MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA GERAL DA...
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA
CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 164628/SP (2019/0083416-5)
SUSCITANTE: JUÍZO DE DIREITO DA 2ª VARA CRIMINAL DE RIBEIRÃO
PRETO - SP
SUSCITADO: JUÍZO FEDERAL DA 5ª VARA DE RIBEIRÃO PRETO - SJ/SP
INTERES. : JUSTIÇA PÚBLICA
RELATOR: MINISTRO RIBEIRO DANTAS - TERCEIRA SEÇÃO – TERCEIRA
SEÇÃO
PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO
ESTADUAL VERSUS JUÍZO FEDERAL. 1. Organização criminosa
transnacional e interestadual, redução à condição análoga de
escravo, exploração sexual e tráfico de pessoas para fins de
exploração sexual, inclusive de menores (art. 2º da Lei nº
12.850/2013, arts. 149, 149-A, 229 e 231-A do Código Penal) e
outros delitos conexos. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
2. RATIFICAÇÃO DO MINUCIOSO PARECER DA PROCURADORIA
DA REPÚBLICA NO MUNICÍPIO DE RIBEIRÃO PRETO - SP,
citando inclusive precedentes da 3ª Seção do c. Superior Tribunal
de Justiça. 3. Inteligência da Súmula nº 122 DO STJ.
4. Parecer pelo conhecimento do conflito, para declarar
como COMPETENTE o JUÍZO FEDERAL DA 5ª VARA DE
RIBEIRÃO PRETO - SJ/SP, o suscitado.
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1.RELATÓRIO
Trata-se de conflito negativo de competência instaurado entre o
JUÍZO DE DIREITO DA 2ª VARA CRIMINAL DE RIBEIRÃO PRETO – SP (o suscitante) e o
JUÍZO FEDERAL DA 5ª VARA DE RIBEIRÃO PRETO – SJ/SP (suscitado), no Inquