MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO … · Fávero e Koch (2012), Koch e Travaglia...
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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS EM REDE NACIONAL - PROFLETRAS
CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ - CERES
DEPARTAMENTO DE LETRAS DO CERES – DLC
JANE MEDEIROS
PROPOSTA DIDÁTICA PARA O ENSINO DA RESPONSABILIDADE
ENUNCIATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO CRÔNICA
CURRAIS NOVOS/RN
2016
JANE MEDEIROS
PROPOSTA DIDÁTICA PARA O ENSINO DA RESPONSABILIDADE
ENUNCIATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO CRÔNICA
Dissertação apresentada ao Mestrado Profissional
em Letras em Rede Nacional – PROFLETRAS –
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Campus de Currais Novos, como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de concentração: Linguagens e letramentos.
Linha de Pesquisa – Teorias da linguagem e
ensino.
Orientador: Prof. Dr. Alexandro Teixeira Gomes.
CURRAIS NOVOS/RN
2016
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte.
UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ensino Superior do Seridó - CERES Currais Novos
Medeiros, Jane.
Proposta didática para o ensino da responsabilidade enunciativa
no gênero discursivo crônica / Jane Medeiros. - 2016. 109 f.: il. color.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Centro de Ensino Superior do Seridó, Programa de Pós -
Graduação em Letras. Currais Novos, RN, 2016. Orientador: Prof. Dr. Alexandro Teixeira Gomes.
1. Letras - Dissertação. 2. Análise Textual dos Discursos -
Dissertação. 3. Responsabilidade Enunciativa - Dissertação. 4.
Gênero Crônica - Dissertação. 5. Sequência Didática - Dissertação. 6.
Ensino - Dissertação. I. Gomes, Alexandro Teixeira. II. Título.
RN/UF/BSCN CDU 81'42:37.02
JANE MEDEIROS
PROPOSTA DIDÁTICA PARA O ENSINO DA RESPONSABILIDADE
ENUNCIATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO CRÔNICA
Dissertação apresentada ao Mestrado Profissional
em Letras em Rede Nacional – PROFLETRAS –
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Campus de Currais Novos, como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Letras.
Data de aprovação: Currais Novos – RN, 22 de dezembro de 2016.
BANCA EXAMINADORA:
___________________________________________
Prof. Dr. Alexandro Teixeira Gomes
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Presidente
___________________________________________
Prof. Dr. Lucélio Dantas de Aquino
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Examinador Interno
____________________________________________
Prof. Dr. Gilton Sampaio de Souza
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
Examinador Externo.
AGRADECIMENTOS
A Deus, minha Fortaleza, que sempre me ampara, principalmente nos momentos mais
difíceis.
Ao meu querido pai, Emídio, que, mesmo diante da dor, entendeu minhas ausências,
nos momentos em que mais precisou de mim.
À minha amiga, Maria do Socorro, que esteve comigo durante toda a caminhada. Sem
ela, nada teria sido possível.
À minha família, por ser meu porto seguro, principalmente ao meu irmão Geordan
Medeiros.
A todos os professores pelos valiosos ensinamentos.
Aos companheiros de turma, em especial às amigas Almaíza, Aparecida, Cláudia e
Luciene.
Ao Programa de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS) pela grande
oportunidade que tem dado aos professores do ensino fundamental no ensino de Língua
Portuguesa da rede pública, fornecendo ferramentas teórico-metodológicas com vistas a uma
inovação na sala de aula e, consequentemente, preparando-os para os novos desafios
educacionais do Brasil contemporâneo.
Aos membros examinadores deste trabalho, Prof. Dr. Gilton Sampaio de Souza e Prof.
Dr. Lucélio Dantas de Aquino, pelas valiosas contribuições.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Alexandro Teixeira Gomes, que tão bem conduziu esta
pesquisa, não medindo esforços para a realização desse trabalho.
A todos que, de alguma forma, contribuíram para a concretização desse sonho, o meu:
“MUITO OBRIGADA!”.
RESUMO
A Responsabilidade Enunciativa tem sido entendida como um fenômeno que busca marcar a
assunção (ou não) pelo dizer por parte do locutor do texto, conforme destacam Adam (2011) e
Gomes (2014). O texto, então, passa a ser explorado, a partir de sua materialidade discursiva,
considerando-se o estudo de determinados níveis ou planos de análise propostos por Adam
(2011). Nesta pesquisa, detemo-nos no nível sete da enunciação de Adam (2011), o qual se
propõe a estudar o fenômeno da responsabilidade enunciativa no gênero discursivo crônica.
Assim, foi nosso objetivo verificar como se manifesta o referido fenômeno no gênero
discursivo crônica, tomando como objeto de análise quatro crônicas escolhidas da coleção
“Para gostar de Ler”, do ano de 2003. Do ponto de vista teórico, amparamo-nos em autores
como Adam (2011), Gomes (2014), Lourenço (2015), Marcuschi (2008), Koch (2014),
Fávero e Koch (2012), Koch e Travaglia (2015), Mussalim e Bentes (2010), Rodrigues,
Passeggi e Silva Neto (2010), entre outros. No enfoque metodológico, nossa investigação
apresenta dois momentos: o primeiro, refere-se à análise do fenômeno da responsabilidade
enunciativa no gênero discursivo escolhido; o segundo, à elaboração de uma sequência
didática, considerando os pressupostos básicos da responsabilidade enunciativa na construção
do propósito argumentativo do produtor do gênero crônica. Em relação ao primeiro momento,
percebemos que o produtor do texto assume (ou não) a responsabilidade enunciativa pelo
dizer com vistas à realização de seu propósito argumentativo. Nesse sentido, considerando
que há uma grande heterogeneidade de PDV no gênero discursivo em estudo, encontramos
nas 4 crônicas analisadas, 93 ocorrências de marcas de (não) responsabilidade enunciativa.
Assim, em “Carta ao Prefeito”, de Rubem Braga, primeira crônica analisada, o PDV do
locutor pode ser percebido nas marcas de asserção, referidas à primeira pessoa, índice de
pessoas, bem como, através do uso de modalizadores. Em “O telefone”, segunda crônica em
estudo, também de Rubem Braga, percebemos não só o PDV do locutor, mas também, outras
fontes enunciativas que podem ser notadas através de marcadores de discurso reportado e
elementos gráficos e ortográficos. Nas terceira e quarta crônicas, “Glória”, de Carlos
Drummond de Andrade, e “Em código”, de Fernando Sabino, respectivamente, temos, além
do PDV do locutor, outras fontes enunciativas por meio do uso de verbos de atribuição de
fala, de diferentes tipos de representação da fala (discurso direto, indireto), de marcas de
asserção referidas à terceira pessoa e de índices de pessoas. Em relação ao segundo momento,
esperamos que a sequência apresentada contribua para o ensino da Língua Portuguesa,
proporcionando ao aluno um avanço no desenvolvimento de suas habilidades específicas,
melhorando sua criticidade e seu posicionamento frente ao texto.
Palavras-chave: Análise Textual dos Discursos. Responsabilidade Enunciativa. Gênero
Crônica. Sequência Didática. Ensino.
ABSTRACT
The enunciative responsibility has been understood as a phenomenon that seek to spot the
assumption or not by saying on the part of the speaker of the text according to point out Adam
(2011) and Gomes (2014). The text, so, is being explored from now on, based on its
discursive materiality, considering certain levels or plans of analysis proposed by
Adam(2011). In this research, we hold to the seven level of enunciation by Adam (2011)
which proposes to study to study the phenomenon of the Enunciative Responsibility in the
discursive genre chronicle. Therefore, it was our purpose to verify how to manifest the
referred phenomenon in the discursive genre chronicle taking as object of analysis four
chronicles chosen from the collection “Para gostar de Ler”' , of the year 2003. From the
theoretical point of view, we support us in authors like Adam (2011), Gomes (2014),
Lourenço (2015), Marcuschi (2008), Koch (2014), Fávero and Koch (2012), Koch and
Travaglia (2015), Mussalim and Bentes (2010), Rodrigues, Passeggi and Silva Neto (2010),
among others. From the methodological point of view, our research reports two moments,
being the first point referred the analysis of the phenomenon of the Enunciative
Responsibility in the discursive genre chosen; the second moment the elaboration of a didactic
sequence considering the basic assumptions of the enunciative responsibility in the
construction of the argumentative purpose of the producer of chronicle genre. In relation to
the first moment, we notice that the producer of the text take up or not the enunciative
responsibility by saying in order to accomplishment of his argumentative purpose.
Therefore, considering that there is a great heterogeneity of PDV in the discursive genre under
study, we found in the 4 chronicles analyzed, 93 occurrences of marks of (non) enunciative
responsibility. So, in Carta ao Prefeito by Rubem Braga, the first chronicle analyzed, the
speaker's PDV can be realized in assertion marks, referred to the first person, index of people,
as well as through the use of modalizers. In the second chronicle under study, O telefone, also
by Rubem Braga, we realized not only the speaker's PDV, but also other enunciative sources
that can be noticed through reported discourse markers and graphic and spelling elements.
In the third and fourth chronicles, Glória by Carlos Drummond de Andrade and Em código de
Fernando Sabino, respectively, we also have, besides the speaker's PDV, other enunciative
sources through the use of speech assignment verbs, different types of speech representation
(direct speech, indirect speech), assertion marks referring to the third person and index of
people. In relation to the second moment, we hope which the sequence represented
contributed to the Portuguese Language teaching, providing the student an advance in
developing their specific skills, improving their criticality and positioning on the text.
Keywords: Textual Analysis of Discourses. Enunciative Responsibility. Chronicle Genre.
Didactic Sequence. Teaching.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 01 - Níveis da análise de discurso e níveis da análise textual.............................. 22
FIGURA 02 - Operações de textualidade............................................................................ 26
FIGURA 03 - Elementos constitutivos da proposição-enunciado....................................... 28
FIGURA 04 - Desdobramento Polifônico em Adam........................................................... 29
FIGURA 05 - Grandes categorias..................................................................................... 30
FIGURA 06 - A Responsabilidade enunciativa na ScaPoLine ........................................... 36
FIGURA 07 - O texto como uma unidade abstrata.............................................................. 47
FIGURA 08 - O texto como objeto concreto, material e empírico...................................... 48
FIGURA 09 - Texto, discurso e gênero como categorias descritivas.................................. 49
FIGURA 10 - O gênero como prefiguração do texto.......................................................... 51
FIGURA 11 - O gênero - formas textuais que se manifestam no artefato
linguístico..............................................................................................................................
52
LISTA DE QUADROS E GRÁFICO
QUADRO 01 - Algumas características dos gêneros textuais............................................. 46
QUADRO 02 - Classificação do PDV e das marcas de (não) responsabilidade
enunciativa; Classificação do PDV e das marcas de (não) responsabilidade
enunciativa.............................................................................................................................
70
QUADRO 03 - Informações gerais da sequência didática................................................... 89
GRÁFICO 01 - Marcas de (não) responsabilidade encontradas na análise......................... 83
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................... 11
2 A LINGUÍSTICA TEXTUAL E A ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS...
13
2.1 A Linguística Textual.................................................................................................. 13
2.2 A Análise Textual dos Discursos................................................................................. 20
2.3 A Responsabilidade Enunciativa................................................................................. 27
3 A LINGUÍSTICA TEXTUAL E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA.......
39
3.1 Práticas de Linguagem e PCN: O Ensino de Língua Portuguesa................................ 42
3.2 Gênero, Texto e Discurso............................................................................................ 44
3.3 O Texto como unidade de ensino................................................................................ 59
3.4 O Gênero Discursivo Crônica...................................................................................... 60
4 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA..............................................
67
4.1 Uma pesquisa – Duas fases.......................................................................................... 67
4.2 Métodos de pesquisa.................................................................................................... 67
4.2.1 O método indutivo.................................................................................................... 67
4.3 Construção do corpus.................................................................................................. 68
4.4 Categorias de análise................................................................................................... 69
5 A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NO GÊNERO CRÔNICA.............
71
5.1 Análise da Crônica “Carta ao Prefeito” – Rubem Braga ............................................ 71
5.2 Análise da Crônica “O Telefone” – Rubem Braga...................................................... 74
5.3 Análise da Crônica “Glória” – Carlos Drummond de Andrade................................... 76
5.4 Análise da Crônica “Em Código” – Fernando Sabino ................................................ 80
6 PROPOSTA DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA O ENSINO DA
RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO
CRÔNICA........................................................................................................................
85
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................
98
REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 100
ANEXOS.....................................................................................................................
103
ANEXO A - CRÔNICA 1: “Carta ao Prefeito” - Rubem Braga........................... 104
ANEXO B - CRÔNICA 2: “O telefone” - Rubem Braga....................................... 106
ANEXO C - CRÔNICA 3: “Glória” - Carlos Drummond de Andrade................ 108
ANEXO D - CRÔNICA 4: “Em Código” - Fernando Sabino................................ 110
11
1 INTRODUÇÃO
A Análise Textual dos Discursos (doravante ATD), de acordo com Gomes (2014, p.
23) “é uma abordagem teórica, metodológica e descritiva de estudo do texto proposta por
Jean-Michel Adam no âmbito da Linguística Textual e se propõe a estudar a produção co(n)
textual de sentido fundamentada na análise de textos concretos”.
A proposta de Adam (2011), para Gomes (2014, p. 26), “busca a compreensão do
texto a partir de sua materialidade discursiva, considerando o estudo de determinados níveis
ou planos de análise”.
Assim, a partir de uma concepção interativa da linguagem, conforme Adam (2011
apud Gomes, 2014, p. 13), “a ATD pode ser utilizada para descrever qualquer gênero
discursivo, ou seja, todos os discursos são passíveis de uma análise textual em suas dimensões
semântica, enunciativa e argumentativa”.
Nesse sentido, desenvolvemos esta pesquisa, tendo como objetivo geral estudar o
fenômeno da responsabilidade enunciativa no gênero discursivo crônica. Sua escolha se
justifica por tratar-se de um gênero que poderá oferecer ferramentas necessárias para um bom
desenvolvimento da competência textual dos discentes. Acrescente-se a isso, o fato de a
crônica estar bastante presente no conteúdo didático do ensino de jovens e adultos,
modalidade da qual somos professoras e nível para o qual elaboramos a proposta de sequência
didática.
A partir de então, selecionamos quatro textos pertencentes ao referido gênero, a partir
da coleção “Para gostar de Ler”, volume 4, ano 2003, a saber: “Em código”, de Fernando
Sabino; “Glória”, de Carlos Drummond de Andrade; “Carta ao Prefeito” e “O telefone”,
ambas de Rubem Braga.
Para a abordagem teórica, amparamo-nos nas teorias de Adam (2011); Gomes (2014);
Lourenço (2015); Marcuschi (2008); Koch (2014); Fávero e Koch (2012); Koch e Travaglia
(2015); Mussalim e Bentes (2010); Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2010); entre outros.
Nesse sentido, investigamos a responsabilidade enunciativa por meio de uma escala que,
conforme explica Gomes (2014, p. 14) “compreende o fenômeno a partir de quatro gradações,
cada uma com um ponto de vista (PDV) e com marcas que podem marcar a assunção ou o
distanciamento do ponto de vista”.
Do ponto de vista metodológico, nossa investigação apresenta dois momentos: o
primeiro, refere-se à análise do fenômeno da responsabilidade enunciativa no gênero
12
discursivo escolhido, e o segundo momento, à elaboração de uma sequência didática
considerando os pressupostos básicos da responsabilidade enunciativa no gênero crônica.
No plano metodológico, pontuamos as seguintes questões de pesquisa: 1) Que vozes
estão presentes no gênero discursivo crônica e quais seus efeitos de sentido?; 2) Que marcas
textuais nos levam a identificar essas vozes?; 3) Como o estudo do gênero discursivo crônica
atrelado ao estudo do fenômeno da responsabilidade enunciativa impactam na formação
sócio-cultural-textual-discursiva dos discentes?
Para responder a essas questões, estabelecemos como objetivos específicos: 1)
Identificar, descrever, analisar e interpretar que vozes estão presentes no gênero discursivo
crônica e quais seus efeitos de sentido; 2) Identificar, descrever e analisar que marcas textuais
nos levam a identificar essas vozes; 3) Refletir sobre as contribuições do estudo do gênero
discursivo crônica atrelado ao estudo do fenômeno da responsabilidade enunciativa na
formação sócio – cultural – textual – discursiva dos discentes; 4) Elaborar uma sequência
didática com o intuito de trabalhar marcas de responsabilidade enunciativa a partir do gênero
crônica. Nossa pesquisa limita-se, assim, no âmbito do fenômeno da responsabilidade
enunciativa.
No que concerne ao plano do texto, nosso trabalho obedece à seguinte organização dos
elementos textuais: no primeiro capítulo, fizemos uma introdução para apresentar as questões
centrais do trabalho.
No segundo, expomos alguns pressupostos para o entendimento do texto como objeto
de estudo, a partir de um breve histórico da Linguística Textual, desde seu surgimento,
discorrendo sobre a proposta da Análise Textual dos Discursos, até chegarmos ao fenômeno
da Responsabilidade Enunciativa.
No terceiro capítulo, discutimos a Linguística Textual e o ensino de Língua
Portuguesa, com foco nos parâmetros curriculares nacionais, adentrando no gênero discursivo
crônica.
No quarto capítulo, exibimos o panorama metodológico da pesquisa.
No quinto capítulo, mostramos a análise e a discussão do corpus.
No sexto capítulo, apresentamos uma proposta didática com as marcas de (não)
assunção da responsabilidade enunciativa a partir do gênero crônica.
Finalmente, desenvolvemos as conclusões obtidas a partir das discussões do capítulo
6. Além disso, há os elementos pré-textuais e pós-textuais.
Apresentamos aqui, de forma geral, os pontos centrais deste trabalho. A partir de
agora, passamos a detalhar esses pontos nos capítulos seguintes.
13
2 A LINGUÍSTICA TEXTUAL E A ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS
2.1 A Linguística Textual
A linguística textual constitui “um novo ramo da linguística, que começou a
desenvolver-se na década de 1960, na Europa e, de modo especial, na Alemanha”, segundo
Fávero e Koch (2012, p. 15). Sua hipótese de trabalho consiste em “tomar como objeto
particular de investigação, não mais a palavra ou a frase, mas sim o texto, por serem os textos
a forma específica de manifestação da linguagem”, explicam as autoras (Op. cit. 2012, p. 15).
Nesta perspectiva, a Linguística Textual vem despertando o interesse de vários
estudiosos da língua, como bem destaca Gomes (2014, p. 19) ao afirmar que, “os estudos do
texto vêm ganhando expressividade e apresentando cada dia mais notável interesse por parte
de pesquisadores de distintos âmbitos de estudo”.
No presente capítulo, então, traçamos um rápido percurso da linguística textual,
abrangendo seus estudos desde o princípio até os trabalhos mais recentes que, de acordo com
Conte (1977 apud FÁVERO; KOCH, 2012, p. 17), “pode ser dividido em três grandes
momentos, a saber: 1) o da análise transfrástica; 2) o das gramáticas textuais e; 3) o da
construção das teorias do texto”. Apontamos, também, os pressupostos teóricos da teoria do
texto e suas motivações, de acordo com Schmidt (1978); e por fim, alguns elementos
responsáveis pela textualidade, segundo Beaugrande e Dressler (1981) e Halliday e Hasan
(1976). Porém, antes de discorrermos sobre os momentos que marcam o histórico da
linguística textual, é relevante destacarmos o que dizem alguns pesquisadores sobre a origem
do termo.
De acordo com Fávero e Koch (2012, p. 15), “a origem do termo linguística textual
pode ser encontrada em Cosériu (1955), embora, no sentido que lhe é atualmente atribuído,
tenha sido empregado pela primeira vez por Weinrich (1966, 1967)”.
Gomes (2014, p. 18) salienta que “a Linguística de Texto toma como unidade de
análise o texto, considerado como objeto primeiro de estudo”. Para o autor, qualquer ato de
comunicação se dá através do texto e não de frases e/ou orações soltas, desconectadas de suas
reais situações de interação.
Ainda de acordo com Gomes (2014, p. 18), esse entendimento “opõe-se às teorias que
privilegiam o estudo da estrutura linguística sem considerar qualquer relação com seus
contextos de uso”.
14
Partindo para a explanação dos três grandes momentos que marcam a trajetória da
Linguística de Texto, enfatizamos, inicialmente, o correspondente ao da análise transfrástica
que, de acordo com Fávero e Koch (2012, p. 18), esse primeiro momento “limita-se à
pesquisa de enunciados ou sequências de enunciados, partindo-se, pois, destes em direção ao
texto”, definido por Isenberg (1970 apud FÁVERO; KOCH, 2012, p. 18) como “sequência
coerente de enunciados”. O principal objetivo é o de “estudar os tipos de relações que se
podem estabelecer entre os diversos enunciados que compõem uma sequência significativa,
precisamente, entre as frases e os períodos, de maneira a construir uma unidade de sentido”,
destacam as autoras (Op. cit., 2012, p. 18).
De acordo com Koch (2014, p. 7), a Linguística Textual teve inicialmente a
preocupação de “descrever os fenômenos sintático-semânticos ocorrentes entre enunciados ou
sequências de enunciados, alguns deles, inclusive, semelhantes aos que já haviam sido
estudados no nível da frase”. Sobre a “análise transfrástica”, afirma a autora, trata-se “do
momento no qual não se faz, ainda, distinção nítida entre fenômenos ligados uns à coesão,
outros à coerência do texto” (Op. cit., 2014, p. 7).
O segundo momento, para Fávero e Koch (2012, p. 19), “é assinalado pela construção
das gramáticas textuais e surgiu com a finalidade de refletir sobre fenômenos linguísticos
inexplicáveis por meio de uma gramática do enunciado”. Conforme as autoras, o que a
legitima é, pois, “a descontinuidade existente entre enunciado e texto, já que há entre ambos
uma diferença de ordem qualitativa (e não meramente quantitativa)” (Op. cit., 2012, p. 19).
Fávero e Koch (2012, p. 19), “o texto é muito mais que uma simples sequência de
enunciados”. De acordo com as autoras:
a sua compreensão e a sua produção derivam de uma competência específica
do falante – a competência textual – que se distingue da competência frasal
ou linguística em sentido estrito [como a descreve, por exemplo, Chomsky
(1965)].
Para Fávero e Koch (2012, p. 19), “todo falante de uma língua tem a capacidade de
distinguir um texto coerente de um aglomerado incoerente de enunciados, e esta competência
é, também, especificamente linguística, em sentido amplo”. Dessa forma, “qualquer falante é
capaz de parafrasear um texto, de resumi-lo, de perceber se está completo ou incompleto, de
atribuir-lhe um título ou, ainda, de produzir um texto a partir de um título dado”, concluem as
autoras (Op. cit.; 2012, p. 19).
Assim, para as autoras supracitadas,
15
[...] as tarefas básicas da gramática textual seriam: a) verificar o que faz com
que um texto seja um texto, isto é, determinar os seus princípios de
constituição, os fatores responsáveis pela sua coerência, as condições em
que se manifesta a textualidade; b) levantar critérios para a delimitação de
textos, já que a completude é uma das características essenciais do texto; c)
diferenciar as várias espécies de textos (FÁVERO e KOCH, 2012, p. 19).
Koch (2014, p. 7) destaca que “um texto não é simplesmente uma sequência de frases
isoladas, mas uma unidade linguística com propriedades estruturais específicas, assim, tais
gramáticas têm por objetivo apresentar os princípios de constituição do texto em dada língua”.
É importante destacar, conforme Mussalim e Bentes (2012, p. 265), que “não é
possível afirmar que houve uma ordem cronológica entre o primeiro momento (análise
transfrástica) e as propostas de elaboração de gramáticas textuais”.
Nesse momento (das gramáticas textuais), ganham relevância, nos dizeres de Gomes
(2014, p. 20), “os modelos de Van Dijk (1972) e Petofi (1973)”. Assim, no primeiro modelo,
o de Van Dijk, a gramática textual, conforme Koch (2004, p. 9 apud GOMES, 2014, p. 20),
apresenta as seguintes características:
1- insere-se no quadro teórico do gerativismo;
2- utiliza o instrumental teórico e metodológico da lógica formal;
3- procura integrar a gramática do enunciado na gramática do texto,
sustentando que não basta estender a gramática da frase e que uma gramática
no âmbito do texto apresenta como tarefa principal especificar as estruturas
profundas chamadas de macroestruturas textuais.
Já o modelo de Petöfi, de acordo com Fávero e Koch (2005, p. 15 apud GOMES,
2014, p. 20), “propõe ser possível, a partir de suas análises, a análise, a síntese e a comparação
de textos”.
Gomes (2014) destaca que “o modelo de Charolles (1978) também se insere nesse
segundo momento da Linguística de Texto”. Assim, para Charolles (1978) “é a coerência o
fator responsável para que um conjunto de frases se torne um texto”, conforme destaca Gomes
(2014, p. 20). Charolles (1978 apud GOMES, 2014, p. 20) “propõe e discute quatro
metarregras de coerência elencadas a seguir: 1 – metarregra de repetição; 2 – metarregra de
progressão; 3 – metarregra de não contradição; 4 – metarregra de relação”.
Nesse cenário, Mussalim e Bentes (2012, p. 265) afirmam:
[...] esses autores possuem alguns postulados em comum, a saber: a)
consideram que não há uma continuidade entre frase e texto porque há, entre
eles, uma diferença de ordem qualitativa e não quantitativa; b) consideram
que o texto é a unidade linguística mais elevada, a partir da qual seria
16
possível chegar, por meio de segmentação, a unidades menores a serem
classificadas. [...] e c) todo falante nativo possui um conhecimento acerca do
que seja um texto, conhecimento este que não é redutível a uma análise
frasal, já que o falante conhece não só as regras subjacentes às relações
interfrásticas (a utilização de pronomes, de tempos verbais, da estratégia de
definitivação etc.), como também sabe reconhecer quando um conjunto de
enunciados constitui um texto ou quando se constitui em apenas um conjunto
aleatório de palavras ou sentenças. Um falante nativo também é capaz de
resumir e/ou parafrasear um texto, perceber se ele está completo ou
incompleto, atribuir-lhe um título ou produzir um texto a partir de um texto
dado, estabelecer relações interfrásticas etc.
No que se refere às causas que levaram os linguistas a desenvolver essas gramáticas
textuais, Fávero e Koch (2012, p. 6) concluem que podem ser citadas:
as lacunas das gramáticas de frase no tratamento de fenômenos tais como a
correferência, a pronominalização, a seleção dos artigos (definido ou
indefinido), a ordem das palavras no enunciado, a relação tópico –
comentário, a entoação, as relações entre sentenças não ligadas por
conjunções, a concordância dos tempos verbais e vários outros que só podem
ser devidamente explicados em termos de texto ou, então, com referência a
um contexto situacional.
Sob esse entendimento, os estudiosos perceberam que uma gramática da frase não dava
conta dos fenômenos da linguagem e foi, então, que se passou a vislumbrar uma gramática do
texto.
Koch (2014, p. 8) considera que “é somente a partir de 1980, contudo, que ganham
corpo as teorias do Texto – no plural, já que, embora fundamentadas em pressupostos básicos
comuns, chegam a diferir bastante umas das outras, conforme o enfoque predominante”.
Assim, conforme FÁVERO e KOCH (2012, p. 20), “no terceiro momento da
Linguística de Texto, no período das denominadas teorias do texto citadas por Conte, adquire
particular importância o tratamento dos textos no seu contexto pragmático”. Nesse sentido,
Fávero e Koch (2012, p. 20) reforçam que “o âmbito de investigação se estende do texto ao
contexto, entendido, em geral, como conjunto de condições – externas ao texto – da produção,
da recepção e da interpretação do texto”.
Para Fávero e Koch (2012, p. 21), “a incorporação da pragmática1 aos estudos
linguísticos levou a posicionamentos diversos por parte dos vários autores”. Assim sendo,
1 Termo tradicionalmente usado para classificar uma das três principais divisões da semiótica (juntamente com a
semântica e a sintática). Na linguística moderna, ela passou a ser aplicada ao estudo da linguagem do ponto de
vista dos usuários, especialmente das escolhas que fazem, as restrições que encontram no uso da linguagem na
17
destacam as autoras que, para Dressler, “a pragmática constitui apenas um componente
acrescentado a posteriori a modelo preexistente de gramática textual, cabendo-lhe tão
somente dar conta da situação comunicativa na qual o texto é introduzido” (Op. cit., 2012, p.
21).
Ainda conforme as autoras supracitadas, para Schmidt (1978), a inserção da
pragmática significa “a evolução da linguística textual em direção a uma teoria pragmática do
texto, que tem como ponto de partida o ato de comunicação – com todos os seus pressupostos
psicológicos e sociológicos – inserido numa específica situação comunicativa” (SCHMIDT,
1978 apud FÁVERO E KOCH, 2012, p.21). Nesta perspectiva, podemos perceber que, com a
inserção da pragmática ao terceiro momento da linguística textual, introduz-se o contexto
como um novo elemento de averiguação dos estudos linguísticos, evidenciando-se, assim, a
relevância de se estudar o contexto de produção textual na qual o falante está inserido.
Gomes (2014, p. 21), a partir da consulta de Schmidt (1978), destaca que os principais
pressupostos da linguística textual são:
1 – o entendimento de que a língua ocorre em uma sociedade efetiva, ou
seja, a “língua-em-função” e nunca um amontoado de signos abstratos da
análise tradicional;
2 – o entendimento de que o texto é o que constitui o “sinal linguístico
primário” (GOMES, 2014, p. 21).
Nessa mesma perspectiva, Gomes (2014, p. 21) destaca como motivações da Teoria do
Texto, segundo Schmidt (1978):
1 – a orientação da linguística para a comunicação, para a interação e para a
atuação;
2 – o entendimento da importância do papel semântico exercido pelo
contexto e pela situação de comunicação e de que sua ausência pode deixar o
texto com uma sensação de incompletude.
3 – o entendimento de que diversas questões linguísticas não podem ser
resolvidas exclusivamente no âmbito da frase (GOMES, 2014, p. 21).
A partir do exposto, podemos perceber como o contexto pragmático passa a ocupar
lugar de destaque e o foco da investigação passa do texto ao contexto; este, entendido como
“a reconstrução de uma série de traços da situação comunicativa [...] que fazem com que os
enunciados sejam entendidos como atos de fala” (VAN DIJK, 1992, p. 23 apud GOMES,
interação social e os efeitos que seu uso tem sobre os outros participantes em um ato de comunicação.
(CRYSTAL, 2008, p. 379).
18
2014, p. 21); ou seja, “trata-se de um conjunto de condições externas da produção, recepção e
interpretação dos textos” (BENTES, 2006, p. 251 apud GOMES, 2014, p. 21). Assim, nos
dizeres de GOMES (2014, p. 21), “não se pode compreender o texto sem o seu contexto de
produção”.
Beaugrande e Dressler (1997, p. 11 apud GOMES, 2014, p. 22) afirmam que, “desde o
ponto de vista da linguística de texto, é lugar comum afirmar que o que faz com que um texto
seja um texto não é sua gramaticalidade, mas sua textualidade”.
Passou-se, então, a pesquisar “o que faz com que um texto seja um texto, isto é, quais
os elementos ou fatores responsáveis pela textualidade” (KOCH, 2014, p.11).
Beaugrande e Dressler (1981 apud Koch 2014, p. 11) apresentam, então, “um elenco
de tais fatores, em número de sete: coesão, coerência, informatividade, situacionalidade,
intertextualidade, intencionalidade e aceitabilidade”.
Para Koch (2014), Beaugrande e Dressler “vêm se dedicando ao estudo dos principais
critérios ou padrões de textualidade e do processamento cognitivo do texto”, bem como aos
estudos da
[...] semântica procedural, dando realce no estudo da coerência e do
processamento do texto, não só ao conhecimento declarativo (dado pelo
conteúdo proposicional dos enunciados), mas também ao conhecimento
construído através da vivência, condicionado socioculturalmente, que é
armazenado na memória, sob a forma de modelos cognitivos globais
(“frames”, esquemas, “scripts”, planos) (KOCH, 2014, p. 8).
Em outras palavras, podemos dizer que, como critérios de textualidade, devem-se
levar em consideração não somente o conteúdo proposicional dos enunciados, o que se
encontra explícito na superfície do texto, mas também o que o usuário/falante traz de
conhecimento armazenado na memória, o seu conhecimento de mundo.
Halliday e Hasan (1976 apud Cavalcante 2016, p. 30) “se baseiam num critério
semântico-discursivo quando afirmam que a coesão se verifica sempre que, para se interpretar
um elemento no texto, recorre-se à interpretação de um outro”. A coesão é, portanto, “uma
espécie de articulação entre as formas que compõem e que organizam um texto, ajudando a
estabelecer entre elas relações de sentido”, justifica a autora (Op. cit. 2016, p. 30).
Nesse cenário, Halliday e Hasan (s.d apud Marcuschi 2012, p. 28) destacam que “o
texto não consiste em sentenças; ele apenas se realiza nas sentenças, de modo que as partes do
texto não se integram como as partes de uma sentença que se unem entre si”. Conforme o
autor, a unidade do texto é de natureza distinta da sentença. É a textura que distingue “um
19
texto de um não texto, sendo que a textura é formada pela relação semântica de coesão”. Para
Halliday e Hasan (s.d apud Marcuschi 2012, p. 28), “a coesão não é uma relação sintática e
sim semântica, determinada pela interpretação e pela pressuposição. O texto passa a ser uma
unidade semântica e não gramatical”.
Assim sendo, mediante o percurso traçado sobre os momentos que marcaram a
linguística textual, Mussalim e Bentes (2012, p. 268) determinam
[...] que as mudanças ocorridas em relação às concepções de língua (não
mais vista como um sistema virtual, mas como um sistema atual, em uso
efetivo em contextos comunicativos), às concepções de texto (não mais visto
como um produto, mas como um processo), e em relação aos objetivos a
serem alcançados (a análise e explicação da unidade texto em funcionamento
em vez da análise e explicação da unidade texto formal, abstrata), fizeram
com que, se passasse a compreender a Linguística de Texto como uma
disciplina essencialmente interdisciplinar, em função das diferentes
perspectivas que abrange e dos interesses que a movem. Ou ainda, mais
atualmente, conforme Marcuschi (1998a) como uma disciplina de caráter
multidisciplinar, dinâmica, funcional e processual, considerando a língua
como não autônoma nem sob seu aspecto formal.
Isso posto, Mussalim e Bentes (2012, p. 272) propõem que se veja, então, a
“Linguística do Texto, mesmo que provisória e genericamente, como o estudo das operações
linguísticas e cognitivas reguladoras e controladoras da produção, construção, funcionamento
e recepção de textos escritos ou orais”. Nesse sentido, para essas autoras, o tema da
Linguística do Texto abrange “a coesão superficial ao nível dos constituintes linguísticos, a
coerência conceitual ao nível semântico e cognitivo e o sistema de pressuposições e
implicações a nível pragmático da produção do sentido no plano das ações e intenções” (Op.
cit. 2012, p. 272).
Segundo Koch e Travaglia (2015, p. 69), uma Teoria do Texto ou Linguística do
Texto constitui-se de:
Princípios e/ou modelos cujo objetivo não é predizer a boa ou má formação
dos textos, mas permitir representar os processos e mecanismos de
tratamento dos dados textuais que os usuários põem em ação quando buscam
interpretar uma sequência linguística, estabelecendo o seu sentido e,
portanto, calculando sua coerência.
Koch (2014, p. 11) também enfatiza que:
a Linguística Textual trata o texto como um ato de comunicação unificado
num complexo universo de ações humanas. Por um lado, deve preservar a
20
organização linear que é o tratamento estritamente linguístico abordado no
aspecto da coesão e, por outro lado, deve considerar a organização reticulada
ou tentacular, não linear portanto, dos níveis do sentido e intenções que
realizam a coerência no aspecto semântico e funções pragmáticas (Op. cit.,
2014, p. 11).
Ainda a respeito da Linguística Textual, destacamos o surgimento, em 2008, no Brasil,
da tradução da obra de Jean–Michel Adam, intitulada “A linguística textual: introdução à
análise textual dos discursos”. Propondo uma relação entre a linguística textual e a análise do
discurso que permite pensar o texto e o discurso de forma articulada, Adam (2011, p. 25)
revela que:
A linguística textual tem como ambição fornecer instrumentos de leitura das
produções discursivas humanas. A linguística não (ou não é mais) a
“ciência-piloto” das ciências do homem e da sociedade, mas tem ainda muito
a dizer sobre os textos, e seu poder hermenêutico permanece inteiro,
sobretudo se ela consentir em abrir-se às disciplinas que, da Antiguidade até
nossos dias, têm o texto como objeto (retórica e poética, estilística, filologia
e hermenêutica, teoria da tradução e genética textual, análise de dados
textuais ou análise de textos em computador, sem esquecer a história do livro
e as diversas semióticas).
Assim, confere Adam (2011) que a linguística textual visa
[...] teorizar e descrever os encadeamentos de enunciados elementares no
âmbito da unidade de grande complexidade que constitui um texto. [...] [ela]
concerne tanto à descrição e à definição das diferentes unidades como às
operações, em todos os níveis de complexidade, que são realizadas sobre os
enunciados (ADAM, 2011, p. 63 – 64).
Nossa pesquisa se insere nesse novo contexto. Desse modo, comentaremos esse novo
quadro teórico na seção seguinte.
2.2 A Análise Textual dos Discursos
A Análise Textual dos Discursos (ATD), elaborada pelo linguísta francês Jean-Michel
Adam, “constitui uma abordagem teórica e descritiva do campo da linguística do texto que se
situa na perspectiva de um posicionamento teórico e metodológico” (PASSEGGI et al, 2010,
p.151 – 152) que, “com o objetivo de pensar o texto e o discurso em novas categorias, situa
decididamente a linguística textual no quadro mais amplo da análise do discurso” (ADAM,
2008b, p. 24 ).
21
Nesse sentido, segundo Adam (2011), a ATD postula ao mesmo tempo,
uma separação e uma complementaridade das tarefas e dos objetos da
linguística textual e da análise de discurso, [definindo] a linguística textual
como um subdomínio do campo mais vasto da análise das práticas
discursivas (ADAM, 2011, p.43).
Assim, é importante ressaltar que, para Gomes (2014), conforme Adam (2008, 2010a,
2010b, 2011):
o que une a Análise Textual dos Discursos ao domínio da Linguística
Textual e ao da Análise do Discurso são as práticas discursivas
institucionalizadas, ou seja, os gêneros de discurso, cuja determinação pela
história deve ser considerada pelo viés da interdiscursividade (ADAM, 2011,
p. 60).
Nesse sentido, Adam (2012, p. 191 apud GOMES, 2014, p. 27), apresenta três
observações que devem ser consideradas previamente para o entendimento da ATD:
- Observação 1 – a linguística textual é uma das disciplinas da análise de
discurso. Definida como um campo interdisciplinar, a AD necessita de uma
teoria da língua em uso (Saussure fala de <língua discursiva>) que não pode
desconsiderar a questão do texto como unidade de interação humana. A
linguística textual é um dos subdomínios da AD;
- Observação 2 – o texto é o objeto de análise da ATD. Ele é o traço
linguístico de uma interação social, a materialização semiótica de uma ação
sócio-histórica da fala;
-Observação 3- desde que há texto, isto é, reconhecimento do fato de que
uma série de enunciados forma um todo comunicativo, há enunciados em
classe de discurso. Em outras palavras, não há texto (s) sem gênero (s) e é
neste sistema de gêneros de uma formação sócio-histórica determinada que a
textualidade encontra a discursividade e que a linguística textual encontra a
análise de discurso (ADAM, 2012, p. 191 apud GOMES, 2014, p. 27).
Pelo exposto, conforme observa Gomes (2014, p. 28):
a aproximação da Linguística Textual e da Análise do Discurso, tem como
elemento de intersecção os gêneros discursivos. Não se pensa mais o texto
de maneira descontextualizada e dissociada do discurso. O texto passa a ser
entendido de forma articulada com o discurso a partir do estabelecimento de
novas categorias, tendo como elemento de intersecção os gêneros.
Um conceito mais amplo de genericidade que “permite pensar a participação de um
texto em vários gêneros” (ADAM; HEIDMANN, 2011, p. 20 apud GOMES 2014, p. 28)
também merece destaque na ATD. Assim, para os autores:
22
À exceção de gêneros socialmente bastante constritivos, a maior parte dos
textos não se conforma a um só gênero e opera um trabalho de
transformação de um gênero a partir de vários gêneros (mais ou menos
próximos). Considerar essa heterogeneidade genérica é [...] o único meio de
aproximar a complexidade de procedimento que liga um texto ao
interdiscurso de uma formação social dada (ADAM e HEIDMANN, 2011, p.
21 apud GOMES 2014, p. 29).
Para Monte (2014, p. 8 apud GOMES, 2014, p. 29), Adam e Heidmann consideram
que “os seguintes elementos da textualidade são afetados pelo conceito de genericidade: a) as
configurações semânticas; b) o regime de interpretação dos enunciados; c) os modos de
responsabilidade enunciativa; d) objetos comunicativos; e) estilo e composição”.
Assim, aliado a tais observações, Gomes (2014) revela que é preciso considerar o
esquema apresentado em Adam (2011, p. 61), que “oferece elementos para o entendimento do
texto como uma prática discursiva analisada à luz de determinados planos ou níveis de análise
linguística”, conforme a Figura 01 a seguir:
FIGURA 01 - Níveis da análise de discurso e níveis da análise textual
Fonte: ADAM (2011, p. 61)
23
Mediante o exposto, faz-se necessário discorrermos sobre os principais níveis de
análise propostos pela Análise Textual dos Discursos (doravante, ATD) que, conforme
(PASSEGGI et. al., 2010, p. 150), são os seguintes:
a) um nível sequencial – composicional (N4 – N5), em que os enunciados
elementares (a proposição-enunciado ou proposição enunciada) se
organizam em períodos, que comporão as sequências. Estas, por sua vez,
agrupam-se conforme um plano de texto. Esse nível focaliza a estruturação
linear do texto, no qual as sequências desempenham um papel fundamental;
b) um nível enunciativo (N7), baseado na noção de responsabilidade
enunciativa, que corresponde às “vozes” do texto, à sua polifonia;
c) um nível semântico (N6), apoiado na noção de representação discursiva e
em noções conexas (anáforas, correferências, isotopias, colocações), que
remetem ao conteúdo referencial do texto;
d) um nível argumentativo (N8), embasado nos atos de discurso realizados e
na sua contribuição para a orientação argumentativa do texto.
Dentro desse contexto, os autores supracitados ainda justificam que:
[...] o nível sequencial-composicional refere-se diretamente à estruturação
linear do texto. Por outro lado, os níveis enunciativo, semântico e
argumentativo são expressos linearmente e, além disso, também podem
corresponder a uma estruturação não linear do texto. Conferem ainda que, a
explicitação da responsabilidade enunciativa e a construção de uma dada
representação discursiva apresentam diversas características não lineares
(PASSEGGI et al., 2010, p.152).
Assim sendo, para Gomes (2014, p. 30), a proposta de Adam (2011) “busca uma
análise fina e detalhada dos dados empíricos, ou seja, busca analisar apenas o que se encontra
evidente na realidade material” (ADAM, 2010b, p. 10 apud GOMES 2014, p. 30). Nesse
sentido, considera o autor que “o gênero, como uma prática discursiva materializada,
encontra-se intermediando o texto na intersecção entre texto e discurso. O gênero é, pois, uma
categoria de análise que se encontra no mesmo nível das demais propostas por Adam”
(GOMES, 2014, p. 30).
24
Nessa mesma linha de raciocínio, Lourenço (2015, p. 26) afirma que a ATD “implica
na articulação entre elementos intrínsecos e extrínsecos, que na perspectiva de Adam (2011),
manifestam-se como essenciais para a determinação do sentido global da textualidade”.
Lourenço (2015, p. 26) ressalta que na proposta de Adam (2011):
o estudo analítico de um texto deve considerar o exame de um plano textual
dado, levando em consideração os elementos de textura, estrutura
composicional, semântica, enunciação e atos de discurso que, por sua vez,
completam-se, apenas, se postos em relação a elementos do plano discursivo
ou externo ao texto, os quais [...] configuram-se na ação visada, na interação
social, na formação sociodiscursiva e no interdiscurso.
Para Lourenço (2015, p. 28), “o conjunto menor, inserido no primeiro plano de
análise, que forma a base do esquema de Adam, é reservado exclusivamente à análise textual,
i.e., importa uma abordagem tipicamente pertinente à LT”. As setas, presentes no esquema,
“mostram a relação de articulação existente entre os dois níveis: da análise de discurso e da
análise textual”, conclui Lourenço (2015, p. 28).
Sendo assim, Adam (2012, p. 192 – 193 apud GOMES 2014, p. 31) destaca as razões
teóricas, metodológicas e didáticas que o levaram a propor a Análise Textual dos Discursos:
- Das razões teóricas: existem teorias parciais pertinentes nos diferentes
níveis. Assim, a teoria dos atos de fala ou atos ilocutórios (Austin, Searle,
etc.) é uma teoria parcial do N8; a teoria dos gêneros é uma teoria do nível
N3; a teoria das sequências textuais que eu desenvolvo é uma teoria parcial
do nível N5; a linguística da enunciação (Benveniste) e a teoria do ponto de
vista (Rabatel, Nolke) são as teorias do nível N7; a teoria da argumentação
na língua (Ducrot) é uma teoria dos níveis N8 e N6. O nível N1 é
perfeitamente teorizado por pesquisadores que se posicionam no
interacionismo (Bronckart) e é o objeto principal das teorias interacionistas e
conversacionais, enquanto o N2 é o objeto clássico da análise do discurso
francesa (Pêcheux), bem conhecida no Brasil.
- Das razões metodológicas e didáticas: a complexidade do objeto de estudo
é tal, que é metodologicamente necessário dividir e distinguir o momento da
análise do momento da teorização. Cada nível é, conforme o próprio autor,
um momento de análise, uma unidade de pesquisa e de ensino (esse é um
aspecto didático que o autor considera como mais importante) ligado aos
outros, mas suficientemente distintos para formar um todo. Na verdade, um
texto pode ser descrito usando apenas um nível de análise, usando a teoria
pertinente de cada nível. Na opinião do autor, a questão é ver que nós
estamos, então, diante de um objeto parcial de alta complexidade, que requer
uma descrição de uma teoria mais vasta.
Visando coerência e estabilidade teórico-metodológica suficiente para sua proposta,
Adam (2011, p. 104) propõe “uma unidade textual elementar, isto é, uma unidade mínima de
25
sentido chamada proposição-enunciado”. Para isso, o autor discorre sobre as noções de frase e
de período e afirma que:
[...] a noção de frase dificilmente pode ser mantida como uma unidade de
análise textual. Ela é, certamente, uma unidade de segmentação (tipo)gráfica
pertinente, mas sua estrutura sintática não apresenta uma estabilidade
suficiente (ADAM 2011, p. 104).
Nesse sentido, Adam (2011, p. 106) situando a discussão no âmbito da produção e da
leitura de conjuntos textuais mais vastos e não apenas literários verifica a necessidade de
[...] uma terminologia metalinguística que permita descrever uma
complexidade de unidades mínimas das quais a gramática não permite, por si
só, dar conta. Temos necessidade, metalinguisticamente, de uma unidade
textual mínima que marque a natureza do produto de uma enunciação
(enunciado) e de acrescentar a isso a designação de uma microunidade
sintático-semântica (a que o conceito de proposição, atende, finalmente,
bastante bem). Ao escolher falar de proposição-enunciado, não definimos
uma unidade tão virtual como a proposição dos lógicos ou gramáticos, mas
uma unidade textual de base, efetivamente realizada e produzida por um ato
de enunciação, portanto, com um enunciado mínimo.
Em relação à noção de proposição-enunciado, Adam (2011, p. 108) a define como “o
produto de um ato de enunciação” e acrescenta:
Toda proposição-enunciado compreende três dimensões complementares, às
quais se acrescenta o fato de que não existe enunciado isolado: mesmo
aparecendo isolado, um enunciado elementar liga-se a um ou a vários outros
e/ou convoca um ou vários outros em resposta ou como simples continuação.
Essa condição de ligação é, em grande parte, determinada pelo que
chamaremos orientação argumentativa (ORarg) do enunciado. As três
dimensões complementares de toda proposição enunciada são: uma
dimensão enunciativa [B] que se encarrega da representação construída
verbalmente de um conteúdo referencial [A] e dá-lhe uma certa
potencialidade argumentativa [ORarg] que lhe confere uma força ou valor
ilocucionário [F] mais ou menos identificável (ADAM, 2011, p. 109).
É importante salientar também que, conforme Gomes (2014) observa, o
reconhecimento da proposição-enunciado se dá com base em três critérios, a conhecer:
1-um critério do sentido – cada ato de enunciação deverá expressar um
enunciado único com sentido completo, muito embora esse sentido completo
somente se configure em constante diálogo com os demais atos enunciativos
que formam o todo textual;
2-um critério sintático – marcado pela predicação verbal;
26
3-um critério gráfico e/ou morfossintático – marcado pela presença de um
elemento de pontuação e/ou de um conector (GOMES, 2014, p. 33).
Dessa forma, para Adam (2011 apud GOMES 2014, p. 34), “o texto é um todo
formado por uma ou mais proposição-enunciado e submetido a duas operações de
textualização, operação de segmentação e operação de ligação”. Estas aparecem destacadas no
esquema a seguir de Adam (2011), que aponta, segundo Gomes (2014, p. 34), “tanto a
construção das unidades semânticas como os processos de continuidade pelos quais se
reconhece um segmento textual”. Vejamos o esquema:
FIGURA 02 - Operações de textualidade
Fonte: ADAM (2011, p. 64)
Podemos constatar que a Figura 2 detalha o conjunto das operações de textualização.
Assim, conforme afirma Adam (2011, p. 64), “uma primeira segmentação [3] recorta as
unidades de primeira ordem, enquanto uma primeira operação de ligação [4] as reúne em
unidades de ordem superior de complexidade”.
Segundo Adam (2011, p. 64):
essas unidades (períodos e/ ou sequências) são objeto de uma nova
segmentação [6] que determina seus limites inicial e final. A ligação [7]
dessas unidades de segunda ordem resulta em parágrafos de prosa ou em
estrofes constitutivas de um plano de texto [8] e em uma unidade textual
delimitada, ela própria, por uma sexta operação de segmentação, que se pode
denominar peritextual [9], na medida em que fixa os limites ou fronteiras
materiais de um texto.
27
Feita essa introdução sobre a ATD, apresentamos a seguir algumas considerações
sobre o nível enunciativo de Adam, baseado na noção de responsabilidade enunciativa -
objeto de estudo desta pesquisa.
2.3 A Responsabilidade Enunciativa
A noção de responsabilidade enunciativa, conforme Passeggi et al. (2010, p. 153) “não
é consensual para os autores que se dedicam ao seu estudo”. Para Culioli (1971, p. 4031 apud
PASSEGGI et al., 2010, p. 153), “toda enunciação supõe responsabilidade enunciativa do
enunciado por um enunciador”.
No entanto, para Nolke, Flottum e Norén (2004 apud PASSEGGI et al., 2010, p. 153),
os proponentes da Teoria Escandinava da Polifonia Linguística – ScaPoLine, “assumir a
responsabilidade enunciativa é ser a fonte do enunciado, é estar na origem, é assumir a
paternidade”.
De acordo com Rabatel (2008a, p. 21 apud PASSEGGI et al., 2010, p. 153):
o sujeito responsável pela referenciação do objeto exprime seu PdV tanto
diretamente, por comentários explícitos, como indiretamente, pela
referenciação, ou seja, através de seleção, combinação, atualização do
material linguístico.
Dentro desse contexto, Rabatel (2009, p. 85 apud PASSEGGI et al., apud 2010, p.
153) postulou “a noção de ‘quase-RE’ para os enunciadores segundos, aos quais pode-se
imputar um PdV, mesmo que eles não tenham dito nada”.
Para Rabatel (2010, p. 153 apud PASSEGGI et al., 2010, p. 153), “esse postulado o
distancia de Ducrot (1984), uma vez que, para esse autor, assumir a responsabilidade
enunciativa é falar, é dizer”. Isso também distancia Rabatel (2009 apud PASSEGGI et al.,
2010, p. 153) da ScaPoLine, visto que, “para ele, pode-se imputar um ponto de vista PdV,
mesmo a quem não tenha falado, mesmo a quem não está na origem do enunciado”.
Para Adam (2011 apud GOMES 2014, p. 69),
a responsabilidade enunciativa é o fenômeno que permite aferir o grau de
engajamento do locutor-narrador em um ato de enunciação. Desse modo, é
possível observar se o locutor-narrador assume a responsabilidade sobre o
que foi dito ou opta por manter um distanciamento enunciativo e atribui o
enunciado a outras instâncias enunciativas.
28
Nesse sentido, Gomes (2014, p. 69) declara: “o autor coloca a responsabilidade
enunciativa como uma das dimensões que compõem a proposição-enunciado”. Conclui
Gomes, ainda, que, para Adam, “é o nível [B] o responsável pela validade dos enunciados e se
encontra em posição mediana entre os níveis [A] e [C]” (GOMES, 2014, p. 69). Vejamos o
que nos mostra o esquema a seguir:
FIGURA 03 - Elementos constitutivos da proposição-enunciado
Fonte: ADAM (2011, p. 111)
A partir do referido esquema, Adam (2011apud GOMES 2014, p. 69) justifica que a
“representação feita pelo triângulo não hierarquiza os três componentes, mas, ao contrário,
situa [A] e [C] na mesma linha [...] e põe a enunciação [B] em posição mediana, entre [A] e
[C]”. Isso quer dizer que “a responsabilidade enunciativa possui uma conexão com o que já
foi dito anteriormente e com o que vai ser dito mais na frente”, conclui Gomes (2014, p. 69).
É, portanto, na opinião do autor, “um vértice que se refere ao passado e ao futuro” (GOMES
2014, p. 69).
Conforme Adam (2011 apud GOMES 2014, p. 69), “a responsabilidade enunciativa
não se separa de um ponto de vista (PDV) e os dois se situam no âmbito da polifonia, dando
conta do desdobramento polifônico dos enunciados”. Isso significa, nos dizeres de Gomes
(2014, p. 69) que “todo enunciado possui um ou mais PDV, entendidos por Adam como as
vozes presentes no quadro enunciativo”. Os PDV podem “ser assumidos ou não pelo locutor-
29
narrador, marcando, assim, a (não) responsabilidade enunciativa dos enunciados”, conclui
Gomes (2014 p. 69).
Nesse sentido, destacamos, na proposta de Adam (apud GOMES, 2014), o seu
entendimento de locutor e enunciador. Assim, Adam (2011, p. 70 apud GOMES 2014, p. 70)
“considera o locutor como a pessoa que fala, como a pessoa física responsável pela
enunciação”. Porém, quando o “enunciador assume a responsabilidade pelo enunciado, o
conceito de locutor se confunde com o de enunciador e quando o enunciador se distancia do
PDV, temos um locutor diferente do enunciador”, explica Gomes (2014, p. 70). Nesse caso,
conclui Gomes (2014, p. 70) que “podemos ter, inclusive, mais de um enunciador, ou seja,
podem aparecer distintos PDV atribuídos a diversas instâncias enunciativas, às quais o
enunciado se vincula para dar conta do desdobramento polifônico”, conforme nos mostra o
esquema a seguir:
FIGURA 04 - Desdobramento polifônico em Adam
Fonte: GOMES (2014, p. 70)
Ainda segundo Adam (2008b, p. 117 apud PASSEGGI et al., 2010, p. 153), em outras
palavras, “o grau de responsabilidade enunciativa de uma proposição é suscetível de ser
marcado por um grande número de unidades da língua”. Nessa direção, conforme explica
Passeggi et al., (2010, p. 153 – 154) , o autor propõe oito categorias, a saber:
(1) os índices de pessoas; (2) os dêiticos espaciais e temporais; (3) os tempos
verbais; (4) as modalidades; (5) os diferentes tipos de representação da fala
(discurso direto; discurso direto livre; discurso indireto; discurso indireto
livre e discurso narrativizado); (6) as indicações de quadros mediadores; (7)
os fenômenos de modalização autonímica e (8) as indicações de um suporte
de percepções e de pensamentos relatados.
30
É interessante destacar que as grandes categorias aqui enumeradas expandem a
descrição do que Benveniste (1974, p. 79 – 88 apud ADAM 2011, p. 117) chamava de
“aparelho formal de enunciação” 2.
Corroborando o que foi dito anteriormente, para Adam (2011 apud LOURENÇO
2015, p.41), “a RE ou PdV podem ser materializados textualmente por diversas marcas que
caracterizam o grau de Responsabilidade Enunciativa de uma proposição”, conforme
apresentadas no quadro seguinte:
FIGURA 05 - Grandes categorias
2 Ao propor a noção de aparelho formal da enunciação, Émile Benveniste quer dizer que, a língua, como sistema
que é, tem em sua organização (estrutura) um aparelho formal que possibilita ao sujeito enunciar nessa língua. O
aparelho (indicadores de subjetividade, tempos, modos, etc.) como tal pertence à língua, mas seu uso é
dependente da enunciação a qual, por sua vez, supõe sujeito. Ou seja, o conceito de enunciação está ligado ao
princípio da generalidade do específico (FLORES; NUNES, 2007).
31
Nesse sentido, para Lourenço (2015, p. 42),
o autor concebe a Responsabilidade Enunciativa na equivalência de ponto de
vista, que grafa da seguinte forma: PdV. Assim, a RE de uma proposição “ou
ponto de vista (PdV) permite dar conta do desdobramento polifônico”
(ADAM, 2011, p. 110) presente nos enunciados.
Portanto, “a RE, enquanto estratégia linguística é possível de ser marcada por unidades
textuais e revela a assunção ou não de determinado conteúdo proposicional por uma instância
(ou instâncias) enunciativa (s) dada(s)”, conclui Lourenço (2015, p. 43).
Objetivando o avanço dessa investigação a respeito do fenômeno da responsabilidade
enunciativa, torna-se imprescindível, inicialmente, apresentarmos o pensamento bakhtiniano a
respeito da polifonia e do dialogismo. Assim, destacamos que Bakhtin (2010 apud
LOURENÇO 2015, p. 43) desenvolve a noção de polifonia nos estudos da linguagem,
“apresentando a ideia de dialogismo como caracterizadora da consciência do homem, ao
afirmar que o homem interior se mostra no diálogo com outros homens, constituindo-se, o
diálogo, não em um meio, mas em um fim”.
Dessa maneira, em Problemas da Poética de Dostoiévski, Bakhtin reflete o dialogismo
nos seguintes termos:
A palavra não é um objeto, mas um meio constantemente ativo,
constantemente mutável de comunicação dialógica. Ela nunca basta a uma
consciência, a uma voz. Sua vida está na passagem de boca em boca, de um
contexto para outro, de um grupo social para outro, de uma geração para
outra. Nesse processo, ela não perde o seu caminho nem pode libertar-se até
o fim do poder daqueles contextos concretos que integrou [...]. A palavra, ele
[um membro de um grupo falante] a recebe da voz de outro e repleta de voz
de outro. No contexto dele, a palavra deriva de outro contexto, é impregnada
de elucidações de outros. O próprio pensamento dele já encontra a palavra
povoada (BAKHTIN, 2010, p. 232 apud LOURENÇO, 2015, p. 43).
Assim, entendemos que a palavra é utilizada como forma de interação pelos falantes,
representando tudo o que ouvimos e reproduzimos em contextos diversos, deixando de ser a
língua um sistema limitado de regras.
32
Lourenço (2015, p. 44) comenta que na concepção de linguagem3 concebida por
Bakhtin, confirma-se a ideia do autor de que “o dialogismo está imbricado na linguagem,
porque profundamente a penetra e se faz presente em todas as suas relações”, já que
[...] as relações dialógicas são extralinguísticas. Ao mesmo tempo, porém,
não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua como
fenômeno integral concreto. A linguagem só vive na comunicação dialógica
daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que
constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem (BAKHTIN, 2010, p.
209 apud LOURENÇO, 2015, p. 44).
Diante de tais considerações, concordamos com Lourenço (2015), ao relatar a
importância também, para esta investigação, de registrar o pensamento de Ducrot (1980), que
“teve como fonte de suas reflexões, a polifonia pensada por Bakhtin” (LOURENÇO, 2014, p.
44).
Conforme explica Lourenço (2015, p. 44), “esse estudioso põe em questionamento o
pressuposto de que o sujeito falante é único e que cada enunciado só pode ser relacionado a
um único autor”.
Assim, a partir de tal pressuposto, justifica Lourenço (2015, p. 44) que “o referido
autor prossegue suas reflexões afirmando que uma situação de polifonia demanda dois tipos
de personagens: os locutores e os enunciadores”.
Dessa forma, de acordo com o que estabelece Lourenço (2015, p. 44):
os locutores são aqueles apresentados no enunciado como sendo, por eles,
seus responsáveis e os enunciadores, como os seres ou instâncias cujas vozes
estão presentes na enunciação, mas que não são responsáveis pela ocorrência
de palavras.
Nesse sentido, Ducrot (1988, p. 16 apud LOURENÇO 2015, p. 44) traz o
esclarecimento de que “o autor de um enunciado não se expressa nunca diretamente, sem que
ponha em cena em um mesmo enunciado um certo número de personagens [...] em um mesmo
enunciado estão presentes vários sujeitos com estatutos linguísticos diferentes”.
Ducrot (1988 apud LOURENÇO 2015, p. 44), então, “pensa o estabelecimento de
vozes presentes em um enunciado a partir de três categorias distintas: o sujeito falante, o
3 Para Bakhtin (2004), a linguagem é um ato social que se realiza e se modifica nas realizações sociais e é, ao
mesmo tempo, meio para a interação humana e resultado dessa interação, já que seus sentidos não podem ser
desvinculados do contexto de produção. A linguagem é, portanto, de natureza sócioideológica e tudo que é
ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo (BAKHTIN 2004, p.31).
33
locutor e o (s) enunciador (es)”. Assim, conforme detalha Lourenço (2015, p. 44), “o sujeito
falante não constitui foco de interesse para os estudos linguísticos, pela explicitude de sua
identificação”.
Para autora supracitada, “figuram como interesse dos estudos linguísticos as categorias
de locutor, que reproduz a voz do texto, entidade pertencente ao cotexto linguístico”; e por
fim, “de enunciador (es), a instância abstrata que necessariamente não precisa ser identificada
com a figura do locutor, e a quem se atribui a RE” (LOURENÇO 2015, p. 44).
Dessa maneira, Ducrot (1988 apud LOURENÇO 2015, p. 45) “considera a presença
de diferentes sujeitos com estatutos linguísticos distintos num enunciado, representando
pontos de vista diferentes partilhados por um locutor”.
Desse modo, sobre o postulado Ducrotiano, destaca Lourenço (2015, p. 45) que:
[...] em cada texto/enunciado existem enunciadores diferentes, portadores de
ponto de vista diferentes, e que o locutor em seu discurso irá aderir a uma
das perspectivas demonstradas, sendo a polifonia uma constante no discurso,
possibilitando o locutor não se responsabilizar pelo dito, atribuindo-o a um
outro enunciador.
Nesse sentido, após explicitada a tese da polifonia e do dialogismo elaborada por
Bakhtin, submetida às reflexões de Ducrot, Lourenço (2015, p. 46) relata que, “a língua se
assenta como fenômeno social de interação verbal, que no âmbito da linguagem todo discurso
se estabelece em rede de complexas inter-relações dialógicas entre enunciados”.
Em Rabatel (2009 apud GOMES 2014, p. 72), o termo Prise en charge énonciative
(PEC) é utilizado para falar de responsabilidade enunciativa. Esta temática demarca o início
dos seus trabalhos cujos pressupostos ducrotianos entendem que
[...] o locutor é aquele que está na fonte do enunciado, é o ser empírico
responsável pelo material linguístico, e que o enunciador é aquele que
assume a responsabilidade pelo enunciado, isto é, os enunciadores são esses
seres que são considerados como se expressando através da enunciação, sem
que para tanto se lhe atribuam palavras precisas; se eles “falam” é somente
no sentido em que a enunciação é vista como expressando seu ponto de
vista, sua posição, sua atitude, mas não, no sentido material do termo, suas
palavras (DUCROT, 1987, p. 192 apud GOMES, 2014, p. 72).
Para tanto, conforme já revelado inicialmente por PASSEGGI et al., (2010, p. 153),
Rabatel (2009a apud Lourenço 2015, p. 53) “registra uma diferença entre a ocorrência da
Responsabilidade Enunciativa (prise en charge – PEC), em que os conteúdos proposicionais
são assumidos pelo primeiro locutor/enunciador (L1/E1), porque ele os julga verdadeiros”, e
34
também, “a ocorrência de casos, em que há uma imputação da Responsabilidade Enunciativa
em relação aos conteúdos proposicionais que L1/E1 atribui a um segundo enunciador (e2)”
(RABATEL, 2009a apud Lourenço 2015, p. 53).
Para Rabatel, “se o enunciador é a fonte de um PDV, sem ser, efetivamente, o autor do
enunciado, não há que se falar em Responsabilidade Enunciativa, em relação à concepção
segundo a qual se responsabilizar é falar, dizer”, declara Lourenço (2015, p. 53); conforme já
apontou inicialmente Passeggi et al., (2010). Assim, é possível levantar a hipótese de uma
“quase-PEC”, uma quase Responsabilidade Enunciativa, pois
todo enunciado pressupõe uma iminência que se responsabiliza pelo que é
aspirado, seguindo os quadros de referência, o dictum, o sintagma, o
conteúdo proposicional, a predicação, conforme o esquema minimal da
enunciação “EU DIGO” (“o que é dito”)”. Além das diferenças de
denominação, a iminência que se responsabiliza por um enunciado
monológico é aquela que é a fonte do processo de produção do enunciado.
Em um enunciado tal como “eu não amo essas questões de
responsabilização enunciativa”, eu é a fonte e o validador, ou seja, aquele
que confirma a verdade do conteúdo proposicional (RABATEL, 2009a, p. 72
apud LOURENÇO 2015, p. 53).
No que se refere ao conceito de PDV, Rabatel (2003, p. 3 apud GOMES, 2014, p. 75)
afirma que se trata de “tudo o que, na referenciação dos objetos (do discurso), revele, de um
ponto de vista cognitivo, uma fonte enunciativa singular e denote, direta ou indiretamente,
seus julgamentos sobre os referentes”. Assim,
[...] o PDV se apresenta como um dado objetivo anterior a todo julgamento,
antes mesmo das pressuposições e das premissas. Nesse sentido, como PDV,
a natureza, sempre sujeita à discussão do que é posto, é mascarada pelo fato
de que o posto é apresentado sobre o modo da evidência perpétua, ou seja,
como não contestável. A lógica natural é, assim, feita para que se aceite
facilmente o que resulta de uma observação a priori desprovida de apostas
interpretativas, já que o que “se vê com os olhos” parece corresponder à
emergência pura dos fenômenos, independentemente de toda
intencionalidade humana (RABATEL, 2004, p. 43 apud GOMES, 2014, p.
75).
Rabatel (2003, p. 12 apud GOMES, 2014, p. 75) afirma que, para Ducrot (1984):
[...] o PDV é abordado no nível da enunciação: todo enunciado dialógico
comporta PDV distintos referentes a enunciadores distintos e o locutor é
responsável pela cena enunciativa e indica o PDV ao qual ele adere. Assim,
“este muro não é branco” hierarquiza dois PDV incompatíveis, um
35
afirmando que “este muro é branco” e o outro afirmando que o PDV
precedente é falso, onde o locutor assume o segundo PDV.
Segundo Gomes (2014, p. 75), é importante salientar que “Rabatel apresenta o PDV
como um elemento vinculado diretamente à discussão sobre dialogismo”. Para ele, o PDV é
entendido juntamente com o discurso reportado4 como
[...] subconjuntos da problemática geral do dialogismo. Em uma perspectiva
de produção, há um interesse em mostrar aos estudantes que, no plano
sintático, o PDV pode utilizar-se do discurso direto, indireto, indireto livre,
direto livre ou de uma estrutura paratática que, por ser interpretada
corretamente, necessita considerar as relações semânticas entre os
enunciados (RABATEL, 2005, p. 64 apud GOMES, 2014, p.76).
Nesse sentido, Gomes (2014, p. 77) afirma que “para Rabatel, o dialogismo não é
apenas o diálogo com discursos anteriores, mas também o fato de haver em um discurso
pontos de vista diversos”.
Retomando o caminho para o entendimento do fenômeno da responsabilidade
enunciativa na perspectiva de Nolke, vale destacar que a ScaPoLine, conforme explica Gomes
(2014, p. 79), “surge com o objetivo de criar uma teoria formal que seja capaz de prever e
especificar as restrições propriamente linguísticas que governam a interpretação polifônica”
(NOLKE, 2009, p. 15 – 16 apud GOMES, 2014, p. 79). Nesse sentido, Gomes (2014) faz a
ressalva de que “essa âncora na abordagem formal pode fazer da ScaPoLine um aparelho
heurístico que possibilite as análises operatórias não apenas em enunciados individuais, mas
também em textos com vários enunciados” (p. 79).
Assim, para Coltier, Dendale e Brabanter (2009 apud GOMES 2014, p. 86), na teoria
escandinava da polifonia linguística (ScaPoLine), “a responsabilidade enunciativa é entendida
como uma ligação enunciativa que liga um ‘ser do discurso’ (s-d) a um ‘ponto de vista’ (PdV)
e que especifica a posição deste s-d em relação com o PdV” (COLTIER; DENDALE;
BRABANTER, 2009, p. 21 apud GOMES 2014, p. 86), conforme o esquema a seguir:
4 O discurso reportado é tanto uma enunciação na enunciação, quanto uma enunciação sobre a enunciação. Isso
significa que o discurso reportado inclui – além de um redizer do dizer de outra pessoa – uma atividade
avaliativa (CONSUL, 2008, p. 90).
36
FIGURA 06 – A responsabilidade enunciativa na ScaPoLine
Fonte: GOMES (2014, p. 86)
A partir de então, Gomes (2014, p. 87) afirma que “o locutor, ao produzir um
determinado enunciado, manifesta a posição dos seres do discurso em relação ao PdV a partir
de elos de responsabilidade ou de não responsabilidade”. Para ele, “essa relação ocorre
através de uma ligação enunciativa representada no esquema 4 pela linha horizontal entre o
PdV e os s-d” (GOMES, 2014, p. 87).
Concluímos nossa exposição sobre as vozes do texto, então, discorrendo sobre um
fenômeno que, na opinião de Gomes (2014, p. 87), “caminha de forma correlata com o
entendimento do fenômeno da responsabilidade enunciativa”. Nesse sentido, apresentamos,
portanto, o que Guentchéva (1994 apud GOMES 2014, p. 88) e Guentchéva et al., (1994 apud
GOMES 2014, p. 88) chamam de quadro mediativo ou categoria do mediativo. Para a referida
autora:
Numerosas línguas tipologicamente diferentes possuem procedimentos
gramaticais mais ou menos específicos (formas construídas a partir do
perfeito nas línguas indo-europeias e altaicas, sufixos e mais raramente
prefixos nas línguas ameríndias, partículas em certas línguas como as línguas
tibeto-birmanas) que permitem ao enunciador significar os diferentes graus
de distância que ele toma com respeito às situações descritas já que ele as
distinguiu de maneira mediata. Em outros termos, o enunciador indica de
forma explícita que ele não é a fonte primeira da informação porque os fatos:
a) constituem conhecimentos geralmente admitidos ou transmitidos pela
tradição; b) foram levados ao seu conhecimento por uma terceira pessoa ou
por ouvir dizer; c) foram inseridos a partir de índices observados; d) são o
resultado de um raciocínio. Nas línguas em que um tal sistema gramatical
específico existe, o enunciador é então obrigado a marcar formalmente, no
37
seu próprio ato de enunciação, se ele se envolve ou se ele não se envolve nos
fatos enunciados. Resulta daí um jogo sutil de valores que se estruturam de
maneira diferente conforme as línguas em uma categoria gramatical que nós
propomos chamar de mediativo (GUENTCHÉVA, 1994, p. 8 apud GOMES,
2014, p. 88).
Nesse sentido, conforme Guentchéva et al., (1994, p. 139 apud GOMES 2014, p. 88),
“o termo mediativo designa uma categoria gramatical que, em línguas tipologicamente
distantes, tem por função marcar a atitude de distanciamento ou de não engajamento que o
enunciador manifesta em relação aos fatos que ele apresenta”.
De acordo com Guentchéva (2011, p. 137 apud GOMES 2014, p. 89) a “enunciação
mediatizada é entendida como um ato enunciativo complexo subjacente a toda enunciação
que pode se manifestar pelas marcas explícitas integradas no sistema gramatical da língua”.
Guentchéva (1994, 1996 apud GOMES 2014, p. 89) e Guentchéva et al., (1994 apud GOMES
2014, p. 89) “consideram que a categoria do mediativo se organiza a partir de três valores
fundamentais: 1) fatos relatados; 2) fatos inferidos; 3) fatos de surpresa”. Esses três valores,
“a priori, podem parecer distantes e até opostos”, salienta Guentchéva (1994 apud GOMES
2014, p. 89), que em seguida, apresenta argumentos para agrupá-los na constituição da
referida categoria, quais sejam:
a) em algumas línguas, esses valores são expressos pelo mesmo marcador
gramatical; b) em outras línguas, um único marcador pode reagrupar dois
valores mediativos sem que a combinação desses dois valores seja sempre
previsível; c) a classificação de certos empregos dessas formas não permite
fazer, necessariamente, distinções rigorosas entre os referidos valores; a falta
de explicação para que línguas tipologicamente distintas tenham podido
gramaticalizar valores semânticos, senão idênticos, pelo menos similares
(GUENTCHÉVA, 194, p. 9 apud GOMES 2014, p. 89).
Assim, “a categoria do mediativo não se restringe apenas ao posicionamento assumido
pelo enunciador diante do enunciado, abrangendo, igualmente, os aspectos epistemológicos e
cognitivos da mensagem enunciada nos discursos produzidos nos vários domínios”, conclui
Lourenço (2015, p. 62).
Isso posto, observar o fenômeno da mediatividade permite, na opinião de Lourenço
(2015, p. 62) “empreender uma atividade interpretativa do semanticismo que algumas
palavras, marcadas morfologicamente, absorvem dentro do sistema da língua”. Assim,
justifica Lourenço (2015, p. 62) que “tal fenômeno explicita quando o enunciador enuncia não
se engajando em nenhuma das vias de participação ator – interlocutor – observador”. Assim,
38
[...] o enunciador se apresenta apenas como mediador da informação e seu
(s) interlocutor (s) reconhecem essa posição e inferem que a informação
dada não é assumida pelo enunciador, porque a informação para ele se
constitui em conhecimento adquirido de maneira mediata (LOURENÇO,
2015, p. 62).
Neves e Oliveira (2003, p. 1 apud Lourenço 2015, p. 62) asseguram, ainda, que
[...] não há em português a estrutura mórfica denominada de categoria
gramatical do mediativo porque a língua portuguesa não comporta tais
marcas morfológicas, de modo que o mediativo explicita-se em português
através de processos sintáticos e/ou marcadores não exclusivos deste valor.
Dessa maneira, Lourenço (2015, p. 62) cita, por exemplo, que,
[...] dentre os processos gramaticais que servem para manifestar o
distanciamento da responsabilidade do enunciador pelas informações por ele
reportadas e por ele não testemunhadas, em português, o modo verbal, as
modalidades (poder, crer, achar, parecer etc.), os advérbios de frase
(aparentemente, alegadamente, certamente), as locuções conjuntivas
conformativas (de acordo com..., segundo...), os verbos de dizer e de ação
metalinguística, as formas verbais do condicional e o futuro do pretérito, as
aspas, os dois pontos e os recursos vários para indicar o texto/discurso fonte.
Por fim, Gomes (2014, p. 92) destaca o entendimento de Guentchéva (2011, p. 119
apud GOMES 2014, p. 92) “para quem a operação de responsabilidade enunciativa não pode
se resumir a uma oposição entre responsabilidade enunciativa/não responsabilidade de um
conteúdo proposicional”. Por esse entendimento, a autora propõe que
[...] a responsabilidade enunciativa seja entendida mais em termos de um
contínuo, no qual possamos identificar diferentes graus de assunção e de
(não) assunção da responsabilidade enunciativa, do que em termos de
polarização, em que o fenômeno em foco seja entendido apenas como
assunção ou não assunção do conteúdo proposicional por uma instância
enunciativa (GUENTCHÉVA 2011, p. 119 apud GOMES 2014, p. 92).
Apresentados os principais pontos sobre a concepção de quadro mediativo de
Guentchéva, passemos, pois, à seção seguinte.
39
3 A LINGUÍSTICA TEXTUAL E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA
Ao discorrermos sobre o papel da Linguística Textual no ensino da Língua
Portuguesa, reportamo-nos, a princípio, ao pensamento de Oliveira (2011, p. 193) para quem
“a Linguística Textual representa um momento em que se procura a superação do tratamento
linguístico em termos de unidades menores – palavra, frase ou período – no entendimento de
que as relações textuais são muito mais do que um somatório de itens ou sintagmas”. Segundo
a autora, “um dos maiores desafios para a linguística textual é exatamente definir seu objeto
de análise – o texto” (Op.cit., 2011, p. 193).
Nesse sentido, Fávero e Koch (1994 apud OLIVEIRA 2011, p. 193) apresentam o
texto em uma multiplicidade de conceituações “partindo de um enfoque amplo, como toda e
qualquer forma de comunicação fundada num sistema de signos (como um romance, uma
peça teatral, uma escultura, um ato religioso, entre outros)”, e “chegando a uma definição
mais estrita”. Nessa última definição, o conceito de texto se refere “a uma unidade linguística
de sentido e de forma, falada ou escrita, de extensão variável, dotada de textualidade”, ou
seja, de um conjunto de propriedades que “lhe conferem a condição de ser compreendido pela
comunidade linguística como um texto”, explica Oliveira (2011, p. 193 - 194).
Assim, nos dizeres de Oliveira (2011, p. 194), “o texto é a unidade comunicativa
básica, aquilo que as pessoas têm a declarar umas às outras”. Nesse sentido, certifica ainda
que “essa declaração pode ser um pedido, um relato, uma opinião, uma prece, enfim, as mais
diversas formas de comunicação” (OLIVEIRA, 2011, p. 194).
Em consonância com o pensamento de Oliveira (2011), Silva (2011, p. 142) propõe:
“para o desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita visando tornar os alunos capazes
de se comunicarem nas mais diversas situações do cotidiano é preciso focar na linguística
textual”. Para Silva (2011, p. 142), “independente da série, é possível trabalhar a língua
materna a partir de textos”.
Silva (2011, p. 142) afirma que “preocupar-se com a apreensão de conceitos e com
exercícios estruturais é uma prática que começou a ser questionada há muito tempo, sendo
colocada em xeque na década de 1980”.
Da mesma maneira, a autora indica que “não se pode trabalhar tendo como base a
tipologia textual há muito abordada nas aulas de língua materna: dissertação, narração e
descrição” (SILVA, 2011, p. 142).
Para Silva (2011, p. 142) “em um passado não muito distante, por exemplo,
apresentava-se a tipologia textual dividida de acordo com a série”.
40
Assim, “para as iniciais, era trabalhada a narração, e depois a descrição. A
dissertação ficava para as séries finais, pois era considerada um tipo textual
mais complexo e que só poderia ser trabalhado com os alunos depois que
estes estivessem aptos”, confere a autora (Op. cit., 2011, p. 143).
De acordo com Silva (2011, p. 143):
a tipologia clássica não dá conta da multiplicidade de textos com os quais
todos se deparam nas comunicações diárias. Não é solicitado, em situações
fora da sala de aula, que pessoas escrevam textos dissertativos, descritivos
ou narrativos. As pessoas podem até escrever sobre o seu ponto de vista,
sobre suas ideias e, nesse caso, teríamos um texto que provavelmente seria
predominantemente dissertativo. Podem, ainda, escrever um anúncio de
classificado vendendo algo, o que dá um texto predominantemente descritivo
e pode se ver em uma situação em que se precise fazer um boletim de
ocorrência, texto que terá muito de narrativo.
Outro fator bastante interessante e comum nas salas de aula, ainda conforme Silva
(2011, p. 143), “é o texto produzido pelo aluno, que se revela sem destinatário; o aluno, na
maioria das vezes, escreve para ninguém”. Ele sabe que “aquilo é um treino para nada e que
escreve para o professor, que é o destinatário sem o ser, pois, na verdade, mostra-se um
corretor”. Nesse sentido, “as atividades de produção precisam deixar de ser esse ensaio para o
nada”, conclui a autora (Op. cit., 2011, p. 143).
Um dos pontos que merece atenção é a observação de Silva (2011, p. 144) de que:
[...] o professor de Língua Portuguesa precisa entender que o trabalho com
os gêneros textuais tem a finalidade principal de libertar, de mostrar que
textos, os mais diversos, circulam por nossa sociedade e que é de grande
relevância para as pessoas saberem distinguir formas e funções. O trabalho
com os gêneros vai aproximar o aluno do mundo real à medida que os textos
que eles produzem em sala representem esse mundo. Por mais que nem
todos os textos possam, de fato, circular socialmente, os alunos estarão
produzindo a partir de situações que simulam o real, que eles veem para
todos os lados que olhem, diferente da velha conhecida redação escolar nos
moldes tradicionais (para não dizer antigos).
Ainda nos dizeres de Silva (2011, p. 144):
o desenvolvimento da tecnologia trouxe inúmeros recursos e podem
propiciar textos com muitas linguagens, como: verbal e visual, verbal e
audiovisual, não verbal, verbal e gestual etc. O professor de língua deve,
41
inclusive, aprimorar o conceito de letramento5 que traz consigo. Hoje, uma
pessoa letrada é aquela capaz de se fazer entender e de compreender essa
multiplicidade de textos com os quais se depara.
Outro ponto que merece atenção é a gramática e seu ensino, declara Silva (2011, p.
145). Para ela, “é falaciosa qualquer informação no sentido de que os linguistas aboliram o
erro e que agora pode tudo e que a gramática não deve ser ensinada nas escolas”, pois:
Primeiro, a prática de longos anos de ensino gramatical mostrou que, antes
de tudo, é preciso saber a língua para depois entendermos sua gramática, e
não o contrário. Segundo, o aluno precisa e inclusive tem o direito de ser
familiarizado com o padrão da língua. É essa variedade que ele vai encontrar
em textos de lei, em muitos meios de comunicação (orais ou escritos) e é ela
que vai, muito provavelmente, abrir-lhe muitas portas. A linguística trouxe
um conhecimento que antes não se tinha sobre as línguas, e esse
conhecimento mostra novos caminhos (SILVA, 2011, p. 147).
No caso específico da linguística textual, continua a autora, “os gêneros se mostram de
grande valia”, pois
[...] é a partir deles que tudo pode ser viabilizado. Os textos podem e devem
ser objeto de uso diário, mais do que a lousa. Através dos gêneros, podemos
apresentar aos alunos textos extremamente formais e informais e explorá-los
em todas as suas possibilidades, inclusive gramaticais. E aí sim, devemos
estar presos aos conteúdos, pois os textos não trazem oportunidades de
trabalharmos pontos gramaticais na mesma ordem trazida por eles, nem os
alunos mostrarão “problemas” de fala e/ou escrita na ordem estabelecida
pelos conteúdos para cada série. A língua deve ser apresentada, discutida,
analisada, na medida em que se fizer necessário, e isso não é igual nem entre
turmas de uma mesma série, muito menos entre séries (SILVA 2011, p. 146
– 147).
Os gêneros, portanto, “propiciam habilitar os alunos a discernirem, por exemplo, qual
deles é o mais adequado em determinada interação social, o que tenderá a acontecer de forma
cada vez mais eficaz”, conforme Dolz, Haller e Schneuwly (1998, p. 161 apud SILVA, 2011,
p. 147):
[...] uma proposta de ensino/aprendizagem organizada a partir de gêneros
textuais permite ao professor a observação e a avaliação das capacidades de
linguagem dos alunos; antes e durante sua realização, fornecendo-lhe
5 Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que
adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita. (SOARES, 2014,
p. 18).
42
orientações mais precisas para sua intervenção didática. Para os alunos, o
trabalho com gêneros constitui, por um lado, uma forma de se confrontar
com situações sociais efetivas de produção e leitura de textos e, por outro,
uma maneira de dominá-los progressivamente (DOLZ, HALLER e
SCHNEUWLY (1998, p. 161 apud SILVA, 2011, p. 147).
Em suma, “cabe ao professor a tarefa de gerenciar meios que visem ao conhecimento
de uma vasta gama de gêneros e suas possibilidades de leitura, à discussão de suas
composições, estilos, funções sociais etc”, conclui a autora (SILVA 2011, p. 147).
Mediante as considerações a respeito da Linguística Textual no ensino da Língua
Portuguesa, passamos agora a uma reflexão sobre as práticas de linguagem e PCN.
3.1 Práticas de Linguagem e PCN: O Ensino de Língua Portuguesa
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1998b) de Língua Portuguesa
apresentam propostas de organização de conteúdos e delimitação de objetivos que, conforme
Souza (1983 apud SANTOS; RICHE; TEIXEIRA, 2015, p. 15), visam à formação dos alunos
“como coautores do conhecimento, não somente reproduzindo terminologia gramatical - tal
qual se vê no ensino tradicional -, mas principalmente fazendo com que os alunos reflitam
sobre sua língua”. Assim, os Parâmetros defendem a ideia de que “ensinar português nos
níveis fundamental e médio só faz sentido com base em textos orais e escritos, buscando uma
interação entre leitura, produção textual e análise linguística” (SANTOS; RICHE;
TEIXEIRA, 2015, p. 15 – 16).
De acordo com Santos; Riche & Teixeira (2015):
quando se defende uma abordagem textual, entra em questão o uso de textos
como unidade de ensino, e não como mero pretexto para destacar dígrafos,
substantivos abstratos ou sujeitos, por exemplo. Textos artificiais ou em
formato de frases soltas, como ‘Ivo viu a uva’ ou ‘Vovô viu a vovó’, não
colaboram para a percepção linguística dos alunos, nem para sua formação
como leitores. Exemplos assim representam, na verdade, pseudotextos, já
que estão descontextualizados, sem uma situação real na qual possam ser
usados como elementos de interação. São meras atividades de ‘leitura’,
provavelmente para treinar a escrita de sílabas ou palavras com determinado
fonema, sem formar um todo significativo (SANTOS; RICHE; TEIXEIRA,
2015, p. 16).
Assim, “o texto como unidade de ensino pressupõe um trabalho que congregue as três
práticas de linguagem apresentadas nos Parâmetros: prática de leitura de textos orais/escritos,
43
prática de produção de textos orais/escritos, prática de análise linguística” (SANTOS;
RICHE; TEIXEIRA, 2015, p. 16).
Em comum entre tais práticas de linguagem, o pressuposto de que somente
relacionando USO-REFLEXÃO-USO é possível pensar um ensino de língua portuguesa
produtivo, em que
O aluno passe da condição de aprendiz passivo para a de alguém que
constrói seu próprio conhecimento – com a ajuda do professor, é claro -, por
observar o funcionamento da estrutura da língua nos mais diversos gêneros
textuais, lidos e produzidos por ele. O desafio que se apresenta ao professor
é, então, trabalhar as três práticas de linguagem apresentadas nos Parâmetros
de maneira integrada (SANTOS; RICHE; TEIXEIRA, 2015, p. 16 -17).
Sobre tal perspectiva, as autoras supracitadas manifestam ainda que, “para que a
escola enfatize o texto como unidade de ensino, é necessário, primeiramente, que o professor
repense o conceito de texto” (SANTOS; RICHE; TEIXEIRA, 2015, p. 23). Salientam que,
“quando os PCN defendem o ensino com base em textos, trata-se de textos orais e escritos.
Mais que isso: para compreender certos textos, é necessário observar outras linguagens além
da verbal” (SANTOS; RICHE; TEIXEIRA, 2015, p. 23).
As referidas autoras concluem nos alertando sobre a necessidade de compreender que
“a junção de palavras e frases, apenas, não constitui um texto: ele precisa ser aceito como tal;
o sentido precisa ser construído. E isso só se faz ultrapassando a superfície linguística e
entrando numa análise textual e discursiva” (SANTOS; RICHE; TEIXEIRA, 2015, p. 24- 25).
Logo, o ensino de textos, segundo Santos; Riche e Teixeira (2015, p. 25), precisa
englobar aspectos variados, como “o suporte onde ele circula, o gênero textual a que pertence,
a tipologia textual predominante, considerando elementos verbais e não verbais constituintes
desse texto, além da interação entre interlocutores”. Assim, “o objetivo principal dessa
abordagem é a formação de leitores e produtores críticos, com conhecimentos linguísticos e
textuais suficientes para serem cidadãos, leitores de mundo” (Op. cit. 2015, p. 25).
Dialogando com as ideias de Santos; Riche e Teixeira (2015) sobre o ensino de textos,
Marcuschi (2008), ao discutir sobre as características de alguns gêneros e como eles se
organizam, revela que “existe grande variedade de gêneros textuais analisada em manuais de
língua portuguesa”. Contudo, nos dizeres do autor, uma observação mais atenta e qualificada
revela que “a essa variedade não corresponde uma realidade analítica. Pois os gêneros que
aparecem nas seções centrais e básicas, analisados de maneira aprofundada são sempre os
mesmos” (MARCURSCHI, 2008, p. 206 – 207). Para ele, ainda existem poucos casos de
44
tratamento dos gêneros textuais de forma sistemática. Mas, a passos lentos, vão surgindo
novas possibilidades que incluem até mesmo o recurso da oralidade. Além disso, O autor
explica que “os gêneros orais em geral ainda não são tratados de modo sistemático. Apenas
alguns, de modo particular os mais formais, são lembrados em suas características básicas”
(Op. cit. 2008, p. 207).
Diante da multiplicidade de gêneros existentes e diante da necessidade de escolha dos
ideais para o ensino de língua, Marcuschi (2008, p. 207) revela que “não há uma resposta
consensual, embora tudo indique que a resposta seja não”. Mas, segundo o autor, “é provável
que se possam identificar gêneros com dificuldades progressivas, do nível menos formal ao
mais formal, do mais privado ao mais público e assim por diante” (Op. cit. 2008, p. 207).
Marcuschi (2008, p. 207) acrescenta que “há muito mais gêneros na escrita do que na
fala, o que é de certo modo surpreendente, mas explicável pela diversidade de ações
linguísticas que praticamos no dia a dia na modalidade escrita”. Desse modo, o autor afirma
que “as civilizações em que a escrita tem um papel central nas tarefas do dia a dia, mormente
no comércio, indústria e produção de conhecimento, tendem a diversificar de maneira
acentuada as formas textuais utilizadas” (Op. cit. 2008, p. 207).
Bakhtin (1979 apud MARCUSCHI, 2008, p. 208) aponta os gêneros textuais como
“esquemas de compreensão e facilitação da ação comunicativa interpessoal. Essa
estabilização de formas textuais repercute não só no processo de compreensão, mas na própria
estabilização de formas sociais de interação e raciocínio”.
Assim, Marcuschi (2008, p. 208) considera que “a distribuição da produção discursiva
em gêneros tem como correlato a própria organização da sociedade”. Para o autor, “o estudo
sócio-histórico dos gêneros textuais é concebido como uma das maneiras de entender o
próprio funcionamento social da língua” (MARCUSCHI, 2008, p. 208). Nas palavras do
autor, “isto nos remete a uma perspectiva teórica dos estudos linguísticos sobre o texto e do
texto, ou seja, a visão sociointeracionista” (Op. cit. 2008, p. 208).
Mediante as considerações a respeito das práticas de linguagem nos PCN, partimos
para uma explanação sobre o relacionamento entre Gênero, Texto e Discurso.
3.2 Gênero, Texto e Discurso
Dell’Isola (2007, p. 17 apud Gomes 2013, p. 05) conceitua gêneros textuais como
“práticas sócio-históricas que se constituem como ações para agir sobre o mundo e dizer o
mundo, constituindo-o de algum modo”.
45
Para a autora supracitada,
Por serem fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e
social; fruto do trabalho coletivo; formas de ação social; modelos
comunicativos; eventos textuais, os gêneros textuais apresentam
características comunicativas, cognitivas, institucionais e
linguísticas/estruturais, cuja finalidade é predizer e interpretar as ações
humanas em qualquer contexto discursivo, além de ordenar e estabilizar as
atividades comunicativas cotidianas (DELL’ISOLA, 2007, p. 17 apud
GOMES 2013, p. 05).
Com base em um vínculo entre as atividades dos seres humanos e a utilização da
língua, Bakhtin (2003 apud GOMES 2013, p. 05) conclui que “nos expressamos por meio de
gêneros textuais para atingir os nossos fitos dentro dos âmbitos da interação humana”. Nesse
sentido, “cai por terra a ideia da utilização do código linguístico sem um fim, sem um
objetivo, falar por falar, falar no vazio” (Op. cit. 2013, p. 05).
Ainda de acordo com Bakhtin (2003 apud GOMES 2013), “os gêneros são
classificados em dois grandes grupos: primários e secundários”. Os gêneros primários
ocorrem no uso espontâneo e conservam uma ligação direta com o conteúdo imediato. Assim,
para exemplificar uma utilização dos gêneros primários, o autor faz referência a um papo
entre amigos ou ao empréstimo de um livro como favor. Já os gêneros secundários,
“apresentam maior complexidade e surgem nas condições de um convívio cultural mais
complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) –
artístico, científico, sociopolítico, etc” (BAKHTIN, 2003, p. 263 apud Gomes 2013, p. 05).
Conforme Marcuschi (2010, p. 22 - 23), “a comunicação verbal só é possível por
algum gênero textual”. Essa posição, defendida por Bakhtin (1997 apud MARCUSCHI 2010,
p. 22) e também por Bronckart (1999 apud MARCUSCHI 2010, p. 22), é adotada pela
maioria dos autores que “tratam a língua em seus aspectos discursivos e enunciativos, e não
em suas peculiaridades formais”, justifica o autor (MARCUSCHI, 2010, p. 22 – 23).
Essa visão segue, conforme Marcuschi (2010, p. 22), “uma noção de língua como
atividade social, histórica e cognitiva que privilegia a natureza funcional e interativa e não o
seu aspecto formal e estrutural”. O autor ainda afirma “o caráter de indeterminação e ao
mesmo tempo de atividade constitutiva da língua”, o que equivale a dizer que “a língua não é
vista como um espelho da realidade, nem como um instrumento de representação dos fatos”
(MARCUSCHI 2010, p. 22).
Nesse sentido, para Marcuschi (2010, p. 23), “a língua é tida como uma forma de ação
social e histórica que, ao dizer, também constitui a realidade, sem, contudo, cair num
46
subjetivismo ou idealismo ingênuo”. [...] Para o autor, nesse contexto teórico, “os gêneros
textuais se constituem como ações sociodiscursivas para agir sobre o mundo e dizer o mundo,
constituindo-o de algum modo” (Op. cit. 2010, p. 23).
Diante dessas considerações, é relevante a distinção proposta por Marcuschi (2010)
entre o que se convencionou chamar de tipo textual, de um lado, e gênero textual, de outro.
Para o autor, “essa distinção é fundamental em todo o trabalho com a produção e a
compreensão textual” (Op. cit. p. 23).
Vejamos uma breve definição das noções de tipo textual e gênero textual, conforme
Marcuschi (2010):
(a)Tipo textual designa uma espécie de “sequência teoricamente definida
pela natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos,
tempos verbais, relações lógicas)”. Em geral, “os tipos textuais abrangem as
categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição,
injunção”. (b)Gênero textual designa uma noção propositalmente vaga para
referir os “textos materializados que encontramos em nossa vida
diária” e que “apresentam características sociocomunicativas definidas
por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição
característica”. Alguns exemplos de gêneros textuais seriam:
telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete,
reportagem jornalística, aula expositiva, reunião de condomínio,
notícia jornalística, horóscopo, receita culinária, [...], e assim por
diante (MARCUSCHI 2010, p.24 – 25).
Ainda em Marcuschi (2008, p. 159), destacamos algumas características que os
gêneros textuais podem apresentar. Desse modo, resumidamente, os gêneros são entidades:
QUADRO 01: Algumas características dos gêneros textuais a) dinâmicos
b) históricos
c) sociais
d) situados
e) comunicativos
f) orientadas para fins específicos
g) ligados a determinadas comunidades discursivas
h) ligados a domínios discursivos
i) recorrentes
j) estabilizados em formatos mais ou menos claros.
Fonte: A AUTORA (2016)
47
Coutinho (2004 apud MARCUSCHI 2008, p. 81) fundamenta que
uma das tendências atuais é a de não distinguir de forma rígida entre texto e
discurso, pois se trata de frisar mais as relações entre ambos e considerá-los
como aspectos complementares da atividade enunciativa.
Desse modo, trata-se de “reiterar a articulação entre o plano discursivo e textual”,
considerando o discurso como o “objeto de dizer” e o texto como o “objeto de figura”
(Coutinho, 2004 apud MARCUSCHI 2008, p. 81). Assim, “o discurso dar-se-ia no plano do
dizer (a enunciação) e o texto no plano da esquematização (a configuração). Entre ambos, o
gênero é aquele que condiciona a atividade enunciativa” (Op. cit. 2004).
Isso implica afirmar, na visão de Culioli (apud MARCUSCHI 2008, p. 82) que “os
textos são, na realidade, os objetos empíricos aos quais tem-se acesso direto como o plano dos
observáveis”. Enquanto unidades empíricas, os textos seriam, na visão de Coutinho (2004, p.
29 apud MARCUSCHI 2008, P. 82), “produções linguísticas atestadas que realizam uma
função comunicativa e se inserem numa prática social”.
Essa visão é um recuo diante da posição de Adam (1990 apud MARCUSCHI 2008, p.
82), para quem o texto era “uma unidade abstrata em que se tinha em mente o fato linguístico
‘puro’ sem suas condições de produção”, segundo a conhecida fórmula proposta pelo autor:
FIGURA 07. O texto como uma unidade abstrata
Discurso = texto + condições de produção
Texto = discurso – condições de produção
Fonte: MARCUSCHI (2008, p. 82)
Marcuschi (2008, p. 82) explica que:
essa forma de ver o texto representa uma redução do objeto e é fruto de um
procedimento metodológico e epistemológico de identificar o objeto
limitado a seus aspectos centrais imanentes à língua. Nem tudo o que se
toma como significação está no âmbito da língua e do sistema (léxico –
gramatical). O contexto é algo mais do que um simples entorno e não se
pode separar de forma rigorosa o texto de seu contexto discursivo. Contexto
é fonte de sentido.
48
É assim que Adam (1999:39 apud MARCUSCHI 2008, p. 82) “propõe agora uma
releitura que inclua o texto no contexto das práticas discursivas sem dissociar sua
historicidade e suas condições de produção” (Op. cit. 1999). Para Marcuschi (2008, p. 83),
então, “este movimento de mudança de concepção é importante porque permite tratar os
gêneros textuais como elementos tipicamente discursivos”.
Isso posto, em contraposição ao seu estudo de Adam (1990), Adam (1999 apud
MARCUSCHI 2008, p. 82) declara:
Em outros termos, não diremos jamais que um texto ou um discurso é
composto de frases. A própria existência de frases tipográficas – como os
parágrafos, os períodos, as sequências e os textos – resulta de escolhas
instrucionais plurideterminadas. Nesta perspectiva [...] a linguística textual
pode ser definida como um subdomínio do campo mais vasto da análise das
práticas discursivas (ênfase adicionada).
Nesse sentido, segundo Adam (1999 apud MARCUSCHI 2008, p. 82) trata-se agora,
numa nova concepção em oposição à de 1990, de “uma forma de inclusão do texto num
campo mais vasto das práticas discursivas que devem ser pensadas na diversidade dos gêneros
que elas autorizam e na sua historicidade” (p. 39).
Para isto, Adam (1999: 39 apud MARCUSCHI 2008, p. 83) oferece o seguinte
diagrama representacional da nova concepção em oposição à de 1990:
FIGURA 08. O texto como objeto concreto, material e empírico.
CONTEXTO
DISCURSO condições de produção e
recepção-interpretação TEXTO
Fonte: ADAM. 1999:39
Adam (1999 apud MARCUSCHI 2008, p. 83), após definir a noção de texto como
“objeto abstrato no campo dos estudos de linguística numa teoria geral e de definir discurso
como a realidade singular de interação-enunciação objeto de análises discursivas” e tomando
o gênero como “a diversidade socioculturalmente regulada das práticas discursivas humanas”
(p. 40), identifica o texto como “objeto concreto, material e empírico resultante de um ato de
enunciação” (ADAM apud MARCUSCHI, 2008, p. 83). Com isto, Marcuschi (2008, p. 83)
49
chega “à articulação do discursivo com o textual e a distinção entre ambos se dilui de modo
sensível”.
Justifica Marcuschi (2008, p. 83) que “a ideia da visão complementar é importante e tem
como consequência o fato de não frisar apenas um dos lados do funcionamento da língua no
seu aspecto genérico”. Nesse sentido, Adam (1999: 40 apud MARCUSCHI 2008, p. 83)
considera que “a separação do textual e do discursivo é essencialmente metodológica”.
Assim, de certo modo, para o autor, “a distinção tende a anular-se e a tornar menos
significativa” (Op. cit. 1999).
Adam (1999: 41 apud MARCUSCHI 2008, p. 83) observa que “até os anos 1980, a
LT tratava o texto em suas propriedades cotextuais e a partir dos anos 1980 já define o texto
como um evento comunicativo”, tal como o fazem Beaugrande & Dressler (1981 apud
MARCUSCHI 2008, p. 83), “deslocando o foco para a questão da pragmática, com a análise
da intencionalidade e, particularmente, da situacionalidade”. Nesse sentido, conforme os
autores “vai-se do cotexto ao contexto”.
Adam (1999: 41 apud MARCUSCHI 2008, p. 83 – 84), então, considera que “dar
conta do textual (o particular) e do discursivo (o universal) não pode ser feito num mesmo
movimento teórico”. Para o autor, “a proposta ‘neutralização terminológica’ da separação
entre duas dimensões complementares (discurso e texto) torna-se complicada” (ADAM,
1999:41 apud MARCUSCHI 2008, p. 84). Deste modo, para Coutinho (2004 apud
MARCUSCHI 2008, p. 84), parece que “a melhor articulação para tratar dos textos empíricos
seria entre texto, discurso e gênero como categorias descritivas”. Coutinho (2004 apud
MARCUSCHI 2008, p. 84) propõe o seguinte esquema para dar conta do texto como objeto
empírico:
FIGURA 09. Texto, discurso e gênero como categorias descritivas
(objeto da figura)
Discurso Gênero Texto
(objeto do dizer)
TEXTO (objeto empírico)
FONTE: COUTINHO (2004, p. 32 apud MARCUSCHI, 2008, p.84)
50
Partindo do esquema representado na figura 09, entendemos que “o discurso como
‘objeto do dizer’ é visto como prática linguística codificada, associada a uma prática social
(socioinstitucional) historicamente situada” (Coutinho, 2004: 32 apud MARCUSCHI, 2008,
p. 84). Para a autora, “é uma enunciação em que entram os participantes e a situação sócio-
histórica de enunciação”. Além disso, “entram aspectos pragmáticos, tipológicos, processos
de esquematização e elementos relativos ao gênero”, confere a autora. O que perpassa todas
as posições teóricas em relação ao discurso “é o fato de se tratar de ‘uso interativo da língua’”
(Coutinho, 2004: 33 apud MARCUSCHI 2008, p. 84). Isso significa, nos dizeres de
Marcuschi (2008, p. 84) que “uso da língua no plano discursivo não é ‘um real objetivo e
estável’ captado simplesmente no plano da codificação-decodificação”.
Nesse sentido, a ideia do texto como ‘objeto de figura’ sugere que
[...] se trata de uma configuração, ou seja, de uma esquematização que
conduz a uma figura ou uma figuração. Não se trata de uma ordenação de
enunciados em sequência e sim de uma configuração global que pode ter até
mesmo um só enunciado ou mesmo um romance inteiro (COUTINHO,
2004: 33- 35 apud MARCUSCHI 2008, p. 84).
Isso posto, justifica Marcuschi (2008, p. 84) que “o texto é o observável, o fenômeno
linguístico empírico que apresenta todos os elementos configuracionais que dão acesso aos
demais aspectos da análise”.
É importante salientar ainda, nos dizeres de Coutinho (2004: 35-37 apud Marcuschi
2008, p. 84), que:
entre o discurso e o texto está o gênero, visto como prática social e prática
textual-discursiva que opera como a ponte entre o discurso como uma
atividade mais universal e o texto enquanto a peça empírica particularizada e
configurada numa determinada composição observável. Gêneros são
modelos correspondentes a formas sociais reconhecíveis nas situações de
comunicação em que ocorrem. Sua estabilidade é relativa ao momento
histórico-social em que surge e circula (COUTINHO 2004: 35 – 37 apud
MARCUSCHI, 2008, p. 84).
O gênero, então, de acordo com Marcuschi (2008, p. 85) apresenta dois aspectos
importantes:
51
(a) gestão enunciativa (escolha dos planos de enunciação, modos discursivos
e tipos textuais);
(b) composicionalidade (identificação de unidades ou subunidades textuais
que dizem respeito à sequenciação e ao encadeamento e linearização
textual).
Assim, ainda para Coutinho (2004:37 apud MARCUSCHI 2008, p. 85), “o gênero
prefigura o texto e o gênero define o que no texto empírico faz a figura do texto”. A figura a
seguir dá uma ideia disso:
FIGURA 10. O gênero como prefiguração do texto
Fonte: COUTINHO (2004, p.37 apud MARCUSCHI, 2008, p. 85)
Conforme Marcuschi (2008, p. 85), “a esquematização implica um trabalho de
construção de objetos, tal como se percebe quando se analisa o texto com suas
configurações”. De acordo com o autor, “essa esquematização, não é arbitrária, mas segue
pré-configurações culturais com funções e objetivos bem definidos, de certo modo, pré-
figurados pelo gênero que oferece uma organização composicional [...]” (MARCUSCHI,
2008, p. 85). Assim, o “gênero é uma escolha que leva consigo uma série de consequências
formais e funcionais” (Op. cit. 2008, p. 85).
Ainda segundo Marcuschi (2008, p. 85), a figura 10 apresenta “um gênero como uma
espécie de condicionador de atividades discursivas esquematizantes que resultam em escolhas
dentro de uma prática que levaria a pensar-se em esquematizações resultantes”. Assim,
“muitas decisões de textualização (configuração textual com suas estruturas, ordenamento
paragráfico etc.) devem-se à escolha do gênero” (MARCUSCHI, 2008, p. 85). Deste modo,
52
“o gênero inscreve também formas textuais que se manifestam no artefato linguístico” (Op.
cit. 2008, p. 85).
A Figura 11, a seguir, representa uma ideia a esse respeito:
FIGURA 11. O gênero - formas textuais que se manifestam no artefato linguístico
Fonte: COUTINHO (2004, p.38 apud MARCUSCHI, 2008, p.86)
Cavalcante (2016, p. 43 – 44), ao discutir a respeito da estabilidade que caracteriza os
gêneros discursivos, destaca que, “em qualquer sociedade, há uma variedade considerável de
motivos que fazem os indivíduos interagirem uns com os outros para, por exemplo, informar,
persuadir, reclamar, gerar uma ação, solicitar, contar uma história, anunciar, ensinar etc”.
Antes de prosseguirmos com a discussão, é relevante destacarmos que, no presente
trabalho, amparamo-nos na nomenclatura gêneros discursivos, embora utilizemos também a
terminologia gêneros textuais. Essa flutuação terminológica ocorre em virtude de usarmos
autores que empregam terminologias diferentes.
Assim, para atingir esses variados objetivos, nos dizeres de Cavalcante (2016, p. 44),
“as pessoas se utilizam de múltiplas possibilidades de interação linguística, em formas
específicas e mais ou menos estruturadas, as quais são convencionadas sócio-historicamente
para que as comunicações se realizem de modo satisfatório”. Ao contrário, nas palavras da
autora, “não teríamos condições de criar formas de interação absolutamente inéditas e nem
seríamos compreendidos, caso isso ocorresse” (Op. cit. 2016, p. 44).
Isso posto, Cavalcante (2016, p. 44) argumenta: “é nessa perspectiva que se inserem os
gêneros discursivos, ou seja, toda interação se dá por algum gênero discursivo que se realiza
por algum texto”. Nesse sentido, a autora traz a definição de que “os gêneros discursivos são
padrões sociocomunicativos que se manifestam por meio de textos de acordo com
necessidades enunciativas específicas” (CAVALCANTE, 2016, p. 44). Deste modo, conclui
53
que “trata-se de artefatos constituídos sociocognitivamente para atender aos objetivos de
situações sociais diversas”. Por esse motivo, “eles apresentam relativa estabilidade, mas seu
acabamento foi (e continua sendo) constituído historicamente”. (Op. cit. 2016, p. 44).
Para cada um dos objetivos de comunicação, ou melhor, para cada propósito
comunicativo, explica Cavalcante (2016, p. 44 – 45), “o indivíduo possui algumas
alternativas de comunicação, com um padrão textual e discursivo socialmente reconhecido,
isto é, um gênero do discurso [grifos do autor] que é adequado ao propósito em questão”.
Partindo de tais considerações, Cavalcante (2016, p. 45) pensa, por exemplo, em um
profissional que lide constantemente com a produção de textos escritos, como uma secretária.
Para ela, “a secretária deve saber de que gênero do discurso se utilizar, de acordo com os
objetivos que lhe são colocados e com a área em que atua”. A autora exemplifica a situação
da seguinte forma:
[...] se precisar pedir algo a um órgão, público ou privado, a secretária
deverá saber qual o gênero mais adequado para essa finalidade, como o
ofício. Assim, se precisar comunicar algo a outro setor da empresa na qual
trabalha, poderá optar por um ofício circular; se precisar dar satisfação ao
chefe sobre as atividades realizadas em um determinado período de tempo,
poderá produzir um relatório; já se precisar resumir os pontos-chaves de
uma reunião importante, poderá redigir uma ata, afinal, são esses gêneros os
já convencionados para tais fins (Op. cit. 2016, p. 45).
Cavalcante (2016) argumenta que, a mesma secretária, interagindo em outra área, a
acadêmica, por exemplo, no papel de uma estudante de pós-graduação, “constatará que esse
novo lugar lhe possibilitará a produção de outros gêneros, diferentes dos produzidos em seu
ambiente de trabalho, ainda que os propósitos possam se assemelhar” (CAVALCANTE, p.
45). Dentro desse contexto, a autora ilustra a situação, a seguir:
[...] para pedir uma declaração ou um histórico, por exemplo, ela deverá
fazê-lo por meio de um requerimento, não de um ofício, uma vez que o
ofício só é expedido de uma instituição para outra, ou de um setor da
instituição para outro. Um indivíduo, na condição de aluno, não pode, então,
emitir um ofício, mas a coordenação do curso a que ele pertence pode (Op.
cit. 2016, p. 45).
Nesse cenário, Cavalcante (2016, p. 46) aponta ainda que “haverá também gêneros
cuja estrutura e propósito são exclusivos do domínio acadêmico, tais como os resumos, as
resenhas, os artigos científicos, os seminários, as comunicações em eventos etc”. Desse modo,
considera que, “para cada situação em que essa secretária precisar interagir, ela
54
inevitavelmente produzirá textos que pertencem a determinados gêneros do discurso” (Op. cit.
2016, p. 46).
Assim, Cavalcante (2016, p. 46) confirma a informação de que “o propósito
comunicativo é muito importante para a configuração de um gênero, mas há outros fatores
que vão determinar a sua escolha e constituição”. Assim, a autora confirma:
[...] os gêneros se diversificam de acordo com a situação imediata de
comunicação, os elementos socioculturais historicamente constituídos, bem
como as necessidades específicas solicitadas por certas condições associadas
à modalidade (oralidade ou escrita), ao grau de formalismo, à possibilidade
de participação simultânea dos interlocutores, entre outros aspectos (Op. cit.
2016, p. 46).
Bakhtin (2003 apud Cavalcante, 2016, p. 46) certifica que “os gêneros discursivos
surgem para atender a uma determinada função: técnica, cotidiana, científica”. Justifica o
autor que “os gêneros são criados, firmados e compartilhados entre os membros de uma esfera
de comunicação humana – administrativa ou acadêmica, mas também jurídica, jornalística,
publicitária etc” (Op. cit. 2016, p. 47).
Assim sendo, Cavalcante (2016, p. 49) especifica que “os gêneros discursivos são,
simultaneamente, formas estabilizadas (ou seja, regulares, passíveis de estruturação) e
instáveis (ou seja, passíveis de sofrerem mudanças)”. A autora explica que “os gêneros são
estáveis porque resultam de atividades sociais que são reiteradas ao longo do tempo”
(CAVALCANTE, 2016, p. 49). Assim, a repetição de determinados propósitos
comunicativos, segundo a autora, “gera formas de comunicação que terminam por se
consagrar, mas que, a depender das práticas sociais e das convenções impostas pelo meio em
que circulam, podem sofrer variações, ou menos” (CAVALCANTE, 2016, p. 49). Frisa ainda
que “há gêneros discursivos da mídia eletrônica, como os e-mails pessoais, por exemplo, que
podem apresentar conteúdos dos mais diversos, mas que preservam a estrutura fixada pelo
gênero no meio digital” (Op. cit. 2016, p. 49).
Por outro lado, “os gêneros são instáveis também no sentido de que passam por
modificações, no decorrer do tempo e diante de situações que possibilitam alterações em
alguma de suas características [...] para atingirem suas finalidades”, confere a autora (Op. cit.
2016, p. 50 - 51). Para ela, isso acontece sempre que “novas necessidades podem demandar
adaptações, em algum aspecto temporariamente estabilizado de algum gênero discursivo”
(CAVALCANTE, 2016, p. 51).
55
Logo, “os gêneros discursivos podem sofrer transformações, em virtude das mudanças
nos propósitos comunicativos e/ou no contexto sociocultural” (CAVALCANTE, 2016, p. 51).
De acordo com Cavalcante (2016, p. 51), “outro aspecto interessante com relação aos
gêneros discursivos diz respeito ao modo como são aprendidos e utilizados”. Então, para a
autora, “considerando que os usuários dos gêneros assumem papéis e responsabilidades que
variam conforme o meio social no qual um gênero específico é produzido”, tem-se que:
[...] enquanto os gêneros cotidianos são aprendidos espontaneamente, como
as saudações, outros gêneros, como os acadêmicos, exigem um processo de
aprendizagem mais formal, que envolve não só a produção dos gêneros em
seu aspecto textual estrito, mas também a consideração de suas funções
discursivas (Op. cit. 2016, p. 51).
Afora isso, conclui Cavalcante (2016, p. 51) que, “há gêneros que só podem ser
produzidos por pessoas especializadas, que têm autoridade para tal, pois, do contrário, o texto
produzido poderá não ter validade, fato comum na esfera jurídica”.
Diante dessas considerações, discorreremos um pouco sobre a prática pedagógica
ancorada nos estudos sobre gêneros textuais que, nos dizeres de Schnewly e Dolz (1996 apud
Gomes 2013, p. 08), somente uma proposta de ensino-aprendizagem organizada a partir da
teoria de gêneros textuais “permite ao docente a observação e a avaliação das capacidades de
linguagem dos alunos, antes e durante sua realização, fornecendo-lhe orientações mais
precisas para sua intervenção didática”. Para os alunos, “o trabalho com gêneros constitui uma
forma de se confrontar com situações sociais efetivas de produção e leitura de textos e uma
maneira de dominá-las progressivamente”, conclui Schnewly e Dolz (1996 apud GOMES
2013, p. 08).
Em consonância com tal pensamento, Antunes (2003 apud GOMES, 2013, p. 08)
afirma que, em um contexto pedagógico pautado nos aportes da teoria de gêneros textuais,
“vai ter muita gente escrevendo bem melhor, com mais clareza e precisão, dizendo as coisas
com sentido e do jeito que a situação social pede que se diga” (ANTUNES, 2003, p. 66 apud
GOMES, 2013, p.08).
Com esse tipo de abordagem, ressalta Silva (2005 apud GOMES 2013, p. 08) que “o
trabalho com a leitura e com a produção de texto ficaria menos ‘pedagógico’ e mais próximo
das experiências sociais vivenciadas pelos alunos fora do ambiente escolar”. Ou seja:
Assumindo os termos dessa concepção e de suas implicações pedagógicas, a
escola poderá afastar-se da perspectiva nomeadora e classificatória
56
(centrada no reconhecimento das unidades e de suas nomenclaturas), com
seus intermináveis e intrincados exercícios de análise morfológica e sintática
com que prioritariamente se tem ocupado (e com os quais ninguém pode
interessar-se pela leitura, pela escrita ou por qualquer questão que diga
respeito ao uso da linguagem) (ANTUNES, 2003, p. 109 apud GOMES
2013, p. 08).
A partir da observação de como atuam os professores, Antunes (2003) traz a seguinte
exemplificação:
As coisas funcionam (salvo honrosas exceções) mais ou menos assim: se o
professor pretende ensinar sobre o “pronome”, por exemplo, começa por
selecionar as definições e classificações desta classe de palavras e, depois,
escolhe um texto em que apareçam pronomes, para nele identificar suas
várias ocorrências e classificá-las conforme a nomenclatura gramatical. Se o
texto é o objeto de estudo, o movimento vai ser o contrário: primeiro se
estuda, se analisa, se tenta compreender o texto (no todo e em cada uma de
suas partes – sempre em função do todo) e, para que se chegue a essa
compreensão, vão-se ativando as noções, os saberes gramaticais e lexicais
que são necessários. Ou seja, o texto é que vai conduzindo nossa análise e
em função dele é que vamos recorrendo às determinações gramaticais, aos
sentidos das palavras, ao conhecimento que temos da experiência, enfim.
Nessa perspectiva é que se pode perceber como não tem tanta importância
assim para discernir, por exemplo, se um termo é objeto indireto ou
complemento circunstancial de lugar. No texto, a relevância dos saberes é de
outra ordem. Ela se afirma pela função que esses saberes têm na
determinação dos possíveis sentidos previstos para o texto. (ANTUNES,
2003, p. 109 - 110 apud GOMES, 2013, p. 09).
Em suma, Antunes (2003, p. 111 apud GOMES 2013, p. 10) declara que “é nas
questões de produção e compreensão de textos e de suas funções sociais, que se deve centrar o
estudo relevante e produtivo da língua”, pois
Bons professores, como a aranha, sabem que lições, essas teias de palavras,
não podem ser tecidas no vazio. Elas precisam de fundamentos. Os fios, por
finos e leves que sejam, têm de estar amarrados a coisas sólidas: árvores,
paredes, caibros. Se as amarras são cortadas, a teia é soprada ao vento, e a
aranha perde a casa. Professores sabem que isso vale também para as
palavras: separadas das coisas, elas perdem seu sentido. Por si mesmas, elas
não se sustentam. Como acontece com a teia de aranha, se suas amarras às
coisas sólidas são cortadas, elas se tornam sons vazios: nonsense (ALVES,
2001, p. 19 apud GOMES, 2013, p. 10).
Acrescenta a autora:
Como se pode ver, aceitar as concepções de linguagem – como atividade
funcional, interativa, discursiva e interdiscursiva, como prática social situada
57
e imersa na realidade cultural e histórica da comunidade – acarreta visíveis
diferenças na vida da escola, consequentemente, no desempenho de
professores e alunos (ANTUNES, 2007, p. 157 apud GOMES, 2013, p. 11).
Nesse sentido, concordamos com o pensamento de Gomes (2013, p.11) ao afirmar que
“teríamos uma escola com um modelo educacional voltado para as diversas práticas
interacionais da vida social, dando assim a oportunidade ao aluno de vivenciar a importante
relação entre Educação, Letramento e Práticas Sociais”.
Antunes (2010, p. 71) também propõe que:
Um texto do tipo narrativo privilegia o uso dos tempos verbais pretéritos,
privilegia o uso de expressões que denotem sequência temporal dos fatos (o
antes, o durante e o depois) e a localização dos agentes nos cenários
referidos, privilegia a referência a entidades, a seres concretos ou abstratos,
entre outros aspectos. Em outro tipo, o descritivo, os objetos de referência
apresentam-se parados, estáticos, sem remissão a uma progressão temporal,
a uma mudança de tempo, o que vai se refletir na preferência pelo verbo no
presente ou no imperfeito do indicativo. Em um texto expositivo,
predominam as estratégias de transmissão de um saber já consubstanciado
em um corpo de princípios teóricos ou de explicação de um fenômeno, em
geral, apoiado em dados reais, mais ou menos objetivos. As relações de
causa e consequência são comuns nesse contexto. Lembramos ainda os
textos de definição (A Terra é um planeta), de apresentação de um conceito
(Os gêneros textuais são ações sociodiscursivas.), ou de uma ideia (A
virtude está no meio), representantes de um saber universal, em que
predomina o tempo presente, exatamente como expressão de algo que é
atemporal. Nos textos dissertativos, comumente reconhecidos como
opinativos ou de comentários, como um editorial, predominam os
argumentos em favor de uma posição, com verbos, em geral, no presente do
indicativo, como forma de expressão de um estado permanente de concepção
do tema – quase sempre polêmico – pelo menos no tempo da cena
discursiva. Nos textos injuntivos – prevalecem as formas verbais no
imperativo, uma vez que são gêneros instrucionais, ou seja, que trazem
instruções de como executar determinadas ações ou seguir determinado
programa (ANTUNES, 2010, p. 71).
Os tipos de textos, conforme reitera Antunes (2010, p. 72), “são definidos por
propriedades linguísticas e não são propriamente textos empíricos” (ver ainda Marcuschi,
2010:23). Quer dizer, “uma descrição não constitui um exemplar concreto de texto que circula
em determinado grupo social”, explica a autora (ANTUNES, 2010, p. 72). Para ela, “o que
existe, o que circula, de fato, são gêneros de texto, que eventualmente, podem incluir
sequências descritivas, mais ou menos extensas” (Op. cit. 2010, p. 71).
De acordo com a autora supracitada,
58
[...] os gêneros é que constituem textos empíricos, é que constituem textos
reais em circulação, os quais são regulados também por tipos de sequências
sintáticas e relações lógicas. São definidos por propriedades
sociodiscursivas, diferentemente, portanto, dos tipos, que são definidos por
propriedades linguísticas. Cumprem funções comunicativas específicas, quer
dizer, realizam-se com propósitos comunicativos determinados e facilmente
reconhecíveis pela comunidade em que circulam. Dessa forma, os gêneros
variam com o tempo, com as condições históricas de cada grupo, o que
significa dizer que alguns podem desaparecer outros se transmudar, outros,
surgir. A verdade é que temos consciência de que nossas ações de linguagem
e, consequentemente, nossas opções textuais não são absolutamente
originais: há um consenso geral sobre como se faz uma resenha, uma carta,
um edital de concurso, como se faz a apresentação ou a resenha de um livro
etc. Ou seja, procuramos nos conformar aos modelos preexistentes, já em
circulação em nossos grupos (ANTUNES, 2010, p. 72).
Para a autora, “esses modelos de gêneros abarcam o que se tem chamado a forma
composicional do gênero: trocando em miúdos, a forma como o texto é composto, é
desenvolvido” (ANTUNES, 2010, p. 72). É essa forma composicional, portanto, nos dizeres
da autora, que “regula o número de blocos ou de partes que determinado texto deve ter”.
Portanto, é essa forma que “regula o que deve aparecer em cada um desses blocos bem como
a sequência em que eles devem ocorrer” (ANTUNES 2010, p. 72 - 73).
Antunes (2010, p. 73) destaca que vale a pena ter em conta o seguinte:
Nem sempre é fácil identificar o gênero a que pertence um texto; ou seja, por
vezes é difícil reconhecer, com total segurança, se se trata desse ou daquele
gênero. É comum ficarmos na dúvida se se trata de um editorial, de um
artigo de opinião ou até mesmo de uma crônica. Quase sempre, convém
recorrer ao suporte para chegar a uma conclusão. Por vezes, é mais fácil
reconhecer a que gênero o texto não pertence do que o contrário.
Com base nessa informação, justifica a autora que “de qualquer maneira, a
importância de se acertar, exatamente, na identificação do gênero não é tão grande assim”
(ANTUNES 2010, p. 73). Importante para ela, “é reconhecer as características textuais que o
fazem cair nesse ou naquele gênero e não em outros é bem diferentes” (Op. cit.). Faraco e
Tezza (2003 apud Antunes 2010, p. 73) advertem: “convém resistir ao desejo de engavetar a
linguagem em divisões estanques. Na vida real, a linguagem e as intenções costumam se
alimentar umas às outras”.
Nesse sentido, “a competência comunicativa que se espera seja alcançada pela análise
de textos deve incidir, naturalmente, sobre o conhecimento das particularidades dos tipos e
dos gêneros de texto”, conclui Antunes (2010, p. 73).
59
Diante de tais considerações, passamos a uma apreciação do texto como unidade de
sentido.
3.3 O texto como unidade de ensino
Para Santos, Riche e Teixeira (2015, p. 97), “as atividades de leitura e escrita são
desempenhadas constantemente, nas diversas situações do cotidiano, como na leitura e na
escrita de e-mails, bilhetes, lista de compras, embalagens, placas, avisos, etc”. São, portanto,
“práticas de linguagem em situações de uso” (SANTOS, ROCHE e TEIXEIRA, 2015, p. 97).
Ainda para Santos, Riche e Teixeira, (2015, p. 97), “ler e escrever são também
ferramentas para comunicar, ampliar o conhecimento, instrumentos para criar identidade,
perfil pessoal e profissional, uma vez que somos seres construídos pela linguagem”. Por essas
ferramentas, destacam as autoras, “adquirimos ou não status e poder dentro da comunidade a
que pertencemos, pelo melhor ou pior desempenho na comunicação oral e escrita” (SANTOS,
RICHE e TEIXEIRA, 2015, p. 97).
Dessa forma, “um dos objetivos principais do ensino de português é desenvolver a
competência da comunicação em geral; cabendo, então, à escola ampliar o foco do trabalho
voltado para a leitura e a escrita, mas procurando também envolver a oralidade” (SANTOS,
RICHE e TEIXEIRA, 2015, p. 98).
Para que essa prática pedagógica se efetive, Santos, Riche e Teixeira (2015, p. 98)
destacam: “é importante o professor conhecer as propostas dos PCN de Língua Portuguesa e
entender o porquê de enfatizarem o trabalho com textos em sala de aula, o que significa uma
mudança de paradigma no ensino de língua portuguesa”.
Então, é importante, na escola, “trabalhar a produção textual numa visão interacional e
reflexiva do ensino da língua portuguesa, das competências comunicativas, da língua em seu
funcionamento a partir das condições de produção e recepção”, concluem as autoras (Op. cit.
2015, p. 98).
Santos, Riche e Teixeira (2015, p. 99 – 100) afirmam que, numa perspectiva
sociointeracional da linguagem,
[...] O texto é visto como um tecido formado de muitos fios que se
entrelaçam, compondo uma unidade significativa capaz de comunicar algo,
em um contexto histórico-social, e não como um amontoado de frases, uma
sucessão de enunciados interligados. Por isso, a sequência de enunciados
num texto não pode ser aleatória sob os pontos de vista linguístico,
discursivo ou cognitivo. Nele estão envolvidos diferentes componentes da
60
linguagem, como a sintaxe, a morfologia, aspectos semânticos- pragmáticos,
além das relações entre outros indivíduos e a situação discursiva (SANTOS,
RICHE e TEIXEIRA, 2015, p. 99 - 100).
Sobre o texto como unidade de ensino, Silva (2011, p. 148) ressalta:
trabalhar com a leitura, a compreensão e a produção textual deve ter como
meta primordial o desenvolvimento no aluno de habilidades que façam com
que ele tenha capacidade de usar um número sempre maior de recursos da
língua para produzir efeitos de sentido de forma adequada a cada situação
específica de interação humana (SILVA, 2011, p. 148).
Assim, considerando que os textos se materializam nos diversos gêneros existentes,
Silva (2011, p. 150) destaca que “trabalhar a língua materna a partir dos gêneros textuais é
trazer para dentro da sala de aula a realidade lá de fora”. Silva (2011, p. 150) enfatiza que “os
gêneros nos possibilitam sair do contexto do totalmente fictício, para o real” e “mostrar que o
bom texto é aquele que está perfeitamente adequado à situação para a qual foi produzido”
(Op. cit. 2011, p. 151). Assim, chegar a esse entendimento, de acordo com Silva (2011, p.
150), “nos exige trabalhar com eles a estrutura textual (forma), o conteúdo (o léxico,
construção frasal, informações), o estilo (formal, informal), entre outros pontos, no sentido de
verificar se o conjunto está adequado ao gênero e ao leitor/ouvinte”.
Para Silva (2011, p. 151), “o trabalho com a linguagem dessa forma dá oportunidade
aos alunos de se apropriarem dos mais diversos meios de comunicação, o que os coloca um
passo à frente, por exemplo, no mercado de trabalho”. Para a autora, “as atividades oriundas
dos gêneros textuais trazem para eles o exercício de intercâmbio, possibilitando o ingresso em
uma sociedade letrada” (SILVA, 2011, p. 151). Talvez o mais importante seja, na opinião da
autora, o fato de que “atividades com os gêneros textuais tendem a dessacralizar e
democratizar o ensino, haja vista que o objetivo é fazer com que os alunos possam interagir
mediante o uso dos gêneros textuais e entender, se não todos, muitos deles, pois são infinitos”
(Op. cit. 2011, p. 151).
A partir de então, passamos a uma explanação sobre o gênero discursivo crônica no
capítulo seguinte.
3.4 O Gênero Discursivo Crônica
Para o bom entendimento da crônica, de acordo com Moisés (1978, p. 246), “impõe-se
preliminarmente uma reflexão acerca do jornal (ou revista) como veículo de informação e
61
cultura”. Conforme o autor, “se encontram no jornal, duas categorias de texto linguístico: o
que cumpre as funções de informar os sucessos do dia e o que não se prende, regra geral, ao
vaivém cotidiano” (Op. cit. 1978, p. 246). Ao transferir o foco analítico para o autor do texto,
Moisés (1978, p. 246) observa que “uma coisa é escrever para o jornal e outra, bem diversa,
publicar no jornal”. Explica o autor que:
A reportagem, o editorial, as notícias, etc., são textos destinados
exclusivamente ao jornal, e somente ali cumprem sua missão. Textos
escritos para o jornal morrem automaticamente a cada dia, substituídos por
outros, que exercem idêntica função e conhecem igual destino: o
esquecimento (Op. cit. 1978, p. 247).
Acrescenta o autor que “lado a lado se encontram textos publicados no jornal,
entendido este como um dentre outros meios de comunicação. Tais escritos procuram o jornal
como um meio de divulgação, não como o melhor nem o único” (Op. cit. 1978, p. 247).
Moisés (1978) destaca:
Um poema, um conto, um ensaio, um artigo crítico, uma novela, um
romance, uma peça de teatro que se estampasse no jornal, [...], decorreria do
ato de publicar no jornal, como poderia fazê-lo em qualquer outro órgão
difusor de mensagens escritas (MOISÉS, 1978, p. 247).
Segundo Moisés (1978, p. 247), “a crônica move-se entre ser no e para o jornal, uma
vez que se destina, inicial e precipuamente, a ser lida no jornal ou revista”. A crônica, explica
o autor, “difere, porém, da matéria substancialmente jornalística naquilo em que, apesar de
fazer do cotidiano o seu húmus permanente, não visa à mera informação” (Op. cit. 1978, p.
247). Confere o autor que, “o objetivo da crônica reside em transcender o dia-a-dia pela
universalização de suas virtualidades latentes, objetivo esse via de regra minimizado pelo
jornalista de ofício” (Op. cit. 1978, p. 247).
Moisés (1978, p. 247) explica, então que, “a crônica oscila, pois, entre a reportagem e
a Literatura, entre o relato impessoal, frio e descolorido de um acontecimento trivial, e a
recriação do cotidiano por meio da fantasia”. O autor acrescenta que, no primeiro caso, “a
crônica envelhece rapidamente e permanece aquém do território literário” (Op. cit. 1978, p.
247).
No entanto, considera Moisés (1978) que, “o mais da crônica em que se localiza tal
segmento livra-se da reportagem pura e simples graças a outros ingredientes propriamente
literários, dos quais é de ressaltar o humor” (Op. cit. 1978, p. 248). Salienta que, em
62
toda crônica, por conseguinte, os indícios de reportagem se situam na
vizinhança, quando não mescladamente, com os literários; e é predominância
de uns e de outros que fará tombar o texto para o extremo do jornalismo ou
da Literatura (Op. cit. 1978, p. 248).
Moisés (1978, p. 248) reafirma, então que, “no primeiro caso, a crônica dura o espaço
do jornal, uma vez que se identifica com a matéria jornalística”. Por conseguinte, o autor
questiona: “crônica se destina ao jornal, ou revista, transferi-la para o livro, como se tem feito
nos últimos anos, significa preservá-la de esquecimento e atestado de valor? Sim e não” (Op.
cit. 1978, p. 248). Em tese, confirma o autor que, “o fato de a crônica estar voltada para o
cotidiano fugaz e endereçar-se ao público de jornal e revista, já é uma limitação”. Ressalta
que como “fruto do improviso, da resposta imediata ao acontecimento que fere a rotina do
escritor ou lhe suscita reminiscências caladas no fundo da memória, a crônica não pressupõe o
estatuto do livro” (Op. cit. 1978, p. 248).
Todavia, “a crônica merece a atenção que lhe vem sendo dispensada ultimamente não
só porque apresenta qualidades literárias apreciáveis, mas porque, e sobretudo, busca subtrair-
se à fugacidade jornalística assumindo a perenidade do livro”, considera o autor (Op. cit.
1978, p. 248). Conclui que, “continuasse encerrada nos periódicos, não haveria como
examiná-la: o tratamento crítico de um texto literário implica, via de regra, o livro” (Op. cit.
1978, p. 248).
Conforme Moisés (1978, p. 250), “mesmo as crônicas bem conseguidas não fogem ao
destino que lhes assinala, desde o nascimento, ser criação breve e leve”. Acrescenta o autor
que “a crônica é por natureza uma estrutura limitada, não apenas exteriormente, mas, e acima
de tudo, interiormente” (MOISÉS, 1978, p. 250). Sobre a estreita relação da crônica com
jornal, o autor considera que “ainda quando em livro, a crônica jamais rompe sua vinculação
com o jornal” (MOISÉS, 1978, p. 250).
O autor supracitado ressalta que “embora procure vencer a efemeridade do jornal, a
crônica somente encontra ali guarida: é escrita no e para o jornal (ou revista), depende do dia-
a-dia momentoso e/ou da memória do escritor” (MOISÉS, 1978, p. 251). O autor também
revela que “qualquer tema serve de assunto, quer de Política, Economia, Sociologia, quer de
Futebol, Trânsito, Viagens, Amizade, etc.” (Op. cit. 1978, p. 251).
Concernente ao contexto jornalístico da crônica, Sá (1987, p. 10) justifica:
A crônica surge primeiro no jornal, herdando a sua precariedade, esse seu
lado efêmero de quem nasce no começo de uma leitura e morre antes que se
63
acabe o dia, no instante em que o leitor transforma as páginas em papel de
embrulho, ou guarda os recortes que mais lhe interessam, num arquivo
pessoal. O jornal, portanto, nasce, envelhece e morre a cada 24 horas. Nesse
contexto, a crônica também assume essa transitoriedade, dirigindo-se
inicialmente a leitores apressados, que lêem nos pequenos intervalos da luta
diária, no transporte ou no raro momento de trégua que a televisão lhes
permite (Op. cit. 1987, p. 10).
Ainda de acordo com Sá (1987, p. 11), “a sintaxe da crônica lembra alguma coisa
desestruturada, solta, mais próxima da conversa entre dois amigos do que propriamente do
texto escrito”. Para o autor:
Há uma proximidade maior entre as normas da língua escrita e da oralidade,
sem que o narrador caia no equívoco de compor frases frouxas, sem a
magicidade da elaboração, pois ele não perde de vista o fato de que o real
não é meramente copiado, mas recriado. O coloquialismo, portanto, deixa de
ser a transcrição exata de uma frase ouvida na rua, para ser a elaboração de
um diálogo entre o cronista e o leitor, a partir do qual a aparência simplória
ganha sua dimensão exata (Op. cit. 1987, p. 11).
Isso posto, Sá (1987, p. 11) explica que “o dialogismo equilibra o coloquial e o
literário”. Para o autor:
Esse dialogismo permite que o lado espontâneo e sensível permaneça como
o elemento provocador de outras visões do tema e subtemas que estão sendo
tratados numa determinada crônica, tal como acontece em nossas conversas
diárias e em nossas reflexões, quando também conversamos com um
interlocutor que nada mais é do que o nosso outro lado, nossa outra metade,
sempre numa determinada circunstância. [...] O termo assume aqui o sentido
específico de pequeno acontecimento do dia-a-dia, que poderia passar
despercebido ou relegado à marginalidade por ser considerado insignificante
(Op. cit. 1987, p. 11).
Conclui Sá (1987, p. 11) que, com o seu toque de lirismo reflexivo:
O cronista capta esse instante brevíssimo que também faz parte da condição
humana e lhe confere (ou lhe devolve) a dignidade de um núcleo
estruturante de outros núcleos, transformando a simples situação no diálogo
sobre a complexidade das nossas dores e alegrias.
Prosseguindo a discussão sobre o contexto jornalístico e literário da crônica, Sá (1987,
p. 85) destaca que, “no momento em que a crônica passa do jornal para o livro, tem-se a
sensação de que ela superou a transitoriedade e se tornou eterna”. Entretanto, conforme o
64
autor, “todos os escritores demonstram sua perplexidade diante da inevitável passagem do
tempo, corroendo os seres e as coisas” (Op. cit. 1987, p. 85).
Sá (1987, p. 85) argumenta que
A mudança de suporte provoca um novo direcionamento: o público do jornal
é mais apressado e mais envolvido com as várias matérias focalizadas pelo
periódico; o público do livro é mais seletivo, mais reflexivo até pela
possibilidade de escolher um momento mais solitário para ler o autor de sua
preferência. Em muitos casos, o público chega a ser basicamente igual, uma
vez que o mesmo leitor que frui a vida através das reportagens também a
fruirá através das páginas literárias: a atitude diante do texto é que muda
[grifos do autor].
De acordo com Sá (1987, p. 85), “a mudança de suporte implica a mudança de atitudes
do consumidor e com isso, sai lucrando a crônica”. Para o autor,
as possibilidades de leitura crítica se tornam mais amplas, a riqueza do texto,
agora liberto de certas referencialidades, atua com maior liberdade sobre o
leitor – que passa a ver novas possibilidades interpretativas a partir de cada
releitura (Op. cit. 1987, p. 85 – 86).
Isso posto, quando a crônica passa do jornal para o livro, conclui Sá (1987, p. 86) que
“amplia-se a magicidade do texto, permitindo ao leitor dialogar com o cronista de forma bem
mais intensa, ambos agora mais cúmplices no solitário ato de reinventar o mundo pelas vias
da literatura”.
Certifica ainda o autor que,
O próprio estudo da obra se torna mais realizável, permitindo que o
estudioso descubra as características de cada escritor. No caso específico da
leitura de uma determinada crônica, sua publicação em livro também facilita
o estudo intertexto para melhor confirmação dos caminhos interpretativos.
(Op. cit. 1987, p. 86).
Dialogando com as ideias do texto, Koche, Marinello e Boff (2012, p. 69) destacam que
“a crônica consiste num gênero textual em que se faz uma reflexão sobre acontecimentos
pitorescos do cotidiano”.
Para as autoras supracitadas, “a crônica não se limita à mera reflexão de fatos, mas vai
além, mostrando ângulos não percebidos. É fragmentária, pois não tem a pretensão de abordar
o fato como um todo, mas apenas alguns detalhes significativos” (Op. cit. 2012, p. 69).
