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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS EM REDE NACIONAL - PROFLETRAS CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ - CERES DEPARTAMENTO DE LETRAS DO CERES DLC JANE MEDEIROS PROPOSTA DIDÁTICA PARA O ENSINO DA RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO CRÔNICA CURRAIS NOVOS/RN 2016

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS EM REDE NACIONAL - PROFLETRAS

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ - CERES

DEPARTAMENTO DE LETRAS DO CERES – DLC

JANE MEDEIROS

PROPOSTA DIDÁTICA PARA O ENSINO DA RESPONSABILIDADE

ENUNCIATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO CRÔNICA

CURRAIS NOVOS/RN

2016

JANE MEDEIROS

PROPOSTA DIDÁTICA PARA O ENSINO DA RESPONSABILIDADE

ENUNCIATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO CRÔNICA

Dissertação apresentada ao Mestrado Profissional

em Letras em Rede Nacional – PROFLETRAS –

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

Campus de Currais Novos, como requisito para a

obtenção do título de Mestre em Letras.

Área de concentração: Linguagens e letramentos.

Linha de Pesquisa – Teorias da linguagem e

ensino.

Orientador: Prof. Dr. Alexandro Teixeira Gomes.

CURRAIS NOVOS/RN

2016

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte.

UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ensino Superior do Seridó - CERES Currais Novos

Medeiros, Jane.

Proposta didática para o ensino da responsabilidade enunciativa

no gênero discursivo crônica / Jane Medeiros. - 2016. 109 f.: il. color.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, Centro de Ensino Superior do Seridó, Programa de Pós -

Graduação em Letras. Currais Novos, RN, 2016. Orientador: Prof. Dr. Alexandro Teixeira Gomes.

1. Letras - Dissertação. 2. Análise Textual dos Discursos -

Dissertação. 3. Responsabilidade Enunciativa - Dissertação. 4.

Gênero Crônica - Dissertação. 5. Sequência Didática - Dissertação. 6.

Ensino - Dissertação. I. Gomes, Alexandro Teixeira. II. Título.

RN/UF/BSCN CDU 81'42:37.02

JANE MEDEIROS

PROPOSTA DIDÁTICA PARA O ENSINO DA RESPONSABILIDADE

ENUNCIATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO CRÔNICA

Dissertação apresentada ao Mestrado Profissional

em Letras em Rede Nacional – PROFLETRAS –

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

Campus de Currais Novos, como requisito para a

obtenção do título de Mestre em Letras.

Data de aprovação: Currais Novos – RN, 22 de dezembro de 2016.

BANCA EXAMINADORA:

___________________________________________

Prof. Dr. Alexandro Teixeira Gomes

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Presidente

___________________________________________

Prof. Dr. Lucélio Dantas de Aquino

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Examinador Interno

____________________________________________

Prof. Dr. Gilton Sampaio de Souza

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

Examinador Externo.

Dedico esta dissertação a minha mãe, Maria Alaíde

da Silveira Medeiros.

(In memoriam)

AGRADECIMENTOS

A Deus, minha Fortaleza, que sempre me ampara, principalmente nos momentos mais

difíceis.

Ao meu querido pai, Emídio, que, mesmo diante da dor, entendeu minhas ausências,

nos momentos em que mais precisou de mim.

À minha amiga, Maria do Socorro, que esteve comigo durante toda a caminhada. Sem

ela, nada teria sido possível.

À minha família, por ser meu porto seguro, principalmente ao meu irmão Geordan

Medeiros.

A todos os professores pelos valiosos ensinamentos.

Aos companheiros de turma, em especial às amigas Almaíza, Aparecida, Cláudia e

Luciene.

Ao Programa de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS) pela grande

oportunidade que tem dado aos professores do ensino fundamental no ensino de Língua

Portuguesa da rede pública, fornecendo ferramentas teórico-metodológicas com vistas a uma

inovação na sala de aula e, consequentemente, preparando-os para os novos desafios

educacionais do Brasil contemporâneo.

Aos membros examinadores deste trabalho, Prof. Dr. Gilton Sampaio de Souza e Prof.

Dr. Lucélio Dantas de Aquino, pelas valiosas contribuições.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Alexandro Teixeira Gomes, que tão bem conduziu esta

pesquisa, não medindo esforços para a realização desse trabalho.

A todos que, de alguma forma, contribuíram para a concretização desse sonho, o meu:

“MUITO OBRIGADA!”.

RESUMO

A Responsabilidade Enunciativa tem sido entendida como um fenômeno que busca marcar a

assunção (ou não) pelo dizer por parte do locutor do texto, conforme destacam Adam (2011) e

Gomes (2014). O texto, então, passa a ser explorado, a partir de sua materialidade discursiva,

considerando-se o estudo de determinados níveis ou planos de análise propostos por Adam

(2011). Nesta pesquisa, detemo-nos no nível sete da enunciação de Adam (2011), o qual se

propõe a estudar o fenômeno da responsabilidade enunciativa no gênero discursivo crônica.

Assim, foi nosso objetivo verificar como se manifesta o referido fenômeno no gênero

discursivo crônica, tomando como objeto de análise quatro crônicas escolhidas da coleção

“Para gostar de Ler”, do ano de 2003. Do ponto de vista teórico, amparamo-nos em autores

como Adam (2011), Gomes (2014), Lourenço (2015), Marcuschi (2008), Koch (2014),

Fávero e Koch (2012), Koch e Travaglia (2015), Mussalim e Bentes (2010), Rodrigues,

Passeggi e Silva Neto (2010), entre outros. No enfoque metodológico, nossa investigação

apresenta dois momentos: o primeiro, refere-se à análise do fenômeno da responsabilidade

enunciativa no gênero discursivo escolhido; o segundo, à elaboração de uma sequência

didática, considerando os pressupostos básicos da responsabilidade enunciativa na construção

do propósito argumentativo do produtor do gênero crônica. Em relação ao primeiro momento,

percebemos que o produtor do texto assume (ou não) a responsabilidade enunciativa pelo

dizer com vistas à realização de seu propósito argumentativo. Nesse sentido, considerando

que há uma grande heterogeneidade de PDV no gênero discursivo em estudo, encontramos

nas 4 crônicas analisadas, 93 ocorrências de marcas de (não) responsabilidade enunciativa.

Assim, em “Carta ao Prefeito”, de Rubem Braga, primeira crônica analisada, o PDV do

locutor pode ser percebido nas marcas de asserção, referidas à primeira pessoa, índice de

pessoas, bem como, através do uso de modalizadores. Em “O telefone”, segunda crônica em

estudo, também de Rubem Braga, percebemos não só o PDV do locutor, mas também, outras

fontes enunciativas que podem ser notadas através de marcadores de discurso reportado e

elementos gráficos e ortográficos. Nas terceira e quarta crônicas, “Glória”, de Carlos

Drummond de Andrade, e “Em código”, de Fernando Sabino, respectivamente, temos, além

do PDV do locutor, outras fontes enunciativas por meio do uso de verbos de atribuição de

fala, de diferentes tipos de representação da fala (discurso direto, indireto), de marcas de

asserção referidas à terceira pessoa e de índices de pessoas. Em relação ao segundo momento,

esperamos que a sequência apresentada contribua para o ensino da Língua Portuguesa,

proporcionando ao aluno um avanço no desenvolvimento de suas habilidades específicas,

melhorando sua criticidade e seu posicionamento frente ao texto.

Palavras-chave: Análise Textual dos Discursos. Responsabilidade Enunciativa. Gênero

Crônica. Sequência Didática. Ensino.

ABSTRACT

The enunciative responsibility has been understood as a phenomenon that seek to spot the

assumption or not by saying on the part of the speaker of the text according to point out Adam

(2011) and Gomes (2014). The text, so, is being explored from now on, based on its

discursive materiality, considering certain levels or plans of analysis proposed by

Adam(2011). In this research, we hold to the seven level of enunciation by Adam (2011)

which proposes to study to study the phenomenon of the Enunciative Responsibility in the

discursive genre chronicle. Therefore, it was our purpose to verify how to manifest the

referred phenomenon in the discursive genre chronicle taking as object of analysis four

chronicles chosen from the collection “Para gostar de Ler”' , of the year 2003. From the

theoretical point of view, we support us in authors like Adam (2011), Gomes (2014),

Lourenço (2015), Marcuschi (2008), Koch (2014), Fávero and Koch (2012), Koch and

Travaglia (2015), Mussalim and Bentes (2010), Rodrigues, Passeggi and Silva Neto (2010),

among others. From the methodological point of view, our research reports two moments,

being the first point referred the analysis of the phenomenon of the Enunciative

Responsibility in the discursive genre chosen; the second moment the elaboration of a didactic

sequence considering the basic assumptions of the enunciative responsibility in the

construction of the argumentative purpose of the producer of chronicle genre. In relation to

the first moment, we notice that the producer of the text take up or not the enunciative

responsibility by saying in order to accomplishment of his argumentative purpose.

Therefore, considering that there is a great heterogeneity of PDV in the discursive genre under

study, we found in the 4 chronicles analyzed, 93 occurrences of marks of (non) enunciative

responsibility. So, in Carta ao Prefeito by Rubem Braga, the first chronicle analyzed, the

speaker's PDV can be realized in assertion marks, referred to the first person, index of people,

as well as through the use of modalizers. In the second chronicle under study, O telefone, also

by Rubem Braga, we realized not only the speaker's PDV, but also other enunciative sources

that can be noticed through reported discourse markers and graphic and spelling elements.

In the third and fourth chronicles, Glória by Carlos Drummond de Andrade and Em código de

Fernando Sabino, respectively, we also have, besides the speaker's PDV, other enunciative

sources through the use of speech assignment verbs, different types of speech representation

(direct speech, indirect speech), assertion marks referring to the third person and index of

people. In relation to the second moment, we hope which the sequence represented

contributed to the Portuguese Language teaching, providing the student an advance in

developing their specific skills, improving their criticality and positioning on the text.

Keywords: Textual Analysis of Discourses. Enunciative Responsibility. Chronicle Genre.

Didactic Sequence. Teaching.

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 01 - Níveis da análise de discurso e níveis da análise textual.............................. 22

FIGURA 02 - Operações de textualidade............................................................................ 26

FIGURA 03 - Elementos constitutivos da proposição-enunciado....................................... 28

FIGURA 04 - Desdobramento Polifônico em Adam........................................................... 29

FIGURA 05 - Grandes categorias..................................................................................... 30

FIGURA 06 - A Responsabilidade enunciativa na ScaPoLine ........................................... 36

FIGURA 07 - O texto como uma unidade abstrata.............................................................. 47

FIGURA 08 - O texto como objeto concreto, material e empírico...................................... 48

FIGURA 09 - Texto, discurso e gênero como categorias descritivas.................................. 49

FIGURA 10 - O gênero como prefiguração do texto.......................................................... 51

FIGURA 11 - O gênero - formas textuais que se manifestam no artefato

linguístico..............................................................................................................................

52

LISTA DE QUADROS E GRÁFICO

QUADRO 01 - Algumas características dos gêneros textuais............................................. 46

QUADRO 02 - Classificação do PDV e das marcas de (não) responsabilidade

enunciativa; Classificação do PDV e das marcas de (não) responsabilidade

enunciativa.............................................................................................................................

70

QUADRO 03 - Informações gerais da sequência didática................................................... 89

GRÁFICO 01 - Marcas de (não) responsabilidade encontradas na análise......................... 83

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO......................................................................................................... 11

2 A LINGUÍSTICA TEXTUAL E A ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS...

13

2.1 A Linguística Textual.................................................................................................. 13

2.2 A Análise Textual dos Discursos................................................................................. 20

2.3 A Responsabilidade Enunciativa................................................................................. 27

3 A LINGUÍSTICA TEXTUAL E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA.......

39

3.1 Práticas de Linguagem e PCN: O Ensino de Língua Portuguesa................................ 42

3.2 Gênero, Texto e Discurso............................................................................................ 44

3.3 O Texto como unidade de ensino................................................................................ 59

3.4 O Gênero Discursivo Crônica...................................................................................... 60

4 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA..............................................

67

4.1 Uma pesquisa – Duas fases.......................................................................................... 67

4.2 Métodos de pesquisa.................................................................................................... 67

4.2.1 O método indutivo.................................................................................................... 67

4.3 Construção do corpus.................................................................................................. 68

4.4 Categorias de análise................................................................................................... 69

5 A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NO GÊNERO CRÔNICA.............

71

5.1 Análise da Crônica “Carta ao Prefeito” – Rubem Braga ............................................ 71

5.2 Análise da Crônica “O Telefone” – Rubem Braga...................................................... 74

5.3 Análise da Crônica “Glória” – Carlos Drummond de Andrade................................... 76

5.4 Análise da Crônica “Em Código” – Fernando Sabino ................................................ 80

6 PROPOSTA DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA O ENSINO DA

RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO

CRÔNICA........................................................................................................................

85

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................

98

REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 100

ANEXOS.....................................................................................................................

103

ANEXO A - CRÔNICA 1: “Carta ao Prefeito” - Rubem Braga........................... 104

ANEXO B - CRÔNICA 2: “O telefone” - Rubem Braga....................................... 106

ANEXO C - CRÔNICA 3: “Glória” - Carlos Drummond de Andrade................ 108

ANEXO D - CRÔNICA 4: “Em Código” - Fernando Sabino................................ 110

11

1 INTRODUÇÃO

A Análise Textual dos Discursos (doravante ATD), de acordo com Gomes (2014, p.

23) “é uma abordagem teórica, metodológica e descritiva de estudo do texto proposta por

Jean-Michel Adam no âmbito da Linguística Textual e se propõe a estudar a produção co(n)

textual de sentido fundamentada na análise de textos concretos”.

A proposta de Adam (2011), para Gomes (2014, p. 26), “busca a compreensão do

texto a partir de sua materialidade discursiva, considerando o estudo de determinados níveis

ou planos de análise”.

Assim, a partir de uma concepção interativa da linguagem, conforme Adam (2011

apud Gomes, 2014, p. 13), “a ATD pode ser utilizada para descrever qualquer gênero

discursivo, ou seja, todos os discursos são passíveis de uma análise textual em suas dimensões

semântica, enunciativa e argumentativa”.

Nesse sentido, desenvolvemos esta pesquisa, tendo como objetivo geral estudar o

fenômeno da responsabilidade enunciativa no gênero discursivo crônica. Sua escolha se

justifica por tratar-se de um gênero que poderá oferecer ferramentas necessárias para um bom

desenvolvimento da competência textual dos discentes. Acrescente-se a isso, o fato de a

crônica estar bastante presente no conteúdo didático do ensino de jovens e adultos,

modalidade da qual somos professoras e nível para o qual elaboramos a proposta de sequência

didática.

A partir de então, selecionamos quatro textos pertencentes ao referido gênero, a partir

da coleção “Para gostar de Ler”, volume 4, ano 2003, a saber: “Em código”, de Fernando

Sabino; “Glória”, de Carlos Drummond de Andrade; “Carta ao Prefeito” e “O telefone”,

ambas de Rubem Braga.

Para a abordagem teórica, amparamo-nos nas teorias de Adam (2011); Gomes (2014);

Lourenço (2015); Marcuschi (2008); Koch (2014); Fávero e Koch (2012); Koch e Travaglia

(2015); Mussalim e Bentes (2010); Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2010); entre outros.

Nesse sentido, investigamos a responsabilidade enunciativa por meio de uma escala que,

conforme explica Gomes (2014, p. 14) “compreende o fenômeno a partir de quatro gradações,

cada uma com um ponto de vista (PDV) e com marcas que podem marcar a assunção ou o

distanciamento do ponto de vista”.

Do ponto de vista metodológico, nossa investigação apresenta dois momentos: o

primeiro, refere-se à análise do fenômeno da responsabilidade enunciativa no gênero

12

discursivo escolhido, e o segundo momento, à elaboração de uma sequência didática

considerando os pressupostos básicos da responsabilidade enunciativa no gênero crônica.

No plano metodológico, pontuamos as seguintes questões de pesquisa: 1) Que vozes

estão presentes no gênero discursivo crônica e quais seus efeitos de sentido?; 2) Que marcas

textuais nos levam a identificar essas vozes?; 3) Como o estudo do gênero discursivo crônica

atrelado ao estudo do fenômeno da responsabilidade enunciativa impactam na formação

sócio-cultural-textual-discursiva dos discentes?

Para responder a essas questões, estabelecemos como objetivos específicos: 1)

Identificar, descrever, analisar e interpretar que vozes estão presentes no gênero discursivo

crônica e quais seus efeitos de sentido; 2) Identificar, descrever e analisar que marcas textuais

nos levam a identificar essas vozes; 3) Refletir sobre as contribuições do estudo do gênero

discursivo crônica atrelado ao estudo do fenômeno da responsabilidade enunciativa na

formação sócio – cultural – textual – discursiva dos discentes; 4) Elaborar uma sequência

didática com o intuito de trabalhar marcas de responsabilidade enunciativa a partir do gênero

crônica. Nossa pesquisa limita-se, assim, no âmbito do fenômeno da responsabilidade

enunciativa.

No que concerne ao plano do texto, nosso trabalho obedece à seguinte organização dos

elementos textuais: no primeiro capítulo, fizemos uma introdução para apresentar as questões

centrais do trabalho.

No segundo, expomos alguns pressupostos para o entendimento do texto como objeto

de estudo, a partir de um breve histórico da Linguística Textual, desde seu surgimento,

discorrendo sobre a proposta da Análise Textual dos Discursos, até chegarmos ao fenômeno

da Responsabilidade Enunciativa.

No terceiro capítulo, discutimos a Linguística Textual e o ensino de Língua

Portuguesa, com foco nos parâmetros curriculares nacionais, adentrando no gênero discursivo

crônica.

No quarto capítulo, exibimos o panorama metodológico da pesquisa.

No quinto capítulo, mostramos a análise e a discussão do corpus.

No sexto capítulo, apresentamos uma proposta didática com as marcas de (não)

assunção da responsabilidade enunciativa a partir do gênero crônica.

Finalmente, desenvolvemos as conclusões obtidas a partir das discussões do capítulo

6. Além disso, há os elementos pré-textuais e pós-textuais.

Apresentamos aqui, de forma geral, os pontos centrais deste trabalho. A partir de

agora, passamos a detalhar esses pontos nos capítulos seguintes.

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2 A LINGUÍSTICA TEXTUAL E A ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS

2.1 A Linguística Textual

A linguística textual constitui “um novo ramo da linguística, que começou a

desenvolver-se na década de 1960, na Europa e, de modo especial, na Alemanha”, segundo

Fávero e Koch (2012, p. 15). Sua hipótese de trabalho consiste em “tomar como objeto

particular de investigação, não mais a palavra ou a frase, mas sim o texto, por serem os textos

a forma específica de manifestação da linguagem”, explicam as autoras (Op. cit. 2012, p. 15).

Nesta perspectiva, a Linguística Textual vem despertando o interesse de vários

estudiosos da língua, como bem destaca Gomes (2014, p. 19) ao afirmar que, “os estudos do

texto vêm ganhando expressividade e apresentando cada dia mais notável interesse por parte

de pesquisadores de distintos âmbitos de estudo”.

No presente capítulo, então, traçamos um rápido percurso da linguística textual,

abrangendo seus estudos desde o princípio até os trabalhos mais recentes que, de acordo com

Conte (1977 apud FÁVERO; KOCH, 2012, p. 17), “pode ser dividido em três grandes

momentos, a saber: 1) o da análise transfrástica; 2) o das gramáticas textuais e; 3) o da

construção das teorias do texto”. Apontamos, também, os pressupostos teóricos da teoria do

texto e suas motivações, de acordo com Schmidt (1978); e por fim, alguns elementos

responsáveis pela textualidade, segundo Beaugrande e Dressler (1981) e Halliday e Hasan

(1976). Porém, antes de discorrermos sobre os momentos que marcam o histórico da

linguística textual, é relevante destacarmos o que dizem alguns pesquisadores sobre a origem

do termo.

De acordo com Fávero e Koch (2012, p. 15), “a origem do termo linguística textual

pode ser encontrada em Cosériu (1955), embora, no sentido que lhe é atualmente atribuído,

tenha sido empregado pela primeira vez por Weinrich (1966, 1967)”.

Gomes (2014, p. 18) salienta que “a Linguística de Texto toma como unidade de

análise o texto, considerado como objeto primeiro de estudo”. Para o autor, qualquer ato de

comunicação se dá através do texto e não de frases e/ou orações soltas, desconectadas de suas

reais situações de interação.

Ainda de acordo com Gomes (2014, p. 18), esse entendimento “opõe-se às teorias que

privilegiam o estudo da estrutura linguística sem considerar qualquer relação com seus

contextos de uso”.

14

Partindo para a explanação dos três grandes momentos que marcam a trajetória da

Linguística de Texto, enfatizamos, inicialmente, o correspondente ao da análise transfrástica

que, de acordo com Fávero e Koch (2012, p. 18), esse primeiro momento “limita-se à

pesquisa de enunciados ou sequências de enunciados, partindo-se, pois, destes em direção ao

texto”, definido por Isenberg (1970 apud FÁVERO; KOCH, 2012, p. 18) como “sequência

coerente de enunciados”. O principal objetivo é o de “estudar os tipos de relações que se

podem estabelecer entre os diversos enunciados que compõem uma sequência significativa,

precisamente, entre as frases e os períodos, de maneira a construir uma unidade de sentido”,

destacam as autoras (Op. cit., 2012, p. 18).

De acordo com Koch (2014, p. 7), a Linguística Textual teve inicialmente a

preocupação de “descrever os fenômenos sintático-semânticos ocorrentes entre enunciados ou

sequências de enunciados, alguns deles, inclusive, semelhantes aos que já haviam sido

estudados no nível da frase”. Sobre a “análise transfrástica”, afirma a autora, trata-se “do

momento no qual não se faz, ainda, distinção nítida entre fenômenos ligados uns à coesão,

outros à coerência do texto” (Op. cit., 2014, p. 7).

O segundo momento, para Fávero e Koch (2012, p. 19), “é assinalado pela construção

das gramáticas textuais e surgiu com a finalidade de refletir sobre fenômenos linguísticos

inexplicáveis por meio de uma gramática do enunciado”. Conforme as autoras, o que a

legitima é, pois, “a descontinuidade existente entre enunciado e texto, já que há entre ambos

uma diferença de ordem qualitativa (e não meramente quantitativa)” (Op. cit., 2012, p. 19).

Fávero e Koch (2012, p. 19), “o texto é muito mais que uma simples sequência de

enunciados”. De acordo com as autoras:

a sua compreensão e a sua produção derivam de uma competência específica

do falante – a competência textual – que se distingue da competência frasal

ou linguística em sentido estrito [como a descreve, por exemplo, Chomsky

(1965)].

Para Fávero e Koch (2012, p. 19), “todo falante de uma língua tem a capacidade de

distinguir um texto coerente de um aglomerado incoerente de enunciados, e esta competência

é, também, especificamente linguística, em sentido amplo”. Dessa forma, “qualquer falante é

capaz de parafrasear um texto, de resumi-lo, de perceber se está completo ou incompleto, de

atribuir-lhe um título ou, ainda, de produzir um texto a partir de um título dado”, concluem as

autoras (Op. cit.; 2012, p. 19).

Assim, para as autoras supracitadas,

15

[...] as tarefas básicas da gramática textual seriam: a) verificar o que faz com

que um texto seja um texto, isto é, determinar os seus princípios de

constituição, os fatores responsáveis pela sua coerência, as condições em

que se manifesta a textualidade; b) levantar critérios para a delimitação de

textos, já que a completude é uma das características essenciais do texto; c)

diferenciar as várias espécies de textos (FÁVERO e KOCH, 2012, p. 19).

Koch (2014, p. 7) destaca que “um texto não é simplesmente uma sequência de frases

isoladas, mas uma unidade linguística com propriedades estruturais específicas, assim, tais

gramáticas têm por objetivo apresentar os princípios de constituição do texto em dada língua”.

É importante destacar, conforme Mussalim e Bentes (2012, p. 265), que “não é

possível afirmar que houve uma ordem cronológica entre o primeiro momento (análise

transfrástica) e as propostas de elaboração de gramáticas textuais”.

Nesse momento (das gramáticas textuais), ganham relevância, nos dizeres de Gomes

(2014, p. 20), “os modelos de Van Dijk (1972) e Petofi (1973)”. Assim, no primeiro modelo,

o de Van Dijk, a gramática textual, conforme Koch (2004, p. 9 apud GOMES, 2014, p. 20),

apresenta as seguintes características:

1- insere-se no quadro teórico do gerativismo;

2- utiliza o instrumental teórico e metodológico da lógica formal;

3- procura integrar a gramática do enunciado na gramática do texto,

sustentando que não basta estender a gramática da frase e que uma gramática

no âmbito do texto apresenta como tarefa principal especificar as estruturas

profundas chamadas de macroestruturas textuais.

Já o modelo de Petöfi, de acordo com Fávero e Koch (2005, p. 15 apud GOMES,

2014, p. 20), “propõe ser possível, a partir de suas análises, a análise, a síntese e a comparação

de textos”.

Gomes (2014) destaca que “o modelo de Charolles (1978) também se insere nesse

segundo momento da Linguística de Texto”. Assim, para Charolles (1978) “é a coerência o

fator responsável para que um conjunto de frases se torne um texto”, conforme destaca Gomes

(2014, p. 20). Charolles (1978 apud GOMES, 2014, p. 20) “propõe e discute quatro

metarregras de coerência elencadas a seguir: 1 – metarregra de repetição; 2 – metarregra de

progressão; 3 – metarregra de não contradição; 4 – metarregra de relação”.

Nesse cenário, Mussalim e Bentes (2012, p. 265) afirmam:

[...] esses autores possuem alguns postulados em comum, a saber: a)

consideram que não há uma continuidade entre frase e texto porque há, entre

eles, uma diferença de ordem qualitativa e não quantitativa; b) consideram

que o texto é a unidade linguística mais elevada, a partir da qual seria

16

possível chegar, por meio de segmentação, a unidades menores a serem

classificadas. [...] e c) todo falante nativo possui um conhecimento acerca do

que seja um texto, conhecimento este que não é redutível a uma análise

frasal, já que o falante conhece não só as regras subjacentes às relações

interfrásticas (a utilização de pronomes, de tempos verbais, da estratégia de

definitivação etc.), como também sabe reconhecer quando um conjunto de

enunciados constitui um texto ou quando se constitui em apenas um conjunto

aleatório de palavras ou sentenças. Um falante nativo também é capaz de

resumir e/ou parafrasear um texto, perceber se ele está completo ou

incompleto, atribuir-lhe um título ou produzir um texto a partir de um texto

dado, estabelecer relações interfrásticas etc.

No que se refere às causas que levaram os linguistas a desenvolver essas gramáticas

textuais, Fávero e Koch (2012, p. 6) concluem que podem ser citadas:

as lacunas das gramáticas de frase no tratamento de fenômenos tais como a

correferência, a pronominalização, a seleção dos artigos (definido ou

indefinido), a ordem das palavras no enunciado, a relação tópico –

comentário, a entoação, as relações entre sentenças não ligadas por

conjunções, a concordância dos tempos verbais e vários outros que só podem

ser devidamente explicados em termos de texto ou, então, com referência a

um contexto situacional.

Sob esse entendimento, os estudiosos perceberam que uma gramática da frase não dava

conta dos fenômenos da linguagem e foi, então, que se passou a vislumbrar uma gramática do

texto.

Koch (2014, p. 8) considera que “é somente a partir de 1980, contudo, que ganham

corpo as teorias do Texto – no plural, já que, embora fundamentadas em pressupostos básicos

comuns, chegam a diferir bastante umas das outras, conforme o enfoque predominante”.

Assim, conforme FÁVERO e KOCH (2012, p. 20), “no terceiro momento da

Linguística de Texto, no período das denominadas teorias do texto citadas por Conte, adquire

particular importância o tratamento dos textos no seu contexto pragmático”. Nesse sentido,

Fávero e Koch (2012, p. 20) reforçam que “o âmbito de investigação se estende do texto ao

contexto, entendido, em geral, como conjunto de condições – externas ao texto – da produção,

da recepção e da interpretação do texto”.

Para Fávero e Koch (2012, p. 21), “a incorporação da pragmática1 aos estudos

linguísticos levou a posicionamentos diversos por parte dos vários autores”. Assim sendo,

1 Termo tradicionalmente usado para classificar uma das três principais divisões da semiótica (juntamente com a

semântica e a sintática). Na linguística moderna, ela passou a ser aplicada ao estudo da linguagem do ponto de

vista dos usuários, especialmente das escolhas que fazem, as restrições que encontram no uso da linguagem na

17

destacam as autoras que, para Dressler, “a pragmática constitui apenas um componente

acrescentado a posteriori a modelo preexistente de gramática textual, cabendo-lhe tão

somente dar conta da situação comunicativa na qual o texto é introduzido” (Op. cit., 2012, p.

21).

Ainda conforme as autoras supracitadas, para Schmidt (1978), a inserção da

pragmática significa “a evolução da linguística textual em direção a uma teoria pragmática do

texto, que tem como ponto de partida o ato de comunicação – com todos os seus pressupostos

psicológicos e sociológicos – inserido numa específica situação comunicativa” (SCHMIDT,

1978 apud FÁVERO E KOCH, 2012, p.21). Nesta perspectiva, podemos perceber que, com a

inserção da pragmática ao terceiro momento da linguística textual, introduz-se o contexto

como um novo elemento de averiguação dos estudos linguísticos, evidenciando-se, assim, a

relevância de se estudar o contexto de produção textual na qual o falante está inserido.

Gomes (2014, p. 21), a partir da consulta de Schmidt (1978), destaca que os principais

pressupostos da linguística textual são:

1 – o entendimento de que a língua ocorre em uma sociedade efetiva, ou

seja, a “língua-em-função” e nunca um amontoado de signos abstratos da

análise tradicional;

2 – o entendimento de que o texto é o que constitui o “sinal linguístico

primário” (GOMES, 2014, p. 21).

Nessa mesma perspectiva, Gomes (2014, p. 21) destaca como motivações da Teoria do

Texto, segundo Schmidt (1978):

1 – a orientação da linguística para a comunicação, para a interação e para a

atuação;

2 – o entendimento da importância do papel semântico exercido pelo

contexto e pela situação de comunicação e de que sua ausência pode deixar o

texto com uma sensação de incompletude.

3 – o entendimento de que diversas questões linguísticas não podem ser

resolvidas exclusivamente no âmbito da frase (GOMES, 2014, p. 21).

A partir do exposto, podemos perceber como o contexto pragmático passa a ocupar

lugar de destaque e o foco da investigação passa do texto ao contexto; este, entendido como

“a reconstrução de uma série de traços da situação comunicativa [...] que fazem com que os

enunciados sejam entendidos como atos de fala” (VAN DIJK, 1992, p. 23 apud GOMES,

interação social e os efeitos que seu uso tem sobre os outros participantes em um ato de comunicação.

(CRYSTAL, 2008, p. 379).

18

2014, p. 21); ou seja, “trata-se de um conjunto de condições externas da produção, recepção e

interpretação dos textos” (BENTES, 2006, p. 251 apud GOMES, 2014, p. 21). Assim, nos

dizeres de GOMES (2014, p. 21), “não se pode compreender o texto sem o seu contexto de

produção”.

Beaugrande e Dressler (1997, p. 11 apud GOMES, 2014, p. 22) afirmam que, “desde o

ponto de vista da linguística de texto, é lugar comum afirmar que o que faz com que um texto

seja um texto não é sua gramaticalidade, mas sua textualidade”.

Passou-se, então, a pesquisar “o que faz com que um texto seja um texto, isto é, quais

os elementos ou fatores responsáveis pela textualidade” (KOCH, 2014, p.11).

Beaugrande e Dressler (1981 apud Koch 2014, p. 11) apresentam, então, “um elenco

de tais fatores, em número de sete: coesão, coerência, informatividade, situacionalidade,

intertextualidade, intencionalidade e aceitabilidade”.

Para Koch (2014), Beaugrande e Dressler “vêm se dedicando ao estudo dos principais

critérios ou padrões de textualidade e do processamento cognitivo do texto”, bem como aos

estudos da

[...] semântica procedural, dando realce no estudo da coerência e do

processamento do texto, não só ao conhecimento declarativo (dado pelo

conteúdo proposicional dos enunciados), mas também ao conhecimento

construído através da vivência, condicionado socioculturalmente, que é

armazenado na memória, sob a forma de modelos cognitivos globais

(“frames”, esquemas, “scripts”, planos) (KOCH, 2014, p. 8).

Em outras palavras, podemos dizer que, como critérios de textualidade, devem-se

levar em consideração não somente o conteúdo proposicional dos enunciados, o que se

encontra explícito na superfície do texto, mas também o que o usuário/falante traz de

conhecimento armazenado na memória, o seu conhecimento de mundo.

Halliday e Hasan (1976 apud Cavalcante 2016, p. 30) “se baseiam num critério

semântico-discursivo quando afirmam que a coesão se verifica sempre que, para se interpretar

um elemento no texto, recorre-se à interpretação de um outro”. A coesão é, portanto, “uma

espécie de articulação entre as formas que compõem e que organizam um texto, ajudando a

estabelecer entre elas relações de sentido”, justifica a autora (Op. cit. 2016, p. 30).

Nesse cenário, Halliday e Hasan (s.d apud Marcuschi 2012, p. 28) destacam que “o

texto não consiste em sentenças; ele apenas se realiza nas sentenças, de modo que as partes do

texto não se integram como as partes de uma sentença que se unem entre si”. Conforme o

autor, a unidade do texto é de natureza distinta da sentença. É a textura que distingue “um

19

texto de um não texto, sendo que a textura é formada pela relação semântica de coesão”. Para

Halliday e Hasan (s.d apud Marcuschi 2012, p. 28), “a coesão não é uma relação sintática e

sim semântica, determinada pela interpretação e pela pressuposição. O texto passa a ser uma

unidade semântica e não gramatical”.

Assim sendo, mediante o percurso traçado sobre os momentos que marcaram a

linguística textual, Mussalim e Bentes (2012, p. 268) determinam

[...] que as mudanças ocorridas em relação às concepções de língua (não

mais vista como um sistema virtual, mas como um sistema atual, em uso

efetivo em contextos comunicativos), às concepções de texto (não mais visto

como um produto, mas como um processo), e em relação aos objetivos a

serem alcançados (a análise e explicação da unidade texto em funcionamento

em vez da análise e explicação da unidade texto formal, abstrata), fizeram

com que, se passasse a compreender a Linguística de Texto como uma

disciplina essencialmente interdisciplinar, em função das diferentes

perspectivas que abrange e dos interesses que a movem. Ou ainda, mais

atualmente, conforme Marcuschi (1998a) como uma disciplina de caráter

multidisciplinar, dinâmica, funcional e processual, considerando a língua

como não autônoma nem sob seu aspecto formal.

Isso posto, Mussalim e Bentes (2012, p. 272) propõem que se veja, então, a

“Linguística do Texto, mesmo que provisória e genericamente, como o estudo das operações

linguísticas e cognitivas reguladoras e controladoras da produção, construção, funcionamento

e recepção de textos escritos ou orais”. Nesse sentido, para essas autoras, o tema da

Linguística do Texto abrange “a coesão superficial ao nível dos constituintes linguísticos, a

coerência conceitual ao nível semântico e cognitivo e o sistema de pressuposições e

implicações a nível pragmático da produção do sentido no plano das ações e intenções” (Op.

cit. 2012, p. 272).

Segundo Koch e Travaglia (2015, p. 69), uma Teoria do Texto ou Linguística do

Texto constitui-se de:

Princípios e/ou modelos cujo objetivo não é predizer a boa ou má formação

dos textos, mas permitir representar os processos e mecanismos de

tratamento dos dados textuais que os usuários põem em ação quando buscam

interpretar uma sequência linguística, estabelecendo o seu sentido e,

portanto, calculando sua coerência.

Koch (2014, p. 11) também enfatiza que:

a Linguística Textual trata o texto como um ato de comunicação unificado

num complexo universo de ações humanas. Por um lado, deve preservar a

20

organização linear que é o tratamento estritamente linguístico abordado no

aspecto da coesão e, por outro lado, deve considerar a organização reticulada

ou tentacular, não linear portanto, dos níveis do sentido e intenções que

realizam a coerência no aspecto semântico e funções pragmáticas (Op. cit.,

2014, p. 11).

Ainda a respeito da Linguística Textual, destacamos o surgimento, em 2008, no Brasil,

da tradução da obra de Jean–Michel Adam, intitulada “A linguística textual: introdução à

análise textual dos discursos”. Propondo uma relação entre a linguística textual e a análise do

discurso que permite pensar o texto e o discurso de forma articulada, Adam (2011, p. 25)

revela que:

A linguística textual tem como ambição fornecer instrumentos de leitura das

produções discursivas humanas. A linguística não (ou não é mais) a

“ciência-piloto” das ciências do homem e da sociedade, mas tem ainda muito

a dizer sobre os textos, e seu poder hermenêutico permanece inteiro,

sobretudo se ela consentir em abrir-se às disciplinas que, da Antiguidade até

nossos dias, têm o texto como objeto (retórica e poética, estilística, filologia

e hermenêutica, teoria da tradução e genética textual, análise de dados

textuais ou análise de textos em computador, sem esquecer a história do livro

e as diversas semióticas).

Assim, confere Adam (2011) que a linguística textual visa

[...] teorizar e descrever os encadeamentos de enunciados elementares no

âmbito da unidade de grande complexidade que constitui um texto. [...] [ela]

concerne tanto à descrição e à definição das diferentes unidades como às

operações, em todos os níveis de complexidade, que são realizadas sobre os

enunciados (ADAM, 2011, p. 63 – 64).

Nossa pesquisa se insere nesse novo contexto. Desse modo, comentaremos esse novo

quadro teórico na seção seguinte.

2.2 A Análise Textual dos Discursos

A Análise Textual dos Discursos (ATD), elaborada pelo linguísta francês Jean-Michel

Adam, “constitui uma abordagem teórica e descritiva do campo da linguística do texto que se

situa na perspectiva de um posicionamento teórico e metodológico” (PASSEGGI et al, 2010,

p.151 – 152) que, “com o objetivo de pensar o texto e o discurso em novas categorias, situa

decididamente a linguística textual no quadro mais amplo da análise do discurso” (ADAM,

2008b, p. 24 ).

21

Nesse sentido, segundo Adam (2011), a ATD postula ao mesmo tempo,

uma separação e uma complementaridade das tarefas e dos objetos da

linguística textual e da análise de discurso, [definindo] a linguística textual

como um subdomínio do campo mais vasto da análise das práticas

discursivas (ADAM, 2011, p.43).

Assim, é importante ressaltar que, para Gomes (2014), conforme Adam (2008, 2010a,

2010b, 2011):

o que une a Análise Textual dos Discursos ao domínio da Linguística

Textual e ao da Análise do Discurso são as práticas discursivas

institucionalizadas, ou seja, os gêneros de discurso, cuja determinação pela

história deve ser considerada pelo viés da interdiscursividade (ADAM, 2011,

p. 60).

Nesse sentido, Adam (2012, p. 191 apud GOMES, 2014, p. 27), apresenta três

observações que devem ser consideradas previamente para o entendimento da ATD:

- Observação 1 – a linguística textual é uma das disciplinas da análise de

discurso. Definida como um campo interdisciplinar, a AD necessita de uma

teoria da língua em uso (Saussure fala de <língua discursiva>) que não pode

desconsiderar a questão do texto como unidade de interação humana. A

linguística textual é um dos subdomínios da AD;

- Observação 2 – o texto é o objeto de análise da ATD. Ele é o traço

linguístico de uma interação social, a materialização semiótica de uma ação

sócio-histórica da fala;

-Observação 3- desde que há texto, isto é, reconhecimento do fato de que

uma série de enunciados forma um todo comunicativo, há enunciados em

classe de discurso. Em outras palavras, não há texto (s) sem gênero (s) e é

neste sistema de gêneros de uma formação sócio-histórica determinada que a

textualidade encontra a discursividade e que a linguística textual encontra a

análise de discurso (ADAM, 2012, p. 191 apud GOMES, 2014, p. 27).

Pelo exposto, conforme observa Gomes (2014, p. 28):

a aproximação da Linguística Textual e da Análise do Discurso, tem como

elemento de intersecção os gêneros discursivos. Não se pensa mais o texto

de maneira descontextualizada e dissociada do discurso. O texto passa a ser

entendido de forma articulada com o discurso a partir do estabelecimento de

novas categorias, tendo como elemento de intersecção os gêneros.

Um conceito mais amplo de genericidade que “permite pensar a participação de um

texto em vários gêneros” (ADAM; HEIDMANN, 2011, p. 20 apud GOMES 2014, p. 28)

também merece destaque na ATD. Assim, para os autores:

22

À exceção de gêneros socialmente bastante constritivos, a maior parte dos

textos não se conforma a um só gênero e opera um trabalho de

transformação de um gênero a partir de vários gêneros (mais ou menos

próximos). Considerar essa heterogeneidade genérica é [...] o único meio de

aproximar a complexidade de procedimento que liga um texto ao

interdiscurso de uma formação social dada (ADAM e HEIDMANN, 2011, p.

21 apud GOMES 2014, p. 29).

Para Monte (2014, p. 8 apud GOMES, 2014, p. 29), Adam e Heidmann consideram

que “os seguintes elementos da textualidade são afetados pelo conceito de genericidade: a) as

configurações semânticas; b) o regime de interpretação dos enunciados; c) os modos de

responsabilidade enunciativa; d) objetos comunicativos; e) estilo e composição”.

Assim, aliado a tais observações, Gomes (2014) revela que é preciso considerar o

esquema apresentado em Adam (2011, p. 61), que “oferece elementos para o entendimento do

texto como uma prática discursiva analisada à luz de determinados planos ou níveis de análise

linguística”, conforme a Figura 01 a seguir:

FIGURA 01 - Níveis da análise de discurso e níveis da análise textual

Fonte: ADAM (2011, p. 61)

23

Mediante o exposto, faz-se necessário discorrermos sobre os principais níveis de

análise propostos pela Análise Textual dos Discursos (doravante, ATD) que, conforme

(PASSEGGI et. al., 2010, p. 150), são os seguintes:

a) um nível sequencial – composicional (N4 – N5), em que os enunciados

elementares (a proposição-enunciado ou proposição enunciada) se

organizam em períodos, que comporão as sequências. Estas, por sua vez,

agrupam-se conforme um plano de texto. Esse nível focaliza a estruturação

linear do texto, no qual as sequências desempenham um papel fundamental;

b) um nível enunciativo (N7), baseado na noção de responsabilidade

enunciativa, que corresponde às “vozes” do texto, à sua polifonia;

c) um nível semântico (N6), apoiado na noção de representação discursiva e

em noções conexas (anáforas, correferências, isotopias, colocações), que

remetem ao conteúdo referencial do texto;

d) um nível argumentativo (N8), embasado nos atos de discurso realizados e

na sua contribuição para a orientação argumentativa do texto.

Dentro desse contexto, os autores supracitados ainda justificam que:

[...] o nível sequencial-composicional refere-se diretamente à estruturação

linear do texto. Por outro lado, os níveis enunciativo, semântico e

argumentativo são expressos linearmente e, além disso, também podem

corresponder a uma estruturação não linear do texto. Conferem ainda que, a

explicitação da responsabilidade enunciativa e a construção de uma dada

representação discursiva apresentam diversas características não lineares

(PASSEGGI et al., 2010, p.152).

Assim sendo, para Gomes (2014, p. 30), a proposta de Adam (2011) “busca uma

análise fina e detalhada dos dados empíricos, ou seja, busca analisar apenas o que se encontra

evidente na realidade material” (ADAM, 2010b, p. 10 apud GOMES 2014, p. 30). Nesse

sentido, considera o autor que “o gênero, como uma prática discursiva materializada,

encontra-se intermediando o texto na intersecção entre texto e discurso. O gênero é, pois, uma

categoria de análise que se encontra no mesmo nível das demais propostas por Adam”

(GOMES, 2014, p. 30).

24

Nessa mesma linha de raciocínio, Lourenço (2015, p. 26) afirma que a ATD “implica

na articulação entre elementos intrínsecos e extrínsecos, que na perspectiva de Adam (2011),

manifestam-se como essenciais para a determinação do sentido global da textualidade”.

Lourenço (2015, p. 26) ressalta que na proposta de Adam (2011):

o estudo analítico de um texto deve considerar o exame de um plano textual

dado, levando em consideração os elementos de textura, estrutura

composicional, semântica, enunciação e atos de discurso que, por sua vez,

completam-se, apenas, se postos em relação a elementos do plano discursivo

ou externo ao texto, os quais [...] configuram-se na ação visada, na interação

social, na formação sociodiscursiva e no interdiscurso.

Para Lourenço (2015, p. 28), “o conjunto menor, inserido no primeiro plano de

análise, que forma a base do esquema de Adam, é reservado exclusivamente à análise textual,

i.e., importa uma abordagem tipicamente pertinente à LT”. As setas, presentes no esquema,

“mostram a relação de articulação existente entre os dois níveis: da análise de discurso e da

análise textual”, conclui Lourenço (2015, p. 28).

Sendo assim, Adam (2012, p. 192 – 193 apud GOMES 2014, p. 31) destaca as razões

teóricas, metodológicas e didáticas que o levaram a propor a Análise Textual dos Discursos:

- Das razões teóricas: existem teorias parciais pertinentes nos diferentes

níveis. Assim, a teoria dos atos de fala ou atos ilocutórios (Austin, Searle,

etc.) é uma teoria parcial do N8; a teoria dos gêneros é uma teoria do nível

N3; a teoria das sequências textuais que eu desenvolvo é uma teoria parcial

do nível N5; a linguística da enunciação (Benveniste) e a teoria do ponto de

vista (Rabatel, Nolke) são as teorias do nível N7; a teoria da argumentação

na língua (Ducrot) é uma teoria dos níveis N8 e N6. O nível N1 é

perfeitamente teorizado por pesquisadores que se posicionam no

interacionismo (Bronckart) e é o objeto principal das teorias interacionistas e

conversacionais, enquanto o N2 é o objeto clássico da análise do discurso

francesa (Pêcheux), bem conhecida no Brasil.

- Das razões metodológicas e didáticas: a complexidade do objeto de estudo

é tal, que é metodologicamente necessário dividir e distinguir o momento da

análise do momento da teorização. Cada nível é, conforme o próprio autor,

um momento de análise, uma unidade de pesquisa e de ensino (esse é um

aspecto didático que o autor considera como mais importante) ligado aos

outros, mas suficientemente distintos para formar um todo. Na verdade, um

texto pode ser descrito usando apenas um nível de análise, usando a teoria

pertinente de cada nível. Na opinião do autor, a questão é ver que nós

estamos, então, diante de um objeto parcial de alta complexidade, que requer

uma descrição de uma teoria mais vasta.

Visando coerência e estabilidade teórico-metodológica suficiente para sua proposta,

Adam (2011, p. 104) propõe “uma unidade textual elementar, isto é, uma unidade mínima de

25

sentido chamada proposição-enunciado”. Para isso, o autor discorre sobre as noções de frase e

de período e afirma que:

[...] a noção de frase dificilmente pode ser mantida como uma unidade de

análise textual. Ela é, certamente, uma unidade de segmentação (tipo)gráfica

pertinente, mas sua estrutura sintática não apresenta uma estabilidade

suficiente (ADAM 2011, p. 104).

Nesse sentido, Adam (2011, p. 106) situando a discussão no âmbito da produção e da

leitura de conjuntos textuais mais vastos e não apenas literários verifica a necessidade de

[...] uma terminologia metalinguística que permita descrever uma

complexidade de unidades mínimas das quais a gramática não permite, por si

só, dar conta. Temos necessidade, metalinguisticamente, de uma unidade

textual mínima que marque a natureza do produto de uma enunciação

(enunciado) e de acrescentar a isso a designação de uma microunidade

sintático-semântica (a que o conceito de proposição, atende, finalmente,

bastante bem). Ao escolher falar de proposição-enunciado, não definimos

uma unidade tão virtual como a proposição dos lógicos ou gramáticos, mas

uma unidade textual de base, efetivamente realizada e produzida por um ato

de enunciação, portanto, com um enunciado mínimo.

Em relação à noção de proposição-enunciado, Adam (2011, p. 108) a define como “o

produto de um ato de enunciação” e acrescenta:

Toda proposição-enunciado compreende três dimensões complementares, às

quais se acrescenta o fato de que não existe enunciado isolado: mesmo

aparecendo isolado, um enunciado elementar liga-se a um ou a vários outros

e/ou convoca um ou vários outros em resposta ou como simples continuação.

Essa condição de ligação é, em grande parte, determinada pelo que

chamaremos orientação argumentativa (ORarg) do enunciado. As três

dimensões complementares de toda proposição enunciada são: uma

dimensão enunciativa [B] que se encarrega da representação construída

verbalmente de um conteúdo referencial [A] e dá-lhe uma certa

potencialidade argumentativa [ORarg] que lhe confere uma força ou valor

ilocucionário [F] mais ou menos identificável (ADAM, 2011, p. 109).

É importante salientar também que, conforme Gomes (2014) observa, o

reconhecimento da proposição-enunciado se dá com base em três critérios, a conhecer:

1-um critério do sentido – cada ato de enunciação deverá expressar um

enunciado único com sentido completo, muito embora esse sentido completo

somente se configure em constante diálogo com os demais atos enunciativos

que formam o todo textual;

2-um critério sintático – marcado pela predicação verbal;

26

3-um critério gráfico e/ou morfossintático – marcado pela presença de um

elemento de pontuação e/ou de um conector (GOMES, 2014, p. 33).

Dessa forma, para Adam (2011 apud GOMES 2014, p. 34), “o texto é um todo

formado por uma ou mais proposição-enunciado e submetido a duas operações de

textualização, operação de segmentação e operação de ligação”. Estas aparecem destacadas no

esquema a seguir de Adam (2011), que aponta, segundo Gomes (2014, p. 34), “tanto a

construção das unidades semânticas como os processos de continuidade pelos quais se

reconhece um segmento textual”. Vejamos o esquema:

FIGURA 02 - Operações de textualidade

Fonte: ADAM (2011, p. 64)

Podemos constatar que a Figura 2 detalha o conjunto das operações de textualização.

Assim, conforme afirma Adam (2011, p. 64), “uma primeira segmentação [3] recorta as

unidades de primeira ordem, enquanto uma primeira operação de ligação [4] as reúne em

unidades de ordem superior de complexidade”.

Segundo Adam (2011, p. 64):

essas unidades (períodos e/ ou sequências) são objeto de uma nova

segmentação [6] que determina seus limites inicial e final. A ligação [7]

dessas unidades de segunda ordem resulta em parágrafos de prosa ou em

estrofes constitutivas de um plano de texto [8] e em uma unidade textual

delimitada, ela própria, por uma sexta operação de segmentação, que se pode

denominar peritextual [9], na medida em que fixa os limites ou fronteiras

materiais de um texto.

27

Feita essa introdução sobre a ATD, apresentamos a seguir algumas considerações

sobre o nível enunciativo de Adam, baseado na noção de responsabilidade enunciativa -

objeto de estudo desta pesquisa.

2.3 A Responsabilidade Enunciativa

A noção de responsabilidade enunciativa, conforme Passeggi et al. (2010, p. 153) “não

é consensual para os autores que se dedicam ao seu estudo”. Para Culioli (1971, p. 4031 apud

PASSEGGI et al., 2010, p. 153), “toda enunciação supõe responsabilidade enunciativa do

enunciado por um enunciador”.

No entanto, para Nolke, Flottum e Norén (2004 apud PASSEGGI et al., 2010, p. 153),

os proponentes da Teoria Escandinava da Polifonia Linguística – ScaPoLine, “assumir a

responsabilidade enunciativa é ser a fonte do enunciado, é estar na origem, é assumir a

paternidade”.

De acordo com Rabatel (2008a, p. 21 apud PASSEGGI et al., 2010, p. 153):

o sujeito responsável pela referenciação do objeto exprime seu PdV tanto

diretamente, por comentários explícitos, como indiretamente, pela

referenciação, ou seja, através de seleção, combinação, atualização do

material linguístico.

Dentro desse contexto, Rabatel (2009, p. 85 apud PASSEGGI et al., apud 2010, p.

153) postulou “a noção de ‘quase-RE’ para os enunciadores segundos, aos quais pode-se

imputar um PdV, mesmo que eles não tenham dito nada”.

Para Rabatel (2010, p. 153 apud PASSEGGI et al., 2010, p. 153), “esse postulado o

distancia de Ducrot (1984), uma vez que, para esse autor, assumir a responsabilidade

enunciativa é falar, é dizer”. Isso também distancia Rabatel (2009 apud PASSEGGI et al.,

2010, p. 153) da ScaPoLine, visto que, “para ele, pode-se imputar um ponto de vista PdV,

mesmo a quem não tenha falado, mesmo a quem não está na origem do enunciado”.

Para Adam (2011 apud GOMES 2014, p. 69),

a responsabilidade enunciativa é o fenômeno que permite aferir o grau de

engajamento do locutor-narrador em um ato de enunciação. Desse modo, é

possível observar se o locutor-narrador assume a responsabilidade sobre o

que foi dito ou opta por manter um distanciamento enunciativo e atribui o

enunciado a outras instâncias enunciativas.

28

Nesse sentido, Gomes (2014, p. 69) declara: “o autor coloca a responsabilidade

enunciativa como uma das dimensões que compõem a proposição-enunciado”. Conclui

Gomes, ainda, que, para Adam, “é o nível [B] o responsável pela validade dos enunciados e se

encontra em posição mediana entre os níveis [A] e [C]” (GOMES, 2014, p. 69). Vejamos o

que nos mostra o esquema a seguir:

FIGURA 03 - Elementos constitutivos da proposição-enunciado

Fonte: ADAM (2011, p. 111)

A partir do referido esquema, Adam (2011apud GOMES 2014, p. 69) justifica que a

“representação feita pelo triângulo não hierarquiza os três componentes, mas, ao contrário,

situa [A] e [C] na mesma linha [...] e põe a enunciação [B] em posição mediana, entre [A] e

[C]”. Isso quer dizer que “a responsabilidade enunciativa possui uma conexão com o que já

foi dito anteriormente e com o que vai ser dito mais na frente”, conclui Gomes (2014, p. 69).

É, portanto, na opinião do autor, “um vértice que se refere ao passado e ao futuro” (GOMES

2014, p. 69).

Conforme Adam (2011 apud GOMES 2014, p. 69), “a responsabilidade enunciativa

não se separa de um ponto de vista (PDV) e os dois se situam no âmbito da polifonia, dando

conta do desdobramento polifônico dos enunciados”. Isso significa, nos dizeres de Gomes

(2014, p. 69) que “todo enunciado possui um ou mais PDV, entendidos por Adam como as

vozes presentes no quadro enunciativo”. Os PDV podem “ser assumidos ou não pelo locutor-

29

narrador, marcando, assim, a (não) responsabilidade enunciativa dos enunciados”, conclui

Gomes (2014 p. 69).

Nesse sentido, destacamos, na proposta de Adam (apud GOMES, 2014), o seu

entendimento de locutor e enunciador. Assim, Adam (2011, p. 70 apud GOMES 2014, p. 70)

“considera o locutor como a pessoa que fala, como a pessoa física responsável pela

enunciação”. Porém, quando o “enunciador assume a responsabilidade pelo enunciado, o

conceito de locutor se confunde com o de enunciador e quando o enunciador se distancia do

PDV, temos um locutor diferente do enunciador”, explica Gomes (2014, p. 70). Nesse caso,

conclui Gomes (2014, p. 70) que “podemos ter, inclusive, mais de um enunciador, ou seja,

podem aparecer distintos PDV atribuídos a diversas instâncias enunciativas, às quais o

enunciado se vincula para dar conta do desdobramento polifônico”, conforme nos mostra o

esquema a seguir:

FIGURA 04 - Desdobramento polifônico em Adam

Fonte: GOMES (2014, p. 70)

Ainda segundo Adam (2008b, p. 117 apud PASSEGGI et al., 2010, p. 153), em outras

palavras, “o grau de responsabilidade enunciativa de uma proposição é suscetível de ser

marcado por um grande número de unidades da língua”. Nessa direção, conforme explica

Passeggi et al., (2010, p. 153 – 154) , o autor propõe oito categorias, a saber:

(1) os índices de pessoas; (2) os dêiticos espaciais e temporais; (3) os tempos

verbais; (4) as modalidades; (5) os diferentes tipos de representação da fala

(discurso direto; discurso direto livre; discurso indireto; discurso indireto

livre e discurso narrativizado); (6) as indicações de quadros mediadores; (7)

os fenômenos de modalização autonímica e (8) as indicações de um suporte

de percepções e de pensamentos relatados.

30

É interessante destacar que as grandes categorias aqui enumeradas expandem a

descrição do que Benveniste (1974, p. 79 – 88 apud ADAM 2011, p. 117) chamava de

“aparelho formal de enunciação” 2.

Corroborando o que foi dito anteriormente, para Adam (2011 apud LOURENÇO

2015, p.41), “a RE ou PdV podem ser materializados textualmente por diversas marcas que

caracterizam o grau de Responsabilidade Enunciativa de uma proposição”, conforme

apresentadas no quadro seguinte:

FIGURA 05 - Grandes categorias

2 Ao propor a noção de aparelho formal da enunciação, Émile Benveniste quer dizer que, a língua, como sistema

que é, tem em sua organização (estrutura) um aparelho formal que possibilita ao sujeito enunciar nessa língua. O

aparelho (indicadores de subjetividade, tempos, modos, etc.) como tal pertence à língua, mas seu uso é

dependente da enunciação a qual, por sua vez, supõe sujeito. Ou seja, o conceito de enunciação está ligado ao

princípio da generalidade do específico (FLORES; NUNES, 2007).

31

Nesse sentido, para Lourenço (2015, p. 42),

o autor concebe a Responsabilidade Enunciativa na equivalência de ponto de

vista, que grafa da seguinte forma: PdV. Assim, a RE de uma proposição “ou

ponto de vista (PdV) permite dar conta do desdobramento polifônico”

(ADAM, 2011, p. 110) presente nos enunciados.

Portanto, “a RE, enquanto estratégia linguística é possível de ser marcada por unidades

textuais e revela a assunção ou não de determinado conteúdo proposicional por uma instância

(ou instâncias) enunciativa (s) dada(s)”, conclui Lourenço (2015, p. 43).

Objetivando o avanço dessa investigação a respeito do fenômeno da responsabilidade

enunciativa, torna-se imprescindível, inicialmente, apresentarmos o pensamento bakhtiniano a

respeito da polifonia e do dialogismo. Assim, destacamos que Bakhtin (2010 apud

LOURENÇO 2015, p. 43) desenvolve a noção de polifonia nos estudos da linguagem,

“apresentando a ideia de dialogismo como caracterizadora da consciência do homem, ao

afirmar que o homem interior se mostra no diálogo com outros homens, constituindo-se, o

diálogo, não em um meio, mas em um fim”.

Dessa maneira, em Problemas da Poética de Dostoiévski, Bakhtin reflete o dialogismo

nos seguintes termos:

A palavra não é um objeto, mas um meio constantemente ativo,

constantemente mutável de comunicação dialógica. Ela nunca basta a uma

consciência, a uma voz. Sua vida está na passagem de boca em boca, de um

contexto para outro, de um grupo social para outro, de uma geração para

outra. Nesse processo, ela não perde o seu caminho nem pode libertar-se até

o fim do poder daqueles contextos concretos que integrou [...]. A palavra, ele

[um membro de um grupo falante] a recebe da voz de outro e repleta de voz

de outro. No contexto dele, a palavra deriva de outro contexto, é impregnada

de elucidações de outros. O próprio pensamento dele já encontra a palavra

povoada (BAKHTIN, 2010, p. 232 apud LOURENÇO, 2015, p. 43).

Assim, entendemos que a palavra é utilizada como forma de interação pelos falantes,

representando tudo o que ouvimos e reproduzimos em contextos diversos, deixando de ser a

língua um sistema limitado de regras.

32

Lourenço (2015, p. 44) comenta que na concepção de linguagem3 concebida por

Bakhtin, confirma-se a ideia do autor de que “o dialogismo está imbricado na linguagem,

porque profundamente a penetra e se faz presente em todas as suas relações”, já que

[...] as relações dialógicas são extralinguísticas. Ao mesmo tempo, porém,

não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua como

fenômeno integral concreto. A linguagem só vive na comunicação dialógica

daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que

constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem (BAKHTIN, 2010, p.

209 apud LOURENÇO, 2015, p. 44).

Diante de tais considerações, concordamos com Lourenço (2015), ao relatar a

importância também, para esta investigação, de registrar o pensamento de Ducrot (1980), que

“teve como fonte de suas reflexões, a polifonia pensada por Bakhtin” (LOURENÇO, 2014, p.

44).

Conforme explica Lourenço (2015, p. 44), “esse estudioso põe em questionamento o

pressuposto de que o sujeito falante é único e que cada enunciado só pode ser relacionado a

um único autor”.

Assim, a partir de tal pressuposto, justifica Lourenço (2015, p. 44) que “o referido

autor prossegue suas reflexões afirmando que uma situação de polifonia demanda dois tipos

de personagens: os locutores e os enunciadores”.

Dessa forma, de acordo com o que estabelece Lourenço (2015, p. 44):

os locutores são aqueles apresentados no enunciado como sendo, por eles,

seus responsáveis e os enunciadores, como os seres ou instâncias cujas vozes

estão presentes na enunciação, mas que não são responsáveis pela ocorrência

de palavras.

Nesse sentido, Ducrot (1988, p. 16 apud LOURENÇO 2015, p. 44) traz o

esclarecimento de que “o autor de um enunciado não se expressa nunca diretamente, sem que

ponha em cena em um mesmo enunciado um certo número de personagens [...] em um mesmo

enunciado estão presentes vários sujeitos com estatutos linguísticos diferentes”.

Ducrot (1988 apud LOURENÇO 2015, p. 44), então, “pensa o estabelecimento de

vozes presentes em um enunciado a partir de três categorias distintas: o sujeito falante, o

3 Para Bakhtin (2004), a linguagem é um ato social que se realiza e se modifica nas realizações sociais e é, ao

mesmo tempo, meio para a interação humana e resultado dessa interação, já que seus sentidos não podem ser

desvinculados do contexto de produção. A linguagem é, portanto, de natureza sócioideológica e tudo que é

ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo (BAKHTIN 2004, p.31).

33

locutor e o (s) enunciador (es)”. Assim, conforme detalha Lourenço (2015, p. 44), “o sujeito

falante não constitui foco de interesse para os estudos linguísticos, pela explicitude de sua

identificação”.

Para autora supracitada, “figuram como interesse dos estudos linguísticos as categorias

de locutor, que reproduz a voz do texto, entidade pertencente ao cotexto linguístico”; e por

fim, “de enunciador (es), a instância abstrata que necessariamente não precisa ser identificada

com a figura do locutor, e a quem se atribui a RE” (LOURENÇO 2015, p. 44).

Dessa maneira, Ducrot (1988 apud LOURENÇO 2015, p. 45) “considera a presença

de diferentes sujeitos com estatutos linguísticos distintos num enunciado, representando

pontos de vista diferentes partilhados por um locutor”.

Desse modo, sobre o postulado Ducrotiano, destaca Lourenço (2015, p. 45) que:

[...] em cada texto/enunciado existem enunciadores diferentes, portadores de

ponto de vista diferentes, e que o locutor em seu discurso irá aderir a uma

das perspectivas demonstradas, sendo a polifonia uma constante no discurso,

possibilitando o locutor não se responsabilizar pelo dito, atribuindo-o a um

outro enunciador.

Nesse sentido, após explicitada a tese da polifonia e do dialogismo elaborada por

Bakhtin, submetida às reflexões de Ducrot, Lourenço (2015, p. 46) relata que, “a língua se

assenta como fenômeno social de interação verbal, que no âmbito da linguagem todo discurso

se estabelece em rede de complexas inter-relações dialógicas entre enunciados”.

Em Rabatel (2009 apud GOMES 2014, p. 72), o termo Prise en charge énonciative

(PEC) é utilizado para falar de responsabilidade enunciativa. Esta temática demarca o início

dos seus trabalhos cujos pressupostos ducrotianos entendem que

[...] o locutor é aquele que está na fonte do enunciado, é o ser empírico

responsável pelo material linguístico, e que o enunciador é aquele que

assume a responsabilidade pelo enunciado, isto é, os enunciadores são esses

seres que são considerados como se expressando através da enunciação, sem

que para tanto se lhe atribuam palavras precisas; se eles “falam” é somente

no sentido em que a enunciação é vista como expressando seu ponto de

vista, sua posição, sua atitude, mas não, no sentido material do termo, suas

palavras (DUCROT, 1987, p. 192 apud GOMES, 2014, p. 72).

Para tanto, conforme já revelado inicialmente por PASSEGGI et al., (2010, p. 153),

Rabatel (2009a apud Lourenço 2015, p. 53) “registra uma diferença entre a ocorrência da

Responsabilidade Enunciativa (prise en charge – PEC), em que os conteúdos proposicionais

são assumidos pelo primeiro locutor/enunciador (L1/E1), porque ele os julga verdadeiros”, e

34

também, “a ocorrência de casos, em que há uma imputação da Responsabilidade Enunciativa

em relação aos conteúdos proposicionais que L1/E1 atribui a um segundo enunciador (e2)”

(RABATEL, 2009a apud Lourenço 2015, p. 53).

Para Rabatel, “se o enunciador é a fonte de um PDV, sem ser, efetivamente, o autor do

enunciado, não há que se falar em Responsabilidade Enunciativa, em relação à concepção

segundo a qual se responsabilizar é falar, dizer”, declara Lourenço (2015, p. 53); conforme já

apontou inicialmente Passeggi et al., (2010). Assim, é possível levantar a hipótese de uma

“quase-PEC”, uma quase Responsabilidade Enunciativa, pois

todo enunciado pressupõe uma iminência que se responsabiliza pelo que é

aspirado, seguindo os quadros de referência, o dictum, o sintagma, o

conteúdo proposicional, a predicação, conforme o esquema minimal da

enunciação “EU DIGO” (“o que é dito”)”. Além das diferenças de

denominação, a iminência que se responsabiliza por um enunciado

monológico é aquela que é a fonte do processo de produção do enunciado.

Em um enunciado tal como “eu não amo essas questões de

responsabilização enunciativa”, eu é a fonte e o validador, ou seja, aquele

que confirma a verdade do conteúdo proposicional (RABATEL, 2009a, p. 72

apud LOURENÇO 2015, p. 53).

No que se refere ao conceito de PDV, Rabatel (2003, p. 3 apud GOMES, 2014, p. 75)

afirma que se trata de “tudo o que, na referenciação dos objetos (do discurso), revele, de um

ponto de vista cognitivo, uma fonte enunciativa singular e denote, direta ou indiretamente,

seus julgamentos sobre os referentes”. Assim,

[...] o PDV se apresenta como um dado objetivo anterior a todo julgamento,

antes mesmo das pressuposições e das premissas. Nesse sentido, como PDV,

a natureza, sempre sujeita à discussão do que é posto, é mascarada pelo fato

de que o posto é apresentado sobre o modo da evidência perpétua, ou seja,

como não contestável. A lógica natural é, assim, feita para que se aceite

facilmente o que resulta de uma observação a priori desprovida de apostas

interpretativas, já que o que “se vê com os olhos” parece corresponder à

emergência pura dos fenômenos, independentemente de toda

intencionalidade humana (RABATEL, 2004, p. 43 apud GOMES, 2014, p.

75).

Rabatel (2003, p. 12 apud GOMES, 2014, p. 75) afirma que, para Ducrot (1984):

[...] o PDV é abordado no nível da enunciação: todo enunciado dialógico

comporta PDV distintos referentes a enunciadores distintos e o locutor é

responsável pela cena enunciativa e indica o PDV ao qual ele adere. Assim,

“este muro não é branco” hierarquiza dois PDV incompatíveis, um

35

afirmando que “este muro é branco” e o outro afirmando que o PDV

precedente é falso, onde o locutor assume o segundo PDV.

Segundo Gomes (2014, p. 75), é importante salientar que “Rabatel apresenta o PDV

como um elemento vinculado diretamente à discussão sobre dialogismo”. Para ele, o PDV é

entendido juntamente com o discurso reportado4 como

[...] subconjuntos da problemática geral do dialogismo. Em uma perspectiva

de produção, há um interesse em mostrar aos estudantes que, no plano

sintático, o PDV pode utilizar-se do discurso direto, indireto, indireto livre,

direto livre ou de uma estrutura paratática que, por ser interpretada

corretamente, necessita considerar as relações semânticas entre os

enunciados (RABATEL, 2005, p. 64 apud GOMES, 2014, p.76).

Nesse sentido, Gomes (2014, p. 77) afirma que “para Rabatel, o dialogismo não é

apenas o diálogo com discursos anteriores, mas também o fato de haver em um discurso

pontos de vista diversos”.

Retomando o caminho para o entendimento do fenômeno da responsabilidade

enunciativa na perspectiva de Nolke, vale destacar que a ScaPoLine, conforme explica Gomes

(2014, p. 79), “surge com o objetivo de criar uma teoria formal que seja capaz de prever e

especificar as restrições propriamente linguísticas que governam a interpretação polifônica”

(NOLKE, 2009, p. 15 – 16 apud GOMES, 2014, p. 79). Nesse sentido, Gomes (2014) faz a

ressalva de que “essa âncora na abordagem formal pode fazer da ScaPoLine um aparelho

heurístico que possibilite as análises operatórias não apenas em enunciados individuais, mas

também em textos com vários enunciados” (p. 79).

Assim, para Coltier, Dendale e Brabanter (2009 apud GOMES 2014, p. 86), na teoria

escandinava da polifonia linguística (ScaPoLine), “a responsabilidade enunciativa é entendida

como uma ligação enunciativa que liga um ‘ser do discurso’ (s-d) a um ‘ponto de vista’ (PdV)

e que especifica a posição deste s-d em relação com o PdV” (COLTIER; DENDALE;

BRABANTER, 2009, p. 21 apud GOMES 2014, p. 86), conforme o esquema a seguir:

4 O discurso reportado é tanto uma enunciação na enunciação, quanto uma enunciação sobre a enunciação. Isso

significa que o discurso reportado inclui – além de um redizer do dizer de outra pessoa – uma atividade

avaliativa (CONSUL, 2008, p. 90).

36

FIGURA 06 – A responsabilidade enunciativa na ScaPoLine

Fonte: GOMES (2014, p. 86)

A partir de então, Gomes (2014, p. 87) afirma que “o locutor, ao produzir um

determinado enunciado, manifesta a posição dos seres do discurso em relação ao PdV a partir

de elos de responsabilidade ou de não responsabilidade”. Para ele, “essa relação ocorre

através de uma ligação enunciativa representada no esquema 4 pela linha horizontal entre o

PdV e os s-d” (GOMES, 2014, p. 87).

Concluímos nossa exposição sobre as vozes do texto, então, discorrendo sobre um

fenômeno que, na opinião de Gomes (2014, p. 87), “caminha de forma correlata com o

entendimento do fenômeno da responsabilidade enunciativa”. Nesse sentido, apresentamos,

portanto, o que Guentchéva (1994 apud GOMES 2014, p. 88) e Guentchéva et al., (1994 apud

GOMES 2014, p. 88) chamam de quadro mediativo ou categoria do mediativo. Para a referida

autora:

Numerosas línguas tipologicamente diferentes possuem procedimentos

gramaticais mais ou menos específicos (formas construídas a partir do

perfeito nas línguas indo-europeias e altaicas, sufixos e mais raramente

prefixos nas línguas ameríndias, partículas em certas línguas como as línguas

tibeto-birmanas) que permitem ao enunciador significar os diferentes graus

de distância que ele toma com respeito às situações descritas já que ele as

distinguiu de maneira mediata. Em outros termos, o enunciador indica de

forma explícita que ele não é a fonte primeira da informação porque os fatos:

a) constituem conhecimentos geralmente admitidos ou transmitidos pela

tradição; b) foram levados ao seu conhecimento por uma terceira pessoa ou

por ouvir dizer; c) foram inseridos a partir de índices observados; d) são o

resultado de um raciocínio. Nas línguas em que um tal sistema gramatical

específico existe, o enunciador é então obrigado a marcar formalmente, no

37

seu próprio ato de enunciação, se ele se envolve ou se ele não se envolve nos

fatos enunciados. Resulta daí um jogo sutil de valores que se estruturam de

maneira diferente conforme as línguas em uma categoria gramatical que nós

propomos chamar de mediativo (GUENTCHÉVA, 1994, p. 8 apud GOMES,

2014, p. 88).

Nesse sentido, conforme Guentchéva et al., (1994, p. 139 apud GOMES 2014, p. 88),

“o termo mediativo designa uma categoria gramatical que, em línguas tipologicamente

distantes, tem por função marcar a atitude de distanciamento ou de não engajamento que o

enunciador manifesta em relação aos fatos que ele apresenta”.

De acordo com Guentchéva (2011, p. 137 apud GOMES 2014, p. 89) a “enunciação

mediatizada é entendida como um ato enunciativo complexo subjacente a toda enunciação

que pode se manifestar pelas marcas explícitas integradas no sistema gramatical da língua”.

Guentchéva (1994, 1996 apud GOMES 2014, p. 89) e Guentchéva et al., (1994 apud GOMES

2014, p. 89) “consideram que a categoria do mediativo se organiza a partir de três valores

fundamentais: 1) fatos relatados; 2) fatos inferidos; 3) fatos de surpresa”. Esses três valores,

“a priori, podem parecer distantes e até opostos”, salienta Guentchéva (1994 apud GOMES

2014, p. 89), que em seguida, apresenta argumentos para agrupá-los na constituição da

referida categoria, quais sejam:

a) em algumas línguas, esses valores são expressos pelo mesmo marcador

gramatical; b) em outras línguas, um único marcador pode reagrupar dois

valores mediativos sem que a combinação desses dois valores seja sempre

previsível; c) a classificação de certos empregos dessas formas não permite

fazer, necessariamente, distinções rigorosas entre os referidos valores; a falta

de explicação para que línguas tipologicamente distintas tenham podido

gramaticalizar valores semânticos, senão idênticos, pelo menos similares

(GUENTCHÉVA, 194, p. 9 apud GOMES 2014, p. 89).

Assim, “a categoria do mediativo não se restringe apenas ao posicionamento assumido

pelo enunciador diante do enunciado, abrangendo, igualmente, os aspectos epistemológicos e

cognitivos da mensagem enunciada nos discursos produzidos nos vários domínios”, conclui

Lourenço (2015, p. 62).

Isso posto, observar o fenômeno da mediatividade permite, na opinião de Lourenço

(2015, p. 62) “empreender uma atividade interpretativa do semanticismo que algumas

palavras, marcadas morfologicamente, absorvem dentro do sistema da língua”. Assim,

justifica Lourenço (2015, p. 62) que “tal fenômeno explicita quando o enunciador enuncia não

se engajando em nenhuma das vias de participação ator – interlocutor – observador”. Assim,

38

[...] o enunciador se apresenta apenas como mediador da informação e seu

(s) interlocutor (s) reconhecem essa posição e inferem que a informação

dada não é assumida pelo enunciador, porque a informação para ele se

constitui em conhecimento adquirido de maneira mediata (LOURENÇO,

2015, p. 62).

Neves e Oliveira (2003, p. 1 apud Lourenço 2015, p. 62) asseguram, ainda, que

[...] não há em português a estrutura mórfica denominada de categoria

gramatical do mediativo porque a língua portuguesa não comporta tais

marcas morfológicas, de modo que o mediativo explicita-se em português

através de processos sintáticos e/ou marcadores não exclusivos deste valor.

Dessa maneira, Lourenço (2015, p. 62) cita, por exemplo, que,

[...] dentre os processos gramaticais que servem para manifestar o

distanciamento da responsabilidade do enunciador pelas informações por ele

reportadas e por ele não testemunhadas, em português, o modo verbal, as

modalidades (poder, crer, achar, parecer etc.), os advérbios de frase

(aparentemente, alegadamente, certamente), as locuções conjuntivas

conformativas (de acordo com..., segundo...), os verbos de dizer e de ação

metalinguística, as formas verbais do condicional e o futuro do pretérito, as

aspas, os dois pontos e os recursos vários para indicar o texto/discurso fonte.

Por fim, Gomes (2014, p. 92) destaca o entendimento de Guentchéva (2011, p. 119

apud GOMES 2014, p. 92) “para quem a operação de responsabilidade enunciativa não pode

se resumir a uma oposição entre responsabilidade enunciativa/não responsabilidade de um

conteúdo proposicional”. Por esse entendimento, a autora propõe que

[...] a responsabilidade enunciativa seja entendida mais em termos de um

contínuo, no qual possamos identificar diferentes graus de assunção e de

(não) assunção da responsabilidade enunciativa, do que em termos de

polarização, em que o fenômeno em foco seja entendido apenas como

assunção ou não assunção do conteúdo proposicional por uma instância

enunciativa (GUENTCHÉVA 2011, p. 119 apud GOMES 2014, p. 92).

Apresentados os principais pontos sobre a concepção de quadro mediativo de

Guentchéva, passemos, pois, à seção seguinte.

39

3 A LINGUÍSTICA TEXTUAL E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Ao discorrermos sobre o papel da Linguística Textual no ensino da Língua

Portuguesa, reportamo-nos, a princípio, ao pensamento de Oliveira (2011, p. 193) para quem

“a Linguística Textual representa um momento em que se procura a superação do tratamento

linguístico em termos de unidades menores – palavra, frase ou período – no entendimento de

que as relações textuais são muito mais do que um somatório de itens ou sintagmas”. Segundo

a autora, “um dos maiores desafios para a linguística textual é exatamente definir seu objeto

de análise – o texto” (Op.cit., 2011, p. 193).

Nesse sentido, Fávero e Koch (1994 apud OLIVEIRA 2011, p. 193) apresentam o

texto em uma multiplicidade de conceituações “partindo de um enfoque amplo, como toda e

qualquer forma de comunicação fundada num sistema de signos (como um romance, uma

peça teatral, uma escultura, um ato religioso, entre outros)”, e “chegando a uma definição

mais estrita”. Nessa última definição, o conceito de texto se refere “a uma unidade linguística

de sentido e de forma, falada ou escrita, de extensão variável, dotada de textualidade”, ou

seja, de um conjunto de propriedades que “lhe conferem a condição de ser compreendido pela

comunidade linguística como um texto”, explica Oliveira (2011, p. 193 - 194).

Assim, nos dizeres de Oliveira (2011, p. 194), “o texto é a unidade comunicativa

básica, aquilo que as pessoas têm a declarar umas às outras”. Nesse sentido, certifica ainda

que “essa declaração pode ser um pedido, um relato, uma opinião, uma prece, enfim, as mais

diversas formas de comunicação” (OLIVEIRA, 2011, p. 194).

Em consonância com o pensamento de Oliveira (2011), Silva (2011, p. 142) propõe:

“para o desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita visando tornar os alunos capazes

de se comunicarem nas mais diversas situações do cotidiano é preciso focar na linguística

textual”. Para Silva (2011, p. 142), “independente da série, é possível trabalhar a língua

materna a partir de textos”.

Silva (2011, p. 142) afirma que “preocupar-se com a apreensão de conceitos e com

exercícios estruturais é uma prática que começou a ser questionada há muito tempo, sendo

colocada em xeque na década de 1980”.

Da mesma maneira, a autora indica que “não se pode trabalhar tendo como base a

tipologia textual há muito abordada nas aulas de língua materna: dissertação, narração e

descrição” (SILVA, 2011, p. 142).

Para Silva (2011, p. 142) “em um passado não muito distante, por exemplo,

apresentava-se a tipologia textual dividida de acordo com a série”.

40

Assim, “para as iniciais, era trabalhada a narração, e depois a descrição. A

dissertação ficava para as séries finais, pois era considerada um tipo textual

mais complexo e que só poderia ser trabalhado com os alunos depois que

estes estivessem aptos”, confere a autora (Op. cit., 2011, p. 143).

De acordo com Silva (2011, p. 143):

a tipologia clássica não dá conta da multiplicidade de textos com os quais

todos se deparam nas comunicações diárias. Não é solicitado, em situações

fora da sala de aula, que pessoas escrevam textos dissertativos, descritivos

ou narrativos. As pessoas podem até escrever sobre o seu ponto de vista,

sobre suas ideias e, nesse caso, teríamos um texto que provavelmente seria

predominantemente dissertativo. Podem, ainda, escrever um anúncio de

classificado vendendo algo, o que dá um texto predominantemente descritivo

e pode se ver em uma situação em que se precise fazer um boletim de

ocorrência, texto que terá muito de narrativo.

Outro fator bastante interessante e comum nas salas de aula, ainda conforme Silva

(2011, p. 143), “é o texto produzido pelo aluno, que se revela sem destinatário; o aluno, na

maioria das vezes, escreve para ninguém”. Ele sabe que “aquilo é um treino para nada e que

escreve para o professor, que é o destinatário sem o ser, pois, na verdade, mostra-se um

corretor”. Nesse sentido, “as atividades de produção precisam deixar de ser esse ensaio para o

nada”, conclui a autora (Op. cit., 2011, p. 143).

Um dos pontos que merece atenção é a observação de Silva (2011, p. 144) de que:

[...] o professor de Língua Portuguesa precisa entender que o trabalho com

os gêneros textuais tem a finalidade principal de libertar, de mostrar que

textos, os mais diversos, circulam por nossa sociedade e que é de grande

relevância para as pessoas saberem distinguir formas e funções. O trabalho

com os gêneros vai aproximar o aluno do mundo real à medida que os textos

que eles produzem em sala representem esse mundo. Por mais que nem

todos os textos possam, de fato, circular socialmente, os alunos estarão

produzindo a partir de situações que simulam o real, que eles veem para

todos os lados que olhem, diferente da velha conhecida redação escolar nos

moldes tradicionais (para não dizer antigos).

Ainda nos dizeres de Silva (2011, p. 144):

o desenvolvimento da tecnologia trouxe inúmeros recursos e podem

propiciar textos com muitas linguagens, como: verbal e visual, verbal e

audiovisual, não verbal, verbal e gestual etc. O professor de língua deve,

41

inclusive, aprimorar o conceito de letramento5 que traz consigo. Hoje, uma

pessoa letrada é aquela capaz de se fazer entender e de compreender essa

multiplicidade de textos com os quais se depara.

Outro ponto que merece atenção é a gramática e seu ensino, declara Silva (2011, p.

145). Para ela, “é falaciosa qualquer informação no sentido de que os linguistas aboliram o

erro e que agora pode tudo e que a gramática não deve ser ensinada nas escolas”, pois:

Primeiro, a prática de longos anos de ensino gramatical mostrou que, antes

de tudo, é preciso saber a língua para depois entendermos sua gramática, e

não o contrário. Segundo, o aluno precisa e inclusive tem o direito de ser

familiarizado com o padrão da língua. É essa variedade que ele vai encontrar

em textos de lei, em muitos meios de comunicação (orais ou escritos) e é ela

que vai, muito provavelmente, abrir-lhe muitas portas. A linguística trouxe

um conhecimento que antes não se tinha sobre as línguas, e esse

conhecimento mostra novos caminhos (SILVA, 2011, p. 147).

No caso específico da linguística textual, continua a autora, “os gêneros se mostram de

grande valia”, pois

[...] é a partir deles que tudo pode ser viabilizado. Os textos podem e devem

ser objeto de uso diário, mais do que a lousa. Através dos gêneros, podemos

apresentar aos alunos textos extremamente formais e informais e explorá-los

em todas as suas possibilidades, inclusive gramaticais. E aí sim, devemos

estar presos aos conteúdos, pois os textos não trazem oportunidades de

trabalharmos pontos gramaticais na mesma ordem trazida por eles, nem os

alunos mostrarão “problemas” de fala e/ou escrita na ordem estabelecida

pelos conteúdos para cada série. A língua deve ser apresentada, discutida,

analisada, na medida em que se fizer necessário, e isso não é igual nem entre

turmas de uma mesma série, muito menos entre séries (SILVA 2011, p. 146

– 147).

Os gêneros, portanto, “propiciam habilitar os alunos a discernirem, por exemplo, qual

deles é o mais adequado em determinada interação social, o que tenderá a acontecer de forma

cada vez mais eficaz”, conforme Dolz, Haller e Schneuwly (1998, p. 161 apud SILVA, 2011,

p. 147):

[...] uma proposta de ensino/aprendizagem organizada a partir de gêneros

textuais permite ao professor a observação e a avaliação das capacidades de

linguagem dos alunos; antes e durante sua realização, fornecendo-lhe

5 Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que

adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita. (SOARES, 2014,

p. 18).

42

orientações mais precisas para sua intervenção didática. Para os alunos, o

trabalho com gêneros constitui, por um lado, uma forma de se confrontar

com situações sociais efetivas de produção e leitura de textos e, por outro,

uma maneira de dominá-los progressivamente (DOLZ, HALLER e

SCHNEUWLY (1998, p. 161 apud SILVA, 2011, p. 147).

Em suma, “cabe ao professor a tarefa de gerenciar meios que visem ao conhecimento

de uma vasta gama de gêneros e suas possibilidades de leitura, à discussão de suas

composições, estilos, funções sociais etc”, conclui a autora (SILVA 2011, p. 147).

Mediante as considerações a respeito da Linguística Textual no ensino da Língua

Portuguesa, passamos agora a uma reflexão sobre as práticas de linguagem e PCN.

3.1 Práticas de Linguagem e PCN: O Ensino de Língua Portuguesa

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1998b) de Língua Portuguesa

apresentam propostas de organização de conteúdos e delimitação de objetivos que, conforme

Souza (1983 apud SANTOS; RICHE; TEIXEIRA, 2015, p. 15), visam à formação dos alunos

“como coautores do conhecimento, não somente reproduzindo terminologia gramatical - tal

qual se vê no ensino tradicional -, mas principalmente fazendo com que os alunos reflitam

sobre sua língua”. Assim, os Parâmetros defendem a ideia de que “ensinar português nos

níveis fundamental e médio só faz sentido com base em textos orais e escritos, buscando uma

interação entre leitura, produção textual e análise linguística” (SANTOS; RICHE;

TEIXEIRA, 2015, p. 15 – 16).

De acordo com Santos; Riche & Teixeira (2015):

quando se defende uma abordagem textual, entra em questão o uso de textos

como unidade de ensino, e não como mero pretexto para destacar dígrafos,

substantivos abstratos ou sujeitos, por exemplo. Textos artificiais ou em

formato de frases soltas, como ‘Ivo viu a uva’ ou ‘Vovô viu a vovó’, não

colaboram para a percepção linguística dos alunos, nem para sua formação

como leitores. Exemplos assim representam, na verdade, pseudotextos, já

que estão descontextualizados, sem uma situação real na qual possam ser

usados como elementos de interação. São meras atividades de ‘leitura’,

provavelmente para treinar a escrita de sílabas ou palavras com determinado

fonema, sem formar um todo significativo (SANTOS; RICHE; TEIXEIRA,

2015, p. 16).

Assim, “o texto como unidade de ensino pressupõe um trabalho que congregue as três

práticas de linguagem apresentadas nos Parâmetros: prática de leitura de textos orais/escritos,

43

prática de produção de textos orais/escritos, prática de análise linguística” (SANTOS;

RICHE; TEIXEIRA, 2015, p. 16).

Em comum entre tais práticas de linguagem, o pressuposto de que somente

relacionando USO-REFLEXÃO-USO é possível pensar um ensino de língua portuguesa

produtivo, em que

O aluno passe da condição de aprendiz passivo para a de alguém que

constrói seu próprio conhecimento – com a ajuda do professor, é claro -, por

observar o funcionamento da estrutura da língua nos mais diversos gêneros

textuais, lidos e produzidos por ele. O desafio que se apresenta ao professor

é, então, trabalhar as três práticas de linguagem apresentadas nos Parâmetros

de maneira integrada (SANTOS; RICHE; TEIXEIRA, 2015, p. 16 -17).

Sobre tal perspectiva, as autoras supracitadas manifestam ainda que, “para que a

escola enfatize o texto como unidade de ensino, é necessário, primeiramente, que o professor

repense o conceito de texto” (SANTOS; RICHE; TEIXEIRA, 2015, p. 23). Salientam que,

“quando os PCN defendem o ensino com base em textos, trata-se de textos orais e escritos.

Mais que isso: para compreender certos textos, é necessário observar outras linguagens além

da verbal” (SANTOS; RICHE; TEIXEIRA, 2015, p. 23).

As referidas autoras concluem nos alertando sobre a necessidade de compreender que

“a junção de palavras e frases, apenas, não constitui um texto: ele precisa ser aceito como tal;

o sentido precisa ser construído. E isso só se faz ultrapassando a superfície linguística e

entrando numa análise textual e discursiva” (SANTOS; RICHE; TEIXEIRA, 2015, p. 24- 25).

Logo, o ensino de textos, segundo Santos; Riche e Teixeira (2015, p. 25), precisa

englobar aspectos variados, como “o suporte onde ele circula, o gênero textual a que pertence,

a tipologia textual predominante, considerando elementos verbais e não verbais constituintes

desse texto, além da interação entre interlocutores”. Assim, “o objetivo principal dessa

abordagem é a formação de leitores e produtores críticos, com conhecimentos linguísticos e

textuais suficientes para serem cidadãos, leitores de mundo” (Op. cit. 2015, p. 25).

Dialogando com as ideias de Santos; Riche e Teixeira (2015) sobre o ensino de textos,

Marcuschi (2008), ao discutir sobre as características de alguns gêneros e como eles se

organizam, revela que “existe grande variedade de gêneros textuais analisada em manuais de

língua portuguesa”. Contudo, nos dizeres do autor, uma observação mais atenta e qualificada

revela que “a essa variedade não corresponde uma realidade analítica. Pois os gêneros que

aparecem nas seções centrais e básicas, analisados de maneira aprofundada são sempre os

mesmos” (MARCURSCHI, 2008, p. 206 – 207). Para ele, ainda existem poucos casos de

44

tratamento dos gêneros textuais de forma sistemática. Mas, a passos lentos, vão surgindo

novas possibilidades que incluem até mesmo o recurso da oralidade. Além disso, O autor

explica que “os gêneros orais em geral ainda não são tratados de modo sistemático. Apenas

alguns, de modo particular os mais formais, são lembrados em suas características básicas”

(Op. cit. 2008, p. 207).

Diante da multiplicidade de gêneros existentes e diante da necessidade de escolha dos

ideais para o ensino de língua, Marcuschi (2008, p. 207) revela que “não há uma resposta

consensual, embora tudo indique que a resposta seja não”. Mas, segundo o autor, “é provável

que se possam identificar gêneros com dificuldades progressivas, do nível menos formal ao

mais formal, do mais privado ao mais público e assim por diante” (Op. cit. 2008, p. 207).

Marcuschi (2008, p. 207) acrescenta que “há muito mais gêneros na escrita do que na

fala, o que é de certo modo surpreendente, mas explicável pela diversidade de ações

linguísticas que praticamos no dia a dia na modalidade escrita”. Desse modo, o autor afirma

que “as civilizações em que a escrita tem um papel central nas tarefas do dia a dia, mormente

no comércio, indústria e produção de conhecimento, tendem a diversificar de maneira

acentuada as formas textuais utilizadas” (Op. cit. 2008, p. 207).

Bakhtin (1979 apud MARCUSCHI, 2008, p. 208) aponta os gêneros textuais como

“esquemas de compreensão e facilitação da ação comunicativa interpessoal. Essa

estabilização de formas textuais repercute não só no processo de compreensão, mas na própria

estabilização de formas sociais de interação e raciocínio”.

Assim, Marcuschi (2008, p. 208) considera que “a distribuição da produção discursiva

em gêneros tem como correlato a própria organização da sociedade”. Para o autor, “o estudo

sócio-histórico dos gêneros textuais é concebido como uma das maneiras de entender o

próprio funcionamento social da língua” (MARCUSCHI, 2008, p. 208). Nas palavras do

autor, “isto nos remete a uma perspectiva teórica dos estudos linguísticos sobre o texto e do

texto, ou seja, a visão sociointeracionista” (Op. cit. 2008, p. 208).

Mediante as considerações a respeito das práticas de linguagem nos PCN, partimos

para uma explanação sobre o relacionamento entre Gênero, Texto e Discurso.

3.2 Gênero, Texto e Discurso

Dell’Isola (2007, p. 17 apud Gomes 2013, p. 05) conceitua gêneros textuais como

“práticas sócio-históricas que se constituem como ações para agir sobre o mundo e dizer o

mundo, constituindo-o de algum modo”.

45

Para a autora supracitada,

Por serem fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e

social; fruto do trabalho coletivo; formas de ação social; modelos

comunicativos; eventos textuais, os gêneros textuais apresentam

características comunicativas, cognitivas, institucionais e

linguísticas/estruturais, cuja finalidade é predizer e interpretar as ações

humanas em qualquer contexto discursivo, além de ordenar e estabilizar as

atividades comunicativas cotidianas (DELL’ISOLA, 2007, p. 17 apud

GOMES 2013, p. 05).

Com base em um vínculo entre as atividades dos seres humanos e a utilização da

língua, Bakhtin (2003 apud GOMES 2013, p. 05) conclui que “nos expressamos por meio de

gêneros textuais para atingir os nossos fitos dentro dos âmbitos da interação humana”. Nesse

sentido, “cai por terra a ideia da utilização do código linguístico sem um fim, sem um

objetivo, falar por falar, falar no vazio” (Op. cit. 2013, p. 05).

Ainda de acordo com Bakhtin (2003 apud GOMES 2013), “os gêneros são

classificados em dois grandes grupos: primários e secundários”. Os gêneros primários

ocorrem no uso espontâneo e conservam uma ligação direta com o conteúdo imediato. Assim,

para exemplificar uma utilização dos gêneros primários, o autor faz referência a um papo

entre amigos ou ao empréstimo de um livro como favor. Já os gêneros secundários,

“apresentam maior complexidade e surgem nas condições de um convívio cultural mais

complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) –

artístico, científico, sociopolítico, etc” (BAKHTIN, 2003, p. 263 apud Gomes 2013, p. 05).

Conforme Marcuschi (2010, p. 22 - 23), “a comunicação verbal só é possível por

algum gênero textual”. Essa posição, defendida por Bakhtin (1997 apud MARCUSCHI 2010,

p. 22) e também por Bronckart (1999 apud MARCUSCHI 2010, p. 22), é adotada pela

maioria dos autores que “tratam a língua em seus aspectos discursivos e enunciativos, e não

em suas peculiaridades formais”, justifica o autor (MARCUSCHI, 2010, p. 22 – 23).

Essa visão segue, conforme Marcuschi (2010, p. 22), “uma noção de língua como

atividade social, histórica e cognitiva que privilegia a natureza funcional e interativa e não o

seu aspecto formal e estrutural”. O autor ainda afirma “o caráter de indeterminação e ao

mesmo tempo de atividade constitutiva da língua”, o que equivale a dizer que “a língua não é

vista como um espelho da realidade, nem como um instrumento de representação dos fatos”

(MARCUSCHI 2010, p. 22).

Nesse sentido, para Marcuschi (2010, p. 23), “a língua é tida como uma forma de ação

social e histórica que, ao dizer, também constitui a realidade, sem, contudo, cair num

46

subjetivismo ou idealismo ingênuo”. [...] Para o autor, nesse contexto teórico, “os gêneros

textuais se constituem como ações sociodiscursivas para agir sobre o mundo e dizer o mundo,

constituindo-o de algum modo” (Op. cit. 2010, p. 23).

Diante dessas considerações, é relevante a distinção proposta por Marcuschi (2010)

entre o que se convencionou chamar de tipo textual, de um lado, e gênero textual, de outro.

Para o autor, “essa distinção é fundamental em todo o trabalho com a produção e a

compreensão textual” (Op. cit. p. 23).

Vejamos uma breve definição das noções de tipo textual e gênero textual, conforme

Marcuschi (2010):

(a)Tipo textual designa uma espécie de “sequência teoricamente definida

pela natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos,

tempos verbais, relações lógicas)”. Em geral, “os tipos textuais abrangem as

categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição,

injunção”. (b)Gênero textual designa uma noção propositalmente vaga para

referir os “textos materializados que encontramos em nossa vida

diária” e que “apresentam características sociocomunicativas definidas

por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição

característica”. Alguns exemplos de gêneros textuais seriam:

telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete,

reportagem jornalística, aula expositiva, reunião de condomínio,

notícia jornalística, horóscopo, receita culinária, [...], e assim por

diante (MARCUSCHI 2010, p.24 – 25).

Ainda em Marcuschi (2008, p. 159), destacamos algumas características que os

gêneros textuais podem apresentar. Desse modo, resumidamente, os gêneros são entidades:

QUADRO 01: Algumas características dos gêneros textuais a) dinâmicos

b) históricos

c) sociais

d) situados

e) comunicativos

f) orientadas para fins específicos

g) ligados a determinadas comunidades discursivas

h) ligados a domínios discursivos

i) recorrentes

j) estabilizados em formatos mais ou menos claros.

Fonte: A AUTORA (2016)

47

Coutinho (2004 apud MARCUSCHI 2008, p. 81) fundamenta que

uma das tendências atuais é a de não distinguir de forma rígida entre texto e

discurso, pois se trata de frisar mais as relações entre ambos e considerá-los

como aspectos complementares da atividade enunciativa.

Desse modo, trata-se de “reiterar a articulação entre o plano discursivo e textual”,

considerando o discurso como o “objeto de dizer” e o texto como o “objeto de figura”

(Coutinho, 2004 apud MARCUSCHI 2008, p. 81). Assim, “o discurso dar-se-ia no plano do

dizer (a enunciação) e o texto no plano da esquematização (a configuração). Entre ambos, o

gênero é aquele que condiciona a atividade enunciativa” (Op. cit. 2004).

Isso implica afirmar, na visão de Culioli (apud MARCUSCHI 2008, p. 82) que “os

textos são, na realidade, os objetos empíricos aos quais tem-se acesso direto como o plano dos

observáveis”. Enquanto unidades empíricas, os textos seriam, na visão de Coutinho (2004, p.

29 apud MARCUSCHI 2008, P. 82), “produções linguísticas atestadas que realizam uma

função comunicativa e se inserem numa prática social”.

Essa visão é um recuo diante da posição de Adam (1990 apud MARCUSCHI 2008, p.

82), para quem o texto era “uma unidade abstrata em que se tinha em mente o fato linguístico

‘puro’ sem suas condições de produção”, segundo a conhecida fórmula proposta pelo autor:

FIGURA 07. O texto como uma unidade abstrata

Discurso = texto + condições de produção

Texto = discurso – condições de produção

Fonte: MARCUSCHI (2008, p. 82)

Marcuschi (2008, p. 82) explica que:

essa forma de ver o texto representa uma redução do objeto e é fruto de um

procedimento metodológico e epistemológico de identificar o objeto

limitado a seus aspectos centrais imanentes à língua. Nem tudo o que se

toma como significação está no âmbito da língua e do sistema (léxico –

gramatical). O contexto é algo mais do que um simples entorno e não se

pode separar de forma rigorosa o texto de seu contexto discursivo. Contexto

é fonte de sentido.

48

É assim que Adam (1999:39 apud MARCUSCHI 2008, p. 82) “propõe agora uma

releitura que inclua o texto no contexto das práticas discursivas sem dissociar sua

historicidade e suas condições de produção” (Op. cit. 1999). Para Marcuschi (2008, p. 83),

então, “este movimento de mudança de concepção é importante porque permite tratar os

gêneros textuais como elementos tipicamente discursivos”.

Isso posto, em contraposição ao seu estudo de Adam (1990), Adam (1999 apud

MARCUSCHI 2008, p. 82) declara:

Em outros termos, não diremos jamais que um texto ou um discurso é

composto de frases. A própria existência de frases tipográficas – como os

parágrafos, os períodos, as sequências e os textos – resulta de escolhas

instrucionais plurideterminadas. Nesta perspectiva [...] a linguística textual

pode ser definida como um subdomínio do campo mais vasto da análise das

práticas discursivas (ênfase adicionada).

Nesse sentido, segundo Adam (1999 apud MARCUSCHI 2008, p. 82) trata-se agora,

numa nova concepção em oposição à de 1990, de “uma forma de inclusão do texto num

campo mais vasto das práticas discursivas que devem ser pensadas na diversidade dos gêneros

que elas autorizam e na sua historicidade” (p. 39).

Para isto, Adam (1999: 39 apud MARCUSCHI 2008, p. 83) oferece o seguinte

diagrama representacional da nova concepção em oposição à de 1990:

FIGURA 08. O texto como objeto concreto, material e empírico.

CONTEXTO

DISCURSO condições de produção e

recepção-interpretação TEXTO

Fonte: ADAM. 1999:39

Adam (1999 apud MARCUSCHI 2008, p. 83), após definir a noção de texto como

“objeto abstrato no campo dos estudos de linguística numa teoria geral e de definir discurso

como a realidade singular de interação-enunciação objeto de análises discursivas” e tomando

o gênero como “a diversidade socioculturalmente regulada das práticas discursivas humanas”

(p. 40), identifica o texto como “objeto concreto, material e empírico resultante de um ato de

enunciação” (ADAM apud MARCUSCHI, 2008, p. 83). Com isto, Marcuschi (2008, p. 83)

49

chega “à articulação do discursivo com o textual e a distinção entre ambos se dilui de modo

sensível”.

Justifica Marcuschi (2008, p. 83) que “a ideia da visão complementar é importante e tem

como consequência o fato de não frisar apenas um dos lados do funcionamento da língua no

seu aspecto genérico”. Nesse sentido, Adam (1999: 40 apud MARCUSCHI 2008, p. 83)

considera que “a separação do textual e do discursivo é essencialmente metodológica”.

Assim, de certo modo, para o autor, “a distinção tende a anular-se e a tornar menos

significativa” (Op. cit. 1999).

Adam (1999: 41 apud MARCUSCHI 2008, p. 83) observa que “até os anos 1980, a

LT tratava o texto em suas propriedades cotextuais e a partir dos anos 1980 já define o texto

como um evento comunicativo”, tal como o fazem Beaugrande & Dressler (1981 apud

MARCUSCHI 2008, p. 83), “deslocando o foco para a questão da pragmática, com a análise

da intencionalidade e, particularmente, da situacionalidade”. Nesse sentido, conforme os

autores “vai-se do cotexto ao contexto”.

Adam (1999: 41 apud MARCUSCHI 2008, p. 83 – 84), então, considera que “dar

conta do textual (o particular) e do discursivo (o universal) não pode ser feito num mesmo

movimento teórico”. Para o autor, “a proposta ‘neutralização terminológica’ da separação

entre duas dimensões complementares (discurso e texto) torna-se complicada” (ADAM,

1999:41 apud MARCUSCHI 2008, p. 84). Deste modo, para Coutinho (2004 apud

MARCUSCHI 2008, p. 84), parece que “a melhor articulação para tratar dos textos empíricos

seria entre texto, discurso e gênero como categorias descritivas”. Coutinho (2004 apud

MARCUSCHI 2008, p. 84) propõe o seguinte esquema para dar conta do texto como objeto

empírico:

FIGURA 09. Texto, discurso e gênero como categorias descritivas

(objeto da figura)

Discurso Gênero Texto

(objeto do dizer)

TEXTO (objeto empírico)

FONTE: COUTINHO (2004, p. 32 apud MARCUSCHI, 2008, p.84)

50

Partindo do esquema representado na figura 09, entendemos que “o discurso como

‘objeto do dizer’ é visto como prática linguística codificada, associada a uma prática social

(socioinstitucional) historicamente situada” (Coutinho, 2004: 32 apud MARCUSCHI, 2008,

p. 84). Para a autora, “é uma enunciação em que entram os participantes e a situação sócio-

histórica de enunciação”. Além disso, “entram aspectos pragmáticos, tipológicos, processos

de esquematização e elementos relativos ao gênero”, confere a autora. O que perpassa todas

as posições teóricas em relação ao discurso “é o fato de se tratar de ‘uso interativo da língua’”

(Coutinho, 2004: 33 apud MARCUSCHI 2008, p. 84). Isso significa, nos dizeres de

Marcuschi (2008, p. 84) que “uso da língua no plano discursivo não é ‘um real objetivo e

estável’ captado simplesmente no plano da codificação-decodificação”.

Nesse sentido, a ideia do texto como ‘objeto de figura’ sugere que

[...] se trata de uma configuração, ou seja, de uma esquematização que

conduz a uma figura ou uma figuração. Não se trata de uma ordenação de

enunciados em sequência e sim de uma configuração global que pode ter até

mesmo um só enunciado ou mesmo um romance inteiro (COUTINHO,

2004: 33- 35 apud MARCUSCHI 2008, p. 84).

Isso posto, justifica Marcuschi (2008, p. 84) que “o texto é o observável, o fenômeno

linguístico empírico que apresenta todos os elementos configuracionais que dão acesso aos

demais aspectos da análise”.

É importante salientar ainda, nos dizeres de Coutinho (2004: 35-37 apud Marcuschi

2008, p. 84), que:

entre o discurso e o texto está o gênero, visto como prática social e prática

textual-discursiva que opera como a ponte entre o discurso como uma

atividade mais universal e o texto enquanto a peça empírica particularizada e

configurada numa determinada composição observável. Gêneros são

modelos correspondentes a formas sociais reconhecíveis nas situações de

comunicação em que ocorrem. Sua estabilidade é relativa ao momento

histórico-social em que surge e circula (COUTINHO 2004: 35 – 37 apud

MARCUSCHI, 2008, p. 84).

O gênero, então, de acordo com Marcuschi (2008, p. 85) apresenta dois aspectos

importantes:

51

(a) gestão enunciativa (escolha dos planos de enunciação, modos discursivos

e tipos textuais);

(b) composicionalidade (identificação de unidades ou subunidades textuais

que dizem respeito à sequenciação e ao encadeamento e linearização

textual).

Assim, ainda para Coutinho (2004:37 apud MARCUSCHI 2008, p. 85), “o gênero

prefigura o texto e o gênero define o que no texto empírico faz a figura do texto”. A figura a

seguir dá uma ideia disso:

FIGURA 10. O gênero como prefiguração do texto

Fonte: COUTINHO (2004, p.37 apud MARCUSCHI, 2008, p. 85)

Conforme Marcuschi (2008, p. 85), “a esquematização implica um trabalho de

construção de objetos, tal como se percebe quando se analisa o texto com suas

configurações”. De acordo com o autor, “essa esquematização, não é arbitrária, mas segue

pré-configurações culturais com funções e objetivos bem definidos, de certo modo, pré-

figurados pelo gênero que oferece uma organização composicional [...]” (MARCUSCHI,

2008, p. 85). Assim, o “gênero é uma escolha que leva consigo uma série de consequências

formais e funcionais” (Op. cit. 2008, p. 85).

Ainda segundo Marcuschi (2008, p. 85), a figura 10 apresenta “um gênero como uma

espécie de condicionador de atividades discursivas esquematizantes que resultam em escolhas

dentro de uma prática que levaria a pensar-se em esquematizações resultantes”. Assim,

“muitas decisões de textualização (configuração textual com suas estruturas, ordenamento

paragráfico etc.) devem-se à escolha do gênero” (MARCUSCHI, 2008, p. 85). Deste modo,

52

“o gênero inscreve também formas textuais que se manifestam no artefato linguístico” (Op.

cit. 2008, p. 85).

A Figura 11, a seguir, representa uma ideia a esse respeito:

FIGURA 11. O gênero - formas textuais que se manifestam no artefato linguístico

Fonte: COUTINHO (2004, p.38 apud MARCUSCHI, 2008, p.86)

Cavalcante (2016, p. 43 – 44), ao discutir a respeito da estabilidade que caracteriza os

gêneros discursivos, destaca que, “em qualquer sociedade, há uma variedade considerável de

motivos que fazem os indivíduos interagirem uns com os outros para, por exemplo, informar,

persuadir, reclamar, gerar uma ação, solicitar, contar uma história, anunciar, ensinar etc”.

Antes de prosseguirmos com a discussão, é relevante destacarmos que, no presente

trabalho, amparamo-nos na nomenclatura gêneros discursivos, embora utilizemos também a

terminologia gêneros textuais. Essa flutuação terminológica ocorre em virtude de usarmos

autores que empregam terminologias diferentes.

Assim, para atingir esses variados objetivos, nos dizeres de Cavalcante (2016, p. 44),

“as pessoas se utilizam de múltiplas possibilidades de interação linguística, em formas

específicas e mais ou menos estruturadas, as quais são convencionadas sócio-historicamente

para que as comunicações se realizem de modo satisfatório”. Ao contrário, nas palavras da

autora, “não teríamos condições de criar formas de interação absolutamente inéditas e nem

seríamos compreendidos, caso isso ocorresse” (Op. cit. 2016, p. 44).

Isso posto, Cavalcante (2016, p. 44) argumenta: “é nessa perspectiva que se inserem os

gêneros discursivos, ou seja, toda interação se dá por algum gênero discursivo que se realiza

por algum texto”. Nesse sentido, a autora traz a definição de que “os gêneros discursivos são

padrões sociocomunicativos que se manifestam por meio de textos de acordo com

necessidades enunciativas específicas” (CAVALCANTE, 2016, p. 44). Deste modo, conclui

53

que “trata-se de artefatos constituídos sociocognitivamente para atender aos objetivos de

situações sociais diversas”. Por esse motivo, “eles apresentam relativa estabilidade, mas seu

acabamento foi (e continua sendo) constituído historicamente”. (Op. cit. 2016, p. 44).

Para cada um dos objetivos de comunicação, ou melhor, para cada propósito

comunicativo, explica Cavalcante (2016, p. 44 – 45), “o indivíduo possui algumas

alternativas de comunicação, com um padrão textual e discursivo socialmente reconhecido,

isto é, um gênero do discurso [grifos do autor] que é adequado ao propósito em questão”.

Partindo de tais considerações, Cavalcante (2016, p. 45) pensa, por exemplo, em um

profissional que lide constantemente com a produção de textos escritos, como uma secretária.

Para ela, “a secretária deve saber de que gênero do discurso se utilizar, de acordo com os

objetivos que lhe são colocados e com a área em que atua”. A autora exemplifica a situação

da seguinte forma:

[...] se precisar pedir algo a um órgão, público ou privado, a secretária

deverá saber qual o gênero mais adequado para essa finalidade, como o

ofício. Assim, se precisar comunicar algo a outro setor da empresa na qual

trabalha, poderá optar por um ofício circular; se precisar dar satisfação ao

chefe sobre as atividades realizadas em um determinado período de tempo,

poderá produzir um relatório; já se precisar resumir os pontos-chaves de

uma reunião importante, poderá redigir uma ata, afinal, são esses gêneros os

já convencionados para tais fins (Op. cit. 2016, p. 45).

Cavalcante (2016) argumenta que, a mesma secretária, interagindo em outra área, a

acadêmica, por exemplo, no papel de uma estudante de pós-graduação, “constatará que esse

novo lugar lhe possibilitará a produção de outros gêneros, diferentes dos produzidos em seu

ambiente de trabalho, ainda que os propósitos possam se assemelhar” (CAVALCANTE, p.

45). Dentro desse contexto, a autora ilustra a situação, a seguir:

[...] para pedir uma declaração ou um histórico, por exemplo, ela deverá

fazê-lo por meio de um requerimento, não de um ofício, uma vez que o

ofício só é expedido de uma instituição para outra, ou de um setor da

instituição para outro. Um indivíduo, na condição de aluno, não pode, então,

emitir um ofício, mas a coordenação do curso a que ele pertence pode (Op.

cit. 2016, p. 45).

Nesse cenário, Cavalcante (2016, p. 46) aponta ainda que “haverá também gêneros

cuja estrutura e propósito são exclusivos do domínio acadêmico, tais como os resumos, as

resenhas, os artigos científicos, os seminários, as comunicações em eventos etc”. Desse modo,

considera que, “para cada situação em que essa secretária precisar interagir, ela

54

inevitavelmente produzirá textos que pertencem a determinados gêneros do discurso” (Op. cit.

2016, p. 46).

Assim, Cavalcante (2016, p. 46) confirma a informação de que “o propósito

comunicativo é muito importante para a configuração de um gênero, mas há outros fatores

que vão determinar a sua escolha e constituição”. Assim, a autora confirma:

[...] os gêneros se diversificam de acordo com a situação imediata de

comunicação, os elementos socioculturais historicamente constituídos, bem

como as necessidades específicas solicitadas por certas condições associadas

à modalidade (oralidade ou escrita), ao grau de formalismo, à possibilidade

de participação simultânea dos interlocutores, entre outros aspectos (Op. cit.

2016, p. 46).

Bakhtin (2003 apud Cavalcante, 2016, p. 46) certifica que “os gêneros discursivos

surgem para atender a uma determinada função: técnica, cotidiana, científica”. Justifica o

autor que “os gêneros são criados, firmados e compartilhados entre os membros de uma esfera

de comunicação humana – administrativa ou acadêmica, mas também jurídica, jornalística,

publicitária etc” (Op. cit. 2016, p. 47).

Assim sendo, Cavalcante (2016, p. 49) especifica que “os gêneros discursivos são,

simultaneamente, formas estabilizadas (ou seja, regulares, passíveis de estruturação) e

instáveis (ou seja, passíveis de sofrerem mudanças)”. A autora explica que “os gêneros são

estáveis porque resultam de atividades sociais que são reiteradas ao longo do tempo”

(CAVALCANTE, 2016, p. 49). Assim, a repetição de determinados propósitos

comunicativos, segundo a autora, “gera formas de comunicação que terminam por se

consagrar, mas que, a depender das práticas sociais e das convenções impostas pelo meio em

que circulam, podem sofrer variações, ou menos” (CAVALCANTE, 2016, p. 49). Frisa ainda

que “há gêneros discursivos da mídia eletrônica, como os e-mails pessoais, por exemplo, que

podem apresentar conteúdos dos mais diversos, mas que preservam a estrutura fixada pelo

gênero no meio digital” (Op. cit. 2016, p. 49).

Por outro lado, “os gêneros são instáveis também no sentido de que passam por

modificações, no decorrer do tempo e diante de situações que possibilitam alterações em

alguma de suas características [...] para atingirem suas finalidades”, confere a autora (Op. cit.

2016, p. 50 - 51). Para ela, isso acontece sempre que “novas necessidades podem demandar

adaptações, em algum aspecto temporariamente estabilizado de algum gênero discursivo”

(CAVALCANTE, 2016, p. 51).

55

Logo, “os gêneros discursivos podem sofrer transformações, em virtude das mudanças

nos propósitos comunicativos e/ou no contexto sociocultural” (CAVALCANTE, 2016, p. 51).

De acordo com Cavalcante (2016, p. 51), “outro aspecto interessante com relação aos

gêneros discursivos diz respeito ao modo como são aprendidos e utilizados”. Então, para a

autora, “considerando que os usuários dos gêneros assumem papéis e responsabilidades que

variam conforme o meio social no qual um gênero específico é produzido”, tem-se que:

[...] enquanto os gêneros cotidianos são aprendidos espontaneamente, como

as saudações, outros gêneros, como os acadêmicos, exigem um processo de

aprendizagem mais formal, que envolve não só a produção dos gêneros em

seu aspecto textual estrito, mas também a consideração de suas funções

discursivas (Op. cit. 2016, p. 51).

Afora isso, conclui Cavalcante (2016, p. 51) que, “há gêneros que só podem ser

produzidos por pessoas especializadas, que têm autoridade para tal, pois, do contrário, o texto

produzido poderá não ter validade, fato comum na esfera jurídica”.

Diante dessas considerações, discorreremos um pouco sobre a prática pedagógica

ancorada nos estudos sobre gêneros textuais que, nos dizeres de Schnewly e Dolz (1996 apud

Gomes 2013, p. 08), somente uma proposta de ensino-aprendizagem organizada a partir da

teoria de gêneros textuais “permite ao docente a observação e a avaliação das capacidades de

linguagem dos alunos, antes e durante sua realização, fornecendo-lhe orientações mais

precisas para sua intervenção didática”. Para os alunos, “o trabalho com gêneros constitui uma

forma de se confrontar com situações sociais efetivas de produção e leitura de textos e uma

maneira de dominá-las progressivamente”, conclui Schnewly e Dolz (1996 apud GOMES

2013, p. 08).

Em consonância com tal pensamento, Antunes (2003 apud GOMES, 2013, p. 08)

afirma que, em um contexto pedagógico pautado nos aportes da teoria de gêneros textuais,

“vai ter muita gente escrevendo bem melhor, com mais clareza e precisão, dizendo as coisas

com sentido e do jeito que a situação social pede que se diga” (ANTUNES, 2003, p. 66 apud

GOMES, 2013, p.08).

Com esse tipo de abordagem, ressalta Silva (2005 apud GOMES 2013, p. 08) que “o

trabalho com a leitura e com a produção de texto ficaria menos ‘pedagógico’ e mais próximo

das experiências sociais vivenciadas pelos alunos fora do ambiente escolar”. Ou seja:

Assumindo os termos dessa concepção e de suas implicações pedagógicas, a

escola poderá afastar-se da perspectiva nomeadora e classificatória

56

(centrada no reconhecimento das unidades e de suas nomenclaturas), com

seus intermináveis e intrincados exercícios de análise morfológica e sintática

com que prioritariamente se tem ocupado (e com os quais ninguém pode

interessar-se pela leitura, pela escrita ou por qualquer questão que diga

respeito ao uso da linguagem) (ANTUNES, 2003, p. 109 apud GOMES

2013, p. 08).

A partir da observação de como atuam os professores, Antunes (2003) traz a seguinte

exemplificação:

As coisas funcionam (salvo honrosas exceções) mais ou menos assim: se o

professor pretende ensinar sobre o “pronome”, por exemplo, começa por

selecionar as definições e classificações desta classe de palavras e, depois,

escolhe um texto em que apareçam pronomes, para nele identificar suas

várias ocorrências e classificá-las conforme a nomenclatura gramatical. Se o

texto é o objeto de estudo, o movimento vai ser o contrário: primeiro se

estuda, se analisa, se tenta compreender o texto (no todo e em cada uma de

suas partes – sempre em função do todo) e, para que se chegue a essa

compreensão, vão-se ativando as noções, os saberes gramaticais e lexicais

que são necessários. Ou seja, o texto é que vai conduzindo nossa análise e

em função dele é que vamos recorrendo às determinações gramaticais, aos

sentidos das palavras, ao conhecimento que temos da experiência, enfim.

Nessa perspectiva é que se pode perceber como não tem tanta importância

assim para discernir, por exemplo, se um termo é objeto indireto ou

complemento circunstancial de lugar. No texto, a relevância dos saberes é de

outra ordem. Ela se afirma pela função que esses saberes têm na

determinação dos possíveis sentidos previstos para o texto. (ANTUNES,

2003, p. 109 - 110 apud GOMES, 2013, p. 09).

Em suma, Antunes (2003, p. 111 apud GOMES 2013, p. 10) declara que “é nas

questões de produção e compreensão de textos e de suas funções sociais, que se deve centrar o

estudo relevante e produtivo da língua”, pois

Bons professores, como a aranha, sabem que lições, essas teias de palavras,

não podem ser tecidas no vazio. Elas precisam de fundamentos. Os fios, por

finos e leves que sejam, têm de estar amarrados a coisas sólidas: árvores,

paredes, caibros. Se as amarras são cortadas, a teia é soprada ao vento, e a

aranha perde a casa. Professores sabem que isso vale também para as

palavras: separadas das coisas, elas perdem seu sentido. Por si mesmas, elas

não se sustentam. Como acontece com a teia de aranha, se suas amarras às

coisas sólidas são cortadas, elas se tornam sons vazios: nonsense (ALVES,

2001, p. 19 apud GOMES, 2013, p. 10).

Acrescenta a autora:

Como se pode ver, aceitar as concepções de linguagem – como atividade

funcional, interativa, discursiva e interdiscursiva, como prática social situada

57

e imersa na realidade cultural e histórica da comunidade – acarreta visíveis

diferenças na vida da escola, consequentemente, no desempenho de

professores e alunos (ANTUNES, 2007, p. 157 apud GOMES, 2013, p. 11).

Nesse sentido, concordamos com o pensamento de Gomes (2013, p.11) ao afirmar que

“teríamos uma escola com um modelo educacional voltado para as diversas práticas

interacionais da vida social, dando assim a oportunidade ao aluno de vivenciar a importante

relação entre Educação, Letramento e Práticas Sociais”.

Antunes (2010, p. 71) também propõe que:

Um texto do tipo narrativo privilegia o uso dos tempos verbais pretéritos,

privilegia o uso de expressões que denotem sequência temporal dos fatos (o

antes, o durante e o depois) e a localização dos agentes nos cenários

referidos, privilegia a referência a entidades, a seres concretos ou abstratos,

entre outros aspectos. Em outro tipo, o descritivo, os objetos de referência

apresentam-se parados, estáticos, sem remissão a uma progressão temporal,

a uma mudança de tempo, o que vai se refletir na preferência pelo verbo no

presente ou no imperfeito do indicativo. Em um texto expositivo,

predominam as estratégias de transmissão de um saber já consubstanciado

em um corpo de princípios teóricos ou de explicação de um fenômeno, em

geral, apoiado em dados reais, mais ou menos objetivos. As relações de

causa e consequência são comuns nesse contexto. Lembramos ainda os

textos de definição (A Terra é um planeta), de apresentação de um conceito

(Os gêneros textuais são ações sociodiscursivas.), ou de uma ideia (A

virtude está no meio), representantes de um saber universal, em que

predomina o tempo presente, exatamente como expressão de algo que é

atemporal. Nos textos dissertativos, comumente reconhecidos como

opinativos ou de comentários, como um editorial, predominam os

argumentos em favor de uma posição, com verbos, em geral, no presente do

indicativo, como forma de expressão de um estado permanente de concepção

do tema – quase sempre polêmico – pelo menos no tempo da cena

discursiva. Nos textos injuntivos – prevalecem as formas verbais no

imperativo, uma vez que são gêneros instrucionais, ou seja, que trazem

instruções de como executar determinadas ações ou seguir determinado

programa (ANTUNES, 2010, p. 71).

Os tipos de textos, conforme reitera Antunes (2010, p. 72), “são definidos por

propriedades linguísticas e não são propriamente textos empíricos” (ver ainda Marcuschi,

2010:23). Quer dizer, “uma descrição não constitui um exemplar concreto de texto que circula

em determinado grupo social”, explica a autora (ANTUNES, 2010, p. 72). Para ela, “o que

existe, o que circula, de fato, são gêneros de texto, que eventualmente, podem incluir

sequências descritivas, mais ou menos extensas” (Op. cit. 2010, p. 71).

De acordo com a autora supracitada,

58

[...] os gêneros é que constituem textos empíricos, é que constituem textos

reais em circulação, os quais são regulados também por tipos de sequências

sintáticas e relações lógicas. São definidos por propriedades

sociodiscursivas, diferentemente, portanto, dos tipos, que são definidos por

propriedades linguísticas. Cumprem funções comunicativas específicas, quer

dizer, realizam-se com propósitos comunicativos determinados e facilmente

reconhecíveis pela comunidade em que circulam. Dessa forma, os gêneros

variam com o tempo, com as condições históricas de cada grupo, o que

significa dizer que alguns podem desaparecer outros se transmudar, outros,

surgir. A verdade é que temos consciência de que nossas ações de linguagem

e, consequentemente, nossas opções textuais não são absolutamente

originais: há um consenso geral sobre como se faz uma resenha, uma carta,

um edital de concurso, como se faz a apresentação ou a resenha de um livro

etc. Ou seja, procuramos nos conformar aos modelos preexistentes, já em

circulação em nossos grupos (ANTUNES, 2010, p. 72).

Para a autora, “esses modelos de gêneros abarcam o que se tem chamado a forma

composicional do gênero: trocando em miúdos, a forma como o texto é composto, é

desenvolvido” (ANTUNES, 2010, p. 72). É essa forma composicional, portanto, nos dizeres

da autora, que “regula o número de blocos ou de partes que determinado texto deve ter”.

Portanto, é essa forma que “regula o que deve aparecer em cada um desses blocos bem como

a sequência em que eles devem ocorrer” (ANTUNES 2010, p. 72 - 73).

Antunes (2010, p. 73) destaca que vale a pena ter em conta o seguinte:

Nem sempre é fácil identificar o gênero a que pertence um texto; ou seja, por

vezes é difícil reconhecer, com total segurança, se se trata desse ou daquele

gênero. É comum ficarmos na dúvida se se trata de um editorial, de um

artigo de opinião ou até mesmo de uma crônica. Quase sempre, convém

recorrer ao suporte para chegar a uma conclusão. Por vezes, é mais fácil

reconhecer a que gênero o texto não pertence do que o contrário.

Com base nessa informação, justifica a autora que “de qualquer maneira, a

importância de se acertar, exatamente, na identificação do gênero não é tão grande assim”

(ANTUNES 2010, p. 73). Importante para ela, “é reconhecer as características textuais que o

fazem cair nesse ou naquele gênero e não em outros é bem diferentes” (Op. cit.). Faraco e

Tezza (2003 apud Antunes 2010, p. 73) advertem: “convém resistir ao desejo de engavetar a

linguagem em divisões estanques. Na vida real, a linguagem e as intenções costumam se

alimentar umas às outras”.

Nesse sentido, “a competência comunicativa que se espera seja alcançada pela análise

de textos deve incidir, naturalmente, sobre o conhecimento das particularidades dos tipos e

dos gêneros de texto”, conclui Antunes (2010, p. 73).

59

Diante de tais considerações, passamos a uma apreciação do texto como unidade de

sentido.

3.3 O texto como unidade de ensino

Para Santos, Riche e Teixeira (2015, p. 97), “as atividades de leitura e escrita são

desempenhadas constantemente, nas diversas situações do cotidiano, como na leitura e na

escrita de e-mails, bilhetes, lista de compras, embalagens, placas, avisos, etc”. São, portanto,

“práticas de linguagem em situações de uso” (SANTOS, ROCHE e TEIXEIRA, 2015, p. 97).

Ainda para Santos, Riche e Teixeira, (2015, p. 97), “ler e escrever são também

ferramentas para comunicar, ampliar o conhecimento, instrumentos para criar identidade,

perfil pessoal e profissional, uma vez que somos seres construídos pela linguagem”. Por essas

ferramentas, destacam as autoras, “adquirimos ou não status e poder dentro da comunidade a

que pertencemos, pelo melhor ou pior desempenho na comunicação oral e escrita” (SANTOS,

RICHE e TEIXEIRA, 2015, p. 97).

Dessa forma, “um dos objetivos principais do ensino de português é desenvolver a

competência da comunicação em geral; cabendo, então, à escola ampliar o foco do trabalho

voltado para a leitura e a escrita, mas procurando também envolver a oralidade” (SANTOS,

RICHE e TEIXEIRA, 2015, p. 98).

Para que essa prática pedagógica se efetive, Santos, Riche e Teixeira (2015, p. 98)

destacam: “é importante o professor conhecer as propostas dos PCN de Língua Portuguesa e

entender o porquê de enfatizarem o trabalho com textos em sala de aula, o que significa uma

mudança de paradigma no ensino de língua portuguesa”.

Então, é importante, na escola, “trabalhar a produção textual numa visão interacional e

reflexiva do ensino da língua portuguesa, das competências comunicativas, da língua em seu

funcionamento a partir das condições de produção e recepção”, concluem as autoras (Op. cit.

2015, p. 98).

Santos, Riche e Teixeira (2015, p. 99 – 100) afirmam que, numa perspectiva

sociointeracional da linguagem,

[...] O texto é visto como um tecido formado de muitos fios que se

entrelaçam, compondo uma unidade significativa capaz de comunicar algo,

em um contexto histórico-social, e não como um amontoado de frases, uma

sucessão de enunciados interligados. Por isso, a sequência de enunciados

num texto não pode ser aleatória sob os pontos de vista linguístico,

discursivo ou cognitivo. Nele estão envolvidos diferentes componentes da

60

linguagem, como a sintaxe, a morfologia, aspectos semânticos- pragmáticos,

além das relações entre outros indivíduos e a situação discursiva (SANTOS,

RICHE e TEIXEIRA, 2015, p. 99 - 100).

Sobre o texto como unidade de ensino, Silva (2011, p. 148) ressalta:

trabalhar com a leitura, a compreensão e a produção textual deve ter como

meta primordial o desenvolvimento no aluno de habilidades que façam com

que ele tenha capacidade de usar um número sempre maior de recursos da

língua para produzir efeitos de sentido de forma adequada a cada situação

específica de interação humana (SILVA, 2011, p. 148).

Assim, considerando que os textos se materializam nos diversos gêneros existentes,

Silva (2011, p. 150) destaca que “trabalhar a língua materna a partir dos gêneros textuais é

trazer para dentro da sala de aula a realidade lá de fora”. Silva (2011, p. 150) enfatiza que “os

gêneros nos possibilitam sair do contexto do totalmente fictício, para o real” e “mostrar que o

bom texto é aquele que está perfeitamente adequado à situação para a qual foi produzido”

(Op. cit. 2011, p. 151). Assim, chegar a esse entendimento, de acordo com Silva (2011, p.

150), “nos exige trabalhar com eles a estrutura textual (forma), o conteúdo (o léxico,

construção frasal, informações), o estilo (formal, informal), entre outros pontos, no sentido de

verificar se o conjunto está adequado ao gênero e ao leitor/ouvinte”.

Para Silva (2011, p. 151), “o trabalho com a linguagem dessa forma dá oportunidade

aos alunos de se apropriarem dos mais diversos meios de comunicação, o que os coloca um

passo à frente, por exemplo, no mercado de trabalho”. Para a autora, “as atividades oriundas

dos gêneros textuais trazem para eles o exercício de intercâmbio, possibilitando o ingresso em

uma sociedade letrada” (SILVA, 2011, p. 151). Talvez o mais importante seja, na opinião da

autora, o fato de que “atividades com os gêneros textuais tendem a dessacralizar e

democratizar o ensino, haja vista que o objetivo é fazer com que os alunos possam interagir

mediante o uso dos gêneros textuais e entender, se não todos, muitos deles, pois são infinitos”

(Op. cit. 2011, p. 151).

A partir de então, passamos a uma explanação sobre o gênero discursivo crônica no

capítulo seguinte.

3.4 O Gênero Discursivo Crônica

Para o bom entendimento da crônica, de acordo com Moisés (1978, p. 246), “impõe-se

preliminarmente uma reflexão acerca do jornal (ou revista) como veículo de informação e

61

cultura”. Conforme o autor, “se encontram no jornal, duas categorias de texto linguístico: o

que cumpre as funções de informar os sucessos do dia e o que não se prende, regra geral, ao

vaivém cotidiano” (Op. cit. 1978, p. 246). Ao transferir o foco analítico para o autor do texto,

Moisés (1978, p. 246) observa que “uma coisa é escrever para o jornal e outra, bem diversa,

publicar no jornal”. Explica o autor que:

A reportagem, o editorial, as notícias, etc., são textos destinados

exclusivamente ao jornal, e somente ali cumprem sua missão. Textos

escritos para o jornal morrem automaticamente a cada dia, substituídos por

outros, que exercem idêntica função e conhecem igual destino: o

esquecimento (Op. cit. 1978, p. 247).

Acrescenta o autor que “lado a lado se encontram textos publicados no jornal,

entendido este como um dentre outros meios de comunicação. Tais escritos procuram o jornal

como um meio de divulgação, não como o melhor nem o único” (Op. cit. 1978, p. 247).

Moisés (1978) destaca:

Um poema, um conto, um ensaio, um artigo crítico, uma novela, um

romance, uma peça de teatro que se estampasse no jornal, [...], decorreria do

ato de publicar no jornal, como poderia fazê-lo em qualquer outro órgão

difusor de mensagens escritas (MOISÉS, 1978, p. 247).

Segundo Moisés (1978, p. 247), “a crônica move-se entre ser no e para o jornal, uma

vez que se destina, inicial e precipuamente, a ser lida no jornal ou revista”. A crônica, explica

o autor, “difere, porém, da matéria substancialmente jornalística naquilo em que, apesar de

fazer do cotidiano o seu húmus permanente, não visa à mera informação” (Op. cit. 1978, p.

247). Confere o autor que, “o objetivo da crônica reside em transcender o dia-a-dia pela

universalização de suas virtualidades latentes, objetivo esse via de regra minimizado pelo

jornalista de ofício” (Op. cit. 1978, p. 247).

Moisés (1978, p. 247) explica, então que, “a crônica oscila, pois, entre a reportagem e

a Literatura, entre o relato impessoal, frio e descolorido de um acontecimento trivial, e a

recriação do cotidiano por meio da fantasia”. O autor acrescenta que, no primeiro caso, “a

crônica envelhece rapidamente e permanece aquém do território literário” (Op. cit. 1978, p.

247).

No entanto, considera Moisés (1978) que, “o mais da crônica em que se localiza tal

segmento livra-se da reportagem pura e simples graças a outros ingredientes propriamente

literários, dos quais é de ressaltar o humor” (Op. cit. 1978, p. 248). Salienta que, em

62

toda crônica, por conseguinte, os indícios de reportagem se situam na

vizinhança, quando não mescladamente, com os literários; e é predominância

de uns e de outros que fará tombar o texto para o extremo do jornalismo ou

da Literatura (Op. cit. 1978, p. 248).

Moisés (1978, p. 248) reafirma, então que, “no primeiro caso, a crônica dura o espaço

do jornal, uma vez que se identifica com a matéria jornalística”. Por conseguinte, o autor

questiona: “crônica se destina ao jornal, ou revista, transferi-la para o livro, como se tem feito

nos últimos anos, significa preservá-la de esquecimento e atestado de valor? Sim e não” (Op.

cit. 1978, p. 248). Em tese, confirma o autor que, “o fato de a crônica estar voltada para o

cotidiano fugaz e endereçar-se ao público de jornal e revista, já é uma limitação”. Ressalta

que como “fruto do improviso, da resposta imediata ao acontecimento que fere a rotina do

escritor ou lhe suscita reminiscências caladas no fundo da memória, a crônica não pressupõe o

estatuto do livro” (Op. cit. 1978, p. 248).

Todavia, “a crônica merece a atenção que lhe vem sendo dispensada ultimamente não

só porque apresenta qualidades literárias apreciáveis, mas porque, e sobretudo, busca subtrair-

se à fugacidade jornalística assumindo a perenidade do livro”, considera o autor (Op. cit.

1978, p. 248). Conclui que, “continuasse encerrada nos periódicos, não haveria como

examiná-la: o tratamento crítico de um texto literário implica, via de regra, o livro” (Op. cit.

1978, p. 248).

Conforme Moisés (1978, p. 250), “mesmo as crônicas bem conseguidas não fogem ao

destino que lhes assinala, desde o nascimento, ser criação breve e leve”. Acrescenta o autor

que “a crônica é por natureza uma estrutura limitada, não apenas exteriormente, mas, e acima

de tudo, interiormente” (MOISÉS, 1978, p. 250). Sobre a estreita relação da crônica com

jornal, o autor considera que “ainda quando em livro, a crônica jamais rompe sua vinculação

com o jornal” (MOISÉS, 1978, p. 250).

O autor supracitado ressalta que “embora procure vencer a efemeridade do jornal, a

crônica somente encontra ali guarida: é escrita no e para o jornal (ou revista), depende do dia-

a-dia momentoso e/ou da memória do escritor” (MOISÉS, 1978, p. 251). O autor também

revela que “qualquer tema serve de assunto, quer de Política, Economia, Sociologia, quer de

Futebol, Trânsito, Viagens, Amizade, etc.” (Op. cit. 1978, p. 251).

Concernente ao contexto jornalístico da crônica, Sá (1987, p. 10) justifica:

A crônica surge primeiro no jornal, herdando a sua precariedade, esse seu

lado efêmero de quem nasce no começo de uma leitura e morre antes que se

63

acabe o dia, no instante em que o leitor transforma as páginas em papel de

embrulho, ou guarda os recortes que mais lhe interessam, num arquivo

pessoal. O jornal, portanto, nasce, envelhece e morre a cada 24 horas. Nesse

contexto, a crônica também assume essa transitoriedade, dirigindo-se

inicialmente a leitores apressados, que lêem nos pequenos intervalos da luta

diária, no transporte ou no raro momento de trégua que a televisão lhes

permite (Op. cit. 1987, p. 10).

Ainda de acordo com Sá (1987, p. 11), “a sintaxe da crônica lembra alguma coisa

desestruturada, solta, mais próxima da conversa entre dois amigos do que propriamente do

texto escrito”. Para o autor:

Há uma proximidade maior entre as normas da língua escrita e da oralidade,

sem que o narrador caia no equívoco de compor frases frouxas, sem a

magicidade da elaboração, pois ele não perde de vista o fato de que o real

não é meramente copiado, mas recriado. O coloquialismo, portanto, deixa de

ser a transcrição exata de uma frase ouvida na rua, para ser a elaboração de

um diálogo entre o cronista e o leitor, a partir do qual a aparência simplória

ganha sua dimensão exata (Op. cit. 1987, p. 11).

Isso posto, Sá (1987, p. 11) explica que “o dialogismo equilibra o coloquial e o

literário”. Para o autor:

Esse dialogismo permite que o lado espontâneo e sensível permaneça como

o elemento provocador de outras visões do tema e subtemas que estão sendo

tratados numa determinada crônica, tal como acontece em nossas conversas

diárias e em nossas reflexões, quando também conversamos com um

interlocutor que nada mais é do que o nosso outro lado, nossa outra metade,

sempre numa determinada circunstância. [...] O termo assume aqui o sentido

específico de pequeno acontecimento do dia-a-dia, que poderia passar

despercebido ou relegado à marginalidade por ser considerado insignificante

(Op. cit. 1987, p. 11).

Conclui Sá (1987, p. 11) que, com o seu toque de lirismo reflexivo:

O cronista capta esse instante brevíssimo que também faz parte da condição

humana e lhe confere (ou lhe devolve) a dignidade de um núcleo

estruturante de outros núcleos, transformando a simples situação no diálogo

sobre a complexidade das nossas dores e alegrias.

Prosseguindo a discussão sobre o contexto jornalístico e literário da crônica, Sá (1987,

p. 85) destaca que, “no momento em que a crônica passa do jornal para o livro, tem-se a

sensação de que ela superou a transitoriedade e se tornou eterna”. Entretanto, conforme o

64

autor, “todos os escritores demonstram sua perplexidade diante da inevitável passagem do

tempo, corroendo os seres e as coisas” (Op. cit. 1987, p. 85).

Sá (1987, p. 85) argumenta que

A mudança de suporte provoca um novo direcionamento: o público do jornal

é mais apressado e mais envolvido com as várias matérias focalizadas pelo

periódico; o público do livro é mais seletivo, mais reflexivo até pela

possibilidade de escolher um momento mais solitário para ler o autor de sua

preferência. Em muitos casos, o público chega a ser basicamente igual, uma

vez que o mesmo leitor que frui a vida através das reportagens também a

fruirá através das páginas literárias: a atitude diante do texto é que muda

[grifos do autor].

De acordo com Sá (1987, p. 85), “a mudança de suporte implica a mudança de atitudes

do consumidor e com isso, sai lucrando a crônica”. Para o autor,

as possibilidades de leitura crítica se tornam mais amplas, a riqueza do texto,

agora liberto de certas referencialidades, atua com maior liberdade sobre o

leitor – que passa a ver novas possibilidades interpretativas a partir de cada

releitura (Op. cit. 1987, p. 85 – 86).

Isso posto, quando a crônica passa do jornal para o livro, conclui Sá (1987, p. 86) que

“amplia-se a magicidade do texto, permitindo ao leitor dialogar com o cronista de forma bem

mais intensa, ambos agora mais cúmplices no solitário ato de reinventar o mundo pelas vias

da literatura”.

Certifica ainda o autor que,

O próprio estudo da obra se torna mais realizável, permitindo que o

estudioso descubra as características de cada escritor. No caso específico da

leitura de uma determinada crônica, sua publicação em livro também facilita

o estudo intertexto para melhor confirmação dos caminhos interpretativos.

(Op. cit. 1987, p. 86).

Dialogando com as ideias do texto, Koche, Marinello e Boff (2012, p. 69) destacam que

“a crônica consiste num gênero textual em que se faz uma reflexão sobre acontecimentos

pitorescos do cotidiano”.

Para as autoras supracitadas, “a crônica não se limita à mera reflexão de fatos, mas vai

além, mostrando ângulos não percebidos. É fragmentária, pois não tem a pretensão de abordar

o fato como um todo, mas apenas alguns detalhes significativos” (Op. cit. 2012, p. 69).

65

De acordo com Coutinho e Souza (apud KÖCHE, MARINELLO e BOFF, 2012, p.

69), “o fato, que é em geral um fim para o jornalista, para o cronista é um pretexto para

divagações, comentários e reflexões”. Os autores revelam tratar-se de “um gênero textual

altamente pessoal, uma reação individual e íntima diante da vida, das coisas ou dos seres”

(Op. cit. 2012, p. 69). Dentro desse contexto, “o cronista, num estilo leve, pode tratar de

problemas sociais, de fraquezas humanas, de fatos ocorridos na sociedade, de uma notícia

marcante, de um filme, de uma viagem, entre outros temas” (Op. cit. 2012, p. 69).

Ainda segundo Köche, Marinello e Boff (2012, p. 69), “a crônica, geralmente, aborda

fatos do dia a dia, ao primeiro olhar, sem importância”. O cronista, então, segundo Martins e

Saito (2006 apud Köche; Marinello e Boff, 2012, p. 69) “faz com que esses fatos banais

sejam significativos, na medida em que mostra ‘a grandeza’ escondida neles”.

Uma das marcas desse gênero, para Köche, Marinello e Boff (2012, p. 69), é “abarcar

o comentário do fato jornalístico, a ficção, a ironia, o humor diante da sociedade e a defesa

das ideias, tendo sempre um olhar crítico e inesperado”. Para as autoras, “a crônica tem uma

estrutura livre, e pode valer-se do diálogo, do monólogo, da entrevista, da resenha e de

personagens reais ou fictícios” (Op. cit. 2012, p. 69).

Costa (apud KÖCHE, MARINELLO e BOFF, 2012, p. 70) postula que, “dependendo

da intenção do autor, esse gênero pode apresentar tipologia textual de base narrativa,

dissertativa, entre outras”. Explica que “a crônica com tipologia de base narrativa possui

poucas personagens, e as referências espaciais e temporais são limitadas: as ações ocorrem

num único espaço, e o tempo normalmente corresponde a alguns minutos ou algumas horas”

(Op. cit., 2012, p. 70).

Outro enfoque importante a respeito da crônica é apontado por Costa (apud KÖCHE,

MARINELLO e BOFF, 2012, p. 70):

A crônica com tipologia textual de base narrativa admite o narrador em

primeira pessoa, participando dos acontecimentos, ou em terceira pessoa do

discurso, observando os fatos. A crônica busca aproximar o enunciador do

leitor pelo uso frequente do discurso indireto livre e de perguntas retóricas.

Costa (apud KÖCHE, MARINELLO e BOFF, 2012, p. 70), sobre os aspectos que

tendem a aproximar o enunciador do leitor, no gênero crônica, explica:

O discurso indireto livre ocorre quando há fusão entre personagem e

narrador, pois, entremeando à narrativa, aparecem diálogos indiretos da

personagem, que complementam a fala do narrador. Por sua vez, as

66

perguntas retóricas estão presentes quando o narrador propõe ao leitor

questionamentos sem esperar uma resposta, com a intenção de levá-lo a

pensar sobre o assunto.

Os autores Köche, Marinello e Boff (2012, p. 70) reiteram que:

a princípio, a crônica é publicada em revistas ou jornais, na forma impressa

ou on-line, criando assim uma familiaridade com o leitor. Posteriormente,

muitos autores reúnem suas crônicas em livro, em forma de coletânea.

Na tentativa de aprofundar o conhecimento a respeito do referido gênero,

apresentamos dois tipos de crônicas que, de acordo com Köche, Marinello e Boff (2012, p.

70), “são construídas a partir de dados da realidade, a saber: literária e não literária”. Segundo

as autoras, “a crônica literária pertence à ordem do narrar e a não literária, à ordem do relatar”

(Op. cit., 2012, p. 70). Para elas,

Na crônica literária, o cronista transforma os elementos objetivos em

estéticos a partir de sua liberdade e capacidade imaginativa. Reinventa o real

pelo uso particular das palavras, através do emprego da linguagem

conotativa e subjetiva, deixando transparecer suas emoções e desvelando

poeticamente o instante. A linguagem conotativa refere-se ao significado que

certas palavras e expressões assumem, modificando seu sentido literal, e a

linguagem subjetiva mostra a visão pessoal do indivíduo e sua reação

emotiva frente a algo. Já na crônica não literária, o autor vale-se da realidade

objetiva, com seus dados passíveis de comprovação. Para que sua intenção

seja comunicada, usa, sobretudo, a linguagem denotativa e objetiva (Op. cit.

2012, p. 70 – 71).

Conforme Machado (apud KÖCHE, MARINELLO e BOFF, 2012, p. 71), “a crônica

não é propriamente uma notícia, mas um artigo sobre a notícia”. Destaca que “entre as

crônicas não literárias, as mais comuns são a crônica jornalística, policial, esportiva, política,

social e de moda” (Op. cit. 2012, p. 71).

Já Soares (1989, p. 65) considera a crônica como “conscientemente fragmentária, por

não pretender captar a totalidade dos fatos”. Para ela, “a crônica impôs-se, inicialmente, nos

quadros da literatura brasileira, por Machado de Assis (ainda conhecida como “folhetim”),

Olavo Bilac e João do Rio” e destaca que, “entre os cronistas mais recentes, sobressaem-se,

Carlos Drummond de Andrade, Eneida, Millôr Fernandes, Fernando Sabino, Paulo Mendes

Campos, Rubem Braga, Sérgio Porto” (SOARES, 1989, p. 65).

Faz-se necessário destacar que o tipo de crônica privilegiado em nosso estudo é o

narrativo.

67

4. ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA

Nessa seção, mostramos os aspectos metodológicos da nossa investigação. Iniciamos

com a abordagem da pesquisa.

4.1 Uma pesquisa – Duas fases

Nossa pesquisa foi desenvolvida em dois momentos. O primeiro momento trata-se de

uma análise que fizemos do fenômeno da responsabilidade enunciativa no gênero crônica. O

segundo refere-se ao momento em que realizamos uma sequência didática na qual o professor

de língua portuguesa possa trabalhar a responsabilidade enunciativa a partir do gênero

crônica.

4.2 Métodos de pesquisa

O método de pesquisa, conforme Marconi e Lakatos (2011, p. 46) equivale ao

“conjunto das atividades sistemáticas e racionais que, com maior segurança e economia,

permite alcançar o objetivo – conhecimentos válidos e verdadeiros –, traçando o caminho a

ser seguido, detectando erros e auxiliando as decisões do cientista”.

De acordo com o exposto, apreende-se que “a finalidade da atividade científica é a

obtenção da verdade, por intermédio da comprovação de hipóteses, que, por sua vez, são

pontes entre a observação da realidade e a teoria científica, que explica a realidade”

(MARCONI e LAKATOS, 2011, p. 46). Em nosso trabalho, pautamo-nos pelo método

indutivo, sobre o qual faremos uma abordagem a seguir.

4.2.1 O método indutivo

Em se tratando do método indutivo, Gonçalves (2005, p. 36) apresenta a definição, a

seguir:

É o método caracterizado pelo seu tipo de argumento, que, partindo “de

premissas particulares, conclui por uma geral [...] [possibilitando] o

desenvolvimento de enunciados gerais sobre as observações acumuladas de

casos específicos ou proposições que possam ter validade universal,

constituindo-se na base do fazer científico, a partir do estabelecimento da

“diferença entre os enunciados científicos, das outras formas de expressão de

68

conhecimento do mundo construídas pelo homem” (OLIVEIRA, 1997 apud

Op. cit., p. 32).

Esse método “[...] nasceu com a filosofia moderna e sua intenção de superar os

critérios de verdade aceitos até o momento: a autoridade, a tradição, o preconceito, o hábito e

a conjectura ultrapassando a simples observação”, conforme Nascimento (2002, p. 18).

Outra definição de Método Indutivo pode ser tomada de Marconi e Lakatos (2011, p.

53), que o caracteriza como

Um processo mental por intermédio do qual, partindo de dados particulares,

suficientemente constatados, infere-se uma verdade geral ou universal, não

contida nas partes examinadas. Portanto, o objetivo dos argumentos é levar a

conclusões cujo conteúdo é muito mais amplo do que o das premissas nas

quais se basearam, concluem as autoras (Op. cit. 2011, p. 53).

Assim, conforme Marconi e Lakatos (2011, p. 54), para a aplicação do método

indutivo:

são necessários três elementos fundamentais, assim apresentados:

observação dos fenômenos – nessa etapa, observam-se os fatos ou

fenômenos e os analisam, com a finalidade de descobrir as causas de sua

manifestação; descoberta da relação entre eles – na segunda etapa, procura-

se por intermédio da comparação, aproximar os fatos ou fenômenos, com a

finalidade de descobrir a relação constante existente entre eles; generalização

da relação – nessa última etapa, generaliza-se a relação encontrada na

precedente, entre os fenômenos e fatos semelhantes, muitos dos quais ainda

não se observou (e muitos, inclusive, inobserváveis).

No que se refere à construção do corpus, faremos uma breve abordagem a seguir.

4.3 Construção do corpus

Para a primeira parte de nossa investigação, momento em que analisamos o fenômeno

da responsabilidade enunciativa no gênero crônica, constituímos um corpus a partir de quatro

crônicas escolhidas da obra pertencente à coleção “Para gostar de Ler”, volume 4, da Editora

Ática, ano 2003.

Composta por um total de 20 crônicas, a referida obra apresenta uma variada seleção

de textos, organizados a partir dos seguintes tópicos: 1) Utilidades – O telefone, Rubem

Braga; Da utilidade dos animais, Carlos Drummond de Andrade; Condôminos, Fernando

Sabino e Automóvel: Sociedade Anônima, Paulo Mendes Campos. 2) Estilos – Glória, Carlos

69

Drummond de Andrade; Eloquência Singular, Fernando Sabino; Os diferentes estilos, Paulo

Mendes Campos e Carta ao Prefeito, Rubem Braga. 3) Observações – Com o mundo nas

mãos, Fernando Sabino; A fugitiva, Carlos Drummond de Andrade; O fiscal da noite, Rubem

Braga e Segredo, Paulo Mendes Campos. 4) Palavras – Palavras amargas, Paulo Mendes

Campos; O crime (de plágio) perfeito, Rubem Braga; Em código, Fernando Sabino e Calça

literária, Carlos Drummond de Andrade. 5) As expectativas e a realidade – Mocinho, Carlos

Drummond de Andrade; Odabed, Rubem Braga; A mulher vestida, Fernando Sabino; Para

Maria da Graça, Paulo Mendes Campos.

Para a apreciação dos textos optamos pela seleção das crônicas a seguir:

- De Rubem Braga, foram escolhidas O telefone e Carta ao Prefeito;

- De Carlos Drummond de Andrade, Glória;

- De Fernando Sabino, Em código;

Ressaltamos que a sequência didática levou em consideração essas mesmas crônicas.

4.4 Categorias de análise

Parte de nossa investigação tem como principal objetivo analisar as marcas de (não)

assunção da responsabilidade enunciativa no gênero discursivo crônica. Nesse sentido, essa

pesquisa pautou-se nos critérios propostos por Gomes (2014). Para a construção das análises,

definimos como critérios para a apresentação dos exemplos, quadros contendo fragmentos das

4 crônicas escolhidas nas quais serão apresentadas e discutidas as marcas de (não)

responsabilidade enunciativa. Antes de partirmos para as análises, faz-se necessário

conhecermos os critérios propostos por Gomes (2014), apresentados a seguir:

70

QUADRO 02. Classificação do PDV e das marcas de (não) responsabilidade enunciativa

GRUPO CLASSIFICAÇÃO DO

PDV

MARCAS LINGUÍSTICAS DE

RESPONSABILIDADE E DE NÃO

RESPONSABILIDADE

GRUPO A 1- PDV mediatizado ou grau

zero de responsabilidade

enunciativa

2-

- diferentes tipos de representação da fala (discurso

direto, direto livre, indireto, indireto livre e

narrativizado);

- fenômenos de modalização autonímica;

- marcadores de discurso reportado, a exemplo de

segundo, de acordo com, para etc.;

- marcas de asserção, quando referidas a terceira pessoa;

- índices de pessoas;

- dêiticos espaciais e temporais;

- tempos verbais – com destaque especial para o futuro

do pretérito, o condicional e o imperfeito;

- verbos de atribuição da fala como afirmam, dizem,

consideram etc.;

- reformulações do tipo de fato, na verdade, em todo

caso etc.;

- oposição do tipo alguns pensam (ou dizem) que X, nós

pensamos (dizemos) que Y etc.;

- indicações de um suporte de percepções e de

pensamentos relatados, desde que não acompanhados

por índices de primeira pessoa;

- conectores (especialmente os adversativos);

- elementos gráficos e ortográficos, a exemplo de uso

das aspas, uso de itálico, negrito etc.

GRUPO B PDV impessoal - enunciados impessoais;

- construções com gerúndio.

GRUPO C PDV parcial ou quase-RE

do tipo assumimos / concordamos com, nosso

pensamento é semelhante a etc.;

- modalidades.

GRUPO D PDV total ou assunção da

responsabilidade

enunciativa

- marcas de asserção, quando referidas a primeira

pessoa;

- índices de pessoas;

- dêiticos espaciais e temporais;

- tempos verbais com destaque para o presente;

- indicações de um suporte de percepções e de

pensamentos relatados, quando acompanhados por

índices de primeira pessoa;

- exclamações

- atos de fala. Fonte: GOMES (2014)

Ressaltamos, igualmente, que para a construção da sequência didática, utilizamos as

marcas propostas por Gomes (2014).

71

5. A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NO GÊNERO CRÔNICA

5.1 Análise da Crônica Carta ao Prefeito – Rubem Braga

Percebemos na crônica analisada várias marcas de (não) assunção de responsabilidade

enunciativa, por exemplo: conectores, modalizadores, índices de pessoas, dêiticos espaciais e

temporais, marcas de asserção. Vejamos os exemplos a seguir:

EXEMPLO 01.

Crônica: Carta ao Prefeito

Marcas de (não)

responsabilidade enunciativa

Acostumei-me, assim, a viver perigosamente. Não sou

covarde como esses equilibristas estrangeiros que

passeiam sobre fios entre os edifícios. Vejo-os lá em cima,

longe, dos ônibus e lotações, atravessando a rua pelos ares e

murmuro: eu quero ver é no chão.

- marcas de asserção, referidas

a primeira pessoa;

- modalizadores.

No exemplo 01, a presença da primeira pessoa desinencial nos verbos ser e querer em

frases assertivas, no presente do indicativo, revela a assunção da responsabilidade enunciativa

pelo locutor. Assim, nas assertivas “Não sou covarde como esses equilibristas estrangeiros

que passeiam sobre fios entre os edifícios” e “eu quero ver é no chão”, temos o engajamento

do locutor no texto.

EXEMPLO 02.

Crônica: Carta ao Prefeito Marcas de (não)

responsabilidade enunciativa

Também não sou assustado como esse senhor deputado

Tenório Cavalcanti, que mora em Caxias e vive armado;

moro bem no paralelo 38, entre Ipanema e Copacabana, e às

vezes, nas caladas da noite, percorro desarmado várias boites

desta zona e permaneço horas dentro da penumbra entre

cadeiras que esvoaçam e garrafas que se partem docemente

na cabeça dos fiéis em torno. E estou vivo.

- índice de pessoas; - marcas de asserção, quando

referidas a primeira pessoa;

- modalizador.

72

No exemplo 02, o locutor também assume a responsabilidade pelo dizer ao usar os

verbos na primeira pessoa do singular do indicativo em “Também não sou assustado como

esse senhor deputado Tenório Cavalcanti, que mora em Caxias e vive armado”. O mesmo

acontece com os verbos “morar”, “percorrer”, “permanecer” e “estar”.

O uso do modalizador “docemente” marca o engajamento do locutor e,

consequentemente, a assunção do PDV dos enunciados, uma vez que o locutor emite opinião

sobre os enunciados. Assim, podemos perceber o engajamento do locutor em “... e permaneço

horas dentro da penumbra entre cadeiras que esvoaçam e garrafas que se partem docemente

na cabeça dos fiéis em torno. E estou vivo”.

EXEMPLO 03.

Crônica: Carta ao Prefeito Marcas de (não) responsabilidade enunciativa

Sei também que não me resta nenhum

direito terreno; respiro o ar dos

escapamentos abertos e me banho até no

Leblon, considerado um dos mais lindos

esgotos do mundo; aspiro o perfume da

curva do Mourisco e a brisa da Lagoa e –

sobrevivo. E compreendo que, embora

vós administreis à maneira suíça, nós

continuaremos a viver à maneira carioca.

- índice de pessoas; - conector;

- marcas de asserção, quando referidas a primeira

pessoa;

O exemplo 03 traz a presença da primeira pessoa desinencial nos verbos saber,

respirar, banhar, aspirar, sobreviver e compreender em frases assertivas no presente do

indicativo, o que mais uma vez instaura a assunção da responsabilidade enunciativa pelo dizer

por parte do locutor.

Vale destacar, nesse exemplo, o uso do conector adversativo “embora”. Os conectores

adversativos, segundo Gomes (2014, p. 107), “por si só já possuem o poder de modificar a

orientação argumentativa do enunciado”. Nesse sentido, o uso de “embora” assinala a

“mudança do PDV, pois contrapõe a ideia do locutor” (Cf. GOMES, 2014) que, após tecer

“ironicamente” elogios à administração do prefeito, muda sua orientação argumentativa

através do enunciado, “... embora vós administreis à maneira suíça, nós continuaremos a

viver à maneira carioca” (GOMES, 2014, p. 107). Porém, mesmo ao manifestar uma ideia de

oposição, o uso do conector adversativo “embora” faz prevalecer a ideia de que todos

73

continuarão vivendo à maneira carioca, ou seja, enfrentando todos os problemas apontados na

cidade do Rio de Janeiro.

EXEMPLO 04.

Crônica: Carta ao Prefeito Marcas de (não) responsabilidade

enunciativa

Eu é que não me queixo; já me

aconteceu escapar de morrer dentro de um

táxi em uma tarde de inundação e ter o

consolo de, chegando em casa, encontrar a

torneira perfeitamente seca.

- marcas de asserção, quando referidas a

primeira pessoa;

- Modalizador.

No exemplo 04, o locutor assume a responsabilidade pelo dizer ao usar o verbo na

primeira pessoa do singular do indicativo em “Eu é que não me queixo...”.

Destacamos, também, o uso do modalizador “perfeitamente”, enquanto marca do

engajamento do locutor, e, consequentemente, a assunção do PDV dos enunciados, uma vez

que o locutor emite sua opinião sobre o dizer. Nota-se esse engajamento quando o locutor

afirma: “já me aconteceu escapar de morrer dentro de um táxi em uma tarde de inundação e

ter o consolo de, chegando em casa, encontrar a torneira perfeitamente seca”. Dessa forma, o

uso do modalizador marca o engajamento do locutor que enfatiza a falta d’agua, o que

podemos considerar como uma crítica ao prefeito.

EXEMPLO 05.

Crônica: Carta ao Prefeito

Marcas de (não) responsabilidade

enunciativa

Mas não é para dizer isso que vos

escrevo. É para agradecer a providência

que vossa administração tomou nestas

últimas quatro noites, instalando uma

esplêndida lua cheia em Copacabana.

- Conector;

- marcas de asserção referidas a primeira

pessoa.

Novamente, o locutor usa um conector adversativo. O uso de “mas” assinala, nos

dizeres de Gomes (2014, p. 107), “a mudança do PDV, por contrapor a ideia do locutor”, que,

novamente, após tecer de forma irônica elogios à administração do prefeito, afirma que não o

74

escreveu para esse propósito, mas para agradecê-lo também de forma irônica, por todos os

problemas que, possivelmente, teriam sido resolvidos, ao mencionar, de forma metafórica,

que o prefeito havia instalado uma esplêndida lua em Copacabana.

Pelo exposto, percebemos que o locutor usa, quase sempre, a primeira pessoa do

singular, assumindo, portanto, a responsabilidade enunciativa pelo dizer, em um texto

narrativo que corrobora, de maneira argumentativa, para tecer uma forte crítica ao sistema

político.

5.2 Análise da crônica O Telefone - Rubem Braga

Nessa segunda crônica analisada, percebemos, igualmente, várias marcas de (não)

assunção de responsabilidade enunciativa, por exemplo: conectores, modalizadores, verbos de

atribuição da fala, marcadores de discurso reportado e elementos gráficos e ortográficos.

Vejamos os exemplos que seguem.

EXEMPLO 06.

Crônica: O telefone

Marcas de (não) responsabilidade

Tomamos uma modesta cerveja e falamos coisas

antigas [...] – quando o telefone tocou. Atendi.

Era alguém que queria falar ao meu amigo. Um

assinante mais leviano teria chamado o amigo

para falar. Sou, entretanto, um severo

respeitador do Regulamento; em vista do que,

comuniquei ao meu amigo que alguém queria

lhe falar, o que infelizmente eu não podia

permitir; estava, entretanto, disposto a tomar e

transmitir qualquer recado. Irritou- se o amigo,

mas fiquei inflexível, mostrando-lhe o artigo 2

do Regulamento, segundo o qual o aparelho

instalado em minha casa só pode ser usado,

“pelo assinante, pessoas de sua família, seus

representantes ou empregados”.

- conectores;

- modalizador;

- marcador de discurso reportado;

- elemento gráfico e ortográfico.

No exemplo 06, percebemos que o locutor começa por assumir a responsabilidade

enunciativa ao usar verbos na primeira pessoa do singular e/ou do plural, bem como o uso do

modalizador “infelizmente”. No entanto, para respaldar sua ação de não deixar o amigo falar

em seu aparelho de telefone, ele usa outra fonte enunciativa, qual seja, o artigo 2 do

75

regulamento para uso do aparelho em sua casa, através dos marcadores de discurso relatado

“segundo” e das aspas, elemento que tem por função básica marcar o discurso de outro.

Essa posição do locutor se fortalece através do uso do conector adversativo:

“entretanto”, mencionado duas vezes para marcar a mudança na orientação argumentativa.

Sendo assim, o locutor deixa claro que, se dependesse dele, o amigo usaria o telefone, isto é,

não é ele quem não quer que o amigo use o telefone, mas é o regulamento que assim o impõe.

Tal procedimento preserva sua face diante do amigo e espera que este o entenda.

Destacamos, ainda, o uso do conector “mas” que também modifica a orientação

argumentativa do enunciado, assinala a mudança do PDV e contrapõe as ideias (irritar o

amigo x ficar inflexível).

Ao utilizar tais marcas de (não) assunção da responsabilidade enunciativa, podemos

inferir que o produtor do texto faz uma crítica velada às companhias telefônicas que impõem

diversas regras aos seus usuários.

EXEMPLO 07.

Crônica: O telefone

Marcas de (não) responsabilidade

Devo dizer que perdi o amigo, mas salvei o

Respeito ao Regulamento; “dura lex sed lex”; eu

sou assim. Sei também (artigo 4) que se minha

casa pegar fogo terei de vos pagar o valor do

aparelho – mesmo se esse incêndio (artigo 9) for

motivado por algum circuito organizado pelo

empregado da Companhia com o material da

Companhia. Sei finalmente (artigo 11) que se,

exausto de telefonar do botequim da esquina a

essa distinta Companhia para dizer que meu

aparelho não funciona, eu vos chamar e vos

disser, com lealdade e com as únicas expressões

adequadas, o meu pensamento, ficarei

eternamente sem telefone, pois “o uso de

linguagem obscena constituirá motivo

suficiente para a Companhia desligar e retirar

o aparelho”.

- conectores;

- elemento gráfico e ortográfico.

O exemplo 07 traz o conector adversativo “mas” contrapondo ideias e assinalando

uma mudança do PDV, (perder o amigo x salvar o respeito ao Regulamento). Com isso, o

locutor aponta que, prevalece a ideia de respeitar o Regulamento, tornando assim, inviável a

conversa entre o amigo e a pessoa que ligou.

76

Vale ressaltar o uso do princípio “dura lex sed lex”, expressão latina cujo significado é

“A lei é dura, mas é lei.”, usado pelo locutor para marcar seu distanciamento em relação ao

dizer através de uma fonte de poder consolidada pela tradição. Assim, o locutor ao usar o

argumento de poder e os elementos ortográficos (aspas) não assume o PDV e o imputa a outra

instância enunciativa, tirando de si a culpabilidade pelo amigo não poder usar o telefone.

5.3 Análise da crônica Glória – Carlos Drummond de Andrade

Percebemos na crônica analisada várias marcas de (não) assunção da responsabilidade

enunciativa, por exemplo: diferentes tipos de representação da fala (discurso direto, indireto);

marcas de asserção, quando referidas a terceira pessoa; índices de pessoas; dêiticos espaciais e

temporais; verbos de atribuição da fala; conectores.

EXEMPLO 08.

Crônica: Glória

Marcas de (não) assunção da

responsabilidade enunciativa

Meu filho é artista de televisão, contando o

senhor não acredita. Eu mesmo às vezes penso

que é ilusão. Com oitos anos, imagine. Estava

brincando na pracinha lá da vila quando

passaram uns homens e olharam muito pra ele.

Meu filho, não é pra me gabar, mas é uma lindeza

de Menino – Jesus, aí um dos homens falou assim

pra ele: Quer fazer um teste, ó garoto? O que é

teste? ele respondeu. Aí o homem explicou, não

sei bem qual é a explicação, levaram ele pra um

edifício na cidade, tiraram um bocado de retratos

dele, depois falaram assim: Você foi aprovado. Aí

ele se espantou: Mas eu não fiz exame, que troço é

esse?

- verbos de atribuição da fala;

- diferentes tipos de representação da

fala (discurso direto, indireto);

- marcas de asserção, quando referidas a

primeira pessoa;

- conectores.

No exemplo 8, as marcas de asserção referidas a primeira pessoa em “Meu filho é

artista de televisão, contando o senhor não acredita. Eu mesmo às vezes penso que é

ilusão.” apontam que o locutor assume a responsabilidade pelo dizer, ao falar do seu filho.

Os verbos de atribuição de fala, representados por falar e responder, configuram, nos

dizeres de Gomes (2014, p. 115) “um PDV mediatizado ou grau zero de responsabilidade

enunciativa, ou seja, o locutor não assume a responsabilidade pelo dizer e atribui o PDV a

77

outra fonte, bem como alguns tipos de representação da fala (discurso direto)” em Quer fazer

um teste, ó garoto? O que é teste? ele respondeu., que também são marcas linguísticas que

configuram um PDV mediatizado ou grau zero de responsabilidade enunciativa. Podemos

perceber que o locutor usa o discurso de outrem para fundamentar a ideia de que seu filho é

bonito e talentoso. Com isso, ele preserva sua face e retira a parcialidade que o texto traria,

caso fosse a própria mãe falando da criança.

Merece que destaquemos o uso do adversativo “mas” na proposição Meu filho, não é

pra me gabar, mas é uma lindeza de Menino – Jesus. Os conectores argumentativos, via de

regra, marcam uma oposição, logo, uma mudança de PDV e uma mudança na orientação

argumentativa. Nesse caso, mais do que isso, o locutor busca preservar sua face novamente e

usa a adversidade como recurso para isso, posto que se a criança não fosse tão linda, a mãe

estaria, assim, apenas se gabando.

EXEMPLO 09.

Crônica: Glória

Marcas de (não) assunção da

responsabilidade enunciativa

Aí mandaram ele de volta pra casa, não, antes

falaram assim pra ele: manda seu pai aqui na

agência receber o cachet. Ele ficou espantado,

falou assim: Que troço é esse? Eles responderam:

tutu. Aí ele baixou a cabeça e respondeu baixinho:

Eu não tenho pai. E mãe você tem? Ele respondeu

que mãe ele tinha, e levantou a cabeça. Então

manda ela aqui, mas o garoto é esperto, deu uma de

sabido: Eu mesmo não posso receber? se fui eu que

fiz tudo sozinho. Não, você não pode, tem que ser

sua mãe, diz a ela que venha das 2 às 4, trazendo

carteira de identidade.

- verbos de atribuição da fala;

- marcas de asserção, referidas a terceira

pessoa;

- conectores.

O uso dos verbos de atribuição de fala responder e falar cujo emprego configura, nos

dizeres de Gomes (2014, p. 115), “um PDV mediatizado ou grau zero da responsabilidade

enunciativa”, mais uma vez é encontrado. Assim, o locutor atribui o PDV a outra fonte que

não é ele em “Ele ficou espantado, falou assim: Que troço é esse? Eles responderam: tutu.”

78

EXEMPLO 10.

Crônica: Glória

Marcas de (não) assunção da

responsabilidade enunciativa

Vou lá na agência assim mesmo. Larguei meu

serviço. Fui. Tinha um mundão de gente, eu não

sabia quem é que podia me atender, andei rolando

de uma sala pra outra, até que afinal um cara de

bigodão, atrás da parede de vidro com um óculo no

meio, falou assim: É comigo, trouxe a carteira?

Eu expliquei que carteira eu não tinha, mas sou

lavadeira muito acreditada na Zona Norte, muitas

madamas da Rua Conde de Bonfim podem atestar

que eu sou eu mesma e mãe de meu filho, há 25

anos que trabalho de lavar roupa. Ele abanou a

cabeça, falou assim: Nada feito, não tenho

ordem de pagar sem identidade. Mas o meu filho

trabalhou, moço, eles ficaram satisfeitos com o

trabalho dele, tanto que prometeram pagar um tal

de cachet...

- conector;

- índices de pessoas;

- verbos de atribuição da fala;

- diferentes tipos de representação da fala

(discurso direto);

- marcas de asserção, quando referidas a

terceira pessoa.

O exemplo 10 também traz o conector adversativo “mas” contrapondo ideias e

assinalando uma mudança de PDV, (o fato de a senhora não possuir a carteira de identidade x

ser lavadeira acreditada na Zona Norte). Nesse sentido, percebemos que com a oposição das

ideias em “Eu expliquei que carteira eu não tinha, mas sou lavadeira muito acreditada na

Zona Norte, muitas madamas da Rua Conde de Bonfim podem atestar que eu sou eu mesma e

mãe de meu filho, há 25 anos que trabalho de lavar roupa”, a lavadeira assume a

responsabilidade pelo dizer, e reforça seu PDV ao utilizar-se dos argumentos “Muito

acreditada na zona norte” e “Muitas madamas podem atestar”. Ainda sobre o uso do conector

adversativo “mas”, em “Ele abanou a cabeça, falou assim: Nada feito, não tenho ordem de

pagar sem identidade. Mas o meu filho trabalhou, moço, eles ficaram satisfeitos com o

trabalho dele, tanto que prometeram pagar um tal de cachet...”, percebemos que na oposição

das ideias (não ter ordem de pagar sem identidade x meu filho trabalhou), a lavadeira também

assume a responsabilidade pelo dizer e reforça seu PDV ao enunciar “eles ficaram satisfeitos

com o trabalho dele, tanto que prometeram pagar um tal de cachet...” Percebemos ainda nesse

exemplo que, a partir da presença de verbos de atribuição da fala em “Ele abanou a cabeça,

falou assim...”, o locutor imputa a responsabilidade a outra fonte enunciativa ao afirmar

“Não tenho ordem de pagar sem identidade”.

79

A presença de verbos de atribuição da fala, o uso do conector “mas” e diferentes tipos

de representação da fala (discurso direto) em “Ele abanou a cabeça, falou assim: Nada

feito, não tenho ordem de pagar sem identidade. Mas o meu filho trabalhou, moço...”

configuram um PDV mediatizado ou grau zero da responsabilidade enunciativa. A lavadeira,

ao fazer uso do conector “mas”, embora indique oposição, assume a responsabilidade pelo

dizer e reforça que o filho precisa receber o cachet porque trabalhou.

EXEMPLO 11.

Crônica: Glória

Marcas de (não)

responsabilidade enunciativa.

Aí, eu não tinha mais vontade de chorar e disse pra ele:

Escuta aqui, moço, quanto é que meu filho tem pra

receber? Ele respondeu: 50 cruzeiros. Ah, é isso?

Respondi. Pode ficar pra agência. Perdi meu dia de

trabalho, gastei trem, gastei ônibus, andei a pé neste solão,

não vou me chatear por causa dessa micharia. Um cara que

estava escutando falou assim: A senhora vai jogar fora

esse 50 mangos? E daí? respondi pra ele. Meu filho vale

muito mais, a gente não fica mais pobre por causa disso,

ele agora é artista, amanhã se Deus e a Virgem Maria

ajudar, vai ganhar milhões. Nem precisa ganhar, só o

orgulho que eu sinto por ele ter passado no teste! Saí de lá

com esse orgulho bonito no coração, meu filho é artista,

meu filho é artista, ia repetindo sozinha, na rua me

olhavam admirados, mas eu nem dei bola, fui pra casa e

ligo a televisão o dia inteiro, trabalho vendo ela, até chegar a

hora de meu filho aparecer no comercial comendo doce de

coco.

- verbos de atribuição da fala;

- diferentes tipos de representação

da fala (discurso direto);

- marcas de asserção, quando

referidas a primeira pessoa.

No exemplo 11, o locutor também assume a responsabilidade pelo dizer ao usar os

verbos na primeira pessoa do singular do indicativo em “Meu filho vale muito mais, a gente

não fica mais pobre por causa disso, ele agora é artista, amanhã se Deus e a Virgem

Maria ajudar, vai ganhar milhões.” O mesmo acontece em “Meu filho é artista, meu filho

é artista, ia repetindo sozinha, na rua me olhavam admirados, mas eu nem dei bola.” No

referido exemplo, também observamos a oposição do conector “mas” (... meu filho é artista,

meu filho é artista, ia repetindo sozinha, na rua me olhavam admirados, mas eu nem dei bola,

fui pra casa ligo a televisão o dia inteiro...), cujo PDV que prevalece é o da mãe a respeito do

que o filho representa para ela, um menino talentoso. Com relação à presença dos verbos de

80

atribuição de fala em “Aí, eu não tinha mais vontade de chorar e disse pra ele: Escuta

aqui, moço, quanto é que meu filho tem pra receber?” e “Ele respondeu: 50 cruzeiros.

Um cara que estava escutando falou assim: A senhora vai jogar fora esse 50 mangos?”,

observamos que o emprego dos verbos “respondeu” e “falou”, configura também um PDV

mediatizado ou grau zero de responsabilidade enunciativa, onde o locutor atribui o PDV a

uma outra fonte.

5.4 Análise da crônica Em Código – Fernando Sabino

Na crônica analisada, percebemos várias marcas de (não) assunção de

responsabilidade enunciativa, por exemplo: conectores, modalizadores, índices de pessoas,

diferentes tipos de representação da fala (discurso direto), marcas de asserção, quando referidas a

primeira pessoa. Vejamos os quadros a seguir:

EXEMPLO 12.

Crônica: Em código Marcas de (não)

responsabilidade enunciativa

Fui chamado ao telefone. Era o chefe de escritório de meu

irmão:

– Recebi de Belo Horizonte, um recado dele para o

senhor. É uma mensagem meio esquisita, com vários itens,

convém tomar nota. O senhor tem um lápis aí?

– Tenho. Pode começar.

– Então lá vai. Primeiro: minha mãe precisa de uma nora.

– Precisa de quê?

– De uma nora.

– Que história é essa?

– Eu estou dizendo ao senhor que é um recado meio

esquisito. Posso continuar?

– Continue.

- índices de pessoas;

- diferentes tipos

de representação da fala

(discurso direto);

O exemplo 12 traz a presença da primeira pessoa desinencial nos verbos ir e

perceber em frases assertivas, no presente do indicativo, o que instaura a assunção da

responsabilidade enunciativa pelo dizer por parte do locutor. Assim, em “Fui chamado ao

telefone” e “Recebi de Belo Horizonte, um recado dele para o senhor”, é possível

perceber que o locutor faz uso de assertivas referidas a primeira pessoa que instauram a

assunção da responsabilidade enunciativa pelo dizer. No referido exemplo, ainda percebemos

diferentes tipos de representação da fala (discurso direto), que configuram, nos dizeres de

81

Gomes (2014, p. 115), “um PDV mediatizado ou grau zero de responsabilidade enunciativa”.

Dentre esses tipos de representação da fala (discurso direto) podemos destacar: “– Então lá

vai. Primeiro: minha mãe precisa de uma nora.” “– Precisa de quê?” “– De uma nora.”

“– Que história é essa?” “– Eu estou dizendo ao senhor que é um recado meio esquisito.

Posso continuar?”

EXEMPLO 13.

Crônica: Em código

Marcas de (não) responsabilidade

enunciativa

– Foi o que eu preveni ao senhor. E tem mais.

Quinto: não sou colgate, mas ando na boca de

muita gente. Sexto: poeira é a minha penicilina.

Sétimo: carona, só de saia. Oitavo…

– Chega! – protestei, estupefato. – Não vou ficar

aqui tomando nota disso, feito idiota.

– Deve ser carta em código, ou coisa parecida – e

ele vacilou: Estou dizendo ao senhor que

também não entendi, mas enfim… Posso

continuar?

- marcas de asserção, referidas a

primeira pessoa;

- conector;

No exemplo 13, as marcas de asserção referidas a primeira pessoa em “Foi o que eu

preveni ao senhor.” e “Estou dizendo ao senhor que também não entendi, mas enfim…

Posso continuar?” também configuram um PDV mediatizado ou grau zero de

responsabilidade enunciativa. Nesse sentido, o locutor não assume a responsabilidade pelo

dizer, mas prepara o interlocutor sobre o estranhamento que aquela mensagem meio esquisita

e com vários itens causaria ao texto.

Destacamos, ainda, o uso do conector “mas” que modifica a orientação argumentativa

do enunciado, e consequentemente, assinala a mudança do PDV e contrapõe as ideias (o fato

de não conseguir entender nada x a possibilidade de continuar as anotações).

82

EXEMPLO 14.

Crônica: Em código

Marcas de (não) responsabilidade

enunciativa

Desliguei, atônito, fui até refrescar o rosto com

água, para poder pensar melhor. Só então me

lembrei. Haviam-me encomendado uma crônica

sobre essas frases que os motoristas costumam

pintar, como lema, à frente dos caminhões. Meu

irmão, que é engenheiro e viaja sempre

pelo interior fiscalizando obras, prometera

ajudar-me, recolhendo em suas andanças farto e

variado material. E ele viajou, o tempo passou,

acabei esquecendo completamente do trato, na

suposição de que o mesmo lhe acontecera.

Agora, o material ali estava. Era só fazer a crônica.

Deus, eu e o Rocha! Tudo explicado! Rocha era o

motorista, Deus era Deus mesmo, e eu, o caminhão.

- índices de pessoas;

- marcas de asserção, referidas à

primeira pessoa;

- modalizador.

O exemplo 14 traz a presença da primeira pessoa desinencial nos verbos desligar, ir e

lembrar, em frases assertivas no presente do indicativo, o que instaura a assunção da

responsabilidade enunciativa pelo dizer por parte do locutor.

Destacamos, também, o uso do modalizador “completamente”, enquanto marca do

engajamento do locutor, e, consequentemente, a assunção do PDV dos enunciados, uma vez

que o locutor emite sua opinião sobre o dizer (Cf. GOMES, 2014). Percebe-se esse

engajamento quando o locutor afirma “E ele viajou, o tempo passou, acabei esquecendo

completamente do trato, na suposição de que o mesmo lhe acontecera”. Dessa forma, o uso

do modalizador marca o engajamento do locutor que enfatiza o esquecimento do trato feito

com o irmão com o qual havia combinado recolher em suas andanças frases de pára-choque

de caminhão. É interessante frisarmos também a presença da primeira pessoa desinencial no

verbo acabar em frase assertiva no presente do indicativo, o que mais uma vez instaura a

assunção da responsabilidade enunciativa pelo dizer por parte do locutor com relação ao

combinado feito com o irmão.

A partir da análise realizada, podemos considerar que há uma heterogeneidade grande

de PDV no gênero discursivo crônica. Assim, encontramos como PDV frequente na primeira

crônica analisada, o PDV do locutor, que pode ser percebido nas marcas de asserção, referidas

a primeira pessoa, índice de pessoas, bem como, através do uso de modalizadores. Já na

83

segunda crônica, percebemos não só o PDV do locutor, mas também, outras fontes

enunciativas que podem ser notadas através de marcadores de discurso reportado e elementos

gráficos e ortográficos. Nas terceira e quarta crônicas, temos também, além do PDV do

locutor, outras fontes enunciativas por meio do uso de verbos de atribuição de fala, diferentes

tipos de representação da fala (discurso direto, indireto), marcas de asserção, referidas a

terceira pessoa e índices de pessoas.

Conforme nos orienta Gomes (2014, p. 138), “esses PDV podem ser identificados

linguisticamente por muitas marcas materializadas no texto". Nos exemplos analisados,

encontramos 93 ocorrências de (não) responsabilidade enunciativa.

Apresentamos o seguinte gráfico com o percentual com que cada marca apareceu em

nossa análise:

GRÁFICO 01. Marcas de (não) responsabilidade encontradas na análise

5

12 12

18

13 12

19

2

02468

101214161820

Fonte: A AUTORA (2016)

Pelo exposto no gráfico, podemos identificar, em uma escala de maior ou menor

ocorrência, a seguinte classificação de ocorrência das marcas de (não) responsabilidade:

1 – marcas de asserção – 19 ocorrências;

2 – verbos de atribuição de fala – 18 ocorrências;

3 – diferentes tipos de representação de fala e elementos gráficos e ortográficos – com

12 de representação de fala e 3 elementos gráficos e ortográficos;

4 – índices de pessoas – 13 ocorrências;

5 – conectores – 12 ocorrências;

6 – Modalizadores – 5 ocorrências;

84

7 – marcadores do discurso reportado – 2 ocorrências.

Podemos perceber que as marcas linguísticas que desempenham um papel relevante na

sinalização da orientação argumentativa do enunciador são as marcas de asserção, bem como

aquelas usadas para marcar o discurso de outra fonte enunciativa, a exemplo dos verbos de

atribuição da fala e os diferentes tipos de representação de fala.

Assim, concordamos com o pensamento de Gomes (2014, p. 141), ao afirmar que “a

(não) assunção da responsabilidade enunciativa se configura como mecanismo argumentativo

fortemente marcado pelo produtor do texto com vista a seus propósitos argumentativos”.

Desse modo, segue a orientação de Escribano (2009, p. 47 – 49 apud GOMES 2014, p. 141)

que afirma que no discurso,

a intenção argumentativa se sustenta em grande medida nas palavras

distantes (nas vozes de distintos enunciadores, seja para negá-las, como

argumento antiorientado, ou para apoiar nelas o próprio ponto de vista, como

argumento coorientado), com o que se consegue legitimar o próprio critério

e dirigir a opinião do receptor para determinadas conclusões que se mostram,

desta maneira, como válidas e verdadeiras.

Isso posto, concordamos com Gomes (2014, p. 141) quando diz que

discutir esses mecanismos de (não) responsabilidade enunciativa em

variados gêneros discursivos é oferecer ferramentas para que o cidadão leia

textos identificando os diversos PDV presentes e seus efeitos de sentido, o

que, seguramente, contribuirá para um melhor entendimento do processo de

produção e compreensão de textos, logo, para uma melhor formação do

indivíduo com base na autonomia e na criticidade.

Nesse sentido, entendemos que trabalhar as marcas de (não) assunção da

responsabilidade enunciativa no gênero discursivo crônica também poderá proporcionar ao

nosso aluno um novo olhar sobre a leitura e a escrita de textos, não só no âmbito escolar, mas

também, nos textos de circulação social.

85

6 PROPOSTA DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA O ENSINO DA

RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO CRÔNICA

Conforme já foi destacado anteriormente, na presente pesquisa, tivemos a pretensão de

elaborar uma sequência didática envolvendo o fenômeno da responsabilidade enunciativa no

gênero discursivo crônica. Escolhemos a crônica por entendermos que o referido gênero é

bastante pertinente, principalmente para o processo de leitura e escrita dos alunos da

modalidade de ensino da Educação de Jovens e Adultos, por tratar em seus textos de assuntos

ligados ao cotidiano.

Para Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 82), “uma ‘sequência didática’ é um

conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero

textual oral ou escrito”. Para esses autores, o objetivo principal de uma sequência didática é

“ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou

falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de comunicação” (DOLZ,

NOVERRAZ E SCHNEUWLY, 2004, p. 83).

Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) apresentam, ainda, a estrutura de base de uma

sequência didática, qual seja:

1 - Apresentação da situação;

2 - Produção inicial;

3 - Módulo 1;

4 - Módulo 2;

5 - Módulo n;

6 - Produção final;

Com base nesses pressupostos, partimos para a elaboração de uma proposta de

sequência didática para o ensino da responsabilidade enunciativa com o gênero discursivo

crônica.

Ressaltamos que a presente sequência didática, dividida em 2 módulos, objetiva

trabalhar o fenômeno da responsabilidade enunciativa no gênero discursivo crônica, a partir

das marcas linguísticas de (não) assunção da RE, proporcionando aos alunos atividades

relevantes que contribuam para o desenvolvimento da aprendizagem e criticidade perante o

texto.

Antes, apresentamos no quadro a seguir, as informações gerais de um plano de aula

elaborado para ser aplicado numa turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA – 8° período)

na Escola Municipal Profª Trindade Campelo, no município de Currais Novos, RN.

89

QUADRO 03 - Informações gerais da Sequência Didática

Série Escolar 8º período da Educação de Jovens e Adultos (EJA)

Tempo 3 meses

Tema A Responsabilidade Enunciativa no Gênero Discursivo Crônica

Gênero Discursivo Crônica

Objetivos

Geral: Verificar como se manifesta o fenômeno da responsabilidade enunciativa no gênero discursivo crônica.

Específicos:

1) identificar, descrever, analisar e interpretar que vozes estão presentes no gênero discursivo crônica e quais seus efeitos de sentido;

2) identificar, descrever e analisar que marcas textuais nos levam a identificar essas vozes;

3) refletir sobre as contribuições do estudo do gênero discursivo crônica na formação socio-cultural-textual-discursiva dos discentes.

Conteúdo

- estrutura composicional do gênero crônica;

- elementos linguísticos, textuais, discursivos e pragmáticos do

gênero crônica;

- marcas de (não) assunção da RE no gênero crônica

Metodologia Através de uma abordagem sóciointeracionista, o professor propicia aos alunos o acesso a diversos exemplares do gênero discursivo crônica.

Avaliação O professor avaliará os alunos pelas atividades desenvolvidas durante o projeto e também pela produção final.

Recursos Didáticos Quadro branco, fotocópias, computador, projetor, livro didático, slides, vídeos, jogos de quebra-cabeça.

Referências

BRAGA, Rubem; ANDRADE, Carlos Drummond; SABINO, Fernando; CAMPOS, Paulo Mendes. Crônicas 4. Para gostar de ler. 12ª ed. São

Paulo: Ática, 2003.

FERREIRA, Telma Sueli Farias (Org.). Produção e Aplicação de Sequências Didáticas: Experiências de (futuros) professores de língua

inglesa. Jundiaí, Paco Editorial: 2016.

Programa Gestão da Aprendizagem Escolar – Gestar II. Língua Portuguesa: Atividades de apoio à Aprendizagem 5 – AAA5: estilo, coerência e

coesão (Versão do Professor). Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica, 2008.

RIOLFI, Cláudia et al. Ensino de língua portuguesa. Coleção Ideias em Ação. CARVALHO, Maria Pessoa de. (Coord.). São Paulo: Cengage

Learning, 2015.

Fonte: A AUTORA (2016)

90

Conforme Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 84), a apresentação da situação

“prepara os alunos para a produção inicial, que pode ser considerada uma primeira tentativa

de realização do gênero que será, em seguida, trabalhado nos módulos”. A apresentação da

situação é, portanto, “o momento em que a turma constrói uma representação da situação de

comunicação e da atividade de linguagem a ser executada”, consideram os autores (Op. cit.,

2004, p. 85).

Nesse momento, duas dimensões principais podem ser distinguidas:

a) Apresentar um problema de comunicação bem definido.

A primeira dimensão é a do projeto coletivo de produção de um gênero oral ou escrito,

proposto aos alunos de maneira bastante explícita para que, conforme Dolz, Noverraz e

Schneuwly (2004, p.84), “eles compreendam o melhor possível a situação de comunicação na

qual devem agir; qual é, finalmente, o problema de comunicação que devem resolver,

produzindo um texto oral ou escrito”. Deste modo, devem-se dar indicações que respondam às

seguintes questões:

• Qual é o gênero abordado?

• A quem se dirige a produção?

• Que forma assumirá a produção?

• Quem participará da produção?

b) Preparar o conteúdo dos textos que serão produzidos.

A segunda dimensão é a dos conteúdos. Na apresentação da situação, é

preciso que os alunos percebam, imediatamente, a importância desses

conteúdos e saibam com quais vão trabalhar. O cerne de um debate pode, por

exemplo, ser apresentado através da escuta de breves tomadas de posição; de

um tema geral – por exemplo, animais ou homens e mulheres célebres -,

podem ser retirados subtemas para um artigo enciclopédico; para um

seminário, os alunos deverão conhecer bem o que devem explicar a outrem e

terão, eventualmente, aprendido os conteúdos em outras áreas de ensino

(história, geografia, ciências, etc.). Se for o caso de uma carta do leitor, os

alunos deverão compreender bem a questão colocada e os argumentos a

favor e contra as diferentes posições. Para redigir um conto, eles deverão

saber quais são seus elementos constitutivos: personagens, ações e lugares

típicos, objetos mágicos etc (DOLZ, NOVERRAZ E SCHNEUWLY, 2004,

p. 85).

Assim, é interessante ressaltar que, mediante o gênero discursivo que escolhemos para

a nossa sequência didática, os alunos, para redigir uma crônica narrativa, por exemplo,

deverão saber quais são seus elementos constitutivos: personagem, enredo, tempo e espaço.

91

Nesse sentido, a fase inicial de apresentação da situação “permite fornecer aos alunos

todas as informações necessárias para que conheçam o projeto comunicativo visado e a

aprendizagem de linguagem a que está relacionado”, consideram Dolz, Noverraz e Schneuwly

(2004, p. 85).

Primeira produção:

Nesse momento, então, o professor escolherá um texto do gênero discursivo crônica e

exibirá para os alunos. Depois, deverá fazer a leitura e apresentar a estrutura composicional

do gênero. Em nosso caso, escolhemos a crônica ‘O telefone’ de Rubem Braga, por tratar-se

de uma crônica indicada ao nível da turma pela professora pesquisadora, que está inserida na

modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Após a apresentação da situação, o professor deverá motivar os alunos à escrita da

produção inicial. Nesse sentido, o aluno, nessa aula, deverá construir um texto a partir de um

parágrafo inicial. Como aquecimento, será realizada a brincadeira do PLAT para que os

alunos desenvolvam as suas ideias.

Atividade inspiradora: PLAT (P – personagem; L – lugar; A – ação e T – tempo).

Objetivos: De maneira lúdica, identificar como se constrói a unidade de sentido nos

textos. Construir um texto a partir de um parágrafo inicial.

Conteúdo: Gênero Discursivo Crônica ; elementos da narrativa.

Recursos Didáticos: Quadro, marcador de quadro branco, material xerografado,

recipiente.

Procedimentos:

1º. Retire uma carta do jogo PLAT para preenchimento.

2º. Invente respostas imaginárias para preencher os itens da carta.

P – HOMEM ALTO

L – PRAIA

A – ANDAR

T – ONTEM

3º. Deposite a sua carta novamente no recipiente trazido pelo professor.

4º. Depois de embaralhadas, retire uma nova carta para a sua jogada.

5º. Quando cada colega tiver uma nova carta, será dada a largada.

6º. Com a sua nova carta, você deverá imaginar uma sequência de fatos e, para

aquecer o jogo, poderá contá-los aos amigos.

92

7º. Já na 2ª rodada, retire uma nova carta e construa um parágrafo contando o que você

imaginou.

8º. Quando as histórias estiverem prontas, é hora de contar à turma e verificar as

características das invenções: sem sentido, estranha, confusa, pouco engraçada, muito

engraçada, etc.

9º. Registrar as histórias que se destacarem na turma e ajudar os colegas a fazer um

mural na sala.

Faz-se necessário destacar que o objetivo da aula é fazer com que os alunos percebam,

ainda que a partir do jogo, a presença de partes contribuintes do texto narrativo que lhe

garantem a unidade significativa e a progressão das ideias.

MÓDULO I:

1º Encontro

Objetivos: Revisar os pontos discutidos na aula anterior e retomar a leitura da crônica

“O telefone” de Rubem Braga. Conhecer um pouco da biografia de Rubem Braga. Conhecer e

analisar algumas marcas linguísticas de (não) responsabilidade enunciativa. Explorar no texto

o uso dos conectores adversativos MAS, PORÉM, ENTRETANTO, como marcas

linguísticas de (não) responsabilidade enunciativa.

Conteúdo: Gênero Discursivo Crônica; Conectores Interfrásticos / Marcas linguísticas

de responsabilidade e não responsabilidade enunciativa.

Recursos Didáticos: Material xerografado, quadro branco, marcador de quadro branco.

Procedimentos:

1º. Entregar material xerografado da crônica “O telefone” de Rubem Braga para que

os alunos realizem uma leitura silenciosa do texto;

2º. Realizar uma leitura em voz alta discutindo as ideias principais do texto;

3º. Revisar os principais pontos discutidos no texto, fazendo os seguintes

questionamentos aos alunos:

- O que levou o cronista a fazer o texto? Que assunto motivou sua criação?

- Você já teve que reclamar de algum produto que adquiriu e apresentou defeito?

- Que produtos foram esses? Como foi o procedimento de reclamação usado por você?

4º. Apontar as marcas linguísticas de responsabilidade e não responsabilidade

enunciativa presentes na crônica (conectores adversativos; marcador de discurso reportado;

elemento gráfico e ortográfico) e discutir sobre seus efeitos de sentido no texto como, por

exemplo:

93

- Observe o trecho a seguir retirado da crônica O telefone:

Tomamos uma modesta cerveja e falamos coisas antigas [...] – quando o telefone

tocou. Atendi. Era alguém que queria falar ao meu amigo. Um assinante mais leviano teria

chamado o amigo para falar. Sou, entretanto, um severo respeitador do Regulamento; em vista

do que, comuniquei ao meu amigo que alguém queria lhe falar, o que infelizmente eu não

podia permitir; estava, entretanto, disposto a tomar e transmitir qualquer recado. Irritou- se o

amigo, mas fiquei inflexível, mostrando-lhe o artigo 2 do Regulamento, segundo o qual o

aparelho instalado em minha casa só pode ser usado, “pelo assinante, pessoas de sua família,

seus representantes ou empregados”.

a) Considerando que os conectores argumentativos marcam, via de regra, uma

mudança na orientação argumentativa, destaque as duas ideias que o conector entretanto, em

sua primeira ocorrência nesse fragmento, contrapõe.

b) Aponte quem é o responsável por cada ideia apresentada;

c) Há no fragmento, uma passagem destacada pelo recurso das aspas. Indique a função

das aspas nesse fragmento.

d) Quem é o responsável pelo conteúdo apresentado nesse fragmento marcado pelas

aspas?

e) Qual o propósito do locutor do texto ao usar a voz do regulamento de telefonia?

f) Classifique a palavra segundo de acordo com o contexto em que ela aparece nesse

fragmento e depois diga qual sua função nessa passagem.

5º. Apresentar material xerografado do cronista Rubem Braga.

2º Encontro:

Objetivos: De maneira mais precisa, introduzir o assunto crônica; Apresentar as

principais características do gênero; Apontar os nomes de alguns cronistas brasileiros.

Conteúdo: Gênero Discursivo Crônica.

Recursos Didáticos: Quadro, marcador de quadro branco, material xerografado.

Procedimentos:

1º. Reconhecer o gênero discursivo crônica;

2º. Identificar aspectos e características do gênero crônica;

3º. Conhecer os nomes de alguns cronistas.

3º Encontro

Atividade inspiradora: O enlace de ideias

94

Objetivos: Revisar o gênero discursivo crônica. Apresentar a estrutura básica do texto

narrativo aos alunos através de atividade lúdica. De forma lúdica, analisar a construção da

coerência em textos.

Conteúdo: Gênero Discursivo Crônica; Conectores Interfrásticos / Marcas linguísticas

de responsabilidade e não responsabilidade enunciativa.

Recursos Didáticos: Lápis, borracha, material xerografado.

Procedimentos:

1º. Participar de uma brincadeira de produção de texto, a partir de respostas

aparentemente coerentes aos seus comandos.

2º. Ler com os alunos a parte A e pedir-lhe para responder a cada item lido, não

possibilitando tempo para discussões ou troca de opiniões, pois este momento requer

atividade individual e objetiva.

PARTE A:

1) Diga um nome próprio (de preferência que não seja da sala de aula);

2) Diga o nome de um lugar (bairro, cidade ou país);

3) Qual é o número de sua preferência?

4) Qual é a sua cor preferida?

5) O que para você é um defeito?

6) Indique um intervalo de tempo (horas, dias, meses, anos, décadas, séculos, etc);

7) Indique uma quantia em dinheiro;

8) Qual é a música ou banda de sua preferência?

9) Diga o nome de um local comum (em casa, na escola, no caminho, etc.);

10) Qual é a sua comida preferida?

3º. Agora, o aluno deverá relacionar cada resposta dada na atividade anterior aos itens

abaixo. Relacionar os itens segundo a sua numeração.

PARTE B:

1) O nome da sua noiva/seu noivo;

2) O lugar onde se conheceram;

3) O número do seu sapato;

4) A cor dos olhos dele/dela;

5) É o seu único defeito;

6) Tempo de duração do namoro e noivado;

7) Dinheiro disponível para o casamento e a lua de mel;

8) Música ou banda que tocou durante a cerimônia do casamento;

95

9) Local da lua de mel;

10) Único cardápio da lua de mel.

4º. Ler com os alunos a parte B e relacionar as respostas simultaneamente.

5º. Observar que a atividade agora será lúdica, com respostas desconexas.

6º. Preservar as respostas originais e criar uma sequência lógica e coerente com as

informações inventadas.

7º. Retomar a lista de conectores interfrásticos estudados em outras aulas e empregá-

los adequadamente.

8º. Conversar com os colegas e o professor para ampliar a lista de conectores

interfrásticos e variar o emprego das diferentes palavras.

9º. Com as novas informações sobre o personagem, solicitar a produção de um texto

construindo detalhadamente, a história desse “enlace matrimonial”, o que levará os alunos a

recorrer a estratégias de raciocínio lógico e à criatividade para solucionar os problemas com a

coerência textual.

MÓDULO II

4º Encontro

Objetivos: Ler e interpretar a crônica “Carta ao Prefeito”. Focalizar o funcionamento

das marcas de (não) assunção da responsabilidade enunciativa. Motivar os alunos à produção

de um texto.

Conteúdos: Marcas de (não) assunção da responsabilidade enunciativa

Recursos Didáticos: Quadro, marcador de quadro branco, material xerografado.

Procedimentos:

1º. Entregar material xerografado da crônica “Carta ao Prefeito” de Rubem Braga para

que os alunos realizem uma leitura silenciosa;

2º. Realizar uma leitura em voz alta discutindo as ideias principais do texto;

3º. Durante a leitura fazer um levantamento dos problemas apontados no texto;

4º Focalizar o funcionamento das marcas de (não) assunção da responsabilidade

enunciativa, presentes na crônica (marcas ortográficas) e discutir sobre seus efeitos de sentido

no texto como, por exemplo:

- Observe o trecho a seguir retirado da crônica O telefone:

Devo dizer que perdi o amigo, mas salvei o Respeito ao Regulamento; “dura lex sed

lex”; eu sou assim. Sei também (artigo 4) que se minha casa pegar fogo terei de vos pagar o

valor do aparelho – mesmo se esse incêndio (artigo 9) for motivado por algum circuito

96

organizado pelo empregado da Companhia com o material da Companhia. Sei finalmente

(Artigo 11) que se, exausto de telefonar do botequim da esquina a essa distinta Companhia

para dizer que meu aparelho não funciona, eu vos chamar e vos disser, com lealdade e com as

únicas expressões adequadas, o meu pensamento, ficarei eternamente sem telefone, pois “o

uso de linguagem obscena constituirá motivo suficiente para a Companhia desligar e retirar o

aparelho”.

a) Em duas passagens do trecho, o locutor do texto usa o recurso das aspas.

Considerando esses usos, diga se a função do referido recurso é a mesma nos dois casos?

Justifique sua resposta.

b) Qual o objetivo do locutor do texto ao usar as palavras do regulamento da

companhia telefônica?

c) No fragmento, o locutor usa, ainda, o travessão. Qual a função do uso do travessão

nesse fragmento? Quem é o responsável pelo que foi dito na passagem marcada pelo

travessão?

5º. Revisar os principais problemas apontados no texto fazendo os seguintes

questionamentos:

- O que levou o cronista a fazer o texto? Que assunto motivou sua criação?

- Você acha que o cronista está sendo irônico? Por quê?

- Você acha que os problemas apontados na crônica foram resolvidos? Por quê?

6º. Responder atividade de interpretação do texto “Carta ao Prefeito”.

5º. Encontro

Atividade inspiradora: Jogo “Consequências”.

Objetivos: Revisar o gênero discursivo crônica; Revisar a estrutura básica do texto

narrativo através de atividade lúdica.

Conteúdo: Gênero Discursivo Crônica.

Recursos Didáticos: Lápis, borracha e folhas de papel avulsas.

Procedimentos:

1º. Organizar os alunos em círculo, tendo à mão lápis e papel.

2º. Apresentar aos alunos as regras do jogo, que são:

1. os papeis irão circular pela classe até que seja dada uma volta completa;

2. ao passar o papel ao companheiro, o aluno deve dobrá-lo de modo que oculte o que

escreveu;

3. ninguém pode olhar o que está escrito no papel que cada um recebeu; e

4. cada um escreverá somente o que for pedido pelo professor.

97

O professor, a cada vez que o papel mudar de mãos, solicitará que os alunos escrevam

uma nova parte da narrativa que estará sendo composta coletivamente. Para tal fim, seguimos

o roteiro a seguir:

• Primeiro comando: escreva o nome de uma mulher famosa;

• Segundo comando: escreva o nome de um homem famoso;

• Terceiro comando: escreva “se encontraram” e complete com um local;

• Quarto comando: escreva o tempo no qual o encontro se deu;

• Quinto comando: escreva “ela disse” e complete com a fala dela;

• Sexto comando: escreva “ele respondeu” e complete com a fala dele;

• Último comando: escreva “e a consequência deste breve encontro foi que...” e

complete a frase.

Finalmente, o professor deve misturar os papeis e solicitar aos participantes que leiam

todas as histórias que foram criadas, destacando as marcas do discurso de outro a exemplo dos

verbos de atribuição de fala e do discurso direto.

6º Encontro

Objetivos: Produzir um texto a partir dos conteúdos estudados.

Conteúdo: Gênero discursivo crônica.

Recursos Didáticos: lápis, borracha, material xerografado, folhas de papel avulsas.

Procedimentos:

1º. Pondo em prática os conteúdos estudados, o aluno deverá escrever uma crônica

narrando um acontecimento simples do cotidiano, observando as características estudadas e

fazendo uso dos recursos linguísticos adequados à situação comunicativa.

2º. Corrigir e revisar as crônicas fazendo os ajustes sugeridos por seu professor e

outros que julgar convenientes.

3º. Produzir a versão final das crônicas.

4º. Apresentar os textos produzidos através de um mural em sala de aula.

98

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta investigação teve como objetivo estudar o fenômeno da responsabilidade

enunciativa no gênero discursivo crônica. A partir da análise dos dados, apresentamos os

resultados de nossa pesquisa. Para tanto, retomamos as questões orientadoras da investigação,

conforme transcrevemos a seguir:

• Que vozes estão presentes no gênero discursivo crônica e quais seus efeitos de

sentido?

• Que marcas linguísticas nos levam a identificar essas vozes?

• Como o estudo do gênero discursivo crônica atrelado ao estudo do fenômeno da

responsabilidade enunciativa impactam na formação sócio-cultural-textual-discursiva dos

discentes?

Os resultados da pesquisa nos permitiram concluir que:

a) O gênero discursivo crônica apresenta uma heterogeneidade de PDV, marcados no

nível linguístico por diferentes tipos de representação da fala, modalizadores, elementos

gráficos e ortográficos, verbos de atribuição da fala, índices de pessoas, conectores, marcas de

asserção e marcadores do discurso reportado, entre outros;

b) As marcas linguísticas que desempenham um papel particularmente relevante na

sinalização da orientação argumentativa do enunciador são as marcas de asserção, como

também aquelas usadas para marcar o discurso de outra fonte enunciativa, que podem ser

notadas através de marcadores de discurso reportado, elementos gráficos e ortográficos,

verbos de atribuição de fala, diferentes tipos de representação da fala (discurso direto,

indireto) e índices de pessoas. Assim, destacamos como PDV frequentes encontrados na

primeira crônica analisada, o PDV do locutor, que pode ser percebido nas marcas de asserção,

referidas a primeira pessoa, índice de pessoas, bem como, através do uso de modalizadores. Já

na segunda crônica, percebemos não só o PDV do locutor, mas também, outras fontes

enunciativas que podem ser notadas através de marcadores de discurso reportado e elementos

gráficos e ortográficos. Nas terceira e quarta crônicas, temos também, além do PDV do

locutor, outras fontes enunciativas por meio do uso de verbos de atribuição de fala, diferentes

tipos de representação da fala (discurso direto, indireto), marcas de asserção, referidas a

terceira pessoa e índices de pessoas.

c) Como contribuições, destacamos que o estudo do gênero discursivo crônica atrelado

ao estudo do fenômeno da responsabilidade enunciativa impacta diretamente na formação

sócio-cultural-textual-discursiva dos discentes uma vez que: 1) do ponto de vista socio-

99

cultural, o aluno poderá se tornar mais consciente de seu papel na sociedade, ao perceber que

vozes falam em um texto e quais os efeitos de sentido provocados por isso; 2) do ponto de

vista textual-discursivo, o aluno poderá se tornar um leitor e um produtor de texto mais

eficiente, mais autônomo e mais crítico, consciente dos efeitos que as marcas linguísticas

podem promover na construção de sentido do gênero em foco.

Os resultados decorrentes de nosso estudo revelam como o locutor, a partir de várias

instâncias enunciativas, constrói a argumentação no gênero crônica, o que nos permite

compreender como se configura a (não) assunção da responsabilidade enunciativa nesse

gênero discursivo.

Pelo exposto, corroboramos com o que diz Gomes (2014, p. 147) ao afirmar que a

(não) assunção da responsabilidade enunciativa configura-se como “mecanismo

argumentativo fortemente marcado pelo produtor do texto com vistas a seus propósitos

comunicativos” e que “o texto se constrói nesse jogo de assunção e/ou não assunção dos

enunciados de acordo com a orientação argumentativa e com os objetivos do produtor do

texto” (GOMES, 2014, p. 147).

Nesse sentido, entendemos que esta dissertação cumpriu os objetivos a que se propôs:

identificar, descrever, analisar e interpretar que vozes estão presentes no gênero discursivo

crônica e quais seus efeitos de sentido, bem como que marcas textuais nos levam a identificar

essas vozes. Acrescente-se a isso, a elaboração da sequência didática para o estudo da

responsabilidade enunciativa no gênero em questão.

Sobre a contribuição do Programa de Mestrado Profissional em Letras

PROFLETRAS, podemos destacar que é dada uma grande oportunidade aos professores da

rede pública, do ensino fundamental no ensino de língua portuguesa, ao fornecer ferramentas

teórico-metodológicas para uma inovação na sala de aula e, consequentemente, preparando-os

para os novos desafios educacionais do Brasil contemporâneo.

Por conseguinte, como contribuição para o ensino de língua portuguesa, entendemos

que ao aluno, será possibilitado um olhar diferente sobre a língua materna e os elementos

gramaticais que a compõe.

Do contato com o gênero crônica, o aluno poderá discutir sobre diferentes temas, já

que o gênero tem por base fatos do nosso cotidiano. Ao proporcionar momentos de discussão,

o discente vai ter a oportunidade de apresentar seu ponto de vista, desenvolvendo, assim, suas

habilidades linguístico-cognitivas, tornando-se mais crítico e sabendo posicionar-se diante dos

questionamentos, bem como, estando mais preparado para produzir textos significativos.

100

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103

ANEXOS

104

ANEXO A - CRÔNICA 1: Carta ao Prefeito - Rubem Braga

CRÔNICA 1:

Carta ao Prefeito

Rubem Braga

Senhor Prefeito do Distrito Federal:

Eu sou um desses estranhos animais que têm por habitat o Rio de Janeiro; ouvi-me,

pois, com o devido respeito.

Sou um monstro de resistência e um técnico em sobrevivência – pois o carioca é, antes

de tudo, um forte. Se às vezes saio do Rio por algum tempo para descansar de seus perigos e

desconfortos (certa vez inventei até ser correspondente de guerra, para ter um pouco de paz) a

verdade é que sempre volto. Acostumei-me, assim, a viver perigosamente. Não sou covarde

como esses equilibristas estrangeiros que passeiam sobre fios entre os edifícios. Vejo-os lá em

cima, longe, dos ônibus e lotações, atravessando a rua pelos ares e murmuro: eu quero ver é

no chão.

Também não sou assustado como esse senhor deputado Tenório Cavalcanti, que mora

em Caxias e vive armado; moro bem no paralelo 38, entre Ipanema e Copacabana, e às vezes,

nas caladas da noite, percorro desarmado várias boites desta zona e permaneço horas dentro

da penumbra entre cadeiras que esvoaçam e garrafas que se partem docemente na cabeça dos

fiéis em torno. E estou vivo.

Ainda hoje tenho coragem bastante para tomar um ônibus ou mesmo um lotação e ir

dentro dele até o centro da cidade. Vivo assim, dia a dia, noite a noite, isto que os

historiadores do futuro, estupefatos, chamarão a Batalha do Rio de Janeiro. Já fiz mesmo

várias viagens na Central. Eu sou um bravo, senhor.

Sei também que não me resta nenhum direito terreno; respiro o ar dos escapamentos

abertos e me banho até no Leblon, considerado um dos mais lindos esgotos do mundo; aspiro

o perfume da curva do Mourisco e a brisa da Lagoa e – sobrevivo. E compreendo que,

embora vós administreis à maneira suíça, nós continuaremos a viver à maneira carioca.

105

Eu é que não me queixo; já me aconteceu escapar de morrer dentro de um táxi em uma

tarde de inundação e ter o consolo de, chegando em casa, encontrar a torneira perfeitamente

seca.

Prometestes, senhor, acabar em 30 dias com as inundações no Rio de Janeiro; todo o

povo é testemunha desta promessa e de seu cumprimento: é que atacaste, senhor, o mal pela

raiz, que são as chuvas. Parou de chover, medida excelente e digna de encômios.

Mas não é para dizer isso que vos escrevo. É para agradecer a providência que vossa

administração tomou nestas últimas quatro noites, instalando uma esplêndida lua cheia em

Copacabana. Não sei se a fizestes adquirir na Suíça para nosso uso permanente, ou se é

nacional. Talvez só possamos obter uma lua cheia definitiva reformando a Constituição e

libertando Vargas.

Mas a verdade é que o luar sobre as ondas me consolou o peito. E eu andava muito

precisado. Obrigado, Senhor.

Rio, junho de 1951

106

ANEXO B - CRÔNICA 2: O telefone - Rubem Braga

CRÔNICA 2:

O telefone

Rubem Braga

Honrado Senhor Diretor da Companhia Telefônica:

Quem vos escreve é um desses desagradáveis sujeitos chamados assinantes; e do tipo

mais baixo: dos que atingiram essa qualidade depois de uma longa espera na fila.

Não venho, senhor, reclamar nenhum direito. Li o vosso Regulamento e sei que não

tenho direito a coisa alguma, a não ser a pagar a conta. Esse Regulamento, impresso na página

1 de vossa interessante Lista (que é meu livro de cabeceira), é mesmo uma leitura que

recomendo a todas as almas cristãs que tenham, entretanto, alguma propensão para o orgulho

ou soberba. Ele nos ensina a ser humildes; ele nos mostra quanto nós, assinantes, somos

desprezíveis e fracos.

Aconteceu por exemplo, senhor, que outro dia um velho amigo deu-me a honra e o

extraordinário prazer de me fazer uma visita. Tomamos uma modesta cerveja e falamos coisas

antigas – mulheres que brilharam outrora, madrugadas dantanho, flores doutras primaveras. Ia

a conversa quente e cordial ainda que algo melancólica, tal soem ser as parolas vadias de

cupinchas velhos – quando o telefone tocou. Atendi. Era alguém que queria falar ao meu

amigo. Um assinante mais leviano teria chamado o amigo para falar. Sou, entretanto, um

severo respeitador do Regulamento; em vista do que, comuniquei ao meu amigo que alguém

queria lhe falar, o que infelizmente eu não podia permitir; estava, entretanto, disposto a

tomar e transmitir qualquer recado. Irritou-se o amigo, mas fiquei inflexível, mostrando-lhe o

artigo 2 do Regulamento, segundo o qual o aparelho instalado em minha casa só pode ser

usado “pelo assinante, pessoas de sua família, seus representantes ou empregados”.

Devo dizer que perdi o amigo, mas salvei o Respeito ao Regulamento; “dura lex sed

lex”; eu sou assim. Sei também (artigo 4) que se minha casa pegar fogo terei de vos pagar o

valor do aparelho – mesmo se esse incêndio (artigo 9) for motivado por algum circuito

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organizado pelo empregado da Companhia com o material da Companhia. Sei finalmente

(artigo 11) que se, exausto de telefonar do botequim da esquina a essa distinta Companhia.

dizer que meu aparelho não funciona, eu vos chamar e vos disser, com lealdade e com as

únicas expressões adequadas, o meu pensamento, ficarei eternamente sem telefone, pois “o

uso de linguagem obscena constituirá motivo suficiente para a Companhia desligar e retirar o

aparelho”.

Enfim, senhor, eu sei tudo; que não tenho direito a nada, que não valho nada, não sou

nada. Há dois dias meu telefone não fala, nem ouve, nem toca, nem tuge, nem muge. Isso me

trouxe, é certo, um certo sossego ao lar. Porém amo, senhor, a voz humana; sou uma dessas

criaturas tristes e sonhadoras que passa a vida esperando que de repente a Rita Hayworth me

telefone para dizer que o Ali Khan morreu e ela está ansiosa para gastar com o velho Braga o

dinheiro de sua herança, pois me acha muito simpático e insinuante, e confessa que em Paris

muitas vezes se escondeu em uma loja defronte do meu hotel só para me ver sair.

Confesso que não acho tal coisa provável: o Ali Khan ainda é moço, e Rita não tem o

meu número. Mas é sempre doloroso pensar que se tal coisa acontecesse eu jamais saberia –

porque meu aparelho não funciona. Pensai nisso, senhor: pensai em todo potencial tremendo

de perspectivas azuis que morre diante de um telefone que dá sempre sinal de ocupado –

cuém, cuém, cuém – quando na verdade está quedo e mudo na minha modesta sala de jantar.

Falar nisso, vou comer; são horas. Vou comer contemplando tristemente o aparelho

silencioso, essa esfinge de matéria plástica; é na verdade algo que supera o rádio e a televisão,

pois transmite não sons nem imagens, mas sonhos errantes no ar.

Mas batem à porta. Levanto o escuro garfo do magro bife e abro. Céus, é um

empregado da Companhia! Estremeço de emoção. Mas ele me estende um papel: é apenas um

cobrador. Volto ao bife, curvo a cabeça, mastigo devagar, como se estivesse mastigando meus

pensamentos, a longa tristeza de minha humilde vida, as decepções e remorsos. O telefone

continuará mudo; não importa: ao menos é certo, senhor, que não vos esquecestes de mim.

Rio, março de 1951

108

ANEXO C - CRÔNICA 3: Glória - Carlos Drummond de Andrade

CRÔNICA 3:

Glória

Carlos Drummond de Andrade

Meu filho é artista de televisão, contando o senhor não acredita. Eu mesmo às vezes

penso que é ilusão. Com oitos anos, imagine. Estava brincando na pracinha lá da vila quando

passaram uns homens e olharam muito pra ele. Meu filho, não é pra me gabar, mas é uma

lindeza de Menino – Jesus, aí um dos homens falou assim pra ele: Quer fazer um teste, ó

garoto? O que é teste? ele respondeu. Aí o homem explicou, não sei bem qual é a explicação,

levaram ele pra um edifício na cidade, tiraram um bocado de retratos dele, depois falaram

assim: Você foi aprovado. Aí ele se espantou: Mas eu não fiz exame, que troço é esse? Não é

nada de exame não, eles responderam, você foi aprovado pra fazer um comercial, tá bem? Ele

neca de saber o que é um comercial, nem eu, mas agora eu fiquei sabendo, é uma coisa à-toa,

a pessoa nem precisa falar, fica só fazendo uma coisa, comendo doce de leite, devagarinho,

com uma carinha alegre, quando acaba passa a língua nos beiços, assim, olha, e pisca o olho,

ele é tão engraçado, antes de acabar de comer ele já estava fazendo isso, um negócio. Aí

mandaram ele de volta pra casa, não, antes falaram assim pra ele: manda seu pai aqui na

agência receber o cachet. Ele ficou espantado, falou assim: Que troço é esse? Eles

responderam: tutu. Aí ele baixou a cabeça e respondeu baixinho: Eu não tenho pai. E mãe

você tem? Ele respondeu que mãe ele tinha, e levantou a cabeça. Então manda ela aqui, mas o

garoto é esperto, deu uma de sabido: Eu mesmo não posso receber? se fui eu que fiz tudo

sozinho. Não, você não pode,tem que ser sua mãe, diz a ela que venha das 2 às 4, trazendo

carteira de identidade. Bonito, e eu que nunca tive carteira, já pelejei pra tirar uma, dei duro,

pedi pro compadre Julião me quebrar esse galho, compadre explicou que carece antes tirar

certidão de nascimento, essa é muito boa, então a gente tem que provar que nasceu, eu não

estou viva com a graça de Deus e forte e trabalhando? O pior é que nem sei se fui registrada lá

em Pilão dos Palmares, chão do meu nascimento, não tenho parentes neste mundo, só tenho

no outro, e nem a poder de oração consegui até hoje tirar o papel da tal certidão, afinal eu falei

assim pro compadre: Deixa pra lá, sem carteira vivi até hoje, sem ela vou viver até Nosso

Senhor me fechar os olhos. Vou lá na agência assim mesmo. Larguei meu serviço. Fui. Tinha

109

um mundão de gente, eu não sabia quem é que podia me atender, andei rolando de uma sala

pra outra, até que afinal um cara de bigodão, atrás da parede de vidro com um óculo no meio,

falou assim: É comigo, trouxe a carteira? Eu expliquei que carteira eu não tinha, mas sou

lavadeira muito acreditada na Zona Norte, muitas madamas da Rua Conde de Bonfim podem

atestar que eu sou eu mesma e mãe de meu filho, há 25 anos que trabalho de lavar roupa. Ele

abanou a cabeça, falou assim: Nada feito, não tenho ordem de pagar sem identidade. Mas o

meu filho trabalhou, moço, eles ficaram satisfeitos com o trabalho dele, tanto que prometeram

pagar um tal de cachet, como é que pra pagar a ele é preciso a carteira de outra pessoa, o

senhor acha isso direito? Ele não respondeu nada, tornou a abanar a cabeça e eu fiquei

matutando: O que tu vai fazer pra sair dessa, Clementina da Anunciação? E comecei a chorar.

Aí eles me viram chorando, ficaram com pena de mim, um barbudo que passava disse assim

pro bigodão: Paga a ela, Reginaldo. O bigodão resmungou: Tá legal, e me deu um papel

passado em três folhas iguais, pra eu assinar nelas todas. Aí eu disse: O senhor me desculpe,

mas eu não sei escrever, a cabeça não dá. Então nada feito outra vez, o bigodão respondeu.

Aí, eu não tinha mais vontade de chorar e disse pra ele: Escuta aqui, moço, quanto é que meu

filho tem pra receber? Ele respondeu: 50 cruzeiros. Ah, é isso? Respondi. Pode ficar pra

agência. Perdi meu dia de trabalho, gastei trem, gastei ônibus, andei a pé neste solão, não vou

me chatear por causa dessa micharia. Um cara que estava escutando falou assim: A senhora

vai jogar fora esse 50 mangos? E daí? respondi pra ele. Meu filho vale muito mais,a gente não

fica mais pobre por causa disso, ele agora é artista, amanhã se Deus e a Virgem Maria ajudar,

vai ganhar milhões. Nem precisa ganhar, só o orgulho que eu sinto por ele ter passado no

teste! Saí de lá com esse orgulho bonito no coração, meu filho é artista, meu filho é artista, ia

repetindo sozinha, na rua me olhavam admirados mas eu nem dei bola, fui pra casa e ligo a

televisão o dia inteiro, trabalho vendo ela, até chegar a hora de meu filho aparecer no

comercial comendo doce de coco. Pobre tem televisão, na vila todos têm, vai ser um estouro

quando meu boneco aparecer e piscar o olho, então isso não vale mais que 50, que 500 ou 5

mil cruzeiros, ou todos os cruzeiros do mundo?

E seu rosto enrugado cintilava de glória.

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ANEXO D - CRÔNICA 4: Em código - Fernando Sabino

CRÕNICA 4:

Em código

Fernando Sabino

Fui chamado ao telefone. Era o chefe de escritório de meu irmão:

– Recebi de Belo Horizonte, um recado dele para o senhor. É uma mensagem meio

esquisita, com vários itens, convém tomar nota. O senhor tem um lápis aí?

– Tenho. Pode começar.

– Então lá vai. Primeiro: minha mãe precisa de uma nora.

– Precisa de quê?

– De uma nora.

– Que história é essa?

– Eu estou dizendo ao senhor que é um recado meio esquisito. Posso continuar?

– Continue.

– Segundo: pobre vive de teimoso. Terceiro: não chora, morena, que eu volto.

– Isso é alguma brincadeira.

– Não é não. Estou repetindo o que ele escreveu. Tem mais. Quarto:sou amarelo, mas

não opilado. Tomou nota?

– Mas não opilado – repeti, tomando nota. – Que diabo ele pretende com isso?

– Não sei não senhor. Mandou transmitir o recado, estou transmitindo.

111

– Mas você há de concordar comigo que é um recado meio esquisito.

– Foi o que eu preveni ao senhor. E tem mais. Quinto: não sou colgate, mas ando na

boca de muita gente. Sexto: poeira é a minha penicilina. Sétimo: carona, só de saia. Oitavo…

– Chega! – protestei, estupefato. – Não vou ficar aqui tomando nota disso, feito idiota.

– Deve ser carta em código, ou coisa parecida – e ele vacilou: Estou dizendo ao senhor

que também não entendi, mas enfim… Posso continuar?

– Continua. Falta muito?

– Não, está acabando: são doze. Oitavo: vou mas volto. Nono: chega à janela, morena.

Décimo: quem fala de mim tem mágoa. Décimo primeiro: não sou pipoca mas também dou

meus pulinhos.

– Não tem dúvida, ficou maluco.

– Maluco não digo, mas como o senhor mesmo disse, a gente até fica com ar meio

idiota… Está acabando, só falta um. Décimo segundo: Deus, eu e o Rocha.

– Que Rocha?

– Não sei. É capaz de ser a assinatura.

– Meu irmão não se chama Rocha, essa é boa!

– É, mas que foi ele que mandou, isso foi.

Desliguei, atônito, fui até refrescar o rosto com água, para poder pensar melhor. Só

então me lembrei. Haviam-me encomendado uma crônica sobre essas frases que os motoristas

costumam pintar, como lema, à frente dos caminhões. Meu irmão, que é engenheiro e viaja

sempre pelo interior fiscalizando obras, prometera ajudar-me, recolhendo em suas andanças

farto e variado material. E ele viajou, o tempo passou, acabei esquecendo complemente do

trato, na suposição de que o mesmo lhe acontecera.

Agora, o material ali estava. Era só fazer a crônica. Deus, eu e o Rocha! Tudo

explicado! Rocha era o motorista, Deus era Deus mesmo, e eu, o caminhão.