoscapitalistassemque,pelo
outro lado, surgissemas idéias filosóficas (que também eram idéiasmorais), o mundo teria se
organizadodeformadiferente.
Seaoladodessesprogressosdatécnicaaserviçodaproduçãoedocapitalismonão
houvesseaprogressãodas idéias,teríamostidoumaeclosãomuitomaiordoutilitarismo,comuma
práticamaisavassaladoradolucroedaconcorrência.Aocontrário,foiestabelecidaapossibilidadedeenriquecermoralmenteoindivíduo.Amesmaéticaglorificavaoindivíduoresponsáveleacoletividade
responsável.Amboseramresponsáveis.Indivíduoecoletividadeeramchamadosacriarjuntosum
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enriquecimento recíprocoque iria apontarparaa buscadademocracia,porintermédiodoEstado
Nacional, do Estado de Direito e do Estado Social, e para a produção da cidadania plena,
reivindicaçãoquesefoiafirmandoaolongodessesséculos.Certamenteacidadanianuncachegoua
serplena,masquasealcançouesseestágioemcertospaíses,duranteoschamadostrintaanos
gloriososdepoisdofimdaSegundaGuerraMundial.Eessaquaseplenitudeeraparalelaàquase
plenitudedademocracia.Acidadaniaplenaéumdiquecontraocapitalpleno.
Aglobalizaçãomarcaummomentoderupturanesseprocessodeevoluçãosociale
moralquesevinhafazendonos séculosprecedentes.É irônico recordarqueoprogressotécnico
aparecia,desdeosséculosanteriores,comoumacondiçãopararealizaressasonhadaglobalização
comamaiscompletahumanizaçãodavidanoplaneta.Finalmente,quandoesseprogressotécnico
alcançaumnívelsuperior,aglobalizaçãoserealiza,masnãoaserviçodahumanidade.
Aglobalizaçãomataanoçãodesolidariedade,devolveohomemàcondiçãoprimitivadocadaumporsie,comosevoltássemosaseranimaisdaselva,reduzasnoçõesdemoralidade
públicaeparticularaumquasenada.
Operíodoatualtemcomoumadasbasesessecasamentoentreciênciaetécnica,essa
tecnociência,cujousoécondicionadopelomercado.Porconseguinte,trata-sedeumatécnicaede
umaciência seletivas.Como, freqüentemente,a ciênciapassaa produzir aquilo que interessaao
mercado,enãoàhumanidadeemgeral,oprogressotécnicoecientíficonãoésempreumprogresso
moral.Pior,talvez,doqueisso:aausênciadesseprogressomoraletudooqueéfeitoapartirdessa
ausênciavaipesarfortementesobreomodelodeconstruçãohistóricadominantenoúltimoquarteldo
séculoXX.
Essaglobalizaçãotemdeserencaradaapartirdedoisprocessosparalelos.Deumlado,
dá-seaproduçãodeumamaterialidade,ouseja,dascondiçõesmateriaisquenoscercamequesão
abasedaproduçãoeconômica,dostransportesedascomunicações.Deoutroháaproduçãode
novasrelaçõessociaisentrepaíses,classesepessoas.Anovasituação,conforme jáacentuamos,
vaisealicerçaremduascolunascentrais.Umatemcomobaseodinheiroeaoutrasefundana
informação. Dentro de cada país, sobretudo entre os mais pobres, informação e dinheiro
mundializadosacabamporseimporcomoalgoautônomofaceàsociedadee,mesmo,àeconomia,
tornando-seumelementofundamentaldaprodução,eaomesmotempodageopolítica,istoé,das
relaçõesentrepaísesedentrodecadanação.
Ainformaçãoécentralizadanasmãosdeumnúmeroextremamentelimitadodefirmas.
Hoje,oessencialdoquenomundoselê,tantoemjornaiscomoemlivros,éproduzidoapartirde
meia dúzia de empresas que, na realidade, não transmitemnovidades, mas as reescrevem de
maneira específica. Apesar de as condições técnicas da informação permitirem que toda a
humanidadeconheçatudoqueomundoé,acabamosnarealidadepornãosabê-lo,porcausadessa
intermediaçãodeformante.
O mundose torna fluido, graças à informação, mas tambémao dinheiro. Todosos
contextosseintrometemesuperpõem,corporificandoumcontextoglobal,noqualasfronteirassetornamporosasparaodinheiroeparaainformação.Alémdisso,oterritóriodeixadeterfronteiras
rígidas,oquelevaaoenfraquecimentoeàmudançadenaturezadosEstadosnacionais.
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Odiscursoqueouvimostodososdias,paranosfazercrerquedevehavermenos
Estado,vale-sedessamencionadaporosidade,massuabaseessencialéofatodequeos
condutoresdaglobalizaçãonecessitamdeumEstadoflexívelaseusinteresses.Asprivatizaçõessão
amostradequeocapitalsetornoudevorante,gulosoaoextremo,exigindosempremais,querendo
tudo.Alémdisso,ainstalaçãodessescapitaisglobalizadossupõequeoterritórioseadapteàssuas
necessidadesdefluidez,investindopesadamenteparaalterarageografiadasregiõesescolhidas.Detalforma,oEstadoacabaportermenosrecursosparatudooqueésocial,sobretudonocasodas
privatizaçõescaricatas,comonomodelobrasileiro,quefinanciaasempresasestrangeirascandidatas
àcompradocapitalsocialnacional.NãoéqueoEstadoseausenteousetornemenor.Eleapenasse
omitequantoaointeressedaspopulaçõesesetornamaisforte,maiságil,maispresente,aoserviço
daeconomiadominante.
Apolíticaagoraé feitanomercado.Sóqueessemercadoglobalnãoexistecomoator,mas como uma ideologia, um símbolo. Os atores são as empresas globais, que não têm
preocupaçõeséticas,nemfinalísticas.Dir-se-áque,nomundodacompetitividade,ouseécadavez
maisindividualista,ousedesaparece.Então,apróprialógicadesobrevivênciadaempresaglobal
sugerequefuncionesemnenhumaltruísmo.Mas,seoEstadonãopodesersolidárioeaempresa
nãopodeseraltruísta,asociedadecomoumtodonãotemquemavalha.Agorasefalamuitonum
terceirosetor,emque asempresasprivadasassumiriam um trabalhodeassistênciasocial antes
deferidoaopoderpúblico.Caber-lhes-ia,dessemodo,escolherquaisosbeneficiários,privilegiando
umaparceladasociedadeedeixandoamaiorpartedefora.Haveriafraçõesdoterritórioeda
sociedadeaseremdeixadasporconta,desdequenãoconvenhamaocálculodasfirmas.Essa
“política”dasempresaseqüivaleàdecretaçãodemortedaPolítica.
Apolítica,pordefinição,ésempreamplaesupõeumavisãodeconjunto.Elaapenasse
realizaquandoexisteaconsideraçãodetodosedetudo.Quemnãotemvisãodeconjuntonãochega
aserpolítico.Enãohápolíticaapenasparaospobres,comonãoháapenasparaosricos.A
eliminaçãodapobrezaéumproblemaestrutural.Foradaíoquesepretendeéencontrarformasde
proteçãoacertospobresecertosricos,escolhidossegundoosinteressesdosdoadores.Masa
políticatemdecuidardoconjuntoderealidadesedoconjuntoderelações.
Nascondiçõesatuais,edeummodogeral,estamosassistindoànão-política,istoé,à
políticafeitapelasempresas,sobretudoasmaiores.Quandoumagrandeempresaseinstala,chega
comsuasnormas,quasetodasextremamenterígidas.Comoessasnormasrígidassãoassociadasao
usoconsideradoadequadodastécnicascorrespondentes,omundodasnormasseadensaporqueas
técnicasemsimesmastambémsãonormas.Pelofatodequeastécnicasatuaissãosolidárias,
quandoumaseimpõecria-seanecessidadedetrazeroutras,semasquaisaquelanãofuncionabem.
Cada técnica propõe uma maneira particular de comportamento, envolve suas próprias
regulamentaçõese,porconseguinte,trazparaoslugaresnovasformasderelacionamento.Omesmo
sedácomasempresas.Éassimquetambémsealteramasrelaçõessociaisdentrodecada
comunidade.Muda a estruturadoemprego,assimcomo asoutrasrelaçõeseconômicas,sociais,culturaisemoraisdentrodecadalugar,afetandoigualmenteoorçamentopúblico,tantonarubricada
receitacomonocapítulodadespesa.Umpequenonúmerodegrandesempresasqueseinstala
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acarretaparaasociedadecomoumtodoumpesadoprocessodedesequilíbrio.
Todavia,medianteodiscursooficial, taisempresassãoapresentadascomosalvadoras
doslugaresesãoapontadascomocredorasdereconhecimentopelosseusaportesdeempregoe
modernidade.Daíacrençadesuaindispensabilidade, fatordapresenteguerraentrelugarese,em
muitoscasos,desuaatitudedechantagemfrenteaopoderpúblico,ameaçandoiremboraquando
não atendidas em seus reclamos. Assim, o poder público passa a ser subordinado, compelido,arrastado. À medida que se impõeesse nexo dasgrandes empresas, instala-se a semente da
ingovernabilidade, já fortemente implantada no Brasil, ainda que sua dimensão não tenha sido
adequadamenteavaliada.Àmedidaqueosinstitutosencarregadosdecuidardointeressegeralsão
enfraquecidos,comoabandonodanoçãoedapráticadasolidariedade,estamos,pelomenosa
médioprazo,produzindoasprecondiçõesdafragmentaçãodadesordem,claramentevisíveisnopaís,
pormeiodocomportamento dos territórios, isto é,dacrisepraticamentegeraldos estadose dos
municípios.
Os países subdesenvolvidos conheceram pelo menos três formas de pobreza e,
paralelamente, três formas de dívida social, no último meio século. A primeira seria o que
ousadamentechamaremosdepobrezaincluída ,umapobrezaacidental,àsvezesresidualousazonal,
produzida em certos momentos do ano, uma pobreza intersticial e, sobretudo, sem vasos
comunicantes
Depoischegaumaoutra,reconhecidaeestudadacomoumadoençadacivilização.
Entãochamadademarginalidade ,talpobrezaeraproduzidapeloprocessoeconômicodadivisãodo
trabalho,internacionalouinterna.Admitia-sequepoderiasercorrigida,oqueerabuscadopelasmãos
dosgovernos.
Eagorachegamosaoterceirotipo,apobrezaestrutural,quedeumpontodevistamoral
epolíticoeqüivaleaumadívidasocial.Elaéestruturalenãomaislocal,nemmesmonacional;torna-
seglobalizada,presenteemtodaapartedomundo.Háumadisseminaçãoplanetáriaeumaprodução
globalizadadapobreza,aindaqueestejamaispresentenospaísesjápobres.Masétambémuma
produçãocientífica,portantovoluntáriadadívidasocial,paraaqual,namaiorpartedoplaneta,nãose
buscamremédios.
Antes,assituaçõesdepobrezapodiamserdefinidascomoreveladorasdeumapobreza
acidental,residual,estacional,intersticial,vistacomodesadaptaçãolocalaosprocessosmaisgerais
demudança,oucomoinadaptaçãoentrecondiçõesnaturaisecondiçõessociais.Eraumapobreza
queseproduzianumlugarenãosecomunicavaaoutrolugar.
Então,nemacidade,nemoterritório,nemaprópriasociedadeeramexclusivaou
majoritariamente movidos por driving forces compreendidas pelo processo de racionalização. A
presençadastécnicas,coladasaoterritórioouinerentesàvidasocial,erarelativamentepoucoexpressiva,reduzindo,assim,aeficáciadosprocessosracionalizadoresporventuravigentesnavida
econômica,cultural,social,epolítica.Dessemodo,a racionalidadedaexistêncianãoconstituíaum
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dadoessencialdoprocessohistórico,limitando-seaalgunsaspectosisoladosdasociabilidade.A
produçãodapobrezairiabuscarsuascausasemoutrosfatores.
Na situação que estamos descrevendo, as soluções ao problema eram privadas,
assistencialistas,locais,eapobrezaerafreqüentementeapresentadacomoumacidentenaturalou
social.Emummundoondeoconsumoaindanãoconstituíaumnexosocialobrigatório,apobrezaera
menosdiscriminatória.Daípoder-sefalardepobresincluídos.
Numsegundomomento,apobrezaéidentificadacomoumadoençadacivilização,cuja
produçãoacompanhaopróprioprocessoeconômico.Agora,oconsumoseimpõecomoumdado
importante,poisconstituiocentrodaexplicaçãodasdiferençasedapercepçãodassituações.Dois
fatoresjogamumpapelfundamental.Ampliam-se,deumlado,aspossibilidadesdecirculação,ede
outro,graçasàsformasmodernasdedifusãodasinovações,ainformaçãoconstituiumdado
revolucionárionasrelaçõessociais.Oradiotransistoreraograndesímbolo.Aampliaçãodoconsumoganha,assim,ascondiçõesmateriaisepsicológicasnecessárias,dandoàpobrezanovosconteúdos
e novasdefinições. Além dapobrezaabsoluta, cria-se e recria-se incessantemente uma pobreza
relativa,quelevaaclassificarosindivíduospelasuacapacidadedeconsumir,epelaformacomoo
fazem.Oestabelecimentode“índices”depobrezaemisériautilizaessescomponentes.
Aindanessesegundomomento,quecoincidecomageneralizaçãoeosucessodaidéia
desubdesenvolvimentoedasteoriasdestinadasacombatê-lo,ospobreseramchamadosde
marginais. Para superar tal situação, considerada indesejável, torna-se, também, generalizada a
preocupaçãodosgovernosedassociedadesnacionais,pormeiodesuaselitesintelectuaise
políticas,como fenômenodapobreza,oque levaa umabuscadesoluçõesdeEstadoparaesse
problema,consideradogravemasnãoinsolúvel.Oêxitodoestadodobem-estaremtantospaísesda
Europaocidentaleanotíciadaspreocupaçõesdospaísessocialistasparacomapopulaçãoemgeral
funcionavamcominspiraçãoaospaísespobres,todoscomprometidos,aomenos ideologicamente,
comalutacontraapobrezae suasmanifestações,aindaquenão lhes fossepossívelalcançara
realizaçãodoestadodebem-estar.Mesmoempaísescomoonosso,opoderpúblicoéforçadoa
encontrarfórmulas, saídas, arremedos desolução.Havia uma certavergonha denãoenfrentara
questão.
O último período, noqual nos encontramos, revela uma pobreza denovo tipo, uma
pobrezaestruturalglobalizada,resultantedeumsistemadeaçãodeliberada.Examinandooprocesso
peloqualodesempregoégeradoearemuneraçãodoempregosetornacadavezpior,aomesmo
tempoemqueopoderpúblicoseretiradastarefasdeproteçãosocial,élícitoconsiderarqueaatual
divisão“administrativa”dotrabalhoeaausênciadeliberadadoEstadodesuamissãosocialde
regulaçãoestejamcontribuindoparaumaproduçãocientífica,globalizadaevoluntáriadapobreza.
Agora,ao contrário dasduas fases anteriores, trata-se deumapobrezapervasiva, generalizada,permanente,global.Pode-se,dealgummodo,admitiraexistênciadealgocomoumplanejamento
centralizadodapobrezaatual:aindaqueseusautoressejammuitos,oseumotoressencialéo
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mesmodosoutrosprocessosdefinidoresdenossaépoca.
A pobreza atual resulta daconvergência decausas que sedão emdiversosníveis,
existindocomovasoscomunicantesecomoalgoracional,umresultadonecessáriodopresente
processo,umfenômenoinevitável,consideradoatémesmoumfatonatural.
Alcançamos,assim,umaespéciedenaturalizaçãodapobreza,queseriapoliticamente
produzida pelos atores globais com a colaboração consciente dos governos nacionais e,contrariamenteàssituaçõesprecedentes,comaconvivênciadeintelectuaiscontratados–ouapenas
contratados–paralegitimaressanaturalização.
Nessaúltima fase,ospobresnãosão incluídosnemmarginais,elessãoexcluídos.A
divisãodotrabalhoera,atérecentemente,algomaisoumenosespontâneo.Agoranão.Hoje,ela
obedeceacânonescientíficos–porissoaconsideramosumadivisãodotrabalhoadministrada–eé
movidaporummecanismosquetrazconsigoaproduçãodasdívidassociaiseadisseminaçãoda
pobrezanumaescalaglobal.Saímosdeumapobrezaparaentraremoutra.Deixa-sedeserpobreem
umlugarparaserpobreemoutro.Nascondiçõesatuais,éumapobrezaquasesemremédio,trazida
nãoapenaspelaexpansãododesemprego,como,também,pelareduçãodovalordotrabalho.Éocaso,porexemplo,dosEstadosUnidos,apresentadocomoopaísquetemresolvidoumpouco
menosmalaquestãododesemprego,masondeovalormédiodosaláriocaiu.Eessaquedado
desempregonãoatingeigualmentetodaapopulação,porqueosnegroscontinuamsememprego,em
proporçãotalvezpiordoqueantes,easpopulaçõesdeorigemlatinaseencontramnabasedaescala
salarial.
Essaproduçãomaciçadapobrezaaparececomoumfenômenobanal.Umadasgrande
diferençasdopontodevistaéticoéqueapobrezadeagorasurge,impõe-seeexplica-secomoalgo
naturaleinevitável.Maséumapobrezaproduzidapoliticamentepelasempresaseinstituições
globais.Estas,deumlado,pagamparacriarsoluçõeslocalizadas,parcializadas,segmentadas,como
éocasodoBancoMundial,que,emdiferentespartesdomundo,financiaprogramasdeatençãoaos
pobres,querendopassaraimpressãodeseinteressarpelosdesvalidos,quando,estruturalmente,éo
grande produtor da pobreza. Acatam-se, funcionalmente, manifestações da pobreza, enquanto
estruturalmentesecriaapobrezaaoníveldomundo.Eissosedácomacolaboraçãopassivaouativa
dosgovernosnacionais.
Vejam,então,adiferençaentreousodapalavrapobrezaedaexpressãodívidasocial
nessescinqüentaanos.Ospobres,istoé,aquelesquesãooobjetodadívidasocial,foramjá
incluídos e,depois,marginalizados ,eacabamporseroquehojesão,istoé,excluídos .Estaexclusão
atual,comaproduçãodedívidassociais,obedeceaumprocessoracional,umaracionalidadesem
razão,masquecomandaasaçõeshegemônicasearrastaasdemaisações.Osexcluídossãoofruto
dessaracionalidade.Poraísevêqueaquestãocapitaléoentendimentodonossotempo,semoqual
seráimpossívelconstruirodiscursodaliberação.Este,desdequesejasimpleseveraz,poderásera
baseintelectualdapolítica.Eissoécentralnomundodehoje,ummundonoqualnadadeimportante
sefazsemdiscurso.
Oterrívelé que,nessemundodehoje,aumentaonúmerodeletradosediminuiode
intelectuais. Não é este um dos dramas atuais da sociedade brasileira? Tais letrados,
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equivocadamente assimilados aos intelectuais, ou não pensam para encontrar a verdade, ou,
encontrandoaverdade,nãoadizem.Nessecaso,nãosepodemencontrarcomofuturo,renegandoa
funçãoprincipaldaintelectualidade,istoé,ocasamentopermanentecomoporvir,pormeiodabusca
incansadadaverdade.
Assim como o território é hoje um território nacional da economia internacional (M.
Santos, Anaturezadoespaço ,1996),apobreza,hoje,éapobrezanacionaldaordeminternacional.Essarealidadeobrigaadiscutiralgumasdassoluçõespropostasparaoproblema,como,por
exemplo,quandoseimaginapodercompensarumapolíticaneoliberalnoplanonacionalcoma
possibilidadedeumapolíticasocialnoplanosubnacional.Nocasobrasileiro,élamentávelque
políticosepartidosditosdeesquerdaseentreguemaumapolíticadedireita,jogandoparaumladoa
buscadesoluçõesestruturaiselimitando-seaproporpaliativos,quenãosãoverdadeiramente
transformadoresdasociedade,porqueserãoinócuos,nomédioenolongoprazos.Aschamadas
políticaspúblicas,quandoexistentes,nãopodemsubstituirapolíticasocial,consideradaumelenco
coerentecomasdemaispolíticas(econômica,territorialetc.).
Nãosetrata,pois,dedeixaraosníveisinferioresdegoverno–municípios,estados–abuscadepolíticascompensatórias paraaliviar as conseqüênciasdapobreza,enquanto, aonível
federal,asaçõesmaisdinâmicasestãoorientadascadavezmaisparaaproduçãodepobreza.O
desejável seriaque,a partirdeumavisãode conjunto,houvesse redistribuiçãodospoderese de
recursosentrediversasesferaspolítico-administrativasdopoder,assimcomoumaredistribuiçãodas
prerrogativasetarefasentreasdiversasescalasterritoriais,atémesmocomareformulaçãoda
federação.Mas,paraisso,énecessáriohaverumprojetonacional,eestenãopodeseruma
formulaçãoautomaticamentederivadadoprojetohegemônicoe limitativodaglobalizaçãoatual.Ao
contrário,partindodasrealidadesedasnecessidadesdecadanação,devenãosóentendê-las,como
tambémconstituirumapromessadereformulaçãodaprópriaordemmundial.
Nascondiçõesatuais,umgrandecomplicadorvemdofatodequeaglobalizaçãoé
freqüentementeconsideradaumafatalidade,baseadanumexageradoencantamentopelastécnicas
de ponta e comnegligência quanto ao fator nacional, deixando-se de lado o papel do território
utilizadopelasociedadecomoumseuretratodinâmico.Talvisãodomundo,umaespéciedevoltaà
velhanoçãodetechnologicalfix (umaúnicatecnologiaeficaz),acabaporconsagraraadoçãodeum
pontodepartidafechadoeporaceitarcomoindiscutívele inelutáveloreinodanecessidade,coma
mortedaesperançaedagenerosidade.Exclusãoedívidasocialaparecemcomosefossemalgofixo,
imutável,indeclinável,quando,comoqualqueroutraordem,podesersubstituídaporumaordemmais
humana.
Dequemaneiraaglobalizaçãoafetaasoberaniadasnações,asfronteirasdospaísese
agovernabilidadeplenaéumaquestãoque,voltaemeia,ocupaosespíritos,sejateoricamente,seja
emfunçãodefatosconcretos.Nesseterreno,comoemmuitosoutros,aproduçãodemeias-verdades
éinfinitaesomosfreqüentementeconvocadosarepeti-lassemmaioranálisedoproblema.Há,
mesmo,quemsearrisqueafalardedesterritorialidade,fimdasfronteiras,mortedoEstado.Háosotimistasepessimistas,osdefensoreseosacusadores.
TomemosocasoparticulardoBrasilparadiscutirmaisdepertoessaquestão,aindaque
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nossarealidadeseaparenteàdemuitosoutrospaísesdoplaneta.Comaglobalização,oquetemosé
um território nacional daeconomia internacional, istoé, o território continua existindo, asnormas
públicasqueoregemsãodaalçadanacional,aindaqueasforçasmaisativasdoseudinamismoatual
tenhamorigemexterna.Emoutraspalavras, a contradiçãoentreo externoe o internoaumentou.
Todavia,éoEstadonacional,emúltimaanálise,quedetémomonopóliodasnormas,semasquais
os poderosos fatores externos perdemeficácia. Sem dúvida, a noção de soberania tevede serrevista, faceaossistemas transgressores de âmbito planetário, cujo exercício violento acentuaa
porosidadedasfronteiras.Estes,são,sobretudo,ainformaçãoeafinança,cujaafluidezsemultiplica
graçasàsmaravilhasdatécnicacontemporânea.Maséumequívocopensarqueainformaçãoea
finança exercem sempre sua força sem encontrar contrapartida interna. Esta depende de uma
vontadepolíticainterior,capazdeevitarqueainfluênciadosditosfatoressejaabsoluta.
Aocontráriodoqueserepeteimpunemente,oEstadocontinuaforteeaprovadissoé
quenemasempresastransnacionais,nemasinstituiçõessupranacionaisdispõemdeforçanormativa
paraimpor,sozinhas,dentrodecadaterritório,suavontadepolíticaoueconômica.Porintermédiode
suas normas deprodução, de trabalho, de financiamento e decooperaçãocomoutras firmas, asempresastransnacionaisarrastamoutrasempresaseinstituiçõesdoslugaresondeseinstalam,
impondo-lhescomportamentoscompatíveiscomseusinteresses.Masavidadeumaempresavai
alémdomero processo técnico deproduçãoe alcança todoo entorno, a começar pelo próprio
mercadoeincluindotambémasinfra-estruturasgeográficasdeapoio,semoqueelanãopodeter
êxito.ÉoEstadonacionalque,afinal,regulaomundofinanceiroeconstróiinfra-estruturas,atribuindo,
assim,agrandesempresasescolhidasacondiçãodesuaviabilidade.Omesmopodeserditodas
instituiçõessupranacionais(FMI,BancoMundial,NaçõesUnidas,OrganizaçãoMundialdoComércio),
cujoseditosourecomendaçõesnecessitamdedecisõesinternasacadapaísparaquetenham
eficácia. O Banco Central é, freqüentemente, essa correia de transmissão (situada acima do
Parlamento)entreumavontadepolíticaexternaeumaausênciadevontadeinterior.Porisso,tornou-
secorriqueiroentregaradireçãodessesbancoscentraisapersonagensmaiscomprometidascomos
postuladosideológicosdafinançainternacionaldoquecomosinteressesconcretosdassociedades
nacionais.
Masacessãodesoberanianãoéalgonatural, inelutável,automático,poisdependeda
formacomoogovernodecadapaísdecidefazersuainserçãonomundodachamadaglobalização.
OEstadoalterasuasregrase feiçõesnum jogocombinadodeinfluênciasexternase
realidadesinternas.Masnãoháapenasumcaminhoeestenãoéobrigatoriamenteodapassividade.
Porconseguinte,nãoéverdadequeaglobalizaçãoimpeçaaconstituiçãodeumprojetonacional.
Semisso,osgovernosficamàmercêdeexigênciasexternas,pormaisdescabidasquesejam.Este
pareceserocasodoBrasilatual.Cremos,todavia,quesempreétempodecorrigirosrumos
equivocadose,mesmonummundoglobalizado,fazertriunfarosinteressesdanação.
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No mundo da globalização, o espaço geográfico ganha novos contornos, novas
características,novasdefinições.E,também,umanovaimportância,porqueaeficáciadasaçõesestá
estreitamenterelacionadacomasualocalização.Osatoresmaispoderosossereservamosmelhores
pedaçosdoterritórioedeixamorestoparaosoutros.
Numa situação de extremacompetitividade como esta em que vivemos, os lugaresrepercutemosembatesentreosdiversosatoreseoterritóriocomoumtodorevelaosmovimentosde
fundodasociedade. Aglobalização, comaproeminência dos sistemas técnicoseda informação,
subverteoantigojogodaevoluçãoterritorialeimpõenovaslógicas.
Os territórios tendema uma compartimentaçãogeneralizada,ondeseassociame se
chocamomovimentogeraldasociedadeplanetáriaeomovimentoparticulardecadafração,regional
oulocal,dasociedadenacional.Essesmovimentossãoparalelosaumprocessodefragmentação
que rouba às coletividades o comandodo seu destino, enquanto os novos atores também não
dispõemdeinstrumentosderegulaçãoqueinteressemàsociedadeemseuconjunto.Aagricultura
moderna,cientifizadaemundializada,talcomoaassistimossedesenvolverempaísescomooBrasil,constituiumexemplodessatendênciaeumdadoessencialaoentendimentodoquenopaís
constituemacompartimentaçãoeafragmentaçãoatuaisdoterritório.
Outrofenômenoalevaremcontaéopapeldasfinançasnareestruturaçãodoespaço
geográfico.Odinheirousurpaemseufavorasperspectivasdefluidezdoterritório,buscando
conformarsobseucomandoasoutrasatividades.
Masoterritórionãoéumdadoneutronemumatorpassivo.Produz-seumaverdadeira
esquizofrenia, já que os lugares escolhidos acolhem e beneficiam osvetores da racionalidade
dominantemas tambémpermitema emergência deoutras formas devida.Essaesquizofreniado
territórioedolugartemumpapelativonaformaçãodaconsciência.Oespaçogeográficonãoapenas
revelaotranscursodahistóriacomoindicaaseusatoresomododenelaintervirdemaneira
consciente.
Aolongodahistóriahumana,olhadooplanetacomoumtodoouobservadoatravésdos
continentesepaíses,oespaçogeográficosemprefoiobjetodeumacompartimentação.Nocomeço
haviailhasdeocupaçãodevidasàpresençadegrupos,tribos,nações,cujosespaçosdevidaformariamverdadeirosarquipélagos.Aolongodotempoeàmedidadoaumentodaspopulaçõesedo
intercâmbio,essatramafoi setornandocadavezmaisdensa.Hoje,comaglobalização, pode-se
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dizerqueatotalidadedasuperfíciedaTerraé compartimentada,nãoapenaspelaaçãodiretado
homem,mastambémpelasuapresençapolítica.Nenhumafraçãodoplanetaescapaaessa
influência.Dessemodo,avelhanoçãodeecúmenoperdeaantigadefiniçãoeganhaumanova
dimensão;tantosepodedizer quetodaasuperfíciedaTerrasetornouecúmenoquantosepode
afirmarqueessapalavrajánãoseaplicaapenasaoplanetaefetivamentehabitado.Coma
globalização,todoequalquerpedaçodasuperfíciedaTerrasetornafuncionalàsnecessidades,usoseapetitesdeEstadoseempresasnestafasedahistória.
Dessemodo,asuperfíciedaTerraéinteiramentecompartimentadaeorespectivo
caleidoscópioseapresentasemsoluçãodecontinuidade.Redefinidaem funçãodoscaracterísticos
deumaépoca,acompartimentaçãoatualdistingue-sedaqueladopassadoefreqüentementesedá
comofragmentação.Seuconteúdoedefiniçãovariamatravésdostempos,massemprerevelamum
cotidianocompartidoecomplementaraindaquetambémconflitivoehierárquico,umacontecer
solidárioidentificadocomomeio,aindaquesemexcluirrelaçõesdistantes.Talsolidariedadeetal
identificaçãoconstituemagarantiadeumapossívelregulaçãointerna.Jáafragmentaçãorevelaum
cotidianoemqueháparâmetrosexógenos,semreferênciaaomeio.Aassimetrianaevoluçãodasdiversasparteseadificuldadeoumesmoaimpossibilidadederegulação,tantointernaquanto
externa,constituemumacaracterísticamarcante.
Até recentemente, a humanidade vivia o mundo da lentidão, no qual a prática de
velocidades diferentes não separava os respectivos agentes. Eram ritmos diversos, mas não
incompatíveis.Dentrodecadaárea,oscompartimentoseramsoldadosporregras,aindaquenão
houvessecontigüidadeentreeles.Omesmopodeserditoemrelaçãoaoquesepassavanaescala
internacional.Omelhorexemplo,desdeoúltimoquarteldoséculoXIX,éodaconstituiçãodos
impérios,fundadocadaqualnumabasetécnicadiferente,oquenãoimpediaasuacoexistência,nem
apossibilidadedecooperaçãonadiferença.Duranteumséculoconviveramimpérioscomoo
britânico, portador das técnicas mais avançadas da produção material, dos transportes, das
comunicaçõesedodinheiro,comimpériosdessepontodevistamenosavançados,porexemploo
impérioportuguêsouoimpérioespanhol.Pode-sedizerqueapolíticacompensavaadiversidadeea
diferenciaçãodopodertécnicooudopodereconômico,assegurando,aomesmotempo,aordem
internaacadaumdesses impérioseaordeminternacional.Por intermédiodapolítica, cadapaís
imperialregulavaaproduçãoprópriaeadassuascolônias,ocomércioentreestaseosoutros
países,ofluxodeprodutos,mercadoriasepessoas,ovalordodinheiroeasformasdegoverno.O
famosopactocolonialacabavaporcompreendertodasasmanifestaçõesdavidahistóricaeos
equilíbrios no interior de cada império se davam paralelamente ao equilíbrio entre as nações
imperiais.Dealgummodo,aordeminternacionaleraproduzidapormeiodapolíticadosEstados.
Dentrodecadapaís,acompartimentaçãoeasolidariedadepresumiamapresençadecertas
condições,todaspraticamenterelacionadascomoterritório:umaeconomiaterritorial,umacultura
territorial,regidasporregras,igualmenteterritorializadas,naformadeleisedetratados,mastambém
decostumes.Por meio da regulação, a compartimentação dos territórios, na escala nacional e
internacional,permitequesejamneutralizadasdiferençasemesmoasoposiçõessejampacificadas,
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medianteumprocessopolíticoqueserenova,adaptando-seàsrealidadesemergentesparatambém
renovar,dessemodo,asolidariedade.
Noplanointernacional,esseprocessocumulativodeadaptaçõeslevaàsmodificações
doestatutocolonial,aceleradascomofimdaSegundaGuerraMundial.Noplanointerno,abuscade
solidariedade conduz ao enriquecimento dos direitos sociais com a instalação de diferentes
modalidadesdedemocraciasocial.
Hoje,vivemosummundodarapidezedafluidez.Trata-sedeumafluidezvirtual,
possívelpelapresençadosnovossistemastécnicos,sobretudoossistemasdainformação,edeuma
fluidezefetiva,realizadaquandoessafluidezpotencialéutilizadanoexercíciodaação,pelas
empresaseinstituiçõeshegemônicas.Afluidezpotencialaparecenoimaginárioenaideologiacomo
sefosseumbemcomum,umafluidezparatodos,quando,naverdade,apenasalgunsagentestêma
possibilidadedeutiliza-la,tornando-se,dessemodo,osdetentoresefetivosdavelocidade.Oexercíciodestaé,pois,oresultadodadisponibilidadesmateriaisetécnicasexistentesedaspossibilidadesde
ação.Assim,omundodarapidezedafluidezsomenteseentendeapartirdeumprocessoconjunto
noqual participamdeum ladoas técnicas atuaise,de outro,a política atual, sendoque estaé
empreendidatantopelasinstituiçõespúblicas,nacionais,intranacionaiseinternacionais,comopelas
empresasprivadas.
Asatuaiscompartimentaçõesdosterritóriosganhamessenovoingrediente.Criam-se,
paralelamente, incompatibilidades entre velocidades diversas; e os portadores das velocidades
extremas buscam induzir os demais atores a acompanhá-los, procurando disseminar as infra-
estruturas necessárias à desejada fluidez nos lugares que consideram necessários para a sua
atividade.Há,todavia,sempre,umaseletividadenessadifusão,separandoosespaçosdapressa
daquelesoutrospropíciosàlentidão,edessaformaacrescentandoaoprocessodecompartimentação
nexosverticaisquesesuperpõemàcompartimentaçãohorizontal,característicadahistóriahumana
atédatarecente.Ofenômenoégeral,jáque,conformevimosantes,tudohojeestácompartimentado;
incluindotodaasuperfíciedoplaneta.
Épormeiodessaslinhasdemenorresistênciae,porconseguinte,demaiorfluidez,que
omercadoglobalizadoprocurainstalarasuavocaçãodeexpansão,medianteprocessosquelevamà
buscada unificaçãoenãopropriamenteàbuscadaunião.Ochamadomercadoglobalseimpõe
comorazãoprincipaldaconstituiçãodessesespaçosdafluideze,logo,dasuautilização,impondo,
pormeiodetaislugares,umfuncionamentoquereproduzassuasprópriasbases(JohnGray, Falso
amanhecer, os equívocos do capitalismo , 1999), a começar pela competitividade. A literatura
apologéticadaglobalizaçãofaladecompetitividadeentreEstados,mas,naverdade,trata-sede
competitividadeentreempresas,que,àsvezes,arrastamoEstadoesuaforçanormativanaprodução
decondiçõesfavoráveisàquelasdotadasdemaispoder.Édessaformaquesepotencializaa
vocação de rapidez e de urgência de algumas empresas em detrimento de outras, uma
competitividadequeagravaasdiferençasdeforçaeasdisparidades,enquantooterritório,pelasua
organização,constitui-senuminstrumentodoexercíciodessasdiferençasdepoder.Cada empresa, porém, utiliza o território em função dos seus fins próprios e
exclusivamenteemfunçãodessesfins.Asempresasapenastêmolhosparaosseuspróprios
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objetivosesãocegasparatudoomais.Dessemodo,quantomaisracionaisforemasregrasdesua
ação individual tantomenos taisregrasserão respeitosasdo entorno econômico, social, político,
cultural,moralougeográfico,funcionando,asmaisdasvezes,comoumelementodepertubaçãoe
mesmo de desordem. Nesse movimento, tudo que existia anteriormente à instalação dessas
empresashegemônicaseconvidadoaadaptar-seàssuasformasdeseredeagir,mesmoque
provoque,noentornopreexistente,grandesdistorções,inclusiveaquebradasolidariedadesocial.
Pode-sedizerentãoque,emúltimaanálise,acompetitividadeacabapordestroçaras
antigassolidariedades,freqüentementehorizontais,eporimporumasolidariedadevertical,cujo
epicentroéaempresahegemônica,localmenteobedienteainteressesglobaismaispoderosose,
desse modo, indiferente ao entorno. As solidariedades horizontais preexistentes refaziam-se
historicamenteapartirdeumdebateinterno,levandoaajustesinspiradosnavontadedereconstruir,
emnovostermos,aprópriasolidariedadehorizontal.Jáagora,asolidariedadeverticalqueseimpõeexcluiqualquerdebatelocaleficaz,jáqueasempresashegemônicastêmapenasdoiscaminhos:
permanecerparaexercerplenamenteseusobjetivosindividualistasouretirar-se.
Comocadaempresahegemônicanoobjetivodesemantercomotaldeverealçartais
interessesindividuais,suaaçãoéraramentecoordenadacomadeoutras,oucomopoderpúblico,e
taldescoordenaçãoagravaadesorganização,istoé,reduzaspossibilidadesdoexercíciodeuma
buscadesentidoparaavidalocal.
Cadaempresahegemônicaagesobreumaparceladoterritório.Oterritóriocomoum
todoéobjetodaaçãodeváriasempresas,cadaqual,conformejávimos,preocupadacomsuas
própriasmetasearrastando,apartirdessasmetas,ocomportamentodorestodasempresase
instituições.Querestaentãodanaçãodiantedessanovarealidade?Comoanaçãoseexercediante
daverdadeirafragmentaçãodoterritório,funçãodasformascontemporâneasdeaçãodasempresas
hegemônicas?
A palavra fragmentação impõe-se com toda força porque, nas condições acima
descristas,nãoháregulaçãopossívelouestaapenasconsagraalgunsatoreseestes,enquanto
produzemumaordememcausaprópria,criam,paralelamente,desordemparatudoomais.Como
essaordemdesordeira églobal,inerenteaopróprioprocessoprodutivodaglobalizaçãoatual,elanão
temlimites;masnãotemlimitesporquetambémnãotemfinalidadee,dessemodo,nenhuma
regulaçãoé possível, porque não desejada. Esse novopoder das grandesempresas, cegamente
exercido,é,pornatureza,desagregador,excludente,fragmentador,seqüestrandoautonomiaaoresto
dosatores.
Osfragmentos resultantesdesseprocessoarticulam-seexternamentesegundo lógicas
duplamenteestranhas:porsuasededistante,longínquaquantoaoespaçodaação,epelasua
inconformidadecomosentidopreexistentedavidanaáreaemqueseinstala.Dessemodo,produz-
seumaverdadeiraalienaçãoterritorialàqualcorrespondemoutrasformasdealienação.
Dentrodeummesmopaíssecriamformaseritmosdiferentesdeevolução,governados
pelasmetasedestinosespecíficosdecadaempresahegemônica,quearrastamcomsuapresençaoutrosatoressociais,medianteaaceitaçãooumesmoaelaboraçãodediscursos“nacionais-
regionais”alienígenasoualienados.
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Outrareaçãoconduzàelaboraçãoparaleladediscursosreativosdotadosdeconteúdo
específicoedestinadosa mostrarinconformidadecomasformasvigentesdeinserçãono“mundo”.
Criam-se, em certos casos, novas soberanias, como, por exemplo, na antiga Iugoslávia, ou
autonomias ampliadas, entronizando o que se poderiam chamar regiões-países ,cujoexemplo
emblemáticonosvemdaEspanha.Comoresolverquestãodedentrodeummesmopaís,quandoo
passadonãoofereceucomoherançaconjuntaaexistênciadeculturasparticularessolidamenteestabelecidas,juntoaumavontadepolíticaregionaljáexercidacomopoder?
Esseproblemasetornamaisagudonamedidaemqueascompartimentaçõesatuaisdo
territórionãosãoenxergadascomofragmentação.Issosedá,geralmente,quandoainterpretaçãodo
fatonacionaléentregueavisõesaparentementetotalizantes,masnarealidadeparticularistas,como
certosenfoquesdaeconomiae,mesmo,daciênciapolítica,quenãoseapropriamdanoçãodo
território consideradocomo território usado e visto, desse modo, como estrutura dotada de um
movimentopróprio.Émelhorfazeranaçãoporintermédiodoseuterritório,porqueneletudooqueé
vidaestárepresentado.
Desdeoprincípiodostempos,aagriculturacomparececomoumaatividadereveladora
dasrelaçõesprofundasentreassociedadeshumanaseoseuentorno.Nocomeçodahistóriatais
relaçõeseram,abemdizer,entreosgruposhumanoseanatureza.Oavançodacivilizaçãoatribuiao
homem,pormeiodoaprofundamentodastécnicasedesuadifusão,umacapacidadecadavezmais
crescentedealterarosdadosnaturaisquandopossível,reduziraimportânciadoseuimpactoe,
também,pormeiodaorganizaçãosocial,demodificaraimportânciadosseusresultados.Osúltimos
séculos marcam, para a atividade agrícola, com a humanização e a mecanização do espaço
geográfico,umaconsiderávelmudançadequalidade,chegando-se,recentemente,àconstituiçãode
ummeiogeográficoaquepodemoschamardemeiotécnico-científico-informacional,característico
nãoapenasdavidaurbanamastambémdomundorural,tantonospaísesavançadoscomonas
regiõesmaisdesenvolvidasdospaísespobres.Édessemodoqueseinstalaumaagricultura
propriamentecientífica,responsávelpormudançasprofundasquantoàproduçãoagrícolaequantoà
vidaderelações.
Podemosagorafalardeumaagriculturacientíficaglobalizada.Quandoaprodução
agrícolatemumareferênciaplanetária,elarecebeinfluênciadaquelasmesmasleisqueregemosoutrosaspectosdaproduçãoeconômica.Assim,acompetitividade,característicadasatividadesde
caráterplanetário,levaaumaprofundamentodatendênciaàinstalaçãodeumaagriculturacientífica.
Esta,comovimos,éexigentedeciência,técnicaeinformação,levandoaoaumentoexponencialdas
quantidadesproduzidasemrelaçãoàssuperfíciesplantadas.Porsuanaturezaglobal,conduzauma
demandaextremadecomércio.Odinheiropassaaseruma“informação”indispensável.
Nas áreas onde essa agricultura científica globalizada se instala, verifica-se umaimportantedemandadebenscientíficos(sementes,inseticidas,fertilizantes,corretivos)e,também,de
assistênciatécnica.Osprodutossãoescolhidossegundoumabasemercantil,oquetambémimplica
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umaestritaobediênciaaosmandamentoscientíficosetécnicos.Sãoessascondiçõesqueregemos
processos deplantação, colheita,armazenamento,empacotamento, transportesecomercialização,
levandoàintrodução,aprofundamentoedifusãodeprocessosderacionalizaçãoquesecontagiam
mutuamente,propondoainstalaçãodesistemismos,queatravessamoterritórioeasociedade,
levando,comaracionalizaçãodaspráticas,aumacertahomogeneização.
Da-se,narealidade,também,umacertamilitarizaçãodotrabalho,jáqueocritériodosucessoéaobediênciaàsregrassugeridaspelasatividadeshegemônicas,semcujautilizaçãoos
agentesrecalcitrantesacabamporserdeslocados.Seentendermosoterritóriocomoumconjuntode
equipamentos,deinstituições,práticasenormas,queconjuntamentemovemesãomovidaspela
sociedade, a agricultura científica, moderna e globalizada acaba por atribuir aos agricultores
modernosavelhacondiçãodeservosdagleba.Éatenderataisimperativosousair.
Nasáreasondetalfenômenoseverifica,registra-seumatendênciaaumduplo
desemprego: odosagricultorese outrosempregadose o dosproprietários;por isso, forma-seno
mundo ruralemprocessodemodernizaçãoumanovamassadeemigrantes, que tantose podem
dirigiràscidadesquantoparticipardaproduçãodenovasfrentespioneiras,dentrodoprópriopaísounoestrangeiro,comoéocasodosbrasiguaios.
Assituaçõesassimcriadassãovariadasemúltiplas,produzindoumatipologiade
atividadescujossubtiposdependemdascondiçõesfundiárias,técnicaseoperacionaispreexistentes.
Numamesmaárea,aindaqueasproduçõespredominantesseassemelhem,aheterogeneidadeéde
regra. Há, na verdade, heterogeneidade e complementaridade. Desse modo, pode-se falar na
existênciasimultâneadecontinuidadesedescontinuidades.Édessamaneiraqueseenriqueceo
papeldavizinhançae,adespeitodasdiferençasexistentesentreosdiversosagentes,elesvivemem
comumcertasexperiências,como,porexemplo,asubordinaçãoaomercadodistante.
Talexperiênciaétantomaissensívelporquedecorredeumademanda“externa”de
“racionalidade”edasrespectivasdificuldadesdeoferecerumaresposta.Resta,comoconseqüência,
atomadadeconsciênciadaimportânciadefatores“externos”:ummercadolongínquo,atécertoponto
abstrato;umaconcorrênciadecertomodo“invisível”;preçosinternacionaisenacionaissobreosquais
não há controle local, improvável, também, para outros componentes do cotidiano, igualmente
elaboradosdefora, comoovalorexternodamoeda (câmbio),dequedependeo valorinternoda
produção,ocustododinheiroeopesosobreoprodutordoslucrosauferidosportodosostiposde
intermediação.
Aagriculturamodernaserealizapormeiodosseusbelts,spots,áreas,masasua
relaçãocomomundoecomasáreasdinâmicasdopaíssedápormeiodepontos.Éoqueexplica,
porexemplo,oimportanterelacionamentoexistenteentrecidadesregionaiseSãoPaulo.Nessas
localidadesdá-seumaofertadeinformação,imediataepróxima,ligadaàatividadeagrícolae
produzindoumaatividadeurbanadefabricaçãoedeserviçosque,frutodaproduçãoregional,é
largamente“especializada”e,paralelamente,umoutro tipodeatividadeurbanaligadaaoconsumo
dasfamíliasedaadministração.Acidadeéumpóloindispensávelaocomandotécnicodaprodução,acujanaturezaseadapta,eéumlugarderesidênciadefuncionáriosdaadministraçãopúblicaedas
empresas,mastambémdepessoasquetrabalhamnocampoeque,sendoagrícolas,sãotambém
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urbanas, isso é, urbano-residentes. Às atividades e profissões tradicionais juntam-se novas
ocupaçõeseàsburguesiaseclassesmédiastradicionaisjuntam-seasmodernas,formandouma
mescladeformasdevida,atitudesevalores.Talcidade,cujopapeldecomandotécnicodaprodução
ébastanteamplo,temtambémumpapelpolíticofrenteaessamesmaprodução.Mas,namedidaem
queaproduçãoagrícolatemumavocaçãoglobal,essepapelpolíticoélimitado,incompletoeindireto.
Omundo,confusamenteenxergadoapartirdesseslugares,évistocomoumparceiroinconstante.Sem dúvida, os diversos atores têm interesses diferentes, às vezes convergentes, certamente
complementares.Trata-sedeumaproduçãolocalmista,matizada,contraditóriadeidéias.Sãovisões
domundo,dopaísedolugarelaboradasnacooperaçãoenoconflito.Talprocessoécriadorde
ambigüidadesedeperplexidades,mastambémdeumacertezadadapelaemergênciadacidade
comoumlugarpolítico,cujopapeléduplo:elaéumreguladordotrabalhoagrícola,sequiosodeuma
interpretaçãodomovimentodomundo,eéasededeumasociedadelocalcompósitaecomplexa,
cujadiversidadeconstituiumpermanenteconviteaodebate.
O exame do caso brasileiro quanto à modernização agrícola revela a grande
vulnerabilidadedasregiõesagrícolasmodernasfaceà“modernizaçãoglobalizadora”.Examinandoo
quesignificanamaiorpartedosestadosdoSuledoSudesteenosestadosdeMatoGrossoeMato
Grosso do Sul, bem como em manchas isoladas de outros estados, verifica-se que o campo
modernizadosetornoupraticamentemaisabertoàexpansãodasformasatuaisdocapitalismoqueas
cidades.Dessemodo,enquantoourbanosurge,sobmuitosaspectosecomdiferentesmatizes,comoolugardaresistência,asáreasagrícolassetransformamagoranolugardavulnerabilidade.
De tais áreas pode-se dizer que atualmente funcionamsob um regime obediente a
preocupações subordinadasa lógicasdistantes, externasemrelaçãoàáreadaação;masessas
lógicassãointernasaossetoreseàsempresasglobaisqueasmobilizam.Daísecriaremsituações
dealienaçãoqueescapamaregulaçõeslocaisounacionais,emboraarrastandocomportamentos
locais,regionais,nacionaisemtodososdomíniosdavida,influenciandoocomportamentodamoeda,docrédito,dogastopúblicoedoemprego,incidindosobreofuncionamentodaeconomiaregionale
urbana,porintermédiodesuasrelaçõesdeterminantessobreocomércio,aindústria,ostransportese
osserviços.Paralelamente,alteram-seoscomportamentospolíticoseadministrativoseoconteúdo
dainformação.
Esseprocessodeadaptaçãodasregiõesagrícolasmodernassedácomgranderapidez,
impondo-lhes,numpequenoespaçodetempo,sistemasdevidacujarelaçãocomomeioéreflexa,
enquantoasdeterminaçõesfundamentaisvêmdefora.
Nummundoglobalizado,idênticomovimentopodesertambémrapidamenteimplantado
emoutras áreas, nummesmopaís ouemoutro continente. Assim, a noção de competitividade
mostra-seaquicomtodaforça,politicamenteajudadapelasmanipulaçõesdocomércioexteriorou
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dasbarreirasalfandegárias.Cabeperguntar,nessascircunstâncias,oquepodeacontecerauma
áreaagrícolaque,medianteumdessesprocessos,sejaesvaziadadoseuconteúdoeconômico.Que
acontecerá,porexemplo,àsnovasáreasdeagriculturaglobalizadadoestadodeSãoPaulonocaso
damudançainternacional daconjunturadaeconomiadalaranja,doaçúcar ouo álcool?E como,
diantedetalmudança,poderãoreagiraregião,oestadodeSãoPauloeanação?
Aapreciaçãodasperspectivasabertasaessasáreasmodernizadas,comtendênciaaparticularizaçõesextremas,develevaremcontaofatodequeosentidoqueéimpressoàvida,em
todasassuasdimensões,baseia-se,emmaioroumenorgrau,emfatoresexógenos.Deumpontode
vistanacional,redefine-seumadiversidaderegionalqueagoranãoécontroladanemcontrolável,seja
pelasociedadelocal,sejapelasociedadenacional.Éumadiversidaderegionaldenovotipo,emque
seagravamasdisparidadesterritoriais(emequipamento,recursos,informação,forçaeconômicae
política,característicasdapopulação,níveisdevidaetc.).
Aomenosemumprimeiromomentoesoboimpulsodacompetitividadeglobalizadora,
produzem-seegoísmoslocaisouregionaisexacerbados,justificadospelanecessidadededefesadas
condiçõesdesobrevivênciaregional,mesmoqueissotenhadesedaràcustadaidéiadeintegridadenacional.Essecaldodeculturapodelevaràquebradasolidariedadenacionaleconduzirauma
fragmentaçãodoterritórioedasociedade.
Há,todavia,umadialéticainternaacadaumdosfragmentosresultantes.Oproduto(ou
produtos)comaresponsabilidadedecomandodaeconomiaregionalincluiatorescomdiferentes
perfiseinteresses,cujoíndicedesatisfaçãotambémédiferente.Dentrodecadaregião,asaliançase
acordoseoscontratossociaisimplícitosouexplícitosestãosempreserefazendoeahegemoniadeve
sersemprerevista.
Oprocessoprodutivo reúneaspectos técnicose aspectospolíticos.Osprimeiros têm
maisavercomaproduçãopropriamenteditaesuaáreadeincidênciaseverificamormentedentroda
própriaregião.Aparcelapolíticadoprocessoprodutivo,aocontrário,relacionadacomocomércio,os
preços,ossubsídios,ocustododinheiroetc.,temsuasedeforadaregiãoeseusprocessos
freqüentementeescapamaocontrole(eatémesmoaoentendimento)dosprincipaisinteressados.É
issoquelevaàtomadagradativadeconsciênciapelasociedadelocaldequelheescapaapalavra
finalquantoàproduçãolocaldovalor.
Nessascircunstâncias,acidadeganhaumanovadimensãoeumnovopapel,mediante
umavidaderelaçõestambémrenovada,cujadensidadeincluiastarefasligadasàprodução
globalizada.Porisso,acidadesetornaolugarondemelhorseesclarecemasrelaçõesdaspessoas,
dasempresas, dasatividadesedos “fragmentos”doterritóriocomo paísecomo“mundo”.Esse
papeldeencruzilhadaagoraatribuídoaoscentrosregionaisdaproduçãoagrícolamodernizadafaz
delesolugardaproduçãoativadeumdiscurso(compretensõesaserunitário)edeumapolíticacom
pretensãoasermaisqueumconjuntoderegrasparticulares.Todavia,taispolíticasacabam,nolongo
prazoemesmonomédioprazo,porrevelarsuadebilidade,suarelatividade,suaineficácia,suanão-
operacionalidade.Oquereclamardopoderlocalvistososlimitesdasuacompetência;quereivindicaraosestadosfederados;quesolicitareficazmenteaosagenteseconômicosglobais,quandosesabe
queestespodemencontrarsatisfaçãoaosseusapetitesdeganhosimplesmentemudandoolugarde
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suaoperação?Paraencontrarumcomeçoderesposta,oprimeiropassoéregressaràsnoçõesde
nação,solidariedadenacional,Estadonacional.Deumpontodevistaprático,voltaríamosàidéia,já
expressapornósemoutraocasião,daconstituiçãodeumafederaçãodelugares,comareconstrução
dafederaçãobrasileiraapartirdacélulalocal,feitadeformaaqueoterritórionacionalvenhaa
conhecerumacompartimentaçãoquenãosejatambémumafragmentação.Dessemodo,afederação
seriarefeitadebaixoparacima,aocontráriodatendênciaaqueagoraestásendoarrastadapelasubordinaçãoaosprocessosdeglobalização.
Aqueda-de-braçoentregovernosmunicipaiseestaduaiseogovernofederalémaisque
umadiscussãotécnicaparasaberquemdevearcarcomoônusdasdificuldadesfinanceirasdos27
estadosedosmaisde5.500municípios.Aquestãoéafederaçãoesuainadequaçãoaostemposda
novahistóriacomaemergênciadaglobalização.Oqueestáemjogoéoprópriosistemaderelações
constituído,deumlado,pelosnovosconteúdosdemográfico,econômico,socialdeestadose
municípioseamanutençãodoconteúdonormativodoterritório,agoraquefaceàglobalizaçãose
produzumembateentreumdinheiroglobalizadoeasinstânciaspolítico-administrativasdoEstado
brasileiro.
O território não é apenas o resultado da superposiçãodeumconjunto desistemas
naturaise umconjuntodesistemasdecoisascriadaspelohomem.Oterritórioé o chãoemaisa
população, istoé,uma identidade,o fatoeosentimentodepertenceràquiloquenospertence.O
territórioéabasedotrabalho,daresidência,dastrocasmateriaiseespirituaisedavida,sobreos
quaiseleinflui.Quandosefalaemterritóriodeve-se,pois,delogo,entenderqueseestáfalandoem
territóriousado,utilizadoporumadadapopulação.Umfazooutro,àmaneiradacélebrefrasede
Churchill:primeirofazemosnossascasas,depoiselasnosfazem...Aidéiadetribo,povo,naçãoe,
depois,deEstadonacionaldecorredessarelaçãotornadaprofunda.
Odinheiroéumainvençãodavidaderelaçõeseaparececomodecorrênciadeuma
atividadeeconômicaparacujointercâmbioosimplesescambojánãobasta.Quandoacomplexidade
éumfrutodeespecializaçõesprodutivaseavidaeconômicasetornacomplexa,odinheiroacabasendoindispensáveleterminaseimpondocomoumequivalentegeraldetodasascoisasquesão
objetodecomércio.Naverdade,odinheiroconstitui,também,umdadodoprocesso,facilitandoseu
aprofundamento,jáqueelesetornarepresentativodovaloratribuídoàproduçãoeaotrabalhoeaos
respectivosresultados.
Numprimeiromomentotrata-sedodinheirolocal,expressivodeumhorizontecomercial
elementar,abrangentedecontextosgeográficoslimitadosouparaatenderàsnecessidadesdeumcomércioedeumacirculaçãolongínquos,nasmãosdecomerciantesitinerantes,avalistasdovalor
dasmercadorias.Talmundoécaracterizadoporcompartimentaçõesmuitonumerosas,masum
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mundosemmovimento,lento,estávelecujosfragmentosquaseseriamautocontidos.Taismônadas,
numerosas,existiriamparalelamente,massemoprincípiogeralsugeridoporLeibniz.
Nesseprimeiromomento,ofuncionamentodoterritóriodevemuitoàssuasfeições
naturais,àsquaisoshomensseadaptam,compequenaintermediaçãotécnica.As relaçõessociais
presentessãopouconumerosas,simplesepoucodensas.Oentornodoshomensacabaporlheser
conhecidoeosseusmistériossãoapenasdevidosàsforçasnaturaisdesconhecidas.Taiscondiçõesmateriaisterminamporseimporsobreorestodavidasocial,numasituaçãonaqualovalordecada
pedaçodechãolheéatribuídopeloseuuso.Assim,aexistênciapodeserinterpretadaapartirde
relaçõesobservadasdiretamenteentreoshomenseentreoshomenseomeio.Oterritóriousado
pelasociedadelocalregeasmanifestaçõesdavidasocial,inclusiveodinheiro.
Com a ampliação do comércio produz-se uma interdependência crescente entre
sociedadesatéentãorelativamenteisoladas,cresceonúmerodeobjetosevaloresatrocar,asprópriastrocasestimulamadiversificaçãoeoaumentodevolumedeumaproduçãodestinadaaum
consumolongínquo.Odinheiroseinstalacomocondição,tantodesseescamboquantodaprodução
decadagrupo,tornando-seinstrumentalàregulaçãodavidaeconômicaeassegurando,assim,o
alargamentodoseuâmbitoeafreqüênciadoseuuso.
Narealidade,oquecresce,seexpandeesetornamaiscomplexoedenso,nãoéapenas
ocomérciointernacional,mas,também,ointerno.Assim,cadavezmaiscoisastendematornar-se
objetodeintercâmbio,valorizadocadavezmaispelatrocadoquepelousoe,dessemodo,
reclamando uma medida homogênea e permanente. Assim, o dinheiro aumenta sua
indispensabilidadeeinvademaisnumerososaspectosdavidaeconômicaesocial.
Paralelamente,oterritórioseapresentacomoumaarenademovimentoscadavezmais
numerosos,fundadossobreumaleidovalorquetantodeveaocaráterdaproduçãopresenteemcada
lugarcomoàspossibilidadeserealidadesdacirculação.Odinheiroé,cadavezmais,umdado
essencialparaousodoterritório.
Masaleidovalortambémseestendeaospróprioslugares,cadaqualrepresentando,em
dadacircunstânciaeemfunçãodocomérciodequeparticipam,umcertoíndicedevalorqueé,
também,abasedosmovimentosquedelespartemouqueaeleschegam.
Quanto mais movimento, maior se torna a complexidade das relações internas e
externas e aprofunda-se a necessidade de uma regulação, da qual o dinheiro constitui um dos
elementos,aindaqueoseupapelnãosejaopapelcentral.Esteéatribuídoàcategoriaestado,cuja
necessidade se levanta como um imperativo, atribuindo-se limites externos (as fronteiras
estabelecidas), limites internos (as subdivisões político-administrativas em diversos níveis) e
conteúdosnormativos(asleisecostumes),emmatériadecompetênciaserecursos.Éassimquese
instalamnahistória,categoriasinterdependentes:oEstadoterritorial,o territórionacional,o Estado
nacional.Sãoelesque,emconjunto,regemodinheiro.
Há, por conseguinte, um dinheiro nacional que, apesar de um comércio externo
crescente, temacaradopaíseé reguladopelopaís.Dir-se-iaqueessedinheiroé relativamentecomandadodedentro.
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Comaglobalização,ousodastécnicasdisponíveispermiteainstalaçãodeumdinheiro
fluido,relativamenteinvisível,praticamenteabstrato.
Comoequivalentegeral,odinheirosetornaumequivalenterealmenteuniversal,ao
mesmotempoemqueganhaumaexistênciapraticamenteautônomaemrelaçãoaorestodaeconomia. Assim autonomizado, pode-se até dizer que esse dinheiro, em estado puro, é um
equivalentegeraldelepróprio.Talvezporissosuaexistênciaconcretaesuaeficáciasejamresultado
dasnormascomasquaisseimpõeaosoutrosdinheiroseatodosospaíses,permitindo-se,desse
modo,aelaboraçãodeumdiscurso,semoqualsuaeficáciaseriainfinitamentemenoreasuaforça
menosevidente.É,aliás,apartirdestecaráterideológico,equivalenteaumaverdadeirafalsificação
docritério,queodinheiroglobalétambémdespótico.
Nascondiçõesatuais,aslógicasdodinheiroimpõem-seàquelasdavidasocioeconômica
epolítica,foçandomimetismos,adaptações,rendições.Taislógicassedãosegundoduasvertentes:
umaéadodinheirodasempresasque,responsáveisporumsetordaprodução,são,também,agentesfinanceiros,mobilizadosemfunçãodasobrevivênciaedaexpansãodecadafirmaem
particular; mas, há, também, a lógica dos governos financeiros globais, Fundo Monetário
Internacional,BancoMundial,bancostravestidosemregionaiscomooBID.Éporintermédiodeles
queasfinançassedãocomointeligênciageral.
Essainteligênciaglobaléexercidapeloquesechamariadecontabilidadeglobal,cuja
baseéumconjuntodeparâmetrossegundoosquaisaquelesgovernosglobaismedem,avaliame
classificamaseconomiasnacionais,pormeiodeuma escolhaarbitrária devariáveisqueapenas
contemplacertaparceladaprodução,deixandopraticamentedeladoorestodaeconomia.Porisso,
pode-sedizerque,adotadoessecritériodeavaliação,oProdutoNacionalBrutoapenasconstituium
nome-fantasiaparaessafamosacontabilidadeglobal.
Épormeiodessemecanismoqueodinheiroglobalautonomizado,enãomaisocapital
comoumtodo,setorna,hoje,oprincipalregedordoterritório,tantooterritórionacionalcomosuas
frações.
Antes, o território continha o dinheiro, em uma dupla acepção: o dinheiro sendo
representativodoterritórioqueoabrigavaesendo,emparte,reguladopeloterritório,considerado
comoterritóriousado.Hoje,sobinfluênciadodinheiroglobal,oconteúdodoterritórioescapaa toda
regulaçãointerna,objetoqueeleédeumapermanenteinstabilidade,daqualosdiversosagentes
apenasconstituemtestemunhaspassivas.
A ação territorial dodinheiro global emestadopuroacaba por ser uma ação cega,
gerandoingovernabilidades,emvirtudedosseusefeitossobreavidaeconômica,mastambém,sobre
avidaadministrativa.
Noterritório,afinançaglobalinstala-secomoaregradasregras,umconjuntodenormas
queescorre, imperioso,sobreatotalidadedoedifíciosocial, ignorandoasestruturasvigentes,para
melhorpodercontrariá-las,impondooutrasestruturas.Nolugar,afinançaglobalseexercepela
existência das pessoas, das empresas, das instituições, criando perplexidades e sugerindo
interpretações,quepodemconduziràampliaçãodaconsciência.
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Avontadedehomogeneizaçãododinheiroglobalécontrariadapelasresistênciaslocais
à sua expansão. Desse modo, seu processo tende a ser diferente, segundo os espaços
socioeconômicosepolíticos.
Há,também,umavontadedeadaptaçãoàsnovascondiçõesdodinheiro,jáqueafluidez
financeiraéconsideradaumanecessidadeparasercompetitivoe,conseqüentemente,exitosonomundoglobalizado.
A constituição do Mercado Comum Europeu, isto é, da Comunidade Econômica
Européia,ainstituiçãodaASEANeopretendidoestabelecimentodaALCAobedecemaessemesmo
princípio,demodoapermitiràsrespectivaseconomias,massobretudoaosEstadoslídereseàs
empresasnelessituadas,quepossamparticipardemodomaisagressivodocomérciomundial,
buscando–oquelhesparecenecessário–acobiçadahegemonia.
AEuropaéosubcontinentemaisavançadonoquetocaaessaquestão.Éverdadequeo
processodeunificaçãoeuropéiaseiniciaapósaSegundaGuerraMundialevemrealizandoetapas
sucessivas,sendoaúltima,emdata,aconstituiçãodomercadocomumfinanceiro,doqualamoedaúnica,oeuro,constituiosímbolo.Asetapasprecedentesconstituíramumaespéciedepreparação
paraunificaçãofinanceiraeincluírammedidasobjetivandoafluidezdasmercadorias,doshomens,da
mão-de-obraedopróprioterritório,inclusivenospaísesmenosdesenvolvidos,demodoaquea
Europacomoumtodosepudessetornarumcontinenteigualmentefluido.Semissoesemoreforço
daidéiadecidadania–umacidadaniaagoramultinacionalparaossignatáriosdoTratadode
Schengen-,seriaimpossívelpensarnumamoedaúnicasemaumentarasdiferençasedesequilíbrios
jáexistentes.
Completandoessepanodefundo,aunificaçãomonetáriaéconsideradaumfator
indispensávelaoestabelecimentodeumaeconomiaeuropéiacompetitivaaonívelglobal,mediante
umadivisãodetrabalhorenovada,segundoaqualalgunspaísesvêemreforçadasalgumasdesuas
atividadesedevemrenunciaraoutras,apósumaconcertação,àsvezeslongaepenosa,em
Bruxelas.Naverdade,porém,essaunificaçãoeequalizaçãointra-européiaacabaporsermaisum
episódio de umaguerra, porque destinadas a fortalecer a Europa para competir comos outros
membrosdaTríadeetirarproveitodesuasrelaçõesassimétricascomorestodomundo.
Ocasolatino-americanoebrasileiroédiferente.OpróprioMercosulmantém,por
enquanto,umapráticalimitadaaocomércio,eseupróprioprojetoémenosabrangentequantoàs
relaçõessociais,culturaisepolíticas.Nãoháumaclarapreocupaçãodebuscarumdesenvolvimento
homogêneoeasiniciativasdeinvestimentotêmmuitomaisavercomocrescimentodoproduto,isto
é,comoflorescimentodecertonúmerodeempresasvoltadasparaocomércioregional,dasquais,
aliás,algumassãoigualmenteinseridasnocomérciomundial.Poroutrolado,diferentementedocaso
europeu,asmoedasnacionaisnãosãopropriamenteconversíveis,nemcomunicáveisdiretamente
entreelas.Suarelaçãocomomundoépobre,tantoquantitativacomoqualitativamente,jáquesão
moedasdependentes,cujodesvalimentoaumentafaceàglobalização,constituindoumelementoa
maisdeagravamentodesuaprópriadependência.
Estaéumadasrazõespelasquaisadecisãodeparticiparpassivamentedaglobalização
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acabaporserdanosa.Quantomelhoréoexercíciodomodelo,pioréparaopaís.Essasituaçãoé
aindamaisgravenospaísescomplexosegrandes,namedidaemqueavocaçãohomogeneizadora
docapitalglobalvaiserexercidasobreumabaseformadaporparcelasmuitodiferentesumasdas
outrasecujasdiferençasedesigualdadessãoampliadassobtalaçãounitária.
O dinheiro regulador e homogeneizador agrava heterogeneidades e aprofunda as
dependências. É assim que ele contribui para quebrar a solidariedade nacional, criando ouaumentandoasfraturassociaiseterritoriaiseameaçandoaunidadenacional.
Oconteúdodoterritóriocomoumtodoedecadaumdosseuscompartimentosmudade
formabruscae,também,rapidamenteperdeumaparcelamaioroumenordesuaidentidade,emfavor
deformasderegulaçãoestranhasaosentidolocaldavida.
Époresseprismaquedeveriaservistaaquestãodafederaçãoedagovernabilidadeda
nação:namedidaemqueogovernodanaçãosesolidarizacomosdesígniosdasforçasexternas,
levantam-seproblemascruciaisparaestadosemunicípios.
Aquestãoéestruturale,dessemodo,oproblemadeestadosemunicípiosé,nofundo,
umsó;esseproblemaéconstituídopelasformasatuaisdecompartimentaçãodoterritórioeoseunovoconteúdo,queincluiasformasdeaçãododinheirointernacional.
AquestãoquesepõecomoumaespadadeDâmoclessobreasnossascabeçaséa
seguinte:vamosreconstruirafederaçãoparaservirmelhoraodinheiroouparaatenderàpopulação?
Agora,tudoestásendo feitopara refazer a federaçãodemodoaqueseja instrumental às forças
financeiras.SãooBancoCentraleoMinistériodaFazenda,emcombinaçãocomasinstituições
financeirasinternacionais,queorientamasgrandesreformasoraemcurso.Devemos,então,nos
prepararparaanovaetapaque,aliás,jáseanuncia–adareconstruçãodoarcabouçopolítico-
territorialdopaísaoserviçodasociedade,istoé,dapopulação.
Otemadasverticalidadesedashorizontalidadesjáhaviasidotratadopormimnolivro A
naturezadoespaço.Técnicae tempo.Razãoe emoção (1996), sobretudonocapítulo12.Vamos
agoraabordá-losegundonovosânguloseambicionandoumavisãoprospectiva,apartirdessesdoisrecortessuperpostosecomplementaresdoespaçogeográficoatual.
As verticalidades podemser definidas, num território, como um conjunto de pontos
formandoumespaçodefluxos.Aidéia,decertomodo,remontaaosescritosdeFrançoisPerroux
(L'économie du XX siède, 1961 ), quando ele descreveu o espaço econômico. Tal noção foi
recentementereapropriadaporManuelCastells.( Asociedadeemrede,1999 ).Esseespaçodefluxos
seria, na realidade, um subsistema dentro da totalidade-espaço, já que para os efeitos dosrespectivos atores o que conta é, sobretudo, esse conjunto de pontos adequados às tarefas
produtivas hegemônicas, características das atividades econômicas que comandameste período
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histórico.
Osistemadeproduçãoqueseservedesseespaçodefluxoséconstituídoporredes–um
sistemareticular-,exigentedefluidezesequiosodevelocidade.Sãoosatoresdotemporápido,que
plenamenteparticipamdoprocesso,enquantoosdemaisraramentetiramtodoproveitodafluidez.
Taisespaçosdefluxosvivemumasolidariedadedotipoorganizacional,istoé,asrelaçõesque
mantêmaagregaçãoeacooperaçãoentreagentesresultamemumprocessodeorganização,noqual predominam fatoresexternosàs áreas de incidênciadosmencionadosagentes. Chamemos
macroatoresàquelesquedeforadaáreadeterminamasmodalidadesinternasdeação.Éaesses
macroatoresque,emúltimaanálise,cabediretaouindiretamenteatarefadeorganizarotrabalhode
todososoutros,osquaisdeumaformaoudeoutradependemdasuaregulação.Ofatodequecada
umdevaadaptarcomportamentoslocaisaosinteressesglobais,queestãosempremudando,levao
processoorganizacionalasedarcomdescontinuidades,cujoritmodependedonúmeroedopoder
correspondenteacadamacroagente.
Por intermédio dos mencionados pontos do espaço de fluxos, as macroempresas
acabamporganharumpapelderegulaçãodoconjuntodoespaço.Junte-seaessecontroleaaçãoexplícitaoudissimuladadoEstado,emtodososseusníveisterritoriais.Trata-sedeumaregulação
freqüentementesubordinadaporque,emgrandenúmerodecasos,destinadaa favorecerosatores
hegemônicos. Tomada em consideração determinada área, o espaço de fluxos temo papel de
integraçãocomníveiseconômicoseespaciaismaisabrangentes.Talintegração,todavia,évertical,
dependenteealienadora,jáqueasdecisõesessenciaisconcernentesaosprocessoslocaissão
estranhasaolugareobedecemamotivaçõesdistantes.
Nessascondições, a tendênciaé a prevalênciados interessescorporativossobreos
interessespúblicos,quantoàevoluçãodoterritório,daeconomiaedassociedadeslocais.Dentro
desse quadro, a política das empresas – isto é, sua policy – aspira e consegue, mediante uma
governance ,tornar-sepolítica;naverdade,umapolíticacega,poisdeixaaconstruçãododestinode
umaáreaentregueaosinteressesprivatísticosdeumaempresaquenãotemcompromissoscoma
sociedadelocal.
Nasituaçãoacimadescrita,instalam-seforçascentrífugascertamentedeterminantes,
commaioroumenorforça,doconjuntodecomportamentos.E,emcertoscasos,quandoconseguem
contagiarotodoouamaioriadocorpoprodutivo,taisforçascentrífugassão,aomesmotempo,
determinantesedominantes.Taldominânciaétambémportadoradaracionalidadehegemônicae
cujopoderdecontágiofacilitaabuscadeumaunificaçãoedeumahomogeneização.
Asfraçõesdoterritórioqueconstituemesseespaçodefluxosconstituemoreinodo
temporeal,subordinando-seaumrelógiouniversal,aferidopelatemporalidadeglobalizadadas
empresashegemônicaspresentes.Dessemodoordenado,oespaçodefluxostemvocaçãoaser
ordenadordoespaçototal,tarefaquelheéfacilitadapelofatodeaelesersuperposto.
Omodeloeconômicoassimestabelecidotendeareproduzir-se,aindaquemostrando
topologiasespecíficas,ligadasànaturezadosprodutos,àforçadasempresasimplicadaseà
resistência do espaço preexistente. O modelo hegemônico é planejado para ser, em sua ação
individual,indiferenteaseuentorno.Masestedealgummodoseopõeàplenitudedessahegemonia.
Esta,porém,éexercidaemsuaformalimite,poisaempresaseesforçaporesgotarasvirtualidadeseperspectivasdesuaação“racional”.Oníveldesselimitedefineaoperaçãorespectivadopontode
vistadesuarentabilidade,comparadaàdeoutrasempresasedeoutroslugares.Seconsiderada
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insatisfatória,levaàsuamigração.
Asverticalidadessão,pois,portadorasdeumaordemimplacável,cujaconvocação
incessanteasegui-larepresentaumconviteaoestranhamento.Assim,quantomais“modernizados”e
penetradosporessalógica,maisosespaçosrespectivossetornamalienados.Oelencodas
condiçõesderealizaçãodasverticalidadesmostraque,parasuaefetivação,terumsentidoé
desnecessário, enquanto a grande força motora seria aquele instinto animal das empresasmencionado,hádecênios,porStephanHymereagoramultiplicadoepotencializadoapartirda
globalização.
AsverticalidadesrealizamdemodoindiscutívelaquelaidéiadeJeanGottmann(“The
evolutionoftheconceptofterritory”,InformationsurlesSciencesSociales ,1975)segundoaqualo
territóriopodeservistocomoumrecurso,justamenteapartirdousopragmáticoqueoequipamento
modernizadodepontosescolhidosassegura.
As horizontalidades são zonas da contigüidade que formam extensões contínuas.
Valemo-nos,outravez,dovocabuláriodeFrançoisPerrouxquandosereferiu aexistênciadeum
“espaçobanal”emoposiçãoaoespaçoeconômico.Oespaçobanalseriaoespaçodetodos:
empresas,instituições,pessoas;oespaçodasvivências.
Esseespaçobanal,essaextensãocontinuada,emqueosatoressãoconsideradosna
suacontigüidade,sãoespaçosquesustentameexplicamumconjuntodeproduçõeslocalizadas,
interdependentes, dentro de uma área cujas características constituem, também, um fator de
produção.Todososagentessão,deumaformaoudeoutra,implicados,eosrespectivostempos,
maisrápidosoumaisvagarosos,sãoimbricados.Emtaiscircunstânciaspode-sedizerqueapartirdo
espaçogeográfico cria-seuma solidariedadeorgânica, o conjuntosendo formadopela existência
comumdosagentesexercendo-sesobreumterritóriocomum.Taisatividades,nãoimportaonível,
devemsuacriaçãoealimentaçãoàsofertasdomeiogeográficolocal.Talconjuntoindissociável
evoluiemuda,mastalmovimentopodeservistocomoumacontinuidade,exatamenteemvirtudedo
papelcentralqueéjogadopelomencionadomeiogeográficolocal.
Nesseespaçobanal,aaçãoatualdoEstado,alémdesuasfunçõesigualmentebanais,é
limitada.Naverdade,mudadasascondiçõespolíticas,énesseespaçobanalqueopoderpúblico
encontraria asmelhores condições para sua intervenção.O fato de que o Estado se preocupe
sobretudocomodesempenhodasmacroempresas,àsquaisofereceregrasdenaturezageralque
desconhecem particularidades criadas a partir do meio geográfico, leva à ampliação das
verticalidadese,paralelamente,permiteoaprofundamentodapersonalidadedashorizontalidades.
Nestas,aindaqueestejampresentesempresascomdiferentesníveisdetécnicas,decapitalede
organização,oprincípioquepermiteasobrevivênciadecadaumaéodabuscadecertaintegração
noprocessodaação.
Trata-se, aqui, da produção local de uma integração solidária, obtida mediante
solidariedades horizontais internas, cuja natureza é tanto econômica, social e cultural como
propriamentegeográfica.Asobrevivênciadoconjunto,nãoimportaqueosdiversosagentestenhaminteressesdiferentes,dependedesseexercíciodasolidariedade,indispensávelaotrabalhoequegera
avisibilidadedointeressecomum.Talaçãocomumnãoéobrigatoriamenteoresultadodepactos
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explícitosnemdepolíticasclaramenteestabelecidas.Aprópriaexistência,adaptando-seasituações
cujocomandofreqüentementeescapaaosrespectivosatores,acabaporexigirdecadaqualum
permanenteestadodealerta,nosentidodeapreenderasmudançasedescobrirassoluções
indispensáveis.
Pode-se dizer que talsituaçãoasseguraa permanência de forçascentrípetas. Estas,
aindaquenãosejamdeterminantes(jáqueashorizontalidadesrecebeminfluxosdasverticalidades)sãodominantes.Taisforçascentrípetasgarantemsuasobrevivênciapelofatodequeoâmbitode
realização dos atoresé limitado,confundindo-se todosnumespaço geográfico restrito,que é,ao
mesmotempo,abasedesuaatuação.
Ashorizontalidades,pois,alémdasracionalidadestípicasdaverticalidadesqueas
admitemapresençade outrasracionalidades(chamadasdeirracionalidadespelosquedesejariam
vercomoúnicaaracionalidadehegemônica).Naverdade,sãocontra-racionalidades, istoé, formas
deconvivênciaederegulaçãocriadasapartirdopróprioterritórioequesemantêmnesseterritórioa
despeitodavontadedeunificaçãoehomogeneização,característicasdaracionalidadehegemônica
típicadasverticalidades.Apresençadessasverticalidadesproduztendênciasàfragmentação,comaconstituição de alvéolos representativos de formas específicas de ser horizontal a partir das
respectivasparticularidades.
Ao contrário das verticalidades, regidas por um relógio único, implacável, nas
horizontalidadesassimparticularizadasfuncionam,aomesmotempo,váriosrelógios,realizando-se,
paralelamente,diversastemporalidades.
Trata-sedeumespaçoàvocaçãosolidária,sustentodeumaorganizaçãoemsegundo
nível,enquantosobreeleseexerceumavontadepermanentededesorganização,aoserviçodos
atoreshegemônicos.Esseprocessodialéticoimpedequeopoder,semprecrescenteecadavezmais
invasor,dosatoreshegemônicos,fundadosnosespaçosdefluxos,sejacapazdeeliminaroespaço
banal,queépermanentementereconstituídosegundoumanovadefinição.
Pode-sedizerque,aocontráriodaordemimposta,nosespaçosdefluxos,pelosatores
hegemônico e da obediência alienadados atores subalternizados, hegemonizados, nosespaços
banaisserecriaaidéiaeofatodaPolítica,cujoexercíciosetornaindispensável,paraprovidenciaros
ajustamentosnecessáriosaofuncionamentodoconjunto,dentrodeumaáreaespecífica.Pormeiode
encontrosedesencontrosedoexercíciododebateedosacordos,busca-seexplícitaoutacitamentea
readaptaçãoàsnovasformasdeexistência.
Oprocessoacimadescritoé tambémaquelepeloqualumasociedadeeum território
estãosempreàbuscadeumsentidoeexercem,porisso,umavidareflexiva.Nestecaso,oterritório
nãoéapenasolugardeumaaçãopragmáticaeseuexercíciocomporta,também,umaportedavida,
umaparceladeemoção,quepermiteaosvaloresrepresentarumpapel.Oterritóriosemetamorfoseia
emalgomaisdoqueumsimplesrecursoe,parautilizarumaexpressão,queétambémdeJean
Gottmann,constituiumabrigo.
Narealidade,amesmafraçãodoterritóriopodeserrecursoeabrigo,podecondicionarasaçõesmaispragmáticase,aomesmotempo,permitirvocaçõesgenerosas.Osdoismovimentos
sãoconcomitantes.Nascondiçõesatuais,omovimentodeterminante,comtendênciaaumadifusão
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avassaladora,éodacriaçãodaordemdaracionalidadepragmática,enquantoaproduçãodoespaço
banaléresidual.Pode-se,todavia,imaginaroutrocenário,noqualocomportamentodoespaçode
fluxossejasubordinadonãocomoagoraàrealizaçãododinheiroeencontreumfreioaessaformade
manifestação,tornando-sesubordinadoàrealizaçãoplenadavida,demodoqueosespaçosbanais
aumentemsuacapacidadedeserviràplenitudedohomem.
Comosabemos,omundo,comoumconjuntodeessênciasedepossibilidades,não
existeparaelepróprio,eapenasofazparaosoutros.Éoespaço,istoé,oslugares,querealizame
revelamomundo,tornando-ohistoricizadoegeografizado,istoé,empiricizado.
Oslugaressão,pois,omundo,queelesreproduzemdemodosespecíficos,individuais,
diversos.Elessãosingulares,massãotambémglobais,manifestaçõesdatotalidade-mundo,daqual
sãoformasparticulares.
Nascondiçõesatuais,ocidadãodolugarpretendeinstalar-setambémcomocidadãodo
mundo.Averdade,porém,équeo“mundo”nãotemcomoregularoslugares.Emconseqüência,a
expressãocidadãodomundotorna-seumvoto,umapromessa,umapossibilidadedistante.Comoos
atores globais eficazes são, em última análise, anti-homem e anticidadão, a possibilidade de
existência de um cidadão domundo é condicionada pelas realidades nacionais. Na verdade, o
cidadãosóoé(ounãooé)comocidadãodeumpaís.
Ser“cidadãodeumpaís”,sobretudoquandooterritórioéextensoeasociedademuito
desigual,podeconstituir;apenas,umaperspectivadecidadaniaintegral,aseralcançadanasescalas
sub-nacionais,acomeçarpelonívellocal.Esseéocasobrasileiro,emquearealizaçãodacidadania
reclama,nascondiçõesatuais,umarevalorizaçãodos lugares e umaadequação deseuestatuto
político.
Amultiplicidadedesituaçõesregionaisemunicipais,trazidacomaglobalização,instala
umaenormevariedadedequadrosdevida,cujarealidadepresideocotidianodaspessoasedeveser
abaseparaumavidacivilizadaemcomum.Assim,apossibilidadedecidadaniaplenadaspessoas
dependedesoluçõesaserembuscadaslocalmente,desdeque,dentrodanação,sejainstituídaumafederaçãodelugares,umanovaestruturaçãopolítico-territorial,comaindispensávelredistribuiçãode
recursos,prerrogativaseobrigações.Apartirdopaíscomofederaçãodelugaresserápossível,num
segundomomento,construirummundocomofederaçãodepaíses.
Trata-se,emambasasetapas,deumaconstruçãodebaixoparacimacujopontocentral
éaexistênciadeindividualidadesfortesedasgarantiasjurídicascorrespondentes.Abasegeográfica
dessaconstruçãoseráolugar,consideradocomoespaçodeexercíciodaexistênciaplena.Estamos,
porém,muitolongedarealizaçãodesseideal.Como,então,poderemosalcançá-lo?
Oterritóriotantoquantoolugarsãoesquizofrênicos,porquedeumladoacolhemos
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doimediatismoàsvisõesfinalísticas;edeumpontodevistadaação,oproblemaéultrapassaras
soluçõesimediatistas(porexemplo,eleitoralismosinteresseiroseapenasprovisoriamenteeficazes)e
alcançarabuscapolíticagenuínaeconstitucionalderemédiosestruturaiseduradouros.
Nesseprocesso,afirma-se,também,segundonovosmoldes,a antigaoposiçãoentreo
mundo eo lugar.A informaçãomundializadapermiteavisão,mesmoem flashes ,deocorrências
distantes.Oconhecimentodeoutroslugares,mesmosuperficiale incompleto,aguçaacuriosidade.Eleécertamenteumsubprodutodeumainformaçãogeralenviesada,mas,seforajudadoporum
conhecimentosistêmicodoacontecerglobal,autorizaavisãodahistóriacomoumasituaçãoeum
processo,amboscríticos.Depois,oproblemacrucialé:comopassardeumasituaçãocríticaauma
visãocrítica–e,emseguida,alcançarumatomadadeconsciência.Paraisso,éfundamentalvivera
própriaexistênciacomoalgodeunitárioeverdadeiro,mastambémcomoumparadoxo:obedecer
parasubsistire resistirparapoderpensaro futuro.Entãoaexistênciaé produtoradesuaprópria
pedagogia.
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Aanálisedofenômenodaglobalizaçãoficariaincompletase,apósreconhecerosfatores
quepossibilitaramsuaemergência,apenasnosdetivéssemosnaapreciaçãodosseusaspectos
atualmentedominantes,dequeresultamtantosinconvenientesparaamaiorpartedahumanidade.
Cabe,agora, verificaros limitesdessaevoluçãoe reconhecera emergênciadecerto
númerodesinaisindicativosdequeoutrosprocessosparalelamenteselevantam,autorizadopensar
quevivemosumaverdadeirafasedetransiçãoparaumnovoperíodo.
Emprimeirolugar,odensosistemaideológicoqueenvolveesustentaasações
determinantesparecenãoresistiràevidênciadosfatos.Avelocidadenãoéumbemquepermitauma
distribuiçãogeneralizada,easdisparidadesnoseuusogarantemaexacerbaçãodasdesigualdades.
Avidacotidianatambémrevelaaimpossibilidadedefruiçãodasvantagensdochamadotemporeal
paraamaioriadahumanidade.Apromessadequeastécnicascontemporâneaspudessemmelhorar
aexistênciadetodoscaemporterraeoqueseobservaéaexpansãoaceleradadoreinodaescassez,atingindoasclassesmédiasecriandomaispobres.
Aspopulaçõesenvolvidasnoprocessodeexclusãoassimfortalecidoacabampor
relacionarsuascarênciasevicissitudesaoconjuntodenovidadesqueasatingem.Umatomadade
consciênciatorna-sepossívelalimesmoondeo fenômenodaescassezémaissensível.Por isso,a
compreensãodoqueseestápassandochegacomclarezacrescenteaospobreseaospaísespobres,
cadavezmaisnumerososecarentes.Daíorepúdioàsidéiaseàspráticaspolíticasquefundamentam
oprocessosocioeconômicoatualeademanda,cadavezmaispressurosa,denovassoluções.Estas
nãomaisseriamcentradasnodinheiro,comonaatualfasedaglobalização,paraencontrarnopróprio
homemabaseeomotordaconstruçãodeumnovomundo.
Osfenômenosaquemuitoschamamdeglobalizaçãoeoutrosdepós-modernidade
(Renato Ortiz, Mundializaçãoecultura ,1994)naverdadeconstituem,juntos,ummomentobem
demarcadodoprocessohistórico.Preferimosconsidera-loumperíodo.Comoemqualqueroutro
período histórico, funcionam de forma concertada diversas variáveis cuja visão sistêmica é
indispensávelparaentenderoqueseestárealizando.Tambémcomoemtodoperíodo,apartirde
certomomento hávariáveisqueperdem vigor, verdadeirasvariáveisdescendentes, e outras que
passamaseimpor.Sãoasvariáveisascendentesquerevelamaproduçãodeumnovoperíodo,isto
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é,apontamparaofuturo.
Omomentoatualdahistóriadomundopareceaindaindicaraemergênciadenumerosas
variáveisascendentescujaexistênciaésistêmica.Isso,exatamente,permitepensarqueseestão
produzindoascondiçõesderealizaçãodeumanovahistória.
Porenquanto,renunciamos,aqui,afornecerumalistaexaustivadosfenômenos,mas
nãoaapontaralgunsfatosquenosparecembemcaracterísticosdasmudançasemcurso.Umdeleséocrescentedesencantocomastécnicas,acompanhadoporumagradativarecuperaçãodobom
senso,emoposiçãoaosensocomum,istoé,emoposiçãoàpretensaracionalidadesugeridatanto
pelastécnicasemsimesmacomopelapolíticadoseuuso.Outrodadosignificativoselevantacoma
impossibilidaderelativamentecrescentedeacessoaessastécnicas,emvirtudedoaumentoda
pobrezaemtodososcontinentes.Junte-seaessedadoofatodeque,apesardacapacidadeinvasora
dastécnicashegemônicas,sobrevivemecriam-senovastécnicasnãohegemônicas.Pode-searriscar
umvaticínioereconhecer,noconjuntodoprocesso,oanúnciodeumnovoperíodohistórico,
substitutodoatualperíodo.Estaríamosnaauroradeumanovaera,emqueapopulação,istoé,as
pessoasconstituiriamsuaprincipalpreocupação,umverdadeiroperíodopopulardahistória,jáentremostradopelasfragmentaçõeseparticularizaçõessensíveisemtodapartedevidasàculturaeo
território.
OProjetoRacionalcomeçaamostrarsuaslimitaçõestalvezporqueestejamosatingindo
aqueleparoxismoprevistoporWeber(Economía y sociedad ,1922)pararealizar-sequandoo
processodeexpansãodaracionalidadecapitalistasetornasseilimitado.Tudoindicaqueestamos
atingindoessafronteira,agoraque,nosdiversosníveisdavidaeconômica,social,individual,vivemos
umaracionalidadetotalitáriaquevemacompanhadadeumaperdadarazão.Odebochedecarência
edeescassezqueatingeumaparcelacadavezmaiordasociedadehumanapermitereconhecera
realidadedessaperdição.
Umaboaparceladahumanidade,pordesinteresseouincapacidade,nãoémaiscapaz
de obedecer a leis, normas, regras, mandamentos, costumes derivados dessa racionalidade
hegemônica.Daíaproliferaçãode“ilegais”,“irregulares”,“informais”.
Essa incapacidade mistura, num processo de vida, práticas e teorias herdadas e
inovadas,religiõestradicionaisenovasconvicções.Énessecaldodeculturaquenumerosasfraçõesdasociedadepassamdasituaçãoanteriordeconformidadeassociadaaoconformismoaumaetapa
superiordaproduçãodaconsciência,istoé,aconformidadesemoconformismo.Produz-sedessa
maneiraaredescobertapeloshomensdaverdadeirarazãoenãoéespantosoquetaldescobrimento
sedêexatamentenosespaçossociais,econômicosegeográficostambém“nãoconformes”à
racionalidadedominante.
Naesferadaracionalidadehegemônica,pequenamargemédeixadaparaavariedade,a
criatividade,a espontaneidade.Enquantoisso,surgem,nasoutrasesferas,contra-racionalidadese
racionalidades paralelas corriqueiramente chamadas de irracionalidades, mas que na realidade
constituemoutrasformasderacionalidade.Estassãoproduzidasemantidaspelosqueestão“embaixo”, sobretudo os pobres, que desse modo conseguem escapar ao totalitarismo da
racionalidadedominante.RecordemosoensinamentodeSartre,paraquemaescassezéquetornaa
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históriapossível,graçasà“unidadenegativadamultiplicidadeconcretadoshomens”.
Tal situação é objetivamente esperançosa porque agora assistimos ao fim das
espectativasnutridasnoapós-guerrae, ao contrário, testemunhamosa ampliaçãodonúmero de
pobres, assim como o estreitamento das possibilidades e das certezas que as classes médias
acalentavamatéadécadade1980.Outrodadoobjetivoéo fatodequearealizaçãocadavezmais
densa do processo de globalização enseja o caldeamento, ainda que elementar, das filosofiasproduzidasnosdiversoscontinentes,emdetrimentodoracionalismoeuropeu,queéobisavôdas
idéiasderacionalismotecnocráticohojedominantes.
Nafamíliadosimagináriosdaglobalizaçãoedastécnicas,encontra-seaidéia,difundida
comexuberância,dequeavelocidadeconstituiumdadoirreversívelnaproduçãodahistória,
sobretudoaoalcançarosparoxismosdostemposatuais.Naverdade,porém,somentealgumas
pessoas,firmaseinstituiçõessãoaltamentevelozes,esãoaindaemmenornúmeroasqueutilizam
todasasvirtualidadestécnicasdasmáquinas.Naverdade,orestodahumanidadeproduz,circulae
vivedeoutramaneira.Graçasàimposturaideológicaofatodaminoriaacabasendorepresentativoda
totalidade,graçasexatamenteàforçadoimaginário.
Essa transformação de uma fluidez potencial numa fluidez efetiva, por meio da
velocidadeexacerbada,todavianãotemenembuscaumsentido.Semdúvida,elaserveaoexercício
deumacompetitividadedesabrida,masestaéumacoisaqueninguémsabeparaoquerealmente
serve.
Pode-sedizerqueavelocidadeassimutilizadaéduplamenteumdadodapolíticaenão
datécnica.Deumlado,trata-sedeumaescolharelacionadacomopoderdosagentese,deoutro,da
legitimaçãodessaescolha,pormeiodajustificaçãodeummodelodecivilização.Énessesentidoque
estamosafirmandotratar-semaisdeumdadodapolíticaque,propriamente,datécnica,jáqueesta
poderiaserusadadiferentementeemfunçãodoconjuntodeescolhassociais.Defato,ousoextremo
davelocidadeacabaporsero imperativodasempresashegemônicase nãodasdemais,paraas
quaisosentidodeurgêncianãoéumaconstante.MaséapartirdesseedeoutroscomportamentosqueapolíticadasempresasarrastaapolíticadosEstadosedasinstituiçõessupranacionais.
No passado, a ordemmundial se construía mediante uma combinação política que
conduziaànão-obediênciaaosditamesdatécnicamaismoderna.Pensemos,porexemplo,noséculo
doimperialismo,noscemanosquevãodoquartoquarteldoséculoXIXaoterceirodoséculoXX.Os
impérios,emsuaqualidadedegrandesconjuntospolíticoseterritoriais,viviameevoluíamsegundo
idades técnicas diversas,utilizando, cadaqual,dentro dosseusdomínios, conjuntosdeavanços
técnicosdisparatados e quemostravamníveisdiferentes.O império britânicoestavaà frente dos
demaisquantoàpossederecursostécnicosavançados.Masissonãoimediasuaconvivênciacom
outrosimpérios.Dentrodecadaum,ousodoconjuntodosrecursostécnicoseracomandadoporumconjuntodenormasrelacionadasaocomércio,àproduçãoeaoconsumo,oquepermitiaacadabloco
umaevoluçãoprópria,nãoperturbadapelaexistênciaemoutrosimpériosdeavançostécnicosmais
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significativos.Nofundo,apoliticacomercialaplicadadentrodecadaimpérioasseguravaapolíticado
conjuntodomundoocidental(M.Santos, Anaturezadoespaço ,1996,pp.36-37epp.152-153).O
exemplomostranãosercertoquehajaumimperativotécnico.Oimperativoépolítico.Dessemodo,
nãoháumainelutabilidadefaceaossistemastécnicos,nemmuitomenosumdeterminismo.Aliás,a
técnicasomenteéumabsolutoenquantoirrealizada.Assim,existindoapenasnavitrine,mas
historicamenteinexistente,equivaleriaaumaabstração.Quandonosreferimosàhistoricizaçãoeàgeografizaçãodastécnicas,estamoscuidandodeentenderoseuusopelohomem,suaqualidadede
intermediáriodaação,istoé,suarelativização.
Noperíododaglobalização,omercadoexterno,comsuasexigênciasdecompetitividade,
obrigaaaumentara velocidade.Masapopulaçãoemseusdiferentesníveis,ospobreseosque
vivemlongedosgrandesmercadosobrigamacombinaçõesdeformaseníveisdecapitalismo.Éo
mercadointernoquefreiaavontadedevelocidadedequejáfalavaM.Sorre( Annalesdegéographie ,
1948), porque todos os atores dele participam. Todavia, os dois mercados são intercorrentes,
interdependentes. Invadindoa economiae o território comgrandevelocidade, o circuito superior
buscadestruirasformaspreexistentes.Masoterritórioresiste,sobretudonagrandecidade,graças,entreoutrascoisas,àmenorfricçãodadistância.Aspequenasemédiasempresaslocaistêmmais
acessopotencialque,porexemplo,umagrandeempresadeManaus,poispodemalcançarumaparte
significativadacidade(porexemplo,ossupermercadosmenores).Contribuirátambémparaesse
maioracessopotencialofatodeestaremnummeioqueéumtecidoeumemaranhadodenormas
concernentes,oquetornaessasempresasmenosdependentesdeumaúnicanormaparasubsistir.
Mas,comaglobalizaçãoeseuimagináriocomumaodatécnicahegemônica,umaeoutrasãodadas
comoindispensáveisàparticipaçãoplenanoprocessohistórico.
Éfato,também,que,comainterdependênciaglobalizadadoslugareseaplanetarização
dos sistemas técnicos dominantes, estes parecem se impor como invasores, servindo como
parâmetronaavaliaçãodaeficáciadeoutroslugaresedeoutrossistemastécnico.Énessesentido
queossistematécnicohegemônicoaparececomoalgoabsolutamenteindispensáveleavelocidade
resultante como um dado desejável a todos que pretendem participar de pleno direito, da
modernidadeatual.Todavia,avelocidadeatualetudoquevemcomela,equedeladecorre,nãoé
inelutávelnemimprescindível.Naverdade,elanãobeneficianeminteressaàmaioriadahumanidade.
Paraquê,defato,serveesserelógiodespóticodomundoatual?Ascrisesatuaissão,emúltima
análise,umaresultantedaaceleraçãocontemporânea,medianteousoprivilegiado,poralgunsatores
econômicos,das possibilidadesatuaisde fluidez.Como talexercícionão respondeaumobjetivo
morale, dessemodo,édesprovidode sentido,o resultadoéa instalaçãodesituaçõesemqueo
movimentoencontrajustificativaemsimesmo–comoéocasodomercadodecapitaisespeculativos–
talautonomiasendoumadasrazõesdadesordemcaracterísticadoperíodoatual.
Quandoaceitamospensaratécnicaemconjuntocomapolíticaeadmitimosatribuir-lhe
outrouso,ficamosconvencidosdequeépossívelacreditaremumaoutraglobalizaçãoeemumoutro
mundo.Oproblemacentraléoderetomarocursodahistória,istoé,recolocarohomemnoseulugarcentral.
Talpreocupaçãodemudançaincluiumarevisãodosignificadodaspalavras-chavedo
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nossoperíodo,todascontaminadaspelorespectivosistemaideológico.Fiquemoscomaquestãoda
velocidade ,quepodeservistacomoumparadigmadaépoca,mastambémcomooqueela
representadeemblemático.Naverdade,sejaqualforocorposocial,avelocidadehegemônica
constituiumadassuascaracterísticas,masadefiniçãodarealidadesomentepodeserobtida
considerando-seasdiversasvelocidadesempresença.E,sejacomofor,aeficáciadavelocidadenão
provémdatécnicasubjacente.Aeficáciadavelocidadehegemônicaédenaturezapolíticaedependedo sistema socioeconômico político em ação. Pode-se dizer que, em uma dada situação, tal
velocidadehegemônicaéumavelocidadeimpostaideologicamente.
Comoemtudomais,ainterpretaçãodahistórianãopodeserdeixadaaoentendimento
imediato do fenômeno técnico, exigindoentendercomo, nessamesma situação, se relacionama
técnicaeapolítica,atribuindoaestaopapelcentralnoentendimentodasaçõesqueconformamo
presenteatualequepodemtornarpossívelumoutrofuturo.
O tema das verticalidades e das horizontalidades pode comportar numerosas
reinterpretações.Umadelas,refletindoojogocontraditórioentreessascategorias,éaverdadeira
oposição existente entre a natureza das atividades just-in-time ,quetrabalhamcomumrelógio
universal,earealidadedasatividadesque,juntas,constituemavidacotidiana.
Noprimeirocasotrata-sedavocaçãoparaumaracionalidadeúnica,reitoradetodasas
outras,desejosadehomogeneizaçãoedeunificação,pretendendosempretomarolugardasdemais,
umaracionalidadeúnica,masracionalidadesemrazão,quetransformaaexistênciadaquelesaquem
subordinanumaperspectivadealienação.Jánocotidiano,arazão,istoé,arazãodeviver,ébuscada
pormeiodoque,faceaessaracionalidadehegemônica,éconsideradacomo“irracionalidade”,
quandonarealidadeoquesedásãooutrasformasdeserracional.
Omundodotemporeal,dojust-in-time,éaquelesubsistemadarealidadetotalque
buscaemsualógicanessamencionadaracionalidadeúnica,cujacriaçãoé,todavia,limitada,atributo
deumpequenonúmerodeagentes.Omundodocotidianoé tambémodaprodução ilimitadade
outras racionalidades,que são,aliás, tãodiversasquantoasáreasconsideradas, jáqueabrigam
todasasmodalidadesdeexistência.
O funcionamento dos espaços hegemônicos supõe uma demanda desesperada de
regras;quandoascircunstânciasmudame,porisso,asnormasreguladorastêmdemudar,nemporissosuademandadeixadeserdesesperada.Talregulaçãoobedeceàconsideraçãodeinteresses
privatísticos.JáocotidianosupõeumademandadesesperadadePolítica,resultadodaconsideração
conjuntademúltiplosinteresses.
Nocasodasatividades just-in-time ,umasótemporalidadeéconsiderada:éafórmulade
sobrevivência no mundo da competitividade à escala planetária. Como dado motor, uma só
existência,a dosagenteshegemônicos,é,aomesmotempo,origemefinalidadedasações.Avida
cotidiana abrange várias temporalidades simultaneamente presentes, o que permite considerar,
paralelaesolidariamente,aexistênciadecadaumedetodos,como,aomesmotempo,suaorigeme
finalidade.Oconjuntodascondiçõesacimaenunciadaspermitedizerqueomundodotemporeal
buscaumahomogeneizaçãoempobrecedoraelimitada,enquantoouniversodocotidianoéomundo
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daheterogeneidadecriadora.
Sabemos jáqueas técnicaspresentesemumadada situaçãonãosãohomogêneas.
Enquantoastécnicashegemônicassedãoemredes,alémdelasoutrastécnicasseimpõem.Mas,em
umadadasituação,todasastécnicaspresentesacabamporserinextricáveis.Talsolidariedadenão
é,propriamente,entreastécnicas,masofrutodavidasolidáriadasociedade.
Hoje,tantoosobjetivosquantoasaçõesderivamdatécnica.Astécnicasestão,pois,em
todaparte:naprodução,nacirculação,noterritório,napolítica,nacultura.Elasestãotambém–e
permanente–nocorpoenoespíritodohomem.Vivemostodosnumemaranhadodetécnicas,oque
emoutraspalavrassignificaqueestamostodosmergulhadosnoreinodoartifício.Namedidaemque
astécnicashegemônicas,fundadasnaciênciaeobedientesaosimperativosdomercado,sãohoje
extremamentedotadasdeintencionalidade,háigualmentetendênciaàhegemoniadeumaprodução
“racional” de coisas e de necessidades; e desse modo uma produção excludente de outras
produções,comamultiplicaçãodeobjetostécnicosestritamenteprogramadosqueabremespaço
paraessaorgiadecoisasenecessidadesqueimpõemrelaçõesenosgovernam.Cria-seum
verdadeiro totalitarismo tendencial da racionalidade – isto é, dessa racionalidade hegemônica,
dominante-,produzindo-seapartirdorespectivosistemacertascoisas,serviços,relaçõeseidéias.Esta,aliás,éabaseprimeiradaproduçãodecarênciasedeescassez,jáqueumaparcela
considerável da sociedade não pode ter acesso às coisas, serviços, relações, idéias que se
multiplicamnabasedaracionalidadehegemônica.
Asituaçãocontemporânearevela,entreoutrascoisas,trêstendências:1.umaprodução
aceleradaeartificialdenecessidades;2.umaincorporaçãolimitadademodosdevidaditosracionais;
3.umaproduçãolimitadadecarênciaeescassez.
Nessa situação, as técnicas a velocidade, a potência criam desigualdades e,
paralelamente,necessidades,porquenãohásatisfaçãoparatodos.Nãoéqueaproduçãonecessária
sejaglobalmenteimpossível.Masoqueéproduzido–necessáriaoudesnecessariamente–édesigualmentedistribuído.Daíasensaçãoe,depois,aconsciênciadeescassez:aquiloquefaltaa
mim,masqueooutromaisbemsituadonasociedadepossui.AidéiavemdeSartre,quandoregistra
que“nãohábastanteparatodoomundo”.Porissoooutroconsomeenãoeu.Ohomem,cada
homem,éafinaldefinidopelasomadospossíveisquelhecabem,mastambémpelasomadosseus
impossíveis.
Oreinodanecessidadeexisteparatodos,massegundoformasdiferentes,asquais
simplificamosmedianteduassituações–tipo:paraos“possuidores”,paraos“nãopossuidores”.
Quanto aos “possuidores”, torna-se viável, mediante possibilidades reais ou artifícios
renovados,afugaàescassezeasuperaçãoaindaqueprovisóriadaescassez.Comooprocessoda
criaçãodenecessidadeséinfinito,impõe-seumareadaptaçãopermanente.Cria-seumcírculovicioso
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comarotinadafaltaedasatisfação.Narealidade,paraessaparceladasociedadeafaltajáécriada
como a expectativa e a perspectivade satisfação. As negociaçõespara regressar ao status de
consumidorsatisfeito conduzem à repetiçãodeexperiênciasexitosas. Dessemodo,a parcela de
consumidorescontumazesobtémumaconvivênciarelativamentepacíficacomaescassez.Masa
buscapermanentedebensfinitoseporissocondenadosaoesgotamento(eàsubstituiçãoporoutros
bensfinitos)condenaosaparentementevitoriososàaceitaçãodacontrafinalidadecontidanascoisaseemconseqüênciaaoenfraquecimentodaindividualidade.
Quantoaos“não-possuidores”suaconvivênciacomaescassezéconflituosaeatépode
serguerreira.Paraeles,viver naesferadoconsumoécomoquerer subirumaescada rolanteno
sentidodadescida.Cadadiaacabaoferecendoumanovaexperiênciadaescassez.Porissonãohá
lugarparaorepousoeaprópriavidaacabaporserumverdadeirocampodebatalha.Nabriga
cotidianapelasobrevivência,nãohánegociaçãopossívelparaeles,e,individualmente,nãoháforça
de negociação. A sobrevivência só é assegurada porque as experiências imperativamente se
renovam.Ecomoasurpresasedácomorotina,ariquezados“não-possuidores”éaprontidãodos
sentidos.Écomessaforçaqueelesseeximemdacontrafinalidadeeaoladodabuscadebensmateriaisfinitoscultivamaprocuradebensinfinitoscomoasolidariedadeealiberdade:estes,quanto
maissedistribuem,maisaumentam.
Aexperiênciadaescassezéaponteentreocotidianovividoeomundo.Porisso,
constituiuminstrumentoprimordialnapercepçãodasituaçãodecadaumeumapossibilidadede
conhecimentoedetomadadeconsciência.
Onossotempoconsagraamultiplicaçãodasfontesdeescassez,sejapelonúmero
avassaladordosobjetospresentesnomercado,sejapelochamadoincessanteaoconsumo.Cada
dia,nessaépocadeglobalização,apresenta-seumobjetonovo,quenosémostradoparaprovocaro
apetite.Anoçãodeescassezsematerializa,seaguçaesereaprendecotidianamente,assimcomo,já
agora,acertezadequecadadiaédiadeumanovaescassez.Asociedadeatualvaidessamaneira,
mediante o mercado e a publicidade, criando desejos insatisfeitos, mais também reclamando
explicações.Dir-se-iaquetalmovimentoserepete,enriquecendoomovimentointelectual.
Aescassezdeumpodesepareceràescassezdooutroeaescassezdehojeàescassezdeontem,
masquandonãoésatisfeitaelaacabaporseimporcomodiferentedadeontemedadooutro.
Alteridadeeindividualidadesereforçamcomarenovaçãodanovidade.Quantomaisdiferentessão
osqueconvivemnumespaçolimitado,maisidéiasdomundoaíestarãoparaserlevantadas,
cotejadase,dessemodo,tantomaisricoseráodebatesilenciosoouruidosoqueentreaspessoasse
estabelece.Nessesentido,pode-sedizerqueacidadeéumlugarprivilegiadoparaessarevelaçãoe
que,nessafasedaglobalização,aaceleraçãocontemporâneaétambémaceleraçãonaproduçãoda
escassezenadescobertadasuarealidade,jáque,multiplicandoeapressandooscontatos,exibea
multiplicidadedeformasdeescassezcontemporânea,asquaisvãomudandomaisrapidamentepara
setornaremmaisnumerosasemaisdiversas.Paraospobres,aescassezéumdadopermanenteda
existência,mascomosuapresençanavidadetodososdiaséoresultadodeumametamorfosetambémpermanente,otrabalhoacabaporser,paraeles,olugardeumadescobertacotidianaede
umcombatecotidiano,mastambémumaponteentreanecessidadeeoentendimento(M.Santos,
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JornaldoBrasil ,06.04.1997).
Oexamedopapelatualdospobresnaproduçãodopresenteedofuturoexige,em
primeirolugar,distinguir entrepobrezaemiséria.Amisériaacabaporseraprivaçãototal,comoaniquilamento,ouquase,dapessoa.Apobrezaéumasituaçãodecarência,mastambémdeluta,um
estadovivo,devidaativa,emqueatomadadeconsciênciaépossível.
Miseráveissãoosqueseconfessamderrotados.Masospobresnãoseentregam.Eles
descobremcadadiaformasinéditasdetrabalhoedeluta.Assim,elesenfrentamebuscamremédio
parasuasdificuldades.Nessacondiçãodealertapermanente,nãotêmrepousointelectual.A
memóriaseriasuainimiga.Aherançadopassadoétemperadapelosentimentodeurgência,essa
consciênciadonovoqueé,também,ummotordoconhecimento.
A socialidadeurbanapodeescaparaoseus intérpretes, nasfaculdades; ouaos seus
vigias,nasdelegaciasdepolícia.Masnãoaosatoresativosdodrama,sobretudoquando,para
prosseguirvivendo,sãoobrigadosalutartodososdias.Haveráquemdescrevaoquadromaterial
dessabatalhacomosefosseumteatro,quando,porexemplo,sefalaemestratégiadesobrevivência,
masnarealidadeessepalco,juntocomseusatores,constituiaprópriavidaconcretadamaioriadas
populações.Acidade,prontaaenfrentarseutempoapartirdoseuespaço,criaerecriaumacultura
comacaradoseutempoedoseuespaçoedeacordoouemoposiçãoaos“donosdotempo”,que
sãotambémosdonosdoespaço.
Édessaformaque,naconvivênciacomanecessidadeecomooutro,seelaborauma
política,apolíticadosdebaixo,constituídaapartirdassuasvisõesdomundoedoslugares.Trata-se
deumapolíticadenovotipo,quenadatemavercomapolíticainstitucional.Estaúltimasefundana
ideologia do crescimento, da globalização etc. e é conduzida pelo cálculo dos partidos e das
empresas.Apolíticadospobresébaseadanocotidianovividoportodos,pobresenãopobres,eé
alimentadapelasimplesnecessidadedecontinuarexistindo.Noslugares,umaeoutraseencontram
e confundem, daí a presença simultânea de comportamentos contraditórios, alimentados pela
ideologia do consumo. Este, ao serviço das forças socioeconômicas hegemônicas, também se
entranhanavidaospobres,suscitandonelesexpectativasedesejosquenãopodemcontentar.
Nummundotãocomplexo,podeescaparaospobresoentendimentosistêmicodo
sistemadomundo.Estelhesaparecenebuloso,constituídoporcausaspróximaseremotas,pormotivaçõesconcretaseabstratas,pelaconfusãoentreosdiscursoseassituações,entreaexplicação
dascoisaseasuapropaganda.
Mashátambémadesilusãodasdemandasnãosatisfeitas,oexemplodovizinhoque
prospera,ocotidianocontraditório.Talvezporaíchegueodespertar.Numprimeiromomento,esteé,
apenas, o encontro de uns poucos fragmentos, de algumas peças do puzzle ,mastambéma
dificuldadeparaentrarnolabirinto:falta-lhesoprópriosistemadomundo,dopaísedolugar.Masa
sementedoentendimentojáestáplantadaeopassoseguinteéoseuflorescimentoematitudesde
inconformidadee,talvez,rebeldia.
Semdúvida,osbrotesindividuaisdeinsatisfaçãopodemnãoformarumacorrente.Masosmovimentosdemassanemsempreresultamdediscursosclarosebemarticulados,nemsempre
se dãopormeiodeorganizaçõesconseqüentese estruturadas. O entendimento sistemático das
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situaçõeseacorrespondentesistematicidadedasmanifestaçõesdeinconformidadeconstituem,via
deregra,umprocessolento.Masissonãoimpedeque,noâmagodasociedade,jáseestejam,aquie
ali,levantandovulcões,mesmoqueaindapareçamsilenciososedormentes.
Narealidade,umacoisasãoasorganizaçõeseosmovimentosestruturadoseoutra
coisaéoprópriocotidianocomoumtecidoflexívelderelações,adaptávelàsnovascircunstâncias,
sempre em movimento. A organização é importante, como o instrumento de agregação emultiplicaçãodeforçasafins,masseparadas.Elatambémpodeconstituiromeiodenegociação
necessárioavenceretapaseencontrarumovopatamarderesistênciaedeluta.Masaobtençãode
resultados,pormaiscompensadoresquepareçam,nãodeveestimularacristalizaçãodomovimento,
nemencorajararepetiçãodeestratégiasetáticas.Osmovimentosorganizadosdevemimitaro
cotidianodaspessoas,cujaflexibilidadeeadaptabilidadelheasseguramumautênticopragmatismo
existencialeconstituemasuariquezaefonteprincipaldeveracidade.
Cadaépocacrianovosatoreseatribuipapéisnovosaosjáexistentes.Esteétambémo
casodasclassesmédiasbrasileiras,desafiadasagoraparaodesempenhodeumaimportantetarefa
histórica,nareconstituiçãodoquadropolíticonacional.
Ochamadomilagreeconômicobrasileiropermiteadifusão,àescaladopaís,dofatoda
classemédia.Narealidade,entreasmuitas“explosões”característicasdoperíodo,estáesse
crescimento contínuo das classes médias, primeiro nas grandes cidades e depois nas cidades
menoresenocampomodernizado.Essaexplosãodasclassesmédiasacompanha,nestemeio
século, a explosãodemográfica, a explosãourbanae a explosãodo consumo e docrédito. Tal
conjuntodefenômenostemrelaçãoestruturalcomoaumentodaproduçãoindustrialeagrícola,como
tambémdocomércio,dostransportes,dastrocasdetodosostipos,dasobraspúblicas,da
administraçãoedanecessidadedeinformação.Há,paralelamente,umaexpansãoediversificaçãodo
emprego, comadifusãodosnovosterciáriosea consolidação,emmuitasáreasdopaís,deuma
pequenaburguesiaoperária.Comoamodernizaçãocapitalistatendeaoesvaziamentodocampoeé
sempreseletiva,umaparcelaimportantedosquesedirigiramàscidadesnãopôdeparticipardocircuitosuperiordaeconomia,deixandodeincluir-seentreosassalariadosformaisesóencontrando
trabalhonocircuitoinferiordaeconomia,impropriamentechamadodesetor“informal”.
ValerealçarquenoBrasildomilagre,eatéduranteboapartedadécadade1980,a
classemédiaseexpandeesedesenvolvesemquehouvesseverdadeiracompetiçãodentrodela
quantoaousodosrecursosqueomercadoouoEstadolheofereciamparaamelhoriadoseupoder
aquisitivoedoseubem-estarmaterial.Todos iamsubindojuntos,emboraparaandaresdiferentes.
Mastodosdasclassesmédiasestavamcônsciosdesuaascensãosocialeesperançososde
conseguiraindamais.Daísuarelativacoesãoeosentimentodesehavertornadoumpoderoso
estamento.Acompetiçãofoi,narealidade,comospobres,cujooacessoaosbenseserviçossetornacadavezmaisdifícil,àmedidaqueestessemultiplicam.Valeapenalembrarasfacilidadesparaa
aquisição da casa própria, mediante programas governamentais com que foram privilegiados,
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enquantoosbrasileirosmaispobresapenasforamincompletamenteatendidosnosúltimosanosdo
regimeautoritário. A classemédiaé a grandebeneficiáriadocrescimentoeconômico,domodelo
políticoedosprojetosurbanísticosadotados.
Talclassemédia,aomesmotempoemquesediversificaprofissionalmente,aumenta
seupoderaquisitivoemelhoraqualitativamentepormeiodasoportunidadesdeeducaçãoquelhesão
abertas,tudoissolevantadoàampliaçãodoseubem-estar(oquehojesechamadequalidadedevida),conduzindo-aaacreditarqueapreservaçãodassuasvantagenseperspectivasestivesse
assegurada.ConformemostraramAméliaRosaS.BarretoeAnaClaraT.Ribeiro(“Adúvidadadívida
eaclassemédia”,Lastro ,IPPUR,ano3,nº6,abrilde1999)“oacessoaocréditotransforma-seem
instrumentoparaalcançaraestabilidadesocial”.Tudooquealimentaaclassemédiadá-lhe,também
um sentimento de inclusão no sistema político e econômico e um sentimento de segurança,
estimuladopelaconstantesmedidasdopoderpúblicoemseufavor.Tratava-se,narealidade,deuma
moedadetroca,jáqueaclassemédiaconstituíaumabasedeapoioàsaçõesdogoverno.
Forma-se, dessa maneira, uma classe média sequiosa de bens materiais, a começar pela
propriedade,emaisapegadaaoconsumoqueàsecidadania,sóciadespreocupadadocrescimentoedopodercomosquaisseconfundia.Daíatolerância,senãoacumplicidadecomoregimeautoritário.
Omodeloeconômicoimportavamaisqueomodelocívico.Eramessas,aliás,condiçõesobjetivas
necessáriasaumcrescimentoeconômicosemdemocracia.Quandooregimemilitaresgotaoseu
ciclo,ademocraciaseinstalaincompletamentenadécadade1980,guardandotodosessesvíciosde
origem e sustentando um regime representativo falsificado pela ausência de partidos políticos
conseqüentes.Seguindoessalógica,asprópriasesquerdassãolevadasadarmaisespaçoàs
preocupaçõeseleitorasemenosàpedagogiapropriamentepolítica.Agêneseeasformasde
expansão das classes médias brasileiras têm relação direta com a maneira como hoje se
desempenhamospartidos.
Talsituaçãotendeamudar,quandoaclassemédiacomeçaaconheceraexperiênciada
escassez,oquepoderálevá-laaumareinterpretaçãodesuasituação.Nosanosrecentes,primeiro
deformalentaouesporádicaejáagorademodomaissistemáticoecontinuado,aclassemédia
conhece dificuldadesque lheapontamparaumasituação existencial bemdiferentedaquela que
conhecerahápoucosanos.Taisdificuldades chegamememumtropel:a educaçãodos filhos, o
cuidadocomasaúde,aaquisiçãooualugueldamoradia,apossibilidadedepagarpelolazer,afalta
de garantia no emprego, a deteorização dos salários, a poupança negativa e o crescente
endividamentoestãolevandoaodesconfortoquantoaopresenteeàinsegurançaquantoaofuturo,
tantoofuturoremotoquantooimediato.Tais incertezassãoagravadaspelasnovasperspectivada
previdênciasocialedoregimedeaposentadorias,daprometidareformadossegurosprivadoseda
legislaçãodotrabalho.Atudoissoseacrescentam,dentrodoprópriolar,aapreensãodosfilhosem
relaçãoaofuturoprofissionaleasmanifestaçõescotidianasdessedesassossego.
Jáquenãomaisencontramosremédiosquelheeramoferecidospelomercadooupelo
Estadocomosoluçãoaosseusproblemasindividuaisemergentes,asclassesmédiasganhamapercepçãodequejánãomandam,oudequejánãoparticipamdapartilhadopoder.Acostumadasa
atribuiraospolíticosasoluçãodosseusproblemas,proclamam,agora,seudescontentamento,
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distanciando-sedeles.Elasjánãovêemespelhadasnospartidoseporissoseinstalamnum
desencantomaisabrangentequantoàpolíticapropriamentedita.Issoéjustificado,emparte,pela
visãodeconsumidordesabusadoquealimentoudurantedécadas,agravadacomafragmentaçãopela
mídia,sobretudotelevisiva,dainformaçãoedainterpretaçãodoprocessosocial.Acertezadenão
mais influir politicamente é fortalecida nas classes médias, levando-as, não raro, a reagir
negativamente,istoé,adesejarmenospolíticaemenosparticipação,quandoareaçãocorretapoderiaedeveriaserexatamenteaoposta.
Aatualexperiênciadeescassezpodenãoconduzirimediatamenteàdesejávelexpansão
da consciência. E quando esta se impõe, não o faz igualmente, segundo as pessoas. Visto
esquematicamente, tal processo pode ter, como primeiro degrau, a preocupação de defender
situaçõesindividuaisameaçadasequesedesejareconstituir,retomandooconsumoeoconforto
materialcomooprincipalmotordeumaluta,que,dessemodo,podeselimitaranovasmanifestações
deindividualismo.Énumsegundomomentoquetaisreivindicações,frutodereflexãomaisprofunda,
podemalcançarumnívelqualitativosuperior,apartirdeumentendimentomaisamplodoprocesso
socialedeumavisãosistêmicadesituaçõesaparentementeisoladas.Opassoseguintepodelevaràdecisãodeparticipardeumalutapelasuatransformação,quandooconsumidorassumeopapelde
cidadão.Nãoimportaqueessemovimentodetomadadeconsciêncianãosejageral,nemigualpara
todasaspessoas.Oimportanteéqueseinstale.
Sejacomofor,asclassesmédiasbrasileiras,jánãomaisaduladas,eferidasdemorte
nosseusinteressesmateriaiseespirituais,constituem,emsuacondiçãoatual,umdadonovodavida
socialepolítica.Masseupapelnãoestarácompletoenquantonãoseidentificarcomosclamoresdos
pobres,contribuindo,juntos,paraorearranjoearegeneraçãodospartidos,inclusiveospartidosdo
progresso.Dentrodestes,sãomuitoosqueaindaaceitamastentaçõesdotriunfalismooposicionista–
semprequeasocasiõesseapresentam–eserendemaooportunismoeleitoreiro,limitando-seàs
respectivasmobilizaçõesocasionais,desgarrando-se,assim,doseupapeldeformadoresnãoapenas
daopiniãomasdaconsciênciacívicasemaqualnãopodehavernestepaíspolíticaverdadeira.
As classes média brasileira, agora mais ilustradas e, também, mais despojadas
materialmente,têm,agora,atarefahistóricadeforçarospartidosacomplementar,noBrasil,o
trabalho,apenascomeçado,deimplantaçãodeumademocraciaquenãosejaapenaseleitoral,mas,
também, econômica, política e social. A experiência da escassez, um revelador cotidiano da
verdadeirasituaçãodecadapessoaé,dessemodo,umdadofundamentalnaaceleraçãodatomada
deconsciência.Nascondiçõesbrasileirasatuais,asnovascircunstânciaspodemlevarasclasses
médiasaforçarumamudançasubstancialdoideárioedaspráticaspolíticas,queincluamumamaior
responsabilidadeideológicaeacorrespondenterepresentatividadepolítico-eleitoraldospartidos.
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Agestaçãodonovo,nahistória,dá-se,freqüentemente,demodoquaseimperceptível
paraoscontemporâneos,jáquesuassementescomeçamaseimporquandoaindaovelhoé
quantitativamente dominante. É exatamente por isso que a “qualidade” do novo pode passar
despercebida.Masahistóriasecaracterizacomoumasucessãoininterruptadeépocas.Essaidéiade
movimentoemudançaéinerenteàevoluçãodahumanidade.Édessaformaqueosperíodos
nascem,amadurecememorrem.
Nocasodomundoatual,temosaconsciênciadeviverumnovoperíodo,masonovoque
maisfacilmenteapreendemoséautilizaçãodeformidáveisrecursosdatécnicaedaciênciapelas
novasformasdograndecapital,apoiadoporformasinstitucionaisigualmentenovas.Nãosepode
dizerqueaglobalizaçãosejasemelhanteàsondasanteriores,nemmesmoumacontinuaçãodoque
haviaantes,exatamenteporqueascondiçõesdesuarealizaçãomudaramradicalmente.Ésomenteagoraqueahumanidadeestápodendocontarcomessanovaqualidadedatécnica,providenciada
peloqueseestáchamandodetécnicainformacional.Chegamosaumoutroséculoeohomem,por
meiodosavançosdaciência,produzumsistemadetécnicaspresididopelastécnicasdainformação.
Estaspassamaexercerumpapeldeeloentreasdemais,unindo-aseassegurandoapresença
planetáriadessenovosistematécnico.
Todavia,paraentenderoprocessoqueconduziuàglobalizaçãoatual,énecessáriolevar
em conta dois elementos fundamentais: o estado das técnicas e o estado da política. Há,
freqüentemente,tendênciaasepararumacoisadaoutra.Daínascemasmuitasinterpretaçõesda
históriaapartirdastécnicasoudapolítica,exclusivamente.Naverdade,nuncahouve,nahistóriahumana,separaçãoentreasduascoisas.Ahistóriaforneceoquadromaterialeapolíticamoldaas
condições que permitem a ação. Na prática social, sistemas técnicos e sistemas de ação se
confundemeépormeiodascombinaçõesentãopossíveisedaescolhadosmomentoselugaresde
seuusoqueahistóriaeageografiasefazemeserefazemcontinuadamente.
Paraamaiorpartedahumanidade,oprocessodeglobalizaçãoacabatendo,diretaou
indiretamente,influênciasobretodososaspectosdaexistência:avidaeconômica,avidacultural,as
relaçõesinterpessoaiseaprópriasubjetividade.Elenãoseverificademodohomogêneo,tantoem
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extensãoquantoemprofundidade,eoprópriofatodequesejacriadordeescassezéumdosmotivos
da impossibilidade da homogeneização. Os individuos não são igualmente atingidos por esse
fenômeno, cuja difusão encontra obstáculos na diversidade das pessoas e na diversidade dos
lugares.Narealidade,aglobalizaçãoaheterogeneidade,dando-lhemesmoumcaráteraindamais
estrutural.
Umadasconseqüênciasdetalevoluçãoéanovasignificaçãodaculturapopular,tornadacapazderivalizarcomaculturademassas.Outraéaproduçãodascondiçõesnecessáriasà
reemergênciadasprópriasmassas,apontandoparaosurgimentodeumnovoperíodohistórico,aque
chamamosdeperíododemográficooupopular(M.Santos,Espaçoesociedade ,1979).
Umexemploéacultura.Umesquemagrosseiro,apartirdeumaclassificaçãoarbitrária,
mostraria,emtodaaparte,apresençaeainfluênciadeumaculturademassasbuscando
homogeneizareimpor-sesobreaculturapopular;mastambém,eparalelamente,asreaçõesdestaculturapopular.Umprimeiromovimentoéresultadodoempenhoverticalunificador,homogeneizador,
conduzidoporummercadocego,indiferenteàsherançaseàsrealidadesatuaisdoslugaresedas
sociedades.Semdúvida,omercadovaiimpondo,commaioroumenorforça,aquieali,elementos
maisoumenosmaciçosdaculturademassa,indispensável,comoelaé,aoreinodomercado,ea
expansão paralela das formas de globalização econômica, financeira, técnica e cultural. Essa
conquista,maisoumenoseficazsegundooslugareseassociedades,jamaisécompleta,pois
encontraaresistênciadaculturapreexistente.Constituem-se,assim,formasmistassincréticas,
dentreasquais,oferecidacomoespetáculo,umaculturapopulardomesticadaassociandoumfundo
genuínoaformasexóticasqueincluemnovastécnicas.
Mashátambém–efelizmente–apossibilidade,cadavezmaisfreqüente,deuma
revanchedaculturapopularsobreaculturademassa,quando,porexemplo,elasedifundemediante
ousodosinstrumentosquenaorigemsãoprópriosdaculturademassas.Nessecaso,acultura
popularexercesuaqualidadedediscursodos“debaixo”,pondoemrelevoocotidianodospobres,
dasminorias,dosexcluídos,pormeiodaexaltaçãodavidadetodososdias.Seaquiosinstrumentos
daculturademassasãoreutilizados,oconteúdonãoé,todavia,“global”,nemaincitaçãoprimeiraéo
chamadomercadoglobal,jáquesuabaseseencontranoterritórioenaculturalocaleherdada.Tais
expressõesdaculturapopularsãotantomaisfortesecapazesdedifusãoquantoreveladorasdaquilo
que poderíamos chamar de regionalismos universalistas, forma de expressão que associa a
espontaneidadeprópriaàingenuidadepopularàbuscadeumdiscursouniversal,queacabaporser
umalimentodapolítica.
Nofundo,a questãodaescassezapareceoutravezcomocentral.Os“debaixo”não
dispõemdemeios(materiaiseoutros)paraparticiparplenamentedaculturamodernademassas.
Massuacultura,porserbaseadanoterritório,notrabalhoenocotidiano,ganhaaforçanecessária
paradeformar,alimesmooimpactodaculturademassas.Gentejuntacriaculturae,paralelamente,
criaumaeconomiaterritorializada,umaculturaterritorializada,umdiscursoterritorializado,uma
políticaterritorializada.Essaculturadavizinhançavaloriza,aomesmotempo,aexperiênciadaescassezeaexperiênciadaconvivênciaedasolidariedade.Édessemodoque,geradadedentro,
essa cultura endógena impõe-se como um alimento da política dos pobres, que se dá
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independentementeeacimadospartidosedasorganizações.Talculturarealiza-sesegundoníveis
maisbaixosdetécnicas,decapitaledeorganização,daísuasformastípicasdecriação.Istoseria,
aparentemente,umafraqueza,masnarealidadeéumaforça,jáqueserealiza,dessemodo,uma
integraçãoorgânicacomoterritóriodospobreseoseuconteúdohumano.Daíaexpressividadedos
seussímbolos,manifestadosnafala,namúsicaenariquezadasformasdeintercursoesolidariedade
entreaspessoas.Etudoissoevoluidemodoinseparável,oqueasseguraapermanênciadomovimento.
Aculturademassasproduzcertamentesímbolos.Masestes,diretaouindiretamenteao
serviçodopoderoudomercado,são,acadavez,fixos.Frenteaomovimentosocialenoobjetivode
nãopareceremenvelhecidos,sãosubstituídos,masporumaoutrasimbologiatambémfixa:oque
vemdecimaestásempremorrendoepode,porantecipação,jáservistocomocadáverdesdeoseu
nascimento.Éessaasimbologiaideológicadaculturademassas.
Jáossímbolos“debaixo”,produtosdaculturapopular,sãoportadoresdaverdadeda
existênciaereveladoresdoprópriomovimentodasociedade.
Éapartirdepremissascomoessasquesepodepensarumareemergênciadasmassas.
Paraissodevemcontribuir,apartirdasmigraçõespolíticasoueconômicas,aampliaçãodavocação
atual para a mistura intercontinental e intranacional de povos, religiões, gostos, assim como a
tendênciacrescenteàaglomeraçãodapopulaçãoemalgunslugares,essaurbanizaçãoconcentrada
járeveladanosúltimosvinteanos.
Dacombinaçãodessasduastendênciaspode-sesuporqueoprocessoiniciadohámeio
séculolevaráaumaverdadeiracolorizaçãodoNorte,à“infomalização”departedesuaeconomiae
de suas relações sociais e à generalização de certo esquema dual presente nos países
subdesenvolvidosdoSuleagoraaindamaisevidente.
Talsociedadeetaleconomiaurbanadual(masnãodualista)conduzirãoaduasformas
imbricadasdeacumulação,duasformasdedivisãodotrabalhoeduaslógicasurbanasdistintase
associadas,tendocomobasedeoperaçãoummesmolugar.Ofenômenojáentrevistodeuma
divisãodotrabalhoporcimaedeumaoutraporbaixotenderáaserreforçar.Aprimeiraprende-seao
usoobedientedastécnicasdaracionalidadehegemônica,enquantoasegundaéfundadana
redescobertacotidianadascombinaçõesquepermitemavidae,segundooslugares,operamem
diferentesgrausdequalidadeedequantidade.
Dadivisãodotrabalhoporcimacria-seumasolidariedadegeradadeforaedependente
devetoresverticaisederelaçõespragmáticasfreqüentementelongínquas.Aracionalidadeémantida
àcustadenormasférreas,exclusivas, implacáveis,radicais.Semobediênciaceganãoháeficácia.
Nadivisãodotrabalhoporbaixo,oqueseproduzéumasolidariedadecriadadedentroedependente
de vetores horizontais cimentados no território e na cultura locais. Aqui são as relações de
proximidadequeavultam,esteéodomíniodaflexibilidadetropicalcomaadaptabilidadeextremados
atores,umaadaptabilidadeendógena.Acadamovimentonovo,háumnovoreequilíbrioemfavorda
sociedadelocalereguladoporela.Adivisãodotrabalhoporcimaéumacampodemaiorvelocidade.Nela,arigidezdas
normaseconômicas(privadasepúblicas)impedeapolítica.Porbaixohámaiordinamismointrínseco,
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maiormovimentoespontâneo,maisencontrosgratuitos,maoircomplexidade,maisriqueza(ariqueza
eomovimentodoshomenslentos),maiscombinações.Produz-seumanovacentralidadedosocial,
segundoafórmulasugeridaporAnaClaraTorresRibeiro,oqueconstitui, também,umanovabase
paraaafirmaçãodoreinodapolítica.
Umaoutraglobalizaçãosupõeumamudançaradicaldascondiçõesatuais,demodoque
acentralidadedetodasasaçõessejalocalizadanohomem.Semdúvida,essadesejadamudança
apenasocorreránofimdoprocesso,duranteoqualreajustamentossucessivosseimporão.
Nas presentes circunstâncias, conforme já vimos, a centralidade é ocupada pelo
dinheiro, em suas formas mais agressivas, um dinheiro em estado puro sustentado por uma
informaçãoideológica,comaqualseencontraemsimbiose.Daíabrutaldistorçãodosentidodavida
emtodasassuasdimenções,incluindootrabalhoeolazer,ealcançandoavaloraçãoíntimadecada
pessoaeaprópriaconstituiçãodoespaçogeográfico.Comaprevalênciadodinheiroemestadopurocomomotorprimeiroeúltimodasações,ohomemacabaporserconsideradomelementoresidual.
Dessaforma,oterritório,oEstado-naçãoeasolidariedadesocialtambémsetornamresiduais.
Aprimaziadohomemsupõequeeleestarácolocadonocentrodaspreocupaçõesdo
mundo,comoumdadofilosóficoecomoumainspiraçãoparaasações.Dessaforma,estarão
asseguradosoimpériodacompaixãonasrelaçõesinterpessoaiseoestímuloàsolidariedadesocial,a
serexercidaentreindivíduos,entreoindivíduoeasociedadeeavice-versaeentreasociedadeeo
Estado,reduzindoasfraturassociais,impondoumanovaética,e,destarte,assentandobasessólidas
paraumanovasociedade,umanovaeconomia,umnovoespaçogeográfico.Opontodepartidapara
pensaralternativasseria,então,apráticadavidaeaexistênciadetodos.
Anovapaisagemsocialresultariadoabandonoedasuperaçãodomodeloatualesua
substituiçãopor umoutro, capazdegarantir paraomaiornúmeroa satisfação dasnecessidades
essenciaisaumavidahumanadigna,relegandoaumaposiçãosecundárianecessidadesfabricadas,
impostaspormeiodapublicidadeedoconsumoconspícuo.Assimointerressesocialsuplantariaa
atualprecedênciadointeresseeconômicoetantolevariaaumanovaagendadeinvestimentoscomo
a uma nova hierarquia nos gastos público, empresarais e privados. Tal esquema conduziria,
paralelamente,aoestabelecimentodenovasrelaçõesinternacionas.Nummundoemquefosse
abolidaaregradacompetitividadecomopadrãoessencialderelacionamento,avontadedeser
potêncianãoseriamaisumnorteparaocomportamentodosestados,eaidéiademercadointerno
seráumapreocupaçãocentral.
Agora,oqueestásendoprivilegiadosãoasrelaçõespontuaisentregrandesatores,mas
faltasentidoaoqueelesfazem.Assim,abuscadeumfuturodiferentetemdepassarpeloabandono
daslógicasinfernaisque,dentrodessaracionalidadeviciada,fundamentamepresidemasatuais
práticaseconômicasepolíticashegemônicas.
Aatualsubordinaçãoaomodoeconômicoúnicotemconduzidoaquesedêprioridadeàs
exportaçõeseimportações,umadasformascomasquaissematerializaochamadomercadoglobal.
Isso,todavia,temtrazidocomoconseqüênciapartodosospaísesumabaixadequalidadedevidaparaamaioriadapopulaçãoeaampliaçãodonúmerodepobresemtodososcontinentes,pois,com
aglobalizaçãoatual,deixaram-sedeladopolíticassociaisqueamparavam,empassadorecenteos
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menosfavorecidos,soboargumentodequeosrecursossociaiseosdinheirospúblicosdevem
primeiramenteserutilizadosparafacilitaraincorporaçãodospaísesnaondaglobalitária.Mas,sea
preocupaçãocentraléohomem,talmodelonãoterámaisrazãodeser.
Aidéiadairreversibilidadedaglobalizaçãoatualéaparentementereforçadacadavez
queconstatamosainter-relçãoatualentrecadapaíseoquechamamosde“mundo”,assimcomoa
interdependência,hojeindiscutível,entreahitóriagerale ashistóriasparticulares.Naverdade,isso
tambémtemhavercomaidéia,tambémestabelicida,dequeahistóriaseriasemprefeitaapartirdos
paísescentrais,istoé,daEuropaedosEstadosUnidos,aosquais,demodogeral,opresenteestado
decoisasinteressa.
Quando, porém, observamos de perto aspectos mais estruturais da situação atual,
verificamosqueocentrodosistemabuscaimporumaglobalizaçãodecimaparabaixoaosdemais
países,enquandonoseuâmagoreinaumadisputaentreEuropa,JapãoeEstadosUnidos,quelutam
paraguardar eampliarsuapartedomercadoglobale afirmarahegemoniaeconômica,política e
militarsobreasnaçõesquelhessãomaisdiretamentetributáriassem,todavia,abandonaraidéiade
ampliarsuaprópriaáreadeinfluência.Então,qualquerfraçãodemercado,nãoimportaondeesteja,
setornafundamentalàcompetitividadeexitosadasempresas.Estaspõememaçãosuasforçase
incitamosgovernosrespectivosaapoiá-las.OlimitedacooperaçãodentrodaTríade(Estados
Unidos,Europa,Japão)éessamesmacompetição,demodoquecadaumnãopercaterrenofrente
aooutro.
Entretanto, já que nesses países a idéia de cidadania ainda é forte, é impossível
descuidardointeressedaspopulaçõesousuprimirinteiramentedireitosadquiridosmediantelutas
seculares.OquepermanececomolembrançadoEstadodebem-estarbastaparacontrariaras
pretensõesdecompletaautonomiadasempresastransnacionaisecontribuiparaaemergência,
dentrodecadanação,denovascontradições.Comoasempresastendemaexercersuavontadede
podernoplanoglobal,alutaentreelasseagrava,arrastandoospaísesnessacompetição.Trata-se,
naverdade,deumaguerra,protagonizadatantopelosEstadoscomopelasrespectivasempressasglobai,daqualparticipamcomoparceirosmaisfrágeisospaísessubdesenvolvidos.
Agoramesmo,aexperiênciadosmercadoscomunsregionaisjámostraaospaíses
chamados“emergentes”queacooperaçãodatríade,emconjuntoouseparadamente,émais
representativa do interesse próprio das grandes potências que de uma vontade de efetiva
colaboração.Nessaguerra,osorganismosinternacionaiscapitaneadospeloFundoMonetário,pelo
BancoMundial,peloBIDetc.,exercemumpapeldeterminante,emsuaqualidadedeintérpretesdos
interessescomunsaosEstadosUnidos,àEuropaeaoJapão.Taisrealidadeslevamaduvidarda
vontade de cada um e do conjunto desses atores hegemônicos de construir um verdadeiro
universalismoepermitepensarque,nascondiçõesatuais,essaduplacompetiçãoperdurará.
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Os países subdesenvolvidos, parceiros cada vez mais fragilizados nesse jogo tão
desigual,mascedooumaistardecompreenderãoquenessasituaçãoacooperaçãolhesaumentaa
dependência.Daía inutilidadedosesforçosdeassociaçãodependentefaceaospaísescentrais,no
quadrodaglobalizaçãoatual.Essemundoglobalizadoproduazumaracionalidadedeterminante,mas
quevai,poucoapouco,deixandodeserdominante.Éumaracionalidadequecomandaosgrandesnegócioscadavezmaisabrangentesemaisconcentradosempoucasmãos.Essegrandesnegócios
sãodeinteressediretodeumnúmerocadavezmenordepessoaseempressas.Comoamaiorparte
dahumanidadeédiretaouindiretamentedointeressedeles,poucoapoucoessarealidadeé
desvendadapelaspessoasepelospaísesmaispobres.
Há, em tudo isso, uma grande contradição. Abandonamos as teorias do
subdesenvolvimento,oterceiro-mundismo,queeramnossabandeiranasdécadasde1950-60.
Todavia, graças à globalização, está ressurgindo algo muito forte: a história da maioria da
humanidadeconduzàconsciênciadasobrevivênciadessatercermundização (que,dealgumaforma
inclui,também,umapartedapopulaçãodospaísesricos)(SamuelPinheiroGuimarães, Quinhentos
anosdeperiferia,1999).
Écertoqueatomadadeconsciênciadessasituaçãoestruturaldeinferioridadenão
chegará aomesmo tempo para todos os países subdesenvolvidos e, muitomenos será, neles,
sincrônicaavontadedemudançafrenteaessetipoderelação.Pode-se,noentanto,admitirque,
maiscedooumaistardeascondiçõesinternasacadapaís,provocadasemboapartepelassuas
relações externas, levarãoa umarevisãodospactosqueatualmenteconformam aglobalização.
Haverá,então,umavontadededistanciamentoeposteriormentededesengajamento,conforme
sugeridoporSamirAmin,rompendo-se,dessemodo,aunidadedeobediênciahojepredominante.
Jungidos sob o peso de uma dívida externa que não podempagar, os píses subdesenvolvidos
assistemàcriaçãoincessantedecarênciasedepobresecomeçamareconhecerusaatualsituação
deingovernabilidade,forçadosqueestãoatransferirparaosetoreconômicorecursosquedeveriam
serdestinadosàáreasocial.
Na verdade, já são muito numerosas as manifestações de desconforto com as
conseqüênciasdanovadependênciaedonovoimperialismo(ReinaldoGonçalves,Globalizaçãoe
desnacionalização,1999).tornam-seevidentesoslimitesdaaceitaãodetalsituação.Pordiferentes
razõesemeiosdiversos,asmanifestaçõesdeirredentismojásãoclaramenteevidentesempaíses
comooIrã,oIraque,oAfeganistão,mas,também,aMalásia,oPaquistão,semcontarcomasformas
particularesdeinclusãodaÍndiaedaChinanaglobalizaçãoatual,quenadatêmdesimples
obediênciaouconformidade,comoapropagandoocidentalquerfazercrer.PaísescomoaChinae
Índia,comumterçodapopulaçãomundialeumapresençainternacionalcadavezmaisativa,
dificilmenteaceitarão,umaououtra,assimcomoaRússia,jogaropapelpassivodenação-mercado
para os blocos economicamente hegemônicos. Uma reação em cadeia poderá ensejar o
renascimento de algo como o antigo élan terceiromundista tal como o presidente Nyerere, da
Tanzânia,haviasugeridoemseulivroOdesafioaoSul .
Alémdessatendênciaverossímil,considerem-seasformasdedesordemdavidasocial
quejásemultiplicamemnumerosospaísesequetendemaaumentar.OBrasiléemblemáticocomoexemplo,nãosesabendo,porém,atéquandoserápossívelmanteromodeloeconômicoglobalitárioe
aomesmotempoacalmaraspopulaçõescrescentementeinsatisfeitas.
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Aspotênciascentrais(EstadosUnidos,Europa,Japão),apesardasdivergênciaspela
competiçãoquantoaomercadoglobaltêminteressescomunsqueasincitarãoabuscaradaptarsuas
regrasdeconvivênciaàpretensãodemanterahegemonia.Como,todavia,aglobalizaçãoatualéum
período de crise permanente, a renovação do papel hegemônico da Tríade levará a maiores
sacrifíciosparaorestodacomunidadedasnações,incentivando,assim,nestas,abuscadeoutras
soluções.A combinaçãohegemônicadeque resultam as formaseconômicasmodernasatinge
diferentementeosdiversospaíses,asdiversasculturas,asdiferentesáreasdentrodeummesmo
país. A diversidade sociogeográfica atual o exemplifica. Sua realidade revela um movimento
globalizadorseletivo,comamaiorpartedapopuaçãodoplanetasendomenosdiretamenteatingida-
eemcertoscasospoucoatingida–pelaglobalizaçãoeconômicavigente.NaÁsia,naÁfricaemesmo
naAméricaLatina,avidalocalsemanifestaoumesmotempocomoumarespostaeumareaçãoa
essaglobalização.NãopodendoessaspopulaçõesmajoritáriasconsumiroOcidenteglobalizadoem
suasformaspuras(financeira,econômicaecultural),asrespectivasáreasacabamporseroslugares
ondeaglobalizaçãoérelativizadaourecusada.Umacoisaparececerta:asmudançasaseremintroduzidas,nosentidodealcançarmos
umaoutraglobalização,nãoviramdocentrodosistema,comoemoutrasfsesderupturanamargem
decapitalismo.Asmudançassairãodospaísessubdesenvolvidos.
Éprevisívelqueosistemismosobreoqualtrabalhaaglobalizaçãoatualerga-secomo
umobstáculoetornedifícilamanifestaçãodavontadededesengajamento.Masnãoimpediraque
cadapaíselabore,a partirdecaracterísticaspróprias,modelosalternativos,nemtãopoucoproibirá
que associações de tipo horizontal se dêem entre países vizinhos igualmente hegemonizados,
atribuindoumanovafeiçãoaosblocosregionaiseultrapassandoaetapadasrelaçõesmeramente
comerciais para alcançar um estágio mais elevado de cooperação. Então, uma globalização
constituídadebaixoparacima,emqueabuscadeclassificaçãoentrepotênciasdeixedeseruma
meta,poderápermitirquepreocupaçõesdeordemsocial,culturalemoralpossamprevalecer.
Aglobalizaçãoatual e as formas brutas que adotou para impor mudanças levamà
urgentenecessidadedereveroquefazercomascoisas,asidéiasetambémcomaspalavras.
Qualquerquesejaodebate,hoje,reclamaaexplicitaçãoclaraecoerentedosseustermos,semoquesepodefacilmentecairnovazioounaabigüidade.Éocasodoprópriodebatenacional,exigente
denovasdefiniçõesevocabuláriorenovado.Comosempre,opaísdeveservistocomoumasituação
estruturalemmovimento,naqualcadaelementoestáintimamenterelacionadocomosdemais.
Agora,porém,nomundodaglobalização,oreconhecimentodessaestruturaédifícil,do
mesmomodoqueavizualizaçãodeumprojetonacionalpodetornar-seobscura.Talvezporisso,os
projetosdasgrandesempresas,impostospelatiraniadasfinançasetrombeteadospelamídia,acabam,deumjeitooudeoutro,guiandoaevoluçãodospaíses,emacordoounãocomasinstâncias
públicasfreqüentementedóceisesubservientes,deixandodeladoodesenhodeumageopolítica
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propriaacadanaçãoequeleveemcontasuascaracterísticaseinteresses.
Assim,as noçõesdedestinonacionale deprojetonacional cedemfreqüentementea
frentedacenaapreocupaçõesmenores,pragmáticas,imediatistas,inclusiveporque,pelasrazõesjá
expostas,ospartidospolíticosnacionaisraramenteapresentamplataformasconduzidasporobjetivos
políticose sociaisclarose que exprimamvisõesdeconjunto (cesarBenjamine outros, Aopção
brasileira ,1998).Aidéiadehistória,sentido,destinoéamesquinhadaemnomedaobtençãodemetasestatísticas,cujaúnicapreocupaçãoéoconformismofrenteàsdeterminaçõesdoprocesso
atualdeglobalização.Daíaproduçãosemcontrapartidadedesequilíbriosedistorçõesestruturais,
acarretandomaisfragmentaçãoedesigualdade,tantomaisgravesquantomaisabertoseobedientes
semostremospaíses.
Tomemos o casodo Brasil.É maisqueuma simplesmetáforapensarque uma das
formasdeabordagemdaquestãoseriaconsiderar,dentrodanação,aexistência,narealidade,deduasnações.Umanaçãopassivaeumaativa.Dofatodeseremascontabilidadesnacionais
globalizadas–eglobalizantes!-,agrandeironiaéquepassaaconsiderarcomonaçãoativaaquela
queobeececegamenteaodesígnioglobalitário,enquantoorestoacabaporcostituir,dessepontode
vista,a naçãopassiva.A fazervaler taispostulados,a naçãoativaseriaa daquelesqueaceitam,
pregameconduzemumamodernizaçãoquedápreeminênciaaosajustesqueinteressamaodinheiro,
enquantoanaçãopassivaseriaformadaportudooumais.
Serãomesmoadequadasessasexpressões?Ouaquiloaque,dessemodo,seestá
chamadodenaçãoativaseria,narealidade,anaçãopassiva,enquantoanaçãochamadapassiva
seria,defato,anaçãoativa?
Achamadanaçãoativa,istoé,aquelaquecompareceeficazmentenacontabilidade
nacionalenacontablilidadeinternacional,temseumodeloconduzidopelasburguesiasinternacionais
epelasburguesiasnacionaisassociadas.Éverdade,também,queoseudiscursoglobalizado,para
tereficácialocal,necessitadeumsotaquedomésticoeporissoestimulaumpensamentonacional
associadoproduzidopormentescativas,subvencionadasounão.Anaçãochamadaativaalimenta
suaaçãocomaprevalênciadeumsistema ideológicoquedefineas idéiasdeprosperidadeede
riquezae,paralelamente,aproduçãodaconformidade.A “naçãoativa”aparececomofluida,veloz,
externamentearticulada,internamentedesarticuladora,entrópica.Seráeladinâmica?Comoessa
idéiaémuitodifundida,cabelembraquevelocidadenãoédinamismo.Essemovimentonãoépróprio,
masatribuído, tomadoemprestadoaummotorexterno;ele nãoé genuíno, nãotem finalidade, é
desprovidodetecnologia.Trata-sedeumaagitaçãocega,umprojetoequivocado,umdinamismodo
diabo.
Anaçãochamadapassivaéconstituídapelagrossamaiorpartedapopulaçãoeda
economia,aquelesqueapenasparticipamdemodoresidualdomercadoglobaloucujasatividadesconseguemsobreviveràsuamargem,sem, todavia,entrarcabalmentenacontabilidadepúblicaou
nasestatísticasoficiais.Opensamentoquedefineecompreendeosseusatoreséodointelectual
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públicoengajadonadefesadosinteressesdamaioria.
Asatividadesdessanaçãopassivasãofreqüentementemarcadaspelacontradiçãoentre
aexigênciapráticadaconformidade,istoé,anecessidadedeparticipardiretaouindiretamenteda
racionalidadedominante,eainsatisfaçãoeinconformismodosatoresdiantederesultadossempre
limitados, daí o encontrocotidiano deuma situaçãode inferiorização, tornadapermanente, o que
reforçaemseusparticipantesanoçãodeescassezeconvocaareinterpretaçãodaprópriasituaçãoindividualdiantedolugar,dopaísedomundo.
A“naçãopassiva”éestaticamentelenta,colodaàsrugosidadesdoseumeiogeográfico,
localmente enraizada e orgânica. É tambéma nação que mantém relações de simbiose como
entornoimediato,relaçõescotidianasquecriam,espontaneamentee à contracorrente,umacultura
própria,endógena,resistente,quetambémconstituiumalicerce,umabasesólidaparaaproduçãode
umapolítica. Essa naçãopassiva mora ,aliondeviveeevolui,enquantoaoutraapenascircula,
utilizandooslugarescomomaisumrecursoaseuserviço,massemoutrocompromisso.
Numprimeiromomento,desarticuladapela“naçãoativa”,a“naçãopassiva”nãopode
alcançar um projeto conjunto. Aliás, o império dos interesses imediatos que se manifestam noexercício praguimáticoda vida contribui, sem dúvida, para taldesarticulação.Mas, numsegundo
momento,atomadadecoinsciênciatrazidapeloseuenraizamentonomeioe,sobretudopelasua
experiênciadeescassez,tornapossívelaproduçãodeumprojeto,cujaaviabilidadeprovémdofato
dequeanaçãochamadapassivaéformadapelamaiorpartedapopulação,alémdeserdotadade
umdinamismopróprio,autêntico,fundadoemsuaprópriaexistência.Daí,suaveracidadeeriqueza.
Podemos desse modo admitir que aquilo que, mediante o jogo de espelhos da
globalização,aindasechamadenaçãoativaé,naverdade,anaçãopassiva,enquantooque,pelo
mesmoparâmetros,éconsideradoanaçãopassiva,contitui,jánopresente,massobretudonaótica
dofuturo,a verdadeiranaçãoativa.Suaemergênciaserá tantomaisviável, rápidae eficazsese
reconhecemerevelamaconfluênciadosmodosdeexistênciaedetrabalhodosrespectivosatorese
aprofundaunidadedoseudestino.
Aqui,opapeldosintelectuaisserá,talvez,muitomaisdoquepromoverumsimples
combate às formas de ser da “nação ativa” - tarefa importante mas insuficiente, nas atuais
circunstâncias- ,devendoempenhar-sepormostraranaliticamente,dentrodotodonacional,avida
sistêmicadanaçãopassivaesuasmanifestaçõesderesitênciasaumaconquistaindiscriminadae
totalitáriadoespaçosocialpelachamadanaçãoativa.Talvisãorenovadadarealidadecontraditória
decadafraçãodoterritóriodeveseroferecidaàreflexãodasociedadeemgeral,tantoàsociedade
organizada nas associações, sindicatos, igrejas, partidos comoà sociedade desorganizada,que
encontrarãonessanovainterpretaçãooselementosnecessáriosparaapostulaçãoeoexercíciode
umaoutrapolítica,mascondizentecomabuscadointeressesocial.
Aglobalizaçãoatualémuitomenosumprodutodasidéiasatualmentepossíveise,muito
mais,oresultadodeumaideologiarestritivaadredeestabelecida.Jávimosquetodasasrealizações
atuais,oriundasdeaçõeshegemônicas,têmcomobasecontruçõesintelectuaisfrabricadasantesmesmodafabricaçãodascoisasedasdecisõesdeagir.Aintelectualizaçãodavidasocial,
recentementealcançada,vemacompanhadadeumaforteideologização.
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Todavia,oqueagoraestamosassistindoemtodaaparteéumatendênciaàdissolução
dessasideologiasnoconfrontocomaexperiênciavividadospovosedosindivíduos.Oprópriocredo
financeiro,vistopelaslentesdosistemaeconômicoaquedeuorigem,ouexaminadoisoladamente,emcadapaís,aparecemenosaceitávele,apartirdesuacontestação,outroselementosdaideologia
dopensamentoúnicoperdemforça.
Além das múltiplas formas com que, no período histórico atual, o discurso da
globalizaçãoservedealicerceàsaçõeshegemônicasdosEstados,dasempressasedasinstituições
internacionais,opapeldaideologianaproduçãodascoisaseopapelideológicodosobjetosquenos
rodeiamcontribuem,juntos,paraagravaressasensaçãodequeagoranãoháoutrofuturo senão
aquelequenosvirácomoumpresenteampliado e nãocomooutracoisa.Daía pesadaondade
conformismoeinaçãoquecaracterizanossotempo,contaminandoosjovense,atémesmouma
densacamadadeintelectuais.Émuitodifundidaaidéiasegundoaqualoprocessoeaformaatuaisdaglobalização
seriamirreverssíveis.Issotambémtemavercomaforçacomaqualofenômenoserevelaeinstala
emtodososlugareseemtodasasesferasdavida,levandoapensarquenãoháalternativasparao
presenteestadodecoisas.
Noentanto, essavisão repetitiva domundo confundeo que já foi realizado com as
perspectivasderealização.Paraexorcizaresserisco,devemosconsiderarqueomundoé formado
nãoapenaspeloquejáexiste(aqui,ali,emtodaparte),maspeloquepodeefetivamenteexistir(aqui,
ali,emtodaparte).Omundodatadodehojedeveserenxergadocomooquenaverdadeelenostraz,
isto é, somente, o conjunto presente de possibilidades reais, concretas, todas factíveis sob
determinadascondições.
Omundodefinidopelaliteraturaoficialdopensamentoúnicoé,somente,oconjuntode
formasparticularesderealizaçãodeapenascertonúmerodessaspossibilidades.Noentanto,um
mundoverdadeirosedefiniráapartirdalistacompletadepossibilidadespresentesemcertadatae
queincluemnãosóoquejáexistesobreafacedaterra,comotambémoqueaindanãoexiste,masé
empiricamentefactível.Taispossibilidades,aindanãorealizadas,jáestãopresentescomotendência
ou como promessa de realização. Por isso, situações como a que agora defrontamosparecem
definitivas,masnãosãoverdadeseternas.
Ésomenteapartirdessaconstatação,fundadanahistóriarealdonossotempo,quese
tornapossivélretornar,demaneiraconcreta,aidéiadeutopiaedeprojeto.Esteseráoresultadoda
conjugaçãodedoistiposdevalores.Deumlado,estãoosvaloresfundamentais,essenciais,
fundadoresdohomem,válidosemqualquertempoelugar,comoaliberdade,adignidade,afelicida;
deoutrolado,surgemosvalorescontingentes,devidosàhistóriadopresente,istoé,àhistoriaatual.
Adensidadeeafactibilidadehistóricadoprojeto,hoje,dependemdamaneiracomoempreendamossuacombinação.
Porisso,élícitodizerqueofuturosãomuitos;eresultarãodearranjosdiferentes,
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segundonossograudecoinsciência,entreo reinodaspossibilidadesedavontade.É assimque
iniciativas serão articuladas e obstáculos serão superados, permitindo contrariar a força das
estruturas dominantes, sejam elas presentes ou herdadas. A identificação das etapas e os
ajustamentosaempreenderduranteocaminhodependerãodanecessáriaclarezadoprojeto.
Conforme já mencionamos, alguns dados do presente nos abrem, desde já, a
perspectivadeumfuturodiferente,entreoutros:atendênciaàmisturageneralizadaentrepovos;avocaçãoparaumaurbanizaçãoconcentrada;opesodaideologianascontruçõeshistóricasatuais;o
empobrecimentorelativoeabsolutodaspopulaçõeseaperdadequalidadedevidadasclasses
médias;ograuderelativa“docilidade”dastécnicascontemporâneas;a“politizaçãogeneralizada”
permitidapelo exessodenormas ( MaríaLauraSilveira, Umpaís,umaregião.Fimdeséculoe
modernidadesnaArgentina ,1999);ea realizaçãopossivéldohomemcoma grandemutaçãoque
desponta.
Lembramos, também, que um dos elementos, ao mesmo tempo ideológico e
empiricamenteexistencial,dapresenteformadeglobalizaçãoéacentralidadedoconsumo,coma
qualmuitotêmaveravidadetodososdiasesuasrepercussõesaprodução,asformaspresentesdeexistênciaeasperspectivasdaspessoas.Masasatuaisrelaçõesinstáveisdetrabalho,aexpansão
dedesempregoeabaixadosaláriomédioconstituemumcontrasteemrelaçãoàmultiplicaçãodos
objetoseserviços,cujaaacessibilidadesetorna,dessemodo,improvável,aomesmotempoqueaté
osconsumostradicionaisacabamsendodifíceisouimpossíveisparaumaparcelaimportanteda
população.Écomoseofeitiçovirassecontraofeiticeiro.
Essarecriaçãodanecessidade,dentrodeummundodecoisaseserviçosabundantes,
atingecadavezmaisasclassesmédias,cujadefinição,agora,serenova,àmediaque,como
tambémjávimos,passamaconheceraexperiênciadaescassez.Esseéumdadorelevantepara
compreenderamudançanavisibilidadedahistóriaqueestáprocessando.Detalmodo,àsvisões
oferecidaspelapropagandaostensivaoupelaideologiacontidanosobjetosenosdiscursosopõem-
seasvisõespropociadaspelaexistência.Épormeiodesseconjuntodemovimentos,quese
reconheceumasaturaçãodossímbolospré-construídosequeoslimitesdatolerânciaàs ideologias
sãoultrapassados,oquepermiteaampliaçãodocampodaconsciência.
Nas condições atuais, essa evolução pode parecer impossível, em vista de que as
soluçõesatéaqualoúnicodinamismopossíveléodagrandeeconomia,combasenosreclamosdo
sistemafinanceiro.Porexemplo,osesforçospararestabeleceroempregodirigem-se,sobretudo,
quandonãoexclusivamente,aocircuitosuperiordaeconomia.Masessenãoéoúnicocaminhoe
outrosremédiospodemserbuscados,segundoaorientaçãopolítico-ideológicadosresponsáveis,
levando em conta uma divisão do trabalho vinda “de baixo”, fenômeno típico dos países
subdesenvolvidos(M.Santos,Oespaçodividido ,1978),masqueagoratambémseverificanomundo
chamadodesenvolvido.
Poroutrolado,namedidaemqueastécnicascadavezmaissedãocomonormasea
vidasedesenrolanointeriordeumoceanodetécnicas,acabamosporviverumapolitização
generalizada.A rapidez dos processos conduza uma rapidez nasmudançase,porconseguinte,
aprofundaanecessidadedeproduçãodenovosentesorganizadores.Issosedánosdiversosníves
davidasocial.Nadaderelevanteéfeitosemnormas.NestefimdoséculoXX,tudoépolítica.E,graças às técnicas ultilizadas no período contemporâneo e ao papel centralizador dos agentes
hegemônicos,quesãoplanetários,torna-seubíquaapresençadeprocessosdistorcidoseexigentes
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de reordenamento. Por isso a política aparece como um dado indispensável e onipresente,
abrangendopraticamenteatotalidadedasações.
Assistimos,assim,aoimpériodasnormas,mastambémaoconflitoentreelas,incluindo
opapelcadavezmaisdominantedasnormasprivadasnaproduçãodaesferapública.Nãoéraroque
asregrasestabelecidaspelasempresasafetemmaisqueasregrascriadaspeloEstado.Tudoisso
atingeedesnorteiaosindivíduos,produzindoumaatmosferadeinsegurançaeatémesmodemedo,maslevandoosquenãosucumbeminteiramenteaoseuimpérioàbuscadaconsciênciaquantoao
destinodoPlanetae,logo,doHomem.
Ossistemastécnicosdequesevalemosatuaisatoreshegemônicosestãosendo
ultilizadosparareduziroescopodavidahumanasobreoplaneta.Noentanto,jamaishouvena
história sistemas tão propícios a facilitar a vida e a proporcionar a felicidade dos homens. A
materialidadequeomundodaglobalizaçãoestárecriandopermiteumusoradicalmentediferente
daquelequeeraodabasematerialdaindustrializaçãoedoimperialismo.Atécnicadasmáquinasexigiainvestimentosmaciços,seguindo-seamassividadeea
concentração dos capitais e do próprio sistema técnico. Daí a inflexibilidade física e moral das
operações,levandoaumusolimitado,direcionado,dainteligênciaedacriatividade.Jáocomputador,
símbolodasdtécnicasda informação,reclamacapitaisfixosrelativamentepequenos,enquantoseu
usoémais exigentede inteligência. O investimentonecessário pode ser fragmentado e torna-se
possívelsuaadptaçãoaosmaisdiversosmeios.Pode-seatéfalardaemergênciadeumartesanato
denovotipo,servidoporvelozesinstrumentosdeproduçãoededistribuição.
Dir-se-á,então,queocomputadorreduz–tendencialmente–oefeitodapretensalei
segundoaqualainovaçãotécnicaconduzparalelamenteaumaconcentraçãoeconômica.Osnovos
instrumentos,pelasuapróprianatureza,abrempossibilidadesparasuadisseminaçãonocorposocial,
superandoasclivagenssocioeconômicaspreexistentes.
Sobcondiçõespolíticasfavoráveis,amaterialidadesimbolizadapelocomputadoré
capaznãosódeasseguraraliberaçãodainventividadecomotorná-laefetiva.Asdenecessidade,nas
sociedadescomplexase socioeconomicamentedesiguais,de adotaruniversalmentecomputadores
deúltimageraçãoafastará,também,oriscodequedistorçõesedesequilíbriossejamagravados.Ea
idéiadedistânciacultural,subjacenteàteoraeàpráticadoimperialismo,atinge,também,seulimite.
Astécnicasconteporâneassãomaisfáceisdeinventar, imitaroureproduzirqueosmodosdefazer
queasprecederam.
AsfamíliasdetécnicasemegentescomofimdoséculoXX–combinandoinformáticae
eletrônica, sobretudo – oferecem a possibilidade de superação do imperativo da tecnologia
hegemônicaeparalelamenteadmitemaproliferaçãonovosarranjos,comaretomadadacriatividade.
Isso,aliás,jáestásedandonasáreasdasociedadeemqueadivisãodotrabalhoseproduzdebaixo
paracima.Aqui,aproduçãodonovoeousoeadifusãodonovodeixamdesermonopolizadospor
umcapitalcadavezmaisconcentradoparapertenceraodomíniodomaiornúmero,possibilitando
afinalaemergênciadeumverdadeiromundodainteligência.Dessemodo,atécnicapodevoltaraser
oresultadodoencontrodoengenhohumanocomumpedaçodeterminadodanatureza–cadavezmaismodificada-,permitindoqueessarelaçãosejafundadanasvirtualidadesdoentornogeográfico
esocial,demodoaassegurararestauraçãodohomememsuaessência.
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imaginosaeemocionada,atribuindo-se,assim,umpapeldiametralmenteopostoaoquelheéhoje
conferidonosistemadamídia.
Apartirdessasmetamorfoses,pode-sepensarnaproduçãolocaldeumentendimentoprogressivodomundoedolugar,comaproduçãoindígenadeimagens,discursos,filosofias,juntoà
elaboraçãodeumnovoethosedenovasideologiasenovascrençaspolíticas,amparadasna
ressurreiçãodaidéiaedapráticadasolidariedade.
Omundodehojetambémautorizaumaoutrapercepçãodahistóriapormeioda
contemplação da universalidade empírica constituída com a emergência das novas técnicas
planetarizadaseaspossibilidadesabertaaseuuso.Adialéticaentreessauniversalidadeempíricae
as particularidades encorajará a superação das práxis invertidas, até agora comandadas pela
ideologiadominante,eapossibilidadedeultrapassaroreinodanecessidade,abrindolugarparaa
utopiaeparaaesperança.Nascondiçõeshistóricasdopresente,essanovamaneiradeenxergara globalização permitirá distinguir, na totalidade, aquilo que já é dado e existe como um fato
consumado,eaquiloqueépossível,masaindanãorealizado,vistosumeoutrodeformaunitária.
Lembremo-nosda liçãodeA.Schmidt(TheconceptofnatureinMarx ,1971)quandodiziaque“a
realidadeé,alémdisso,tudoaquiloemqueaindanãonostornamos,ouseja,tudoaquiloqueanós
mesmosnosprojetamoscomosereshumanos,porintermédiodosmitos,dasescolhas,dasdecisões
edaslutas”.
Acriseporquepassahojeosistema,emdiferentespaísesecontinentes,põeàmostra
nãoapenasaperversidade,mastambémafraquezadarespectivaconstrução.Isso,conformevimos,
jáestálevandoaodescréditodosdiscursosdominantes,mesmoqueoutrodiscurso,decríticaede
proposição,aindanãohajasidoelaboradodemodosistêmico.
Oprocessodetomadadeconsciência–jáovimos–nãoéhomogêneo,nemsegundoos
lugares,nemsegundoasclassessociaisousituaçõesprofissionais,nemquantoaosindivíduos.A
velocidadecomquecadapessoaseapropriadaverdadecontidanahistóriaédiferente,tantoquanto
aprofundidadeecoerênciadessaapropriação.Adescobertaindividualé,já,umconsiderávelpassoà
frente, aindaquepossapareceraoseuportadorumcaminhopenoso,àmedidadas resistências
circundantesaessenovomododepensar.Opassoseguinteéaobtençãodeumavisãosistêmica,
istoé,apossibilidadedeenxergarassituaçõeseascausasatuantescomoconjuntosedelocalizá-los
comoumtodo,mostrandosuainterdependência.Apartirdaí,adiscussãosilenciosaconsigomesmoe
odebatemaisoumenospúblicocomosdemaisganhamumanovaclarezaedensidade,permitindo
enxergarasrelaçõesdecausaeefeitocomoumacorrentecontínua,emquecadasituaçãoseinclui
numarededinâmica,estruturada,àescaladomundoeàescaladoslugares.
Éapartirdessavisãosistêmicaqueseencontram,interpenetramecompletamas
noçõesdemundoedelugar,permitindoentendercomocadalugar,mastambémcadacoisa,cada
pessoa,cadarelaçãodependemdomundo.
Taisraciocíniosautorizamumavisãocríticadahistórianaqualvivemos,oqueincluiuma
apreciaçãofilosóficadanossaprópriasituaçãofrenteàcomunidade,ànação,aoplaneta,juntamentecomumanovaapreciaçãodenossoprópriopapelcomopessoa.Édessemodoque,atémesmoa
partirdanoçãodoqueéserumconsumidor,poderemosalcançaraidéiadehomemintegralede
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cidadão.Essavalorizaçãoradicaldoindivíduocontribuiráparaarenovaçãoqualitativadaespécie
humana,servindodealicerceaumanovacivilização.
A reconstrução vertical do mundo, tal como a atual globalização perversa está
realizando,pretendeimporatodosospaísesnormascomunsdeexistênciae,sepossível,aomesmo
tempoerapidamente.Masistonãoédefinitivo.Aevoluçãoqueestamosentrevendoterásua
aceleraçãoemmomentosdiferenteseempaísesdiferentes,e serápermitidapeloamadurecimentodacrise.
Essemundonovoanunciadonãoseráumaconstruçãodecimaparabaixo,comoaque
estamoshojeassistindoedeplorando,masumaedificaçãocujatrajetóriavaisedardebaixopara
cima.
Ascondiçõesacimaenumeradasdeverãopermitiraimplantaçãodeumnovomodelo
econômico,socialepolítico,que,apartirdeumanovadistribuiçãodosbenseserviços,conduzaà
realizaçãodeumavidacoletivasolidáriae,passandodaescaladolugaràescaladoplaneta,
assegureumareformadomundo,porintermédiodeoutramaneiraderealizaraglobalização.
Aocontráriodoquetantosedisse,ahistórianãoacabou;elaapenascomeça.Anteso
que havia era uma história de lugares, regiões, países. As histórias podiam ser, no máximo,
continentais,emfunçãodosimpériosqueseestabeleceramaumaescalamaisampla.Oqueaté
entãosechamavadehistóriauniversaleraavisãopretensiosadeumpaísoucontinentesobreos
outros,consideradosbárbarosouirrelevantes.Chegava-seadizerdetaloutalpovoqueeleerasem
história...
O ecúmeno era formado de frações separadas ou escassamente relacionadas do
planeta.Somenteagoraahumanidadepodeidentificar-secomoumtodoereconhecersuaunidade,
quandofazsuaentradanacenahistóricacomoumbloco.Éumaentradarevolucionária,graçasà
interdependênciasdaseconomias,dosgovernos,doslugares.Omovimentodomundorevelaumasó
pulsação,aindaqueascondiçõessejamdiversassegundocontinentes,países,lugares,valorizados
pelasuaformadeparticipaçãonaproduçãodessanovahistória.Vivemos em um mundo complexo, marcado na ordem material pela multiplicação
incessantedonúmerodeobjetosenaordemimaterialpelainfinidadederelaçõesqueaosobjetos
nosunem.Nosúltimoscinqüentaanoscriaram-semaiscoisasdoquenoscinqüentamilprecedentes.
Nossomundoécomplexoeconfusoaomesmotempo,graçasàforçacomaqualaideologiapenetra
objetoseações.Porissomesmo,aeradaglobalização,maisdoquequalqueroutraantesdela,é
exigentedeumainterpretaçãosistêmicacuidadosa,demodoapermitirquecadacoisa,naturalou
artificial,sejaredefinidaemrelaçãocomotodoplanetário.Essatotalidade-mundosemanifestapela
unidadedastécnicasedasações.
Agrandesortedosquedesejampensaranossaépocaéaexistênciadeumatécnicaglobalizada,diretaouindiretamentepresenteemtodososlugares,edeumapolíticaplanetariamente
exercida,queuneenorteiaosobjetostécnicos.Juntas,elasautorizamumaleitura,aomesmotempo
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geraleespecífica,filosóficaeprática,decadapontodaTerra.
Nesseemaranhadodetécnicasdentrodoqualestamosvivendo,ohomempoucoa
poucodescobresuasnovasforças.Jáqueomeioambienteécadavezmenosnatural,ousodo
entornoimediatopodesermenosaleatório.Ascoisasvalempelasuaconstituição,istoé,peloque
podemoferecer.Osgestosvalempelaadequaçãoàscoisasaquesedirigem.Ampliam-see
diversificam-seasescolhas,desdequesepossamcombinaradequadamentetécnicaepolítica.Aumentamaprevisibilidadeeaeficáciadasações.
Umdadoimportantedenossaépocaéacoincidênciaentreaproduçãodessahistória
universal e a relativa liberação do homem em relação à natureza. A denominação de era da
inteligência poderia ter fundamento neste fato concreto: os materiais hoje responsáveis pelas
realizaçõespreponderantessãocadavezmaisobjetosmateriaismanufaturadosenãomaismatérias-
primasnaturais.Pensamosousadamenteassoluçõesmaisfantasiosaseemseguidabuscamosos
instrumentosadequadosàsuarealização.Naeradaecologiatriunfante,éohomemquemfabricaa
natureza,oulheatribuivaloresentido,pormeiodesuasaçõesjárealizadas,emcursooumeramente
imaginadas.Porisso,tudooqueexisteconstituiumaperspectivadevalor.Todosos lugaresfazempartedahistória.Aspretensõeseacobiçapovoamevalorizamterritóriosdesertos.
Graçasaosprogressosfulminantesdainformação,omundoficamaispertodecadaum,
nãoimportaondeesteja.Ooutro,istoé,orestodahumanidade,pareceestarpróximo.Criam-se,para
todos,acertezae,logodepois,aconsciênciadesermundoedeestarnomundo,mesmoseainda
nãooalcançamosemplenitudematerialouintelectual.Oprópriomundoseinstalanoslugares,
sobretudoasgrandescidades,pelapresençamaciçadeumahumanidademisturada,vindadetodos
osquadrantesetrazendoconsigointerpretaçõesvariadasemúltiplas,queaomesmosechocame
colaboramnaproduçãorenovadadoentendimentoedacríticadaexistência.Assim,ocotidianode
cadaumseenriquece,pelaexperiênciaprópriaepeladovizinho,tantopelasrealizaçõesatuaiscomo
pelasperspectivasdefuturo.Asdialéticasdavidanoslugares,agoramaisenriquecidas,são
paralelamenteocaldodeculturanecessárioàproposiçãoeaoexercíciodeumanovapolítica.
Funda-se,defato,umnovomundo.Parasermosaindamaisprecisos,oque,afinal,se
criaéomundo comorealidadehistóricaunitária,aindaqueelesejaextremamentediversificado.Eleé
datadocomumadatasubstantivamenteúnica,graçasaostraçoscomunsdesuaconstituiçãotécnica
eàexistênciadeumúnicomotorparaasaçõeshegemônicas,representadopelolucroàescala
global. É isso, aliás,que, juntoa informação generalizada, assegurará a cada lugar a comunhão
universalcomtodososoutros.
Ousamos,dessemodo,pensarqueahistóriadohomemsobreaTerradispõeafinaldas
condiçõesobjetivas,materiaiseintelectuais,parasuperaroendeusamentododinheiroedosobjetos
técnicoseenfrentarocomeçodeumanovatrajetória.Aqui,nãosetratadeestabelecerdatas,nemde
fixarmomentosdafolhinha,marcosnumcalendário.Comoorelógio,afolhinhaeocalendáriosão
convencionais,repetitivosehistoricamentevazios.Oquecontamesmoéotempodaspossibilidades
efetivamentecriadas,oque,àsuaépoca,cadageraçãoencontradisponível, issoaquechamamostempoempírico ,cujasmudançassãomarcadaspelairrupçãodenovosobjetos,denovasaçõese
relaçõesedenovasidéias.
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Diantedoqueéomundoatual,comodisponibilidadeecomopossibilidade,acreditamos
queascondiçõesmateriaisjáestãodadasparaqueseimponhaadesejadagrandemutação,mas
seudestinovaidependerdecomodisponibilidadesepossibilidadesserãoaproveitadaspelapolítica.Nasuaformamaterial,unicamentecorpórea,as técnicastalvezsejamirreversíveis,porqueaderem
aoterritórioeaocotidiano.Deumpontodevistaexistencial,elaspodemobterumoutrousoeuma
outrasignificação.Aglobalizaçãoatualnãoéirreversível.
Agoraqueestamosdescobrindoosentidodenossapresençanoplaneta,pode-sedizer
que uma história universal verdadeiramente humana está, finalmente, começando. A mesma
materialidade,atualmenteutilizadaparaconstruirummundoconfusoeperverso,podeviraseruma
condiçãodaconstruçãodeummundomaishumano.Bastaquesecompletemasduasgrandes
mutaçõesoraemgestação:amutaçãotecnológicaeamutaçãofilosóficadaespéciehumana.
Agrandemutaçãotecnológicaédadacomaemergênciadastécnicasdainformação,asquais–aocontráriodastécnicasdasmáquinas–sãoconstitucionalmentedivisíveis,flexíveisedóceis,
adaptáveisatodososmeioseculturas,aindaqueseuusoperversoatualsejasubordinadoaos
interessesdosgrandescapitais.Mas,quandosuautilizaçãofordemocratizada,essastécnicasdoces
estarãoaoserviçodohomem.
Muitofalamoshojenosprogressosenaspromessasdaengenhariagenética,que
conduziriamaumamutaçãodohomembiológico,algoqueaindaédodomíniodahistóriadaciênciae
datécnica.Pouco,noentanto,sefaladascondições,tambémhojepresentes,quepodemassegurar
umamutaçãofilosóficadohomem,capazdeatribuirumnovosentidoàexistênciadecadapessoae,
também,doplaneta.