65
De acordo com Coutinho e Souza (apud KÖCHE, MARINELLO e BOFF, 2012, p.
69), “o fato, que é em geral um fim para o jornalista, para o cronista é um pretexto para
divagações, comentários e reflexões”. Os autores revelam tratar-se de “um gênero textual
altamente pessoal, uma reação individual e íntima diante da vida, das coisas ou dos seres”
(Op. cit. 2012, p. 69). Dentro desse contexto, “o cronista, num estilo leve, pode tratar de
problemas sociais, de fraquezas humanas, de fatos ocorridos na sociedade, de uma notícia
marcante, de um filme, de uma viagem, entre outros temas” (Op. cit. 2012, p. 69).
Ainda segundo Köche, Marinello e Boff (2012, p. 69), “a crônica, geralmente, aborda
fatos do dia a dia, ao primeiro olhar, sem importância”. O cronista, então, segundo Martins e
Saito (2006 apud Köche; Marinello e Boff, 2012, p. 69) “faz com que esses fatos banais
sejam significativos, na medida em que mostra ‘a grandeza’ escondida neles”.
Uma das marcas desse gênero, para Köche, Marinello e Boff (2012, p. 69), é “abarcar
o comentário do fato jornalístico, a ficção, a ironia, o humor diante da sociedade e a defesa
das ideias, tendo sempre um olhar crítico e inesperado”. Para as autoras, “a crônica tem uma
estrutura livre, e pode valer-se do diálogo, do monólogo, da entrevista, da resenha e de
personagens reais ou fictícios” (Op. cit. 2012, p. 69).
Costa (apud KÖCHE, MARINELLO e BOFF, 2012, p. 70) postula que, “dependendo
da intenção do autor, esse gênero pode apresentar tipologia textual de base narrativa,
dissertativa, entre outras”. Explica que “a crônica com tipologia de base narrativa possui
poucas personagens, e as referências espaciais e temporais são limitadas: as ações ocorrem
num único espaço, e o tempo normalmente corresponde a alguns minutos ou algumas horas”
(Op. cit., 2012, p. 70).
Outro enfoque importante a respeito da crônica é apontado por Costa (apud KÖCHE,
MARINELLO e BOFF, 2012, p. 70):
A crônica com tipologia textual de base narrativa admite o narrador em
primeira pessoa, participando dos acontecimentos, ou em terceira pessoa do
discurso, observando os fatos. A crônica busca aproximar o enunciador do
leitor pelo uso frequente do discurso indireto livre e de perguntas retóricas.
Costa (apud KÖCHE, MARINELLO e BOFF, 2012, p. 70), sobre os aspectos que
tendem a aproximar o enunciador do leitor, no gênero crônica, explica:
O discurso indireto livre ocorre quando há fusão entre personagem e
narrador, pois, entremeando à narrativa, aparecem diálogos indiretos da
personagem, que complementam a fala do narrador. Por sua vez, as
66
perguntas retóricas estão presentes quando o narrador propõe ao leitor
questionamentos sem esperar uma resposta, com a intenção de levá-lo a
pensar sobre o assunto.
Os autores Köche, Marinello e Boff (2012, p. 70) reiteram que:
a princípio, a crônica é publicada em revistas ou jornais, na forma impressa
ou on-line, criando assim uma familiaridade com o leitor. Posteriormente,
muitos autores reúnem suas crônicas em livro, em forma de coletânea.
Na tentativa de aprofundar o conhecimento a respeito do referido gênero,
apresentamos dois tipos de crônicas que, de acordo com Köche, Marinello e Boff (2012, p.
70), “são construídas a partir de dados da realidade, a saber: literária e não literária”. Segundo
as autoras, “a crônica literária pertence à ordem do narrar e a não literária, à ordem do relatar”
(Op. cit., 2012, p. 70). Para elas,
Na crônica literária, o cronista transforma os elementos objetivos em
estéticos a partir de sua liberdade e capacidade imaginativa. Reinventa o real
pelo uso particular das palavras, através do emprego da linguagem
conotativa e subjetiva, deixando transparecer suas emoções e desvelando
poeticamente o instante. A linguagem conotativa refere-se ao significado que
certas palavras e expressões assumem, modificando seu sentido literal, e a
linguagem subjetiva mostra a visão pessoal do indivíduo e sua reação
emotiva frente a algo. Já na crônica não literária, o autor vale-se da realidade
objetiva, com seus dados passíveis de comprovação. Para que sua intenção
seja comunicada, usa, sobretudo, a linguagem denotativa e objetiva (Op. cit.
2012, p. 70 – 71).
Conforme Machado (apud KÖCHE, MARINELLO e BOFF, 2012, p. 71), “a crônica
não é propriamente uma notícia, mas um artigo sobre a notícia”. Destaca que “entre as
crônicas não literárias, as mais comuns são a crônica jornalística, policial, esportiva, política,
social e de moda” (Op. cit. 2012, p. 71).
Já Soares (1989, p. 65) considera a crônica como “conscientemente fragmentária, por
não pretender captar a totalidade dos fatos”. Para ela, “a crônica impôs-se, inicialmente, nos
quadros da literatura brasileira, por Machado de Assis (ainda conhecida como “folhetim”),
Olavo Bilac e João do Rio” e destaca que, “entre os cronistas mais recentes, sobressaem-se,
Carlos Drummond de Andrade, Eneida, Millôr Fernandes, Fernando Sabino, Paulo Mendes
Campos, Rubem Braga, Sérgio Porto” (SOARES, 1989, p. 65).
Faz-se necessário destacar que o tipo de crônica privilegiado em nosso estudo é o
narrativo.
67
4. ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA
Nessa seção, mostramos os aspectos metodológicos da nossa investigação. Iniciamos
com a abordagem da pesquisa.
4.1 Uma pesquisa – Duas fases
Nossa pesquisa foi desenvolvida em dois momentos. O primeiro momento trata-se de
uma análise que fizemos do fenômeno da responsabilidade enunciativa no gênero crônica. O
segundo refere-se ao momento em que realizamos uma sequência didática na qual o professor
de língua portuguesa possa trabalhar a responsabilidade enunciativa a partir do gênero
crônica.
4.2 Métodos de pesquisa
O método de pesquisa, conforme Marconi e Lakatos (2011, p. 46) equivale ao
“conjunto das atividades sistemáticas e racionais que, com maior segurança e economia,
permite alcançar o objetivo – conhecimentos válidos e verdadeiros –, traçando o caminho a
ser seguido, detectando erros e auxiliando as decisões do cientista”.
De acordo com o exposto, apreende-se que “a finalidade da atividade científica é a
obtenção da verdade, por intermédio da comprovação de hipóteses, que, por sua vez, são
pontes entre a observação da realidade e a teoria científica, que explica a realidade”
(MARCONI e LAKATOS, 2011, p. 46). Em nosso trabalho, pautamo-nos pelo método
indutivo, sobre o qual faremos uma abordagem a seguir.
4.2.1 O método indutivo
Em se tratando do método indutivo, Gonçalves (2005, p. 36) apresenta a definição, a
seguir:
É o método caracterizado pelo seu tipo de argumento, que, partindo “de
premissas particulares, conclui por uma geral [...] [possibilitando] o
desenvolvimento de enunciados gerais sobre as observações acumuladas de
casos específicos ou proposições que possam ter validade universal,
constituindo-se na base do fazer científico, a partir do estabelecimento da
“diferença entre os enunciados científicos, das outras formas de expressão de
68
conhecimento do mundo construídas pelo homem” (OLIVEIRA, 1997 apud
Op. cit., p. 32).
Esse método “[...] nasceu com a filosofia moderna e sua intenção de superar os
critérios de verdade aceitos até o momento: a autoridade, a tradição, o preconceito, o hábito e
a conjectura ultrapassando a simples observação”, conforme Nascimento (2002, p. 18).
Outra definição de Método Indutivo pode ser tomada de Marconi e Lakatos (2011, p.
53), que o caracteriza como
Um processo mental por intermédio do qual, partindo de dados particulares,
suficientemente constatados, infere-se uma verdade geral ou universal, não
contida nas partes examinadas. Portanto, o objetivo dos argumentos é levar a
conclusões cujo conteúdo é muito mais amplo do que o das premissas nas
quais se basearam, concluem as autoras (Op. cit. 2011, p. 53).
Assim, conforme Marconi e Lakatos (2011, p. 54), para a aplicação do método
indutivo:
são necessários três elementos fundamentais, assim apresentados:
observação dos fenômenos – nessa etapa, observam-se os fatos ou
fenômenos e os analisam, com a finalidade de descobrir as causas de sua
manifestação; descoberta da relação entre eles – na segunda etapa, procura-
se por intermédio da comparação, aproximar os fatos ou fenômenos, com a
finalidade de descobrir a relação constante existente entre eles; generalização
da relação – nessa última etapa, generaliza-se a relação encontrada na
precedente, entre os fenômenos e fatos semelhantes, muitos dos quais ainda
não se observou (e muitos, inclusive, inobserváveis).
No que se refere à construção do corpus, faremos uma breve abordagem a seguir.
4.3 Construção do corpus
Para a primeira parte de nossa investigação, momento em que analisamos o fenômeno
da responsabilidade enunciativa no gênero crônica, constituímos um corpus a partir de quatro
crônicas escolhidas da obra pertencente à coleção “Para gostar de Ler”, volume 4, da Editora
Ática, ano 2003.
Composta por um total de 20 crônicas, a referida obra apresenta uma variada seleção
de textos, organizados a partir dos seguintes tópicos: 1) Utilidades – O telefone, Rubem
Braga; Da utilidade dos animais, Carlos Drummond de Andrade; Condôminos, Fernando
Sabino e Automóvel: Sociedade Anônima, Paulo Mendes Campos. 2) Estilos – Glória, Carlos
69
Drummond de Andrade; Eloquência Singular, Fernando Sabino; Os diferentes estilos, Paulo
Mendes Campos e Carta ao Prefeito, Rubem Braga. 3) Observações – Com o mundo nas
mãos, Fernando Sabino; A fugitiva, Carlos Drummond de Andrade; O fiscal da noite, Rubem
Braga e Segredo, Paulo Mendes Campos. 4) Palavras – Palavras amargas, Paulo Mendes
Campos; O crime (de plágio) perfeito, Rubem Braga; Em código, Fernando Sabino e Calça
literária, Carlos Drummond de Andrade. 5) As expectativas e a realidade – Mocinho, Carlos
Drummond de Andrade; Odabed, Rubem Braga; A mulher vestida, Fernando Sabino; Para
Maria da Graça, Paulo Mendes Campos.
Para a apreciação dos textos optamos pela seleção das crônicas a seguir:
- De Rubem Braga, foram escolhidas O telefone e Carta ao Prefeito;
- De Carlos Drummond de Andrade, Glória;
- De Fernando Sabino, Em código;
Ressaltamos que a sequência didática levou em consideração essas mesmas crônicas.
4.4 Categorias de análise
Parte de nossa investigação tem como principal objetivo analisar as marcas de (não)
assunção da responsabilidade enunciativa no gênero discursivo crônica. Nesse sentido, essa
pesquisa pautou-se nos critérios propostos por Gomes (2014). Para a construção das análises,
definimos como critérios para a apresentação dos exemplos, quadros contendo fragmentos das
4 crônicas escolhidas nas quais serão apresentadas e discutidas as marcas de (não)
responsabilidade enunciativa. Antes de partirmos para as análises, faz-se necessário
conhecermos os critérios propostos por Gomes (2014), apresentados a seguir:
70
QUADRO 02. Classificação do PDV e das marcas de (não) responsabilidade enunciativa
GRUPO CLASSIFICAÇÃO DO
PDV
MARCAS LINGUÍSTICAS DE
RESPONSABILIDADE E DE NÃO
RESPONSABILIDADE
GRUPO A 1- PDV mediatizado ou grau
zero de responsabilidade
enunciativa
2-
- diferentes tipos de representação da fala (discurso
direto, direto livre, indireto, indireto livre e
narrativizado);
- fenômenos de modalização autonímica;
- marcadores de discurso reportado, a exemplo de
segundo, de acordo com, para etc.;
- marcas de asserção, quando referidas a terceira pessoa;
- índices de pessoas;
- dêiticos espaciais e temporais;
- tempos verbais – com destaque especial para o futuro
do pretérito, o condicional e o imperfeito;
- verbos de atribuição da fala como afirmam, dizem,
consideram etc.;
- reformulações do tipo de fato, na verdade, em todo
caso etc.;
- oposição do tipo alguns pensam (ou dizem) que X, nós
pensamos (dizemos) que Y etc.;
- indicações de um suporte de percepções e de
pensamentos relatados, desde que não acompanhados
por índices de primeira pessoa;
- conectores (especialmente os adversativos);
- elementos gráficos e ortográficos, a exemplo de uso
das aspas, uso de itálico, negrito etc.
GRUPO B PDV impessoal - enunciados impessoais;
- construções com gerúndio.
GRUPO C PDV parcial ou quase-RE
do tipo assumimos / concordamos com, nosso
pensamento é semelhante a etc.;
- modalidades.
GRUPO D PDV total ou assunção da
responsabilidade
enunciativa
- marcas de asserção, quando referidas a primeira
pessoa;
- índices de pessoas;
- dêiticos espaciais e temporais;
- tempos verbais com destaque para o presente;
- indicações de um suporte de percepções e de
pensamentos relatados, quando acompanhados por
índices de primeira pessoa;
- exclamações
- atos de fala. Fonte: GOMES (2014)
Ressaltamos, igualmente, que para a construção da sequência didática, utilizamos as
marcas propostas por Gomes (2014).
71
5. A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NO GÊNERO CRÔNICA
5.1 Análise da Crônica Carta ao Prefeito – Rubem Braga
Percebemos na crônica analisada várias marcas de (não) assunção de responsabilidade
enunciativa, por exemplo: conectores, modalizadores, índices de pessoas, dêiticos espaciais e
temporais, marcas de asserção. Vejamos os exemplos a seguir:
EXEMPLO 01.
Crônica: Carta ao Prefeito
Marcas de (não)
responsabilidade enunciativa
Acostumei-me, assim, a viver perigosamente. Não sou
covarde como esses equilibristas estrangeiros que
passeiam sobre fios entre os edifícios. Vejo-os lá em cima,
longe, dos ônibus e lotações, atravessando a rua pelos ares e
murmuro: eu quero ver é no chão.
- marcas de asserção, referidas
a primeira pessoa;
- modalizadores.
No exemplo 01, a presença da primeira pessoa desinencial nos verbos ser e querer em
frases assertivas, no presente do indicativo, revela a assunção da responsabilidade enunciativa
pelo locutor. Assim, nas assertivas “Não sou covarde como esses equilibristas estrangeiros
que passeiam sobre fios entre os edifícios” e “eu quero ver é no chão”, temos o engajamento
do locutor no texto.
EXEMPLO 02.
Crônica: Carta ao Prefeito Marcas de (não)
responsabilidade enunciativa
Também não sou assustado como esse senhor deputado
Tenório Cavalcanti, que mora em Caxias e vive armado;
moro bem no paralelo 38, entre Ipanema e Copacabana, e às
vezes, nas caladas da noite, percorro desarmado várias boites
desta zona e permaneço horas dentro da penumbra entre
cadeiras que esvoaçam e garrafas que se partem docemente
na cabeça dos fiéis em torno. E estou vivo.
- índice de pessoas; - marcas de asserção, quando
referidas a primeira pessoa;
- modalizador.
72
No exemplo 02, o locutor também assume a responsabilidade pelo dizer ao usar os
verbos na primeira pessoa do singular do indicativo em “Também não sou assustado como
esse senhor deputado Tenório Cavalcanti, que mora em Caxias e vive armado”. O mesmo
acontece com os verbos “morar”, “percorrer”, “permanecer” e “estar”.
O uso do modalizador “docemente” marca o engajamento do locutor e,
consequentemente, a assunção do PDV dos enunciados, uma vez que o locutor emite opinião
sobre os enunciados. Assim, podemos perceber o engajamento do locutor em “... e permaneço
horas dentro da penumbra entre cadeiras que esvoaçam e garrafas que se partem docemente
na cabeça dos fiéis em torno. E estou vivo”.
EXEMPLO 03.
Crônica: Carta ao Prefeito Marcas de (não) responsabilidade enunciativa
Sei também que não me resta nenhum
direito terreno; respiro o ar dos
escapamentos abertos e me banho até no
Leblon, considerado um dos mais lindos
esgotos do mundo; aspiro o perfume da
curva do Mourisco e a brisa da Lagoa e –
sobrevivo. E compreendo que, embora
vós administreis à maneira suíça, nós
continuaremos a viver à maneira carioca.
- índice de pessoas; - conector;
- marcas de asserção, quando referidas a primeira
pessoa;
O exemplo 03 traz a presença da primeira pessoa desinencial nos verbos saber,
respirar, banhar, aspirar, sobreviver e compreender em frases assertivas no presente do
indicativo, o que mais uma vez instaura a assunção da responsabilidade enunciativa pelo dizer
por parte do locutor.
Vale destacar, nesse exemplo, o uso do conector adversativo “embora”. Os conectores
adversativos, segundo Gomes (2014, p. 107), “por si só já possuem o poder de modificar a
orientação argumentativa do enunciado”. Nesse sentido, o uso de “embora” assinala a
“mudança do PDV, pois contrapõe a ideia do locutor” (Cf. GOMES, 2014) que, após tecer
“ironicamente” elogios à administração do prefeito, muda sua orientação argumentativa
através do enunciado, “... embora vós administreis à maneira suíça, nós continuaremos a
viver à maneira carioca” (GOMES, 2014, p. 107). Porém, mesmo ao manifestar uma ideia de
oposição, o uso do conector adversativo “embora” faz prevalecer a ideia de que todos
73
continuarão vivendo à maneira carioca, ou seja, enfrentando todos os problemas apontados na
cidade do Rio de Janeiro.
EXEMPLO 04.
Crônica: Carta ao Prefeito Marcas de (não) responsabilidade
enunciativa
Eu é que não me queixo; já me
aconteceu escapar de morrer dentro de um
táxi em uma tarde de inundação e ter o
consolo de, chegando em casa, encontrar a
torneira perfeitamente seca.
- marcas de asserção, quando referidas a
primeira pessoa;
- Modalizador.
No exemplo 04, o locutor assume a responsabilidade pelo dizer ao usar o verbo na
primeira pessoa do singular do indicativo em “Eu é que não me queixo...”.
Destacamos, também, o uso do modalizador “perfeitamente”, enquanto marca do
engajamento do locutor, e, consequentemente, a assunção do PDV dos enunciados, uma vez
que o locutor emite sua opinião sobre o dizer. Nota-se esse engajamento quando o locutor
afirma: “já me aconteceu escapar de morrer dentro de um táxi em uma tarde de inundação e
ter o consolo de, chegando em casa, encontrar a torneira perfeitamente seca”. Dessa forma, o
uso do modalizador marca o engajamento do locutor que enfatiza a falta d’agua, o que
podemos considerar como uma crítica ao prefeito.
EXEMPLO 05.
Crônica: Carta ao Prefeito
Marcas de (não) responsabilidade
enunciativa
Mas não é para dizer isso que vos
escrevo. É para agradecer a providência
que vossa administração tomou nestas
últimas quatro noites, instalando uma
esplêndida lua cheia em Copacabana.
- Conector;
- marcas de asserção referidas a primeira
pessoa.
Novamente, o locutor usa um conector adversativo. O uso de “mas” assinala, nos
dizeres de Gomes (2014, p. 107), “a mudança do PDV, por contrapor a ideia do locutor”, que,
novamente, após tecer de forma irônica elogios à administração do prefeito, afirma que não o
74
escreveu para esse propósito, mas para agradecê-lo também de forma irônica, por todos os
problemas que, possivelmente, teriam sido resolvidos, ao mencionar, de forma metafórica,
que o prefeito havia instalado uma esplêndida lua em Copacabana.
Pelo exposto, percebemos que o locutor usa, quase sempre, a primeira pessoa do
singular, assumindo, portanto, a responsabilidade enunciativa pelo dizer, em um texto
narrativo que corrobora, de maneira argumentativa, para tecer uma forte crítica ao sistema
político.
5.2 Análise da crônica O Telefone - Rubem Braga
Nessa segunda crônica analisada, percebemos, igualmente, várias marcas de (não)
assunção de responsabilidade enunciativa, por exemplo: conectores, modalizadores, verbos de
atribuição da fala, marcadores de discurso reportado e elementos gráficos e ortográficos.
Vejamos os exemplos que seguem.
EXEMPLO 06.
Crônica: O telefone
Marcas de (não) responsabilidade
Tomamos uma modesta cerveja e falamos coisas
antigas [...] – quando o telefone tocou. Atendi.
Era alguém que queria falar ao meu amigo. Um
assinante mais leviano teria chamado o amigo
para falar. Sou, entretanto, um severo
respeitador do Regulamento; em vista do que,
comuniquei ao meu amigo que alguém queria
lhe falar, o que infelizmente eu não podia
permitir; estava, entretanto, disposto a tomar e
transmitir qualquer recado. Irritou- se o amigo,
mas fiquei inflexível, mostrando-lhe o artigo 2
do Regulamento, segundo o qual o aparelho
instalado em minha casa só pode ser usado,
“pelo assinante, pessoas de sua família, seus
representantes ou empregados”.
- conectores;
- modalizador;
- marcador de discurso reportado;
- elemento gráfico e ortográfico.
No exemplo 06, percebemos que o locutor começa por assumir a responsabilidade
enunciativa ao usar verbos na primeira pessoa do singular e/ou do plural, bem como o uso do
modalizador “infelizmente”. No entanto, para respaldar sua ação de não deixar o amigo falar
em seu aparelho de telefone, ele usa outra fonte enunciativa, qual seja, o artigo 2 do
75
regulamento para uso do aparelho em sua casa, através dos marcadores de discurso relatado
“segundo” e das aspas, elemento que tem por função básica marcar o discurso de outro.
Essa posição do locutor se fortalece através do uso do conector adversativo:
“entretanto”, mencionado duas vezes para marcar a mudança na orientação argumentativa.
Sendo assim, o locutor deixa claro que, se dependesse dele, o amigo usaria o telefone, isto é,
não é ele quem não quer que o amigo use o telefone, mas é o regulamento que assim o impõe.
Tal procedimento preserva sua face diante do amigo e espera que este o entenda.
Destacamos, ainda, o uso do conector “mas” que também modifica a orientação
argumentativa do enunciado, assinala a mudança do PDV e contrapõe as ideias (irritar o
amigo x ficar inflexível).
Ao utilizar tais marcas de (não) assunção da responsabilidade enunciativa, podemos
inferir que o produtor do texto faz uma crítica velada às companhias telefônicas que impõem
diversas regras aos seus usuários.
EXEMPLO 07.
Crônica: O telefone
Marcas de (não) responsabilidade
Devo dizer que perdi o amigo, mas salvei o
Respeito ao Regulamento; “dura lex sed lex”; eu
sou assim. Sei também (artigo 4) que se minha
casa pegar fogo terei de vos pagar o valor do
aparelho – mesmo se esse incêndio (artigo 9) for
motivado por algum circuito organizado pelo
empregado da Companhia com o material da
Companhia. Sei finalmente (artigo 11) que se,
exausto de telefonar do botequim da esquina a
essa distinta Companhia para dizer que meu
aparelho não funciona, eu vos chamar e vos
disser, com lealdade e com as únicas expressões
adequadas, o meu pensamento, ficarei
eternamente sem telefone, pois “o uso de
linguagem obscena constituirá motivo
suficiente para a Companhia desligar e retirar
o aparelho”.
- conectores;
- elemento gráfico e ortográfico.
O exemplo 07 traz o conector adversativo “mas” contrapondo ideias e assinalando
uma mudança do PDV, (perder o amigo x salvar o respeito ao Regulamento). Com isso, o
locutor aponta que, prevalece a ideia de respeitar o Regulamento, tornando assim, inviável a
conversa entre o amigo e a pessoa que ligou.
76
Vale ressaltar o uso do princípio “dura lex sed lex”, expressão latina cujo significado é
“A lei é dura, mas é lei.”, usado pelo locutor para marcar seu distanciamento em relação ao
dizer através de uma fonte de poder consolidada pela tradição. Assim, o locutor ao usar o
argumento de poder e os elementos ortográficos (aspas) não assume o PDV e o imputa a outra
instância enunciativa, tirando de si a culpabilidade pelo amigo não poder usar o telefone.
5.3 Análise da crônica Glória – Carlos Drummond de Andrade
Percebemos na crônica analisada várias marcas de (não) assunção da responsabilidade
enunciativa, por exemplo: diferentes tipos de representação da fala (discurso direto, indireto);
marcas de asserção, quando referidas a terceira pessoa; índices de pessoas; dêiticos espaciais e
temporais; verbos de atribuição da fala; conectores.
EXEMPLO 08.
Crônica: Glória
Marcas de (não) assunção da
responsabilidade enunciativa
Meu filho é artista de televisão, contando o
senhor não acredita. Eu mesmo às vezes penso
que é ilusão. Com oitos anos, imagine. Estava
brincando na pracinha lá da vila quando
passaram uns homens e olharam muito pra ele.
Meu filho, não é pra me gabar, mas é uma lindeza
de Menino – Jesus, aí um dos homens falou assim
pra ele: Quer fazer um teste, ó garoto? O que é
teste? ele respondeu. Aí o homem explicou, não
sei bem qual é a explicação, levaram ele pra um
edifício na cidade, tiraram um bocado de retratos
dele, depois falaram assim: Você foi aprovado. Aí
ele se espantou: Mas eu não fiz exame, que troço é
esse?
- verbos de atribuição da fala;
- diferentes tipos de representação da
fala (discurso direto, indireto);
- marcas de asserção, quando referidas a
primeira pessoa;
- conectores.
No exemplo 8, as marcas de asserção referidas a primeira pessoa em “Meu filho é
artista de televisão, contando o senhor não acredita. Eu mesmo às vezes penso que é
ilusão.” apontam que o locutor assume a responsabilidade pelo dizer, ao falar do seu filho.
Os verbos de atribuição de fala, representados por falar e responder, configuram, nos
dizeres de Gomes (2014, p. 115) “um PDV mediatizado ou grau zero de responsabilidade
enunciativa, ou seja, o locutor não assume a responsabilidade pelo dizer e atribui o PDV a
77
outra fonte, bem como alguns tipos de representação da fala (discurso direto)” em Quer fazer
um teste, ó garoto? O que é teste? ele respondeu., que também são marcas linguísticas que
configuram um PDV mediatizado ou grau zero de responsabilidade enunciativa. Podemos
perceber que o locutor usa o discurso de outrem para fundamentar a ideia de que seu filho é
bonito e talentoso. Com isso, ele preserva sua face e retira a parcialidade que o texto traria,
caso fosse a própria mãe falando da criança.
Merece que destaquemos o uso do adversativo “mas” na proposição Meu filho, não é
pra me gabar, mas é uma lindeza de Menino – Jesus. Os conectores argumentativos, via de
regra, marcam uma oposição, logo, uma mudança de PDV e uma mudança na orientação
argumentativa. Nesse caso, mais do que isso, o locutor busca preservar sua face novamente e
usa a adversidade como recurso para isso, posto que se a criança não fosse tão linda, a mãe
estaria, assim, apenas se gabando.
EXEMPLO 09.
Crônica: Glória
Marcas de (não) assunção da
responsabilidade enunciativa
Aí mandaram ele de volta pra casa, não, antes
falaram assim pra ele: manda seu pai aqui na
agência receber o cachet. Ele ficou espantado,
falou assim: Que troço é esse? Eles responderam:
tutu. Aí ele baixou a cabeça e respondeu baixinho:
Eu não tenho pai. E mãe você tem? Ele respondeu
que mãe ele tinha, e levantou a cabeça. Então
manda ela aqui, mas o garoto é esperto, deu uma de
sabido: Eu mesmo não posso receber? se fui eu que
fiz tudo sozinho. Não, você não pode, tem que ser
sua mãe, diz a ela que venha das 2 às 4, trazendo
carteira de identidade.
- verbos de atribuição da fala;
- marcas de asserção, referidas a terceira
pessoa;
- conectores.
O uso dos verbos de atribuição de fala responder e falar cujo emprego configura, nos
dizeres de Gomes (2014, p. 115), “um PDV mediatizado ou grau zero da responsabilidade
enunciativa”, mais uma vez é encontrado. Assim, o locutor atribui o PDV a outra fonte que
não é ele em “Ele ficou espantado, falou assim: Que troço é esse? Eles responderam: tutu.”
78
EXEMPLO 10.
Crônica: Glória
Marcas de (não) assunção da
responsabilidade enunciativa
Vou lá na agência assim mesmo. Larguei meu
serviço. Fui. Tinha um mundão de gente, eu não
sabia quem é que podia me atender, andei rolando
de uma sala pra outra, até que afinal um cara de
bigodão, atrás da parede de vidro com um óculo no
meio, falou assim: É comigo, trouxe a carteira?
Eu expliquei que carteira eu não tinha, mas sou
lavadeira muito acreditada na Zona Norte, muitas
madamas da Rua Conde de Bonfim podem atestar
que eu sou eu mesma e mãe de meu filho, há 25
anos que trabalho de lavar roupa. Ele abanou a
cabeça, falou assim: Nada feito, não tenho
ordem de pagar sem identidade. Mas o meu filho
trabalhou, moço, eles ficaram satisfeitos com o
trabalho dele, tanto que prometeram pagar um tal
de cachet...
- conector;
- índices de pessoas;
- verbos de atribuição da fala;
- diferentes tipos de representação da fala
(discurso direto);
- marcas de asserção, quando referidas a
terceira pessoa.
O exemplo 10 também traz o conector adversativo “mas” contrapondo ideias e
assinalando uma mudança de PDV, (o fato de a senhora não possuir a carteira de identidade x
ser lavadeira acreditada na Zona Norte). Nesse sentido, percebemos que com a oposição das
ideias em “Eu expliquei que carteira eu não tinha, mas sou lavadeira muito acreditada na
Zona Norte, muitas madamas da Rua Conde de Bonfim podem atestar que eu sou eu mesma e
mãe de meu filho, há 25 anos que trabalho de lavar roupa”, a lavadeira assume a
responsabilidade pelo dizer, e reforça seu PDV ao utilizar-se dos argumentos “Muito
acreditada na zona norte” e “Muitas madamas podem atestar”. Ainda sobre o uso do conector
adversativo “mas”, em “Ele abanou a cabeça, falou assim: Nada feito, não tenho ordem de
pagar sem identidade. Mas o meu filho trabalhou, moço, eles ficaram satisfeitos com o
trabalho dele, tanto que prometeram pagar um tal de cachet...”, percebemos que na oposição
das ideias (não ter ordem de pagar sem identidade x meu filho trabalhou), a lavadeira também
assume a responsabilidade pelo dizer e reforça seu PDV ao enunciar “eles ficaram satisfeitos
com o trabalho dele, tanto que prometeram pagar um tal de cachet...” Percebemos ainda nesse
exemplo que, a partir da presença de verbos de atribuição da fala em “Ele abanou a cabeça,
falou assim...”, o locutor imputa a responsabilidade a outra fonte enunciativa ao afirmar
“Não tenho ordem de pagar sem identidade”.
79
A presença de verbos de atribuição da fala, o uso do conector “mas” e diferentes tipos
de representação da fala (discurso direto) em “Ele abanou a cabeça, falou assim: Nada
feito, não tenho ordem de pagar sem identidade. Mas o meu filho trabalhou, moço...”
configuram um PDV mediatizado ou grau zero da responsabilidade enunciativa. A lavadeira,
ao fazer uso do conector “mas”, embora indique oposição, assume a responsabilidade pelo
dizer e reforça que o filho precisa receber o cachet porque trabalhou.
EXEMPLO 11.
Crônica: Glória
Marcas de (não)
responsabilidade enunciativa.
Aí, eu não tinha mais vontade de chorar e disse pra ele:
Escuta aqui, moço, quanto é que meu filho tem pra
receber? Ele respondeu: 50 cruzeiros. Ah, é isso?
Respondi. Pode ficar pra agência. Perdi meu dia de
trabalho, gastei trem, gastei ônibus, andei a pé neste solão,
não vou me chatear por causa dessa micharia. Um cara que
estava escutando falou assim: A senhora vai jogar fora
esse 50 mangos? E daí? respondi pra ele. Meu filho vale
muito mais, a gente não fica mais pobre por causa disso,
ele agora é artista, amanhã se Deus e a Virgem Maria
ajudar, vai ganhar milhões. Nem precisa ganhar, só o
orgulho que eu sinto por ele ter passado no teste! Saí de lá
com esse orgulho bonito no coração, meu filho é artista,
meu filho é artista, ia repetindo sozinha, na rua me
olhavam admirados, mas eu nem dei bola, fui pra casa e
ligo a televisão o dia inteiro, trabalho vendo ela, até chegar a
hora de meu filho aparecer no comercial comendo doce de
coco.
- verbos de atribuição da fala;
- diferentes tipos de representação
da fala (discurso direto);
- marcas de asserção, quando
referidas a primeira pessoa.
No exemplo 11, o locutor também assume a responsabilidade pelo dizer ao usar os
verbos na primeira pessoa do singular do indicativo em “Meu filho vale muito mais, a gente
não fica mais pobre por causa disso, ele agora é artista, amanhã se Deus e a Virgem
Maria ajudar, vai ganhar milhões.” O mesmo acontece em “Meu filho é artista, meu filho
é artista, ia repetindo sozinha, na rua me olhavam admirados, mas eu nem dei bola.” No
referido exemplo, também observamos a oposição do conector “mas” (... meu filho é artista,
meu filho é artista, ia repetindo sozinha, na rua me olhavam admirados, mas eu nem dei bola,
fui pra casa ligo a televisão o dia inteiro...), cujo PDV que prevalece é o da mãe a respeito do
que o filho representa para ela, um menino talentoso. Com relação à presença dos verbos de
80
atribuição de fala em “Aí, eu não tinha mais vontade de chorar e disse pra ele: Escuta
aqui, moço, quanto é que meu filho tem pra receber?” e “Ele respondeu: 50 cruzeiros.
Um cara que estava escutando falou assim: A senhora vai jogar fora esse 50 mangos?”,
observamos que o emprego dos verbos “respondeu” e “falou”, configura também um PDV
mediatizado ou grau zero de responsabilidade enunciativa, onde o locutor atribui o PDV a
uma outra fonte.
5.4 Análise da crônica Em Código – Fernando Sabino
Na crônica analisada, percebemos várias marcas de (não) assunção de
responsabilidade enunciativa, por exemplo: conectores, modalizadores, índices de pessoas,
diferentes tipos de representação da fala (discurso direto), marcas de asserção, quando referidas a
primeira pessoa. Vejamos os quadros a seguir:
EXEMPLO 12.
Crônica: Em código Marcas de (não)
responsabilidade enunciativa
Fui chamado ao telefone. Era o chefe de escritório de meu
irmão:
– Recebi de Belo Horizonte, um recado dele para o
senhor. É uma mensagem meio esquisita, com vários itens,
convém tomar nota. O senhor tem um lápis aí?
– Tenho. Pode começar.
– Então lá vai. Primeiro: minha mãe precisa de uma nora.
– Precisa de quê?
– De uma nora.
– Que história é essa?
– Eu estou dizendo ao senhor que é um recado meio
esquisito. Posso continuar?
– Continue.
- índices de pessoas;
- diferentes tipos
de representação da fala
(discurso direto);
O exemplo 12 traz a presença da primeira pessoa desinencial nos verbos ir e
perceber em frases assertivas, no presente do indicativo, o que instaura a assunção da
responsabilidade enunciativa pelo dizer por parte do locutor. Assim, em “Fui chamado ao
telefone” e “Recebi de Belo Horizonte, um recado dele para o senhor”, é possível
perceber que o locutor faz uso de assertivas referidas a primeira pessoa que instauram a
assunção da responsabilidade enunciativa pelo dizer. No referido exemplo, ainda percebemos
diferentes tipos de representação da fala (discurso direto), que configuram, nos dizeres de
81
Gomes (2014, p. 115), “um PDV mediatizado ou grau zero de responsabilidade enunciativa”.
Dentre esses tipos de representação da fala (discurso direto) podemos destacar: “– Então lá
vai. Primeiro: minha mãe precisa de uma nora.” “– Precisa de quê?” “– De uma nora.”
“– Que história é essa?” “– Eu estou dizendo ao senhor que é um recado meio esquisito.
Posso continuar?”
EXEMPLO 13.
Crônica: Em código
Marcas de (não) responsabilidade
enunciativa
– Foi o que eu preveni ao senhor. E tem mais.
Quinto: não sou colgate, mas ando na boca de
muita gente. Sexto: poeira é a minha penicilina.
Sétimo: carona, só de saia. Oitavo…
– Chega! – protestei, estupefato. – Não vou ficar
aqui tomando nota disso, feito idiota.
– Deve ser carta em código, ou coisa parecida – e
ele vacilou: Estou dizendo ao senhor que
também não entendi, mas enfim… Posso
continuar?
- marcas de asserção, referidas a
primeira pessoa;
- conector;
No exemplo 13, as marcas de asserção referidas a primeira pessoa em “Foi o que eu
preveni ao senhor.” e “Estou dizendo ao senhor que também não entendi, mas enfim…
Posso continuar?” também configuram um PDV mediatizado ou grau zero de
responsabilidade enunciativa. Nesse sentido, o locutor não assume a responsabilidade pelo
dizer, mas prepara o interlocutor sobre o estranhamento que aquela mensagem meio esquisita
e com vários itens causaria ao texto.
Destacamos, ainda, o uso do conector “mas” que modifica a orientação argumentativa
do enunciado, e consequentemente, assinala a mudança do PDV e contrapõe as ideias (o fato
de não conseguir entender nada x a possibilidade de continuar as anotações).
82
EXEMPLO 14.
Crônica: Em código
Marcas de (não) responsabilidade
enunciativa
Desliguei, atônito, fui até refrescar o rosto com
água, para poder pensar melhor. Só então me
lembrei. Haviam-me encomendado uma crônica
sobre essas frases que os motoristas costumam
pintar, como lema, à frente dos caminhões. Meu
irmão, que é engenheiro e viaja sempre
pelo interior fiscalizando obras, prometera
ajudar-me, recolhendo em suas andanças farto e
variado material. E ele viajou, o tempo passou,
acabei esquecendo completamente do trato, na
suposição de que o mesmo lhe acontecera.
Agora, o material ali estava. Era só fazer a crônica.
Deus, eu e o Rocha! Tudo explicado! Rocha era o
motorista, Deus era Deus mesmo, e eu, o caminhão.
- índices de pessoas;
- marcas de asserção, referidas à
primeira pessoa;
- modalizador.
O exemplo 14 traz a presença da primeira pessoa desinencial nos verbos desligar, ir e
lembrar, em frases assertivas no presente do indicativo, o que instaura a assunção da
responsabilidade enunciativa pelo dizer por parte do locutor.
Destacamos, também, o uso do modalizador “completamente”, enquanto marca do
engajamento do locutor, e, consequentemente, a assunção do PDV dos enunciados, uma vez
que o locutor emite sua opinião sobre o dizer (Cf. GOMES, 2014). Percebe-se esse
engajamento quando o locutor afirma “E ele viajou, o tempo passou, acabei esquecendo
completamente do trato, na suposição de que o mesmo lhe acontecera”. Dessa forma, o uso
do modalizador marca o engajamento do locutor que enfatiza o esquecimento do trato feito
com o irmão com o qual havia combinado recolher em suas andanças frases de pára-choque
de caminhão. É interessante frisarmos também a presença da primeira pessoa desinencial no
verbo acabar em frase assertiva no presente do indicativo, o que mais uma vez instaura a
assunção da responsabilidade enunciativa pelo dizer por parte do locutor com relação ao
combinado feito com o irmão.
A partir da análise realizada, podemos considerar que há uma heterogeneidade grande
de PDV no gênero discursivo crônica. Assim, encontramos como PDV frequente na primeira
crônica analisada, o PDV do locutor, que pode ser percebido nas marcas de asserção, referidas
a primeira pessoa, índice de pessoas, bem como, através do uso de modalizadores. Já na
83
segunda crônica, percebemos não só o PDV do locutor, mas também, outras fontes
enunciativas que podem ser notadas através de marcadores de discurso reportado e elementos
gráficos e ortográficos. Nas terceira e quarta crônicas, temos também, além do PDV do
locutor, outras fontes enunciativas por meio do uso de verbos de atribuição de fala, diferentes
tipos de representação da fala (discurso direto, indireto), marcas de asserção, referidas a
terceira pessoa e índices de pessoas.
Conforme nos orienta Gomes (2014, p. 138), “esses PDV podem ser identificados
linguisticamente por muitas marcas materializadas no texto". Nos exemplos analisados,
encontramos 93 ocorrências de (não) responsabilidade enunciativa.
Apresentamos o seguinte gráfico com o percentual com que cada marca apareceu em
nossa análise:
GRÁFICO 01. Marcas de (não) responsabilidade encontradas na análise
5
12 12
18
13 12
19
2
02468
101214161820
Fonte: A AUTORA (2016)
Pelo exposto no gráfico, podemos identificar, em uma escala de maior ou menor
ocorrência, a seguinte classificação de ocorrência das marcas de (não) responsabilidade:
1 – marcas de asserção – 19 ocorrências;
2 – verbos de atribuição de fala – 18 ocorrências;
3 – diferentes tipos de representação de fala e elementos gráficos e ortográficos – com
12 de representação de fala e 3 elementos gráficos e ortográficos;
4 – índices de pessoas – 13 ocorrências;
5 – conectores – 12 ocorrências;
6 – Modalizadores – 5 ocorrências;
84
7 – marcadores do discurso reportado – 2 ocorrências.
Podemos perceber que as marcas linguísticas que desempenham um papel relevante na
sinalização da orientação argumentativa do enunciador são as marcas de asserção, bem como
aquelas usadas para marcar o discurso de outra fonte enunciativa, a exemplo dos verbos de
atribuição da fala e os diferentes tipos de representação de fala.
Assim, concordamos com o pensamento de Gomes (2014, p. 141), ao afirmar que “a
(não) assunção da responsabilidade enunciativa se configura como mecanismo argumentativo
fortemente marcado pelo produtor do texto com vista a seus propósitos argumentativos”.
Desse modo, segue a orientação de Escribano (2009, p. 47 – 49 apud GOMES 2014, p. 141)
que afirma que no discurso,
a intenção argumentativa se sustenta em grande medida nas palavras
distantes (nas vozes de distintos enunciadores, seja para negá-las, como
argumento antiorientado, ou para apoiar nelas o próprio ponto de vista, como
argumento coorientado), com o que se consegue legitimar o próprio critério
e dirigir a opinião do receptor para determinadas conclusões que se mostram,
desta maneira, como válidas e verdadeiras.
Isso posto, concordamos com Gomes (2014, p. 141) quando diz que
discutir esses mecanismos de (não) responsabilidade enunciativa em
variados gêneros discursivos é oferecer ferramentas para que o cidadão leia
textos identificando os diversos PDV presentes e seus efeitos de sentido, o
que, seguramente, contribuirá para um melhor entendimento do processo de
produção e compreensão de textos, logo, para uma melhor formação do
indivíduo com base na autonomia e na criticidade.
Nesse sentido, entendemos que trabalhar as marcas de (não) assunção da
responsabilidade enunciativa no gênero discursivo crônica também poderá proporcionar ao
nosso aluno um novo olhar sobre a leitura e a escrita de textos, não só no âmbito escolar, mas
também, nos textos de circulação social.
85
6 PROPOSTA DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA O ENSINO DA
RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO CRÔNICA
Conforme já foi destacado anteriormente, na presente pesquisa, tivemos a pretensão de
elaborar uma sequência didática envolvendo o fenômeno da responsabilidade enunciativa no
gênero discursivo crônica. Escolhemos a crônica por entendermos que o referido gênero é
bastante pertinente, principalmente para o processo de leitura e escrita dos alunos da
modalidade de ensino da Educação de Jovens e Adultos, por tratar em seus textos de assuntos
ligados ao cotidiano.
Para Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 82), “uma ‘sequência didática’ é um
conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero
textual oral ou escrito”. Para esses autores, o objetivo principal de uma sequência didática é
“ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou
falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de comunicação” (DOLZ,
NOVERRAZ E SCHNEUWLY, 2004, p. 83).
Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) apresentam, ainda, a estrutura de base de uma
sequência didática, qual seja:
1 - Apresentação da situação;
2 - Produção inicial;
3 - Módulo 1;
4 - Módulo 2;
5 - Módulo n;
6 - Produção final;
Com base nesses pressupostos, partimos para a elaboração de uma proposta de
sequência didática para o ensino da responsabilidade enunciativa com o gênero discursivo
crônica.
Ressaltamos que a presente sequência didática, dividida em 2 módulos, objetiva
trabalhar o fenômeno da responsabilidade enunciativa no gênero discursivo crônica, a partir
das marcas linguísticas de (não) assunção da RE, proporcionando aos alunos atividades
relevantes que contribuam para o desenvolvimento da aprendizagem e criticidade perante o
texto.
Antes, apresentamos no quadro a seguir, as informações gerais de um plano de aula
elaborado para ser aplicado numa turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA – 8° período)
na Escola Municipal Profª Trindade Campelo, no município de Currais Novos, RN.
89
QUADRO 03 - Informações gerais da Sequência Didática
Série Escolar 8º período da Educação de Jovens e Adultos (EJA)
Tempo 3 meses
Tema A Responsabilidade Enunciativa no Gênero Discursivo Crônica
Gênero Discursivo Crônica
Objetivos
Geral: Verificar como se manifesta o fenômeno da responsabilidade enunciativa no gênero discursivo crônica.
Específicos:
1) identificar, descrever, analisar e interpretar que vozes estão presentes no gênero discursivo crônica e quais seus efeitos de sentido;
2) identificar, descrever e analisar que marcas textuais nos levam a identificar essas vozes;
3) refletir sobre as contribuições do estudo do gênero discursivo crônica na formação socio-cultural-textual-discursiva dos discentes.
Conteúdo
- estrutura composicional do gênero crônica;
- elementos linguísticos, textuais, discursivos e pragmáticos do
gênero crônica;
- marcas de (não) assunção da RE no gênero crônica
Metodologia Através de uma abordagem sóciointeracionista, o professor propicia aos alunos o acesso a diversos exemplares do gênero discursivo crônica.
Avaliação O professor avaliará os alunos pelas atividades desenvolvidas durante o projeto e também pela produção final.
Recursos Didáticos Quadro branco, fotocópias, computador, projetor, livro didático, slides, vídeos, jogos de quebra-cabeça.
Referências
BRAGA, Rubem; ANDRADE, Carlos Drummond; SABINO, Fernando; CAMPOS, Paulo Mendes. Crônicas 4. Para gostar de ler. 12ª ed. São
Paulo: Ática, 2003.
FERREIRA, Telma Sueli Farias (Org.). Produção e Aplicação de Sequências Didáticas: Experiências de (futuros) professores de língua
inglesa. Jundiaí, Paco Editorial: 2016.
Programa Gestão da Aprendizagem Escolar – Gestar II. Língua Portuguesa: Atividades de apoio à Aprendizagem 5 – AAA5: estilo, coerência e
coesão (Versão do Professor). Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica, 2008.
RIOLFI, Cláudia et al. Ensino de língua portuguesa. Coleção Ideias em Ação. CARVALHO, Maria Pessoa de. (Coord.). São Paulo: Cengage
Learning, 2015.
Fonte: A AUTORA (2016)
90
Conforme Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 84), a apresentação da situação
“prepara os alunos para a produção inicial, que pode ser considerada uma primeira tentativa
de realização do gênero que será, em seguida, trabalhado nos módulos”. A apresentação da
situação é, portanto, “o momento em que a turma constrói uma representação da situação de
comunicação e da atividade de linguagem a ser executada”, consideram os autores (Op. cit.,
2004, p. 85).
Nesse momento, duas dimensões principais podem ser distinguidas:
a) Apresentar um problema de comunicação bem definido.
A primeira dimensão é a do projeto coletivo de produção de um gênero oral ou escrito,
proposto aos alunos de maneira bastante explícita para que, conforme Dolz, Noverraz e
Schneuwly (2004, p.84), “eles compreendam o melhor possível a situação de comunicação na
qual devem agir; qual é, finalmente, o problema de comunicação que devem resolver,
produzindo um texto oral ou escrito”. Deste modo, devem-se dar indicações que respondam às
seguintes questões:
• Qual é o gênero abordado?
• A quem se dirige a produção?
• Que forma assumirá a produção?
• Quem participará da produção?
b) Preparar o conteúdo dos textos que serão produzidos.
A segunda dimensão é a dos conteúdos. Na apresentação da situação, é
preciso que os alunos percebam, imediatamente, a importância desses
conteúdos e saibam com quais vão trabalhar. O cerne de um debate pode, por
exemplo, ser apresentado através da escuta de breves tomadas de posição; de
um tema geral – por exemplo, animais ou homens e mulheres célebres -,
podem ser retirados subtemas para um artigo enciclopédico; para um
seminário, os alunos deverão conhecer bem o que devem explicar a outrem e
terão, eventualmente, aprendido os conteúdos em outras áreas de ensino
(história, geografia, ciências, etc.). Se for o caso de uma carta do leitor, os
alunos deverão compreender bem a questão colocada e os argumentos a
favor e contra as diferentes posições. Para redigir um conto, eles deverão
saber quais são seus elementos constitutivos: personagens, ações e lugares
típicos, objetos mágicos etc (DOLZ, NOVERRAZ E SCHNEUWLY, 2004,
p. 85).
Assim, é interessante ressaltar que, mediante o gênero discursivo que escolhemos para
a nossa sequência didática, os alunos, para redigir uma crônica narrativa, por exemplo,
deverão saber quais são seus elementos constitutivos: personagem, enredo, tempo e espaço.
91
Nesse sentido, a fase inicial de apresentação da situação “permite fornecer aos alunos
todas as informações necessárias para que conheçam o projeto comunicativo visado e a
aprendizagem de linguagem a que está relacionado”, consideram Dolz, Noverraz e Schneuwly
(2004, p. 85).
Primeira produção:
Nesse momento, então, o professor escolherá um texto do gênero discursivo crônica e
exibirá para os alunos. Depois, deverá fazer a leitura e apresentar a estrutura composicional
do gênero. Em nosso caso, escolhemos a crônica ‘O telefone’ de Rubem Braga, por tratar-se
de uma crônica indicada ao nível da turma pela professora pesquisadora, que está inserida na
modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Após a apresentação da situação, o professor deverá motivar os alunos à escrita da
produção inicial. Nesse sentido, o aluno, nessa aula, deverá construir um texto a partir de um
parágrafo inicial. Como aquecimento, será realizada a brincadeira do PLAT para que os
alunos desenvolvam as suas ideias.
Atividade inspiradora: PLAT (P – personagem; L – lugar; A – ação e T – tempo).
Objetivos: De maneira lúdica, identificar como se constrói a unidade de sentido nos
textos. Construir um texto a partir de um parágrafo inicial.
Conteúdo: Gênero Discursivo Crônica ; elementos da narrativa.
Recursos Didáticos: Quadro, marcador de quadro branco, material xerografado,
recipiente.
Procedimentos:
1º. Retire uma carta do jogo PLAT para preenchimento.
2º. Invente respostas imaginárias para preencher os itens da carta.
P – HOMEM ALTO
L – PRAIA
A – ANDAR
T – ONTEM
3º. Deposite a sua carta novamente no recipiente trazido pelo professor.
4º. Depois de embaralhadas, retire uma nova carta para a sua jogada.
5º. Quando cada colega tiver uma nova carta, será dada a largada.
6º. Com a sua nova carta, você deverá imaginar uma sequência de fatos e, para
aquecer o jogo, poderá contá-los aos amigos.
92
7º. Já na 2ª rodada, retire uma nova carta e construa um parágrafo contando o que você
imaginou.
8º. Quando as histórias estiverem prontas, é hora de contar à turma e verificar as
características das invenções: sem sentido, estranha, confusa, pouco engraçada, muito
engraçada, etc.
9º. Registrar as histórias que se destacarem na turma e ajudar os colegas a fazer um
mural na sala.
Faz-se necessário destacar que o objetivo da aula é fazer com que os alunos percebam,
ainda que a partir do jogo, a presença de partes contribuintes do texto narrativo que lhe
garantem a unidade significativa e a progressão das ideias.
MÓDULO I:
1º Encontro
Objetivos: Revisar os pontos discutidos na aula anterior e retomar a leitura da crônica
“O telefone” de Rubem Braga. Conhecer um pouco da biografia de Rubem Braga. Conhecer e
analisar algumas marcas linguísticas de (não) responsabilidade enunciativa. Explorar no texto
o uso dos conectores adversativos MAS, PORÉM, ENTRETANTO, como marcas
linguísticas de (não) responsabilidade enunciativa.
Conteúdo: Gênero Discursivo Crônica; Conectores Interfrásticos / Marcas linguísticas
de responsabilidade e não responsabilidade enunciativa.
Recursos Didáticos: Material xerografado, quadro branco, marcador de quadro branco.
Procedimentos:
1º. Entregar material xerografado da crônica “O telefone” de Rubem Braga para que
os alunos realizem uma leitura silenciosa do texto;
2º. Realizar uma leitura em voz alta discutindo as ideias principais do texto;
3º. Revisar os principais pontos discutidos no texto, fazendo os seguintes
questionamentos aos alunos:
- O que levou o cronista a fazer o texto? Que assunto motivou sua criação?
- Você já teve que reclamar de algum produto que adquiriu e apresentou defeito?
- Que produtos foram esses? Como foi o procedimento de reclamação usado por você?
4º. Apontar as marcas linguísticas de responsabilidade e não responsabilidade
enunciativa presentes na crônica (conectores adversativos; marcador de discurso reportado;
elemento gráfico e ortográfico) e discutir sobre seus efeitos de sentido no texto como, por
exemplo:
93
- Observe o trecho a seguir retirado da crônica O telefone:
Tomamos uma modesta cerveja e falamos coisas antigas [...] – quando o telefone
tocou. Atendi. Era alguém que queria falar ao meu amigo. Um assinante mais leviano teria
chamado o amigo para falar. Sou, entretanto, um severo respeitador do Regulamento; em vista
do que, comuniquei ao meu amigo que alguém queria lhe falar, o que infelizmente eu não
podia permitir; estava, entretanto, disposto a tomar e transmitir qualquer recado. Irritou- se o
amigo, mas fiquei inflexível, mostrando-lhe o artigo 2 do Regulamento, segundo o qual o
aparelho instalado em minha casa só pode ser usado, “pelo assinante, pessoas de sua família,
seus representantes ou empregados”.
a) Considerando que os conectores argumentativos marcam, via de regra, uma
mudança na orientação argumentativa, destaque as duas ideias que o conector entretanto, em
sua primeira ocorrência nesse fragmento, contrapõe.
b) Aponte quem é o responsável por cada ideia apresentada;
c) Há no fragmento, uma passagem destacada pelo recurso das aspas. Indique a função
das aspas nesse fragmento.
d) Quem é o responsável pelo conteúdo apresentado nesse fragmento marcado pelas
aspas?
e) Qual o propósito do locutor do texto ao usar a voz do regulamento de telefonia?
f) Classifique a palavra segundo de acordo com o contexto em que ela aparece nesse
fragmento e depois diga qual sua função nessa passagem.
5º. Apresentar material xerografado do cronista Rubem Braga.
2º Encontro:
Objetivos: De maneira mais precisa, introduzir o assunto crônica; Apresentar as
principais características do gênero; Apontar os nomes de alguns cronistas brasileiros.
Conteúdo: Gênero Discursivo Crônica.
Recursos Didáticos: Quadro, marcador de quadro branco, material xerografado.
Procedimentos:
1º. Reconhecer o gênero discursivo crônica;
2º. Identificar aspectos e características do gênero crônica;
3º. Conhecer os nomes de alguns cronistas.
3º Encontro
Atividade inspiradora: O enlace de ideias
94
Objetivos: Revisar o gênero discursivo crônica. Apresentar a estrutura básica do texto
narrativo aos alunos através de atividade lúdica. De forma lúdica, analisar a construção da
coerência em textos.
Conteúdo: Gênero Discursivo Crônica; Conectores Interfrásticos / Marcas linguísticas
de responsabilidade e não responsabilidade enunciativa.
Recursos Didáticos: Lápis, borracha, material xerografado.
Procedimentos:
1º. Participar de uma brincadeira de produção de texto, a partir de respostas
aparentemente coerentes aos seus comandos.
2º. Ler com os alunos a parte A e pedir-lhe para responder a cada item lido, não
possibilitando tempo para discussões ou troca de opiniões, pois este momento requer
atividade individual e objetiva.
PARTE A:
1) Diga um nome próprio (de preferência que não seja da sala de aula);
2) Diga o nome de um lugar (bairro, cidade ou país);
3) Qual é o número de sua preferência?
4) Qual é a sua cor preferida?
5) O que para você é um defeito?
6) Indique um intervalo de tempo (horas, dias, meses, anos, décadas, séculos, etc);
7) Indique uma quantia em dinheiro;
8) Qual é a música ou banda de sua preferência?
9) Diga o nome de um local comum (em casa, na escola, no caminho, etc.);
10) Qual é a sua comida preferida?
3º. Agora, o aluno deverá relacionar cada resposta dada na atividade anterior aos itens
abaixo. Relacionar os itens segundo a sua numeração.
PARTE B:
1) O nome da sua noiva/seu noivo;
2) O lugar onde se conheceram;
3) O número do seu sapato;
4) A cor dos olhos dele/dela;
5) É o seu único defeito;
6) Tempo de duração do namoro e noivado;
7) Dinheiro disponível para o casamento e a lua de mel;
8) Música ou banda que tocou durante a cerimônia do casamento;
95
9) Local da lua de mel;
10) Único cardápio da lua de mel.
4º. Ler com os alunos a parte B e relacionar as respostas simultaneamente.
5º. Observar que a atividade agora será lúdica, com respostas desconexas.
6º. Preservar as respostas originais e criar uma sequência lógica e coerente com as
informações inventadas.
7º. Retomar a lista de conectores interfrásticos estudados em outras aulas e empregá-
los adequadamente.
8º. Conversar com os colegas e o professor para ampliar a lista de conectores
interfrásticos e variar o emprego das diferentes palavras.
9º. Com as novas informações sobre o personagem, solicitar a produção de um texto
construindo detalhadamente, a história desse “enlace matrimonial”, o que levará os alunos a
recorrer a estratégias de raciocínio lógico e à criatividade para solucionar os problemas com a
coerência textual.
MÓDULO II
4º Encontro
Objetivos: Ler e interpretar a crônica “Carta ao Prefeito”. Focalizar o funcionamento
das marcas de (não) assunção da responsabilidade enunciativa. Motivar os alunos à produção
de um texto.
Conteúdos: Marcas de (não) assunção da responsabilidade enunciativa
Recursos Didáticos: Quadro, marcador de quadro branco, material xerografado.
Procedimentos:
1º. Entregar material xerografado da crônica “Carta ao Prefeito” de Rubem Braga para
que os alunos realizem uma leitura silenciosa;
2º. Realizar uma leitura em voz alta discutindo as ideias principais do texto;
3º. Durante a leitura fazer um levantamento dos problemas apontados no texto;
4º Focalizar o funcionamento das marcas de (não) assunção da responsabilidade
enunciativa, presentes na crônica (marcas ortográficas) e discutir sobre seus efeitos de sentido
no texto como, por exemplo:
- Observe o trecho a seguir retirado da crônica O telefone:
Devo dizer que perdi o amigo, mas salvei o Respeito ao Regulamento; “dura lex sed
lex”; eu sou assim. Sei também (artigo 4) que se minha casa pegar fogo terei de vos pagar o
valor do aparelho – mesmo se esse incêndio (artigo 9) for motivado por algum circuito
96
organizado pelo empregado da Companhia com o material da Companhia. Sei finalmente
(Artigo 11) que se, exausto de telefonar do botequim da esquina a essa distinta Companhia
para dizer que meu aparelho não funciona, eu vos chamar e vos disser, com lealdade e com as
únicas expressões adequadas, o meu pensamento, ficarei eternamente sem telefone, pois “o
uso de linguagem obscena constituirá motivo suficiente para a Companhia desligar e retirar o
aparelho”.
a) Em duas passagens do trecho, o locutor do texto usa o recurso das aspas.
Considerando esses usos, diga se a função do referido recurso é a mesma nos dois casos?
Justifique sua resposta.
b) Qual o objetivo do locutor do texto ao usar as palavras do regulamento da
companhia telefônica?
c) No fragmento, o locutor usa, ainda, o travessão. Qual a função do uso do travessão
nesse fragmento? Quem é o responsável pelo que foi dito na passagem marcada pelo
travessão?
5º. Revisar os principais problemas apontados no texto fazendo os seguintes
questionamentos:
- O que levou o cronista a fazer o texto? Que assunto motivou sua criação?
- Você acha que o cronista está sendo irônico? Por quê?
- Você acha que os problemas apontados na crônica foram resolvidos? Por quê?
6º. Responder atividade de interpretação do texto “Carta ao Prefeito”.
5º. Encontro
Atividade inspiradora: Jogo “Consequências”.
Objetivos: Revisar o gênero discursivo crônica; Revisar a estrutura básica do texto
narrativo através de atividade lúdica.
Conteúdo: Gênero Discursivo Crônica.
Recursos Didáticos: Lápis, borracha e folhas de papel avulsas.
Procedimentos:
1º. Organizar os alunos em círculo, tendo à mão lápis e papel.
2º. Apresentar aos alunos as regras do jogo, que são:
1. os papeis irão circular pela classe até que seja dada uma volta completa;
2. ao passar o papel ao companheiro, o aluno deve dobrá-lo de modo que oculte o que
escreveu;
3. ninguém pode olhar o que está escrito no papel que cada um recebeu; e
4. cada um escreverá somente o que for pedido pelo professor.
97
O professor, a cada vez que o papel mudar de mãos, solicitará que os alunos escrevam
uma nova parte da narrativa que estará sendo composta coletivamente. Para tal fim, seguimos
o roteiro a seguir:
• Primeiro comando: escreva o nome de uma mulher famosa;
• Segundo comando: escreva o nome de um homem famoso;
• Terceiro comando: escreva “se encontraram” e complete com um local;
• Quarto comando: escreva o tempo no qual o encontro se deu;
• Quinto comando: escreva “ela disse” e complete com a fala dela;
• Sexto comando: escreva “ele respondeu” e complete com a fala dele;
• Último comando: escreva “e a consequência deste breve encontro foi que...” e
complete a frase.
Finalmente, o professor deve misturar os papeis e solicitar aos participantes que leiam
todas as histórias que foram criadas, destacando as marcas do discurso de outro a exemplo dos
verbos de atribuição de fala e do discurso direto.
6º Encontro
Objetivos: Produzir um texto a partir dos conteúdos estudados.
Conteúdo: Gênero discursivo crônica.
Recursos Didáticos: lápis, borracha, material xerografado, folhas de papel avulsas.
Procedimentos:
1º. Pondo em prática os conteúdos estudados, o aluno deverá escrever uma crônica
narrando um acontecimento simples do cotidiano, observando as características estudadas e
fazendo uso dos recursos linguísticos adequados à situação comunicativa.
2º. Corrigir e revisar as crônicas fazendo os ajustes sugeridos por seu professor e
outros que julgar convenientes.
3º. Produzir a versão final das crônicas.
4º. Apresentar os textos produzidos através de um mural em sala de aula.
98
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta investigação teve como objetivo estudar o fenômeno da responsabilidade
enunciativa no gênero discursivo crônica. A partir da análise dos dados, apresentamos os
resultados de nossa pesquisa. Para tanto, retomamos as questões orientadoras da investigação,
conforme transcrevemos a seguir:
• Que vozes estão presentes no gênero discursivo crônica e quais seus efeitos de
sentido?
• Que marcas linguísticas nos levam a identificar essas vozes?
• Como o estudo do gênero discursivo crônica atrelado ao estudo do fenômeno da
responsabilidade enunciativa impactam na formação sócio-cultural-textual-discursiva dos
discentes?
Os resultados da pesquisa nos permitiram concluir que:
a) O gênero discursivo crônica apresenta uma heterogeneidade de PDV, marcados no
nível linguístico por diferentes tipos de representação da fala, modalizadores, elementos
gráficos e ortográficos, verbos de atribuição da fala, índices de pessoas, conectores, marcas de
asserção e marcadores do discurso reportado, entre outros;
b) As marcas linguísticas que desempenham um papel particularmente relevante na
sinalização da orientação argumentativa do enunciador são as marcas de asserção, como
também aquelas usadas para marcar o discurso de outra fonte enunciativa, que podem ser
notadas através de marcadores de discurso reportado, elementos gráficos e ortográficos,
verbos de atribuição de fala, diferentes tipos de representação da fala (discurso direto,
indireto) e índices de pessoas. Assim, destacamos como PDV frequentes encontrados na
primeira crônica analisada, o PDV do locutor, que pode ser percebido nas marcas de asserção,
referidas a primeira pessoa, índice de pessoas, bem como, através do uso de modalizadores. Já
na segunda crônica, percebemos não só o PDV do locutor, mas também, outras fontes
enunciativas que podem ser notadas através de marcadores de discurso reportado e elementos
gráficos e ortográficos. Nas terceira e quarta crônicas, temos também, além do PDV do
locutor, outras fontes enunciativas por meio do uso de verbos de atribuição de fala, diferentes
tipos de representação da fala (discurso direto, indireto), marcas de asserção, referidas a
terceira pessoa e índices de pessoas.
c) Como contribuições, destacamos que o estudo do gênero discursivo crônica atrelado
ao estudo do fenômeno da responsabilidade enunciativa impacta diretamente na formação
sócio-cultural-textual-discursiva dos discentes uma vez que: 1) do ponto de vista socio-
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cultural, o aluno poderá se tornar mais consciente de seu papel na sociedade, ao perceber que
vozes falam em um texto e quais os efeitos de sentido provocados por isso; 2) do ponto de
vista textual-discursivo, o aluno poderá se tornar um leitor e um produtor de texto mais
eficiente, mais autônomo e mais crítico, consciente dos efeitos que as marcas linguísticas
podem promover na construção de sentido do gênero em foco.
Os resultados decorrentes de nosso estudo revelam como o locutor, a partir de várias
instâncias enunciativas, constrói a argumentação no gênero crônica, o que nos permite
compreender como se configura a (não) assunção da responsabilidade enunciativa nesse
gênero discursivo.
Pelo exposto, corroboramos com o que diz Gomes (2014, p. 147) ao afirmar que a
(não) assunção da responsabilidade enunciativa configura-se como “mecanismo
argumentativo fortemente marcado pelo produtor do texto com vistas a seus propósitos
comunicativos” e que “o texto se constrói nesse jogo de assunção e/ou não assunção dos
enunciados de acordo com a orientação argumentativa e com os objetivos do produtor do
texto” (GOMES, 2014, p. 147).
Nesse sentido, entendemos que esta dissertação cumpriu os objetivos a que se propôs:
identificar, descrever, analisar e interpretar que vozes estão presentes no gênero discursivo
crônica e quais seus efeitos de sentido, bem como que marcas textuais nos levam a identificar
essas vozes. Acrescente-se a isso, a elaboração da sequência didática para o estudo da
responsabilidade enunciativa no gênero em questão.
Sobre a contribuição do Programa de Mestrado Profissional em Letras
PROFLETRAS, podemos destacar que é dada uma grande oportunidade aos professores da
rede pública, do ensino fundamental no ensino de língua portuguesa, ao fornecer ferramentas
teórico-metodológicas para uma inovação na sala de aula e, consequentemente, preparando-os
para os novos desafios educacionais do Brasil contemporâneo.
Por conseguinte, como contribuição para o ensino de língua portuguesa, entendemos
que ao aluno, será possibilitado um olhar diferente sobre a língua materna e os elementos
gramaticais que a compõe.
Do contato com o gênero crônica, o aluno poderá discutir sobre diferentes temas, já
que o gênero tem por base fatos do nosso cotidiano. Ao proporcionar momentos de discussão,
o discente vai ter a oportunidade de apresentar seu ponto de vista, desenvolvendo, assim, suas
habilidades linguístico-cognitivas, tornando-se mais crítico e sabendo posicionar-se diante dos
questionamentos, bem como, estando mais preparado para produzir textos significativos.
100
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ANEXO A - CRÔNICA 1: Carta ao Prefeito - Rubem Braga
CRÔNICA 1:
Carta ao Prefeito
Rubem Braga
Senhor Prefeito do Distrito Federal:
Eu sou um desses estranhos animais que têm por habitat o Rio de Janeiro; ouvi-me,
pois, com o devido respeito.
Sou um monstro de resistência e um técnico em sobrevivência – pois o carioca é, antes
de tudo, um forte. Se às vezes saio do Rio por algum tempo para descansar de seus perigos e
desconfortos (certa vez inventei até ser correspondente de guerra, para ter um pouco de paz) a
verdade é que sempre volto. Acostumei-me, assim, a viver perigosamente. Não sou covarde
como esses equilibristas estrangeiros que passeiam sobre fios entre os edifícios. Vejo-os lá em
cima, longe, dos ônibus e lotações, atravessando a rua pelos ares e murmuro: eu quero ver é
no chão.
Também não sou assustado como esse senhor deputado Tenório Cavalcanti, que mora
em Caxias e vive armado; moro bem no paralelo 38, entre Ipanema e Copacabana, e às vezes,
nas caladas da noite, percorro desarmado várias boites desta zona e permaneço horas dentro
da penumbra entre cadeiras que esvoaçam e garrafas que se partem docemente na cabeça dos
fiéis em torno. E estou vivo.
Ainda hoje tenho coragem bastante para tomar um ônibus ou mesmo um lotação e ir
dentro dele até o centro da cidade. Vivo assim, dia a dia, noite a noite, isto que os
historiadores do futuro, estupefatos, chamarão a Batalha do Rio de Janeiro. Já fiz mesmo
várias viagens na Central. Eu sou um bravo, senhor.
Sei também que não me resta nenhum direito terreno; respiro o ar dos escapamentos
abertos e me banho até no Leblon, considerado um dos mais lindos esgotos do mundo; aspiro
o perfume da curva do Mourisco e a brisa da Lagoa e – sobrevivo. E compreendo que,
embora vós administreis à maneira suíça, nós continuaremos a viver à maneira carioca.
105
Eu é que não me queixo; já me aconteceu escapar de morrer dentro de um táxi em uma
tarde de inundação e ter o consolo de, chegando em casa, encontrar a torneira perfeitamente
seca.
Prometestes, senhor, acabar em 30 dias com as inundações no Rio de Janeiro; todo o
povo é testemunha desta promessa e de seu cumprimento: é que atacaste, senhor, o mal pela
raiz, que são as chuvas. Parou de chover, medida excelente e digna de encômios.
Mas não é para dizer isso que vos escrevo. É para agradecer a providência que vossa
administração tomou nestas últimas quatro noites, instalando uma esplêndida lua cheia em
Copacabana. Não sei se a fizestes adquirir na Suíça para nosso uso permanente, ou se é
nacional. Talvez só possamos obter uma lua cheia definitiva reformando a Constituição e
libertando Vargas.
Mas a verdade é que o luar sobre as ondas me consolou o peito. E eu andava muito
precisado. Obrigado, Senhor.
Rio, junho de 1951
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ANEXO B - CRÔNICA 2: O telefone - Rubem Braga
CRÔNICA 2:
O telefone
Rubem Braga
Honrado Senhor Diretor da Companhia Telefônica:
Quem vos escreve é um desses desagradáveis sujeitos chamados assinantes; e do tipo
mais baixo: dos que atingiram essa qualidade depois de uma longa espera na fila.
Não venho, senhor, reclamar nenhum direito. Li o vosso Regulamento e sei que não
tenho direito a coisa alguma, a não ser a pagar a conta. Esse Regulamento, impresso na página
1 de vossa interessante Lista (que é meu livro de cabeceira), é mesmo uma leitura que
recomendo a todas as almas cristãs que tenham, entretanto, alguma propensão para o orgulho
ou soberba. Ele nos ensina a ser humildes; ele nos mostra quanto nós, assinantes, somos
desprezíveis e fracos.
Aconteceu por exemplo, senhor, que outro dia um velho amigo deu-me a honra e o
extraordinário prazer de me fazer uma visita. Tomamos uma modesta cerveja e falamos coisas
antigas – mulheres que brilharam outrora, madrugadas dantanho, flores doutras primaveras. Ia
a conversa quente e cordial ainda que algo melancólica, tal soem ser as parolas vadias de
cupinchas velhos – quando o telefone tocou. Atendi. Era alguém que queria falar ao meu
amigo. Um assinante mais leviano teria chamado o amigo para falar. Sou, entretanto, um
severo respeitador do Regulamento; em vista do que, comuniquei ao meu amigo que alguém
queria lhe falar, o que infelizmente eu não podia permitir; estava, entretanto, disposto a
tomar e transmitir qualquer recado. Irritou-se o amigo, mas fiquei inflexível, mostrando-lhe o
artigo 2 do Regulamento, segundo o qual o aparelho instalado em minha casa só pode ser
usado “pelo assinante, pessoas de sua família, seus representantes ou empregados”.
Devo dizer que perdi o amigo, mas salvei o Respeito ao Regulamento; “dura lex sed
lex”; eu sou assim. Sei também (artigo 4) que se minha casa pegar fogo terei de vos pagar o
valor do aparelho – mesmo se esse incêndio (artigo 9) for motivado por algum circuito
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organizado pelo empregado da Companhia com o material da Companhia. Sei finalmente
(artigo 11) que se, exausto de telefonar do botequim da esquina a essa distinta Companhia.
dizer que meu aparelho não funciona, eu vos chamar e vos disser, com lealdade e com as
únicas expressões adequadas, o meu pensamento, ficarei eternamente sem telefone, pois “o
uso de linguagem obscena constituirá motivo suficiente para a Companhia desligar e retirar o
aparelho”.
Enfim, senhor, eu sei tudo; que não tenho direito a nada, que não valho nada, não sou
nada. Há dois dias meu telefone não fala, nem ouve, nem toca, nem tuge, nem muge. Isso me
trouxe, é certo, um certo sossego ao lar. Porém amo, senhor, a voz humana; sou uma dessas
criaturas tristes e sonhadoras que passa a vida esperando que de repente a Rita Hayworth me
telefone para dizer que o Ali Khan morreu e ela está ansiosa para gastar com o velho Braga o
dinheiro de sua herança, pois me acha muito simpático e insinuante, e confessa que em Paris
muitas vezes se escondeu em uma loja defronte do meu hotel só para me ver sair.
Confesso que não acho tal coisa provável: o Ali Khan ainda é moço, e Rita não tem o
meu número. Mas é sempre doloroso pensar que se tal coisa acontecesse eu jamais saberia –
porque meu aparelho não funciona. Pensai nisso, senhor: pensai em todo potencial tremendo
de perspectivas azuis que morre diante de um telefone que dá sempre sinal de ocupado –
cuém, cuém, cuém – quando na verdade está quedo e mudo na minha modesta sala de jantar.
Falar nisso, vou comer; são horas. Vou comer contemplando tristemente o aparelho
silencioso, essa esfinge de matéria plástica; é na verdade algo que supera o rádio e a televisão,
pois transmite não sons nem imagens, mas sonhos errantes no ar.
Mas batem à porta. Levanto o escuro garfo do magro bife e abro. Céus, é um
empregado da Companhia! Estremeço de emoção. Mas ele me estende um papel: é apenas um
cobrador. Volto ao bife, curvo a cabeça, mastigo devagar, como se estivesse mastigando meus
pensamentos, a longa tristeza de minha humilde vida, as decepções e remorsos. O telefone
continuará mudo; não importa: ao menos é certo, senhor, que não vos esquecestes de mim.
Rio, março de 1951
108
ANEXO C - CRÔNICA 3: Glória - Carlos Drummond de Andrade
CRÔNICA 3:
Glória
Carlos Drummond de Andrade
Meu filho é artista de televisão, contando o senhor não acredita. Eu mesmo às vezes
penso que é ilusão. Com oitos anos, imagine. Estava brincando na pracinha lá da vila quando
passaram uns homens e olharam muito pra ele. Meu filho, não é pra me gabar, mas é uma
lindeza de Menino – Jesus, aí um dos homens falou assim pra ele: Quer fazer um teste, ó
garoto? O que é teste? ele respondeu. Aí o homem explicou, não sei bem qual é a explicação,
levaram ele pra um edifício na cidade, tiraram um bocado de retratos dele, depois falaram
assim: Você foi aprovado. Aí ele se espantou: Mas eu não fiz exame, que troço é esse? Não é
nada de exame não, eles responderam, você foi aprovado pra fazer um comercial, tá bem? Ele
neca de saber o que é um comercial, nem eu, mas agora eu fiquei sabendo, é uma coisa à-toa,
a pessoa nem precisa falar, fica só fazendo uma coisa, comendo doce de leite, devagarinho,
com uma carinha alegre, quando acaba passa a língua nos beiços, assim, olha, e pisca o olho,
ele é tão engraçado, antes de acabar de comer ele já estava fazendo isso, um negócio. Aí
mandaram ele de volta pra casa, não, antes falaram assim pra ele: manda seu pai aqui na
agência receber o cachet. Ele ficou espantado, falou assim: Que troço é esse? Eles
responderam: tutu. Aí ele baixou a cabeça e respondeu baixinho: Eu não tenho pai. E mãe
você tem? Ele respondeu que mãe ele tinha, e levantou a cabeça. Então manda ela aqui, mas o
garoto é esperto, deu uma de sabido: Eu mesmo não posso receber? se fui eu que fiz tudo
sozinho. Não, você não pode,tem que ser sua mãe, diz a ela que venha das 2 às 4, trazendo
carteira de identidade. Bonito, e eu que nunca tive carteira, já pelejei pra tirar uma, dei duro,
pedi pro compadre Julião me quebrar esse galho, compadre explicou que carece antes tirar
certidão de nascimento, essa é muito boa, então a gente tem que provar que nasceu, eu não
estou viva com a graça de Deus e forte e trabalhando? O pior é que nem sei se fui registrada lá
em Pilão dos Palmares, chão do meu nascimento, não tenho parentes neste mundo, só tenho
no outro, e nem a poder de oração consegui até hoje tirar o papel da tal certidão, afinal eu falei
assim pro compadre: Deixa pra lá, sem carteira vivi até hoje, sem ela vou viver até Nosso
Senhor me fechar os olhos. Vou lá na agência assim mesmo. Larguei meu serviço. Fui. Tinha
109
um mundão de gente, eu não sabia quem é que podia me atender, andei rolando de uma sala
pra outra, até que afinal um cara de bigodão, atrás da parede de vidro com um óculo no meio,
falou assim: É comigo, trouxe a carteira? Eu expliquei que carteira eu não tinha, mas sou
lavadeira muito acreditada na Zona Norte, muitas madamas da Rua Conde de Bonfim podem
atestar que eu sou eu mesma e mãe de meu filho, há 25 anos que trabalho de lavar roupa. Ele
abanou a cabeça, falou assim: Nada feito, não tenho ordem de pagar sem identidade. Mas o
meu filho trabalhou, moço, eles ficaram satisfeitos com o trabalho dele, tanto que prometeram
pagar um tal de cachet, como é que pra pagar a ele é preciso a carteira de outra pessoa, o
senhor acha isso direito? Ele não respondeu nada, tornou a abanar a cabeça e eu fiquei
matutando: O que tu vai fazer pra sair dessa, Clementina da Anunciação? E comecei a chorar.
Aí eles me viram chorando, ficaram com pena de mim, um barbudo que passava disse assim
pro bigodão: Paga a ela, Reginaldo. O bigodão resmungou: Tá legal, e me deu um papel
passado em três folhas iguais, pra eu assinar nelas todas. Aí eu disse: O senhor me desculpe,
mas eu não sei escrever, a cabeça não dá. Então nada feito outra vez, o bigodão respondeu.
Aí, eu não tinha mais vontade de chorar e disse pra ele: Escuta aqui, moço, quanto é que meu
filho tem pra receber? Ele respondeu: 50 cruzeiros. Ah, é isso? Respondi. Pode ficar pra
agência. Perdi meu dia de trabalho, gastei trem, gastei ônibus, andei a pé neste solão, não vou
me chatear por causa dessa micharia. Um cara que estava escutando falou assim: A senhora
vai jogar fora esse 50 mangos? E daí? respondi pra ele. Meu filho vale muito mais,a gente não
fica mais pobre por causa disso, ele agora é artista, amanhã se Deus e a Virgem Maria ajudar,
vai ganhar milhões. Nem precisa ganhar, só o orgulho que eu sinto por ele ter passado no
teste! Saí de lá com esse orgulho bonito no coração, meu filho é artista, meu filho é artista, ia
repetindo sozinha, na rua me olhavam admirados mas eu nem dei bola, fui pra casa e ligo a
televisão o dia inteiro, trabalho vendo ela, até chegar a hora de meu filho aparecer no
comercial comendo doce de coco. Pobre tem televisão, na vila todos têm, vai ser um estouro
quando meu boneco aparecer e piscar o olho, então isso não vale mais que 50, que 500 ou 5
mil cruzeiros, ou todos os cruzeiros do mundo?
E seu rosto enrugado cintilava de glória.
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ANEXO D - CRÔNICA 4: Em código - Fernando Sabino
CRÕNICA 4:
Em código
Fernando Sabino
Fui chamado ao telefone. Era o chefe de escritório de meu irmão:
– Recebi de Belo Horizonte, um recado dele para o senhor. É uma mensagem meio
esquisita, com vários itens, convém tomar nota. O senhor tem um lápis aí?
– Tenho. Pode começar.
– Então lá vai. Primeiro: minha mãe precisa de uma nora.
– Precisa de quê?
– De uma nora.
– Que história é essa?
– Eu estou dizendo ao senhor que é um recado meio esquisito. Posso continuar?
– Continue.
– Segundo: pobre vive de teimoso. Terceiro: não chora, morena, que eu volto.
– Isso é alguma brincadeira.
– Não é não. Estou repetindo o que ele escreveu. Tem mais. Quarto:sou amarelo, mas
não opilado. Tomou nota?
– Mas não opilado – repeti, tomando nota. – Que diabo ele pretende com isso?
– Não sei não senhor. Mandou transmitir o recado, estou transmitindo.
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– Mas você há de concordar comigo que é um recado meio esquisito.
– Foi o que eu preveni ao senhor. E tem mais. Quinto: não sou colgate, mas ando na
boca de muita gente. Sexto: poeira é a minha penicilina. Sétimo: carona, só de saia. Oitavo…
– Chega! – protestei, estupefato. – Não vou ficar aqui tomando nota disso, feito idiota.
– Deve ser carta em código, ou coisa parecida – e ele vacilou: Estou dizendo ao senhor
que também não entendi, mas enfim… Posso continuar?
– Continua. Falta muito?
– Não, está acabando: são doze. Oitavo: vou mas volto. Nono: chega à janela, morena.
Décimo: quem fala de mim tem mágoa. Décimo primeiro: não sou pipoca mas também dou
meus pulinhos.
– Não tem dúvida, ficou maluco.
– Maluco não digo, mas como o senhor mesmo disse, a gente até fica com ar meio
idiota… Está acabando, só falta um. Décimo segundo: Deus, eu e o Rocha.
– Que Rocha?
– Não sei. É capaz de ser a assinatura.
– Meu irmão não se chama Rocha, essa é boa!
– É, mas que foi ele que mandou, isso foi.
Desliguei, atônito, fui até refrescar o rosto com água, para poder pensar melhor. Só
então me lembrei. Haviam-me encomendado uma crônica sobre essas frases que os motoristas
costumam pintar, como lema, à frente dos caminhões. Meu irmão, que é engenheiro e viaja
sempre pelo interior fiscalizando obras, prometera ajudar-me, recolhendo em suas andanças
farto e variado material. E ele viajou, o tempo passou, acabei esquecendo complemente do
trato, na suposição de que o mesmo lhe acontecera.
Agora, o material ali estava. Era só fazer a crônica. Deus, eu e o Rocha! Tudo
explicado! Rocha era o motorista, Deus era Deus mesmo, e eu, o caminhão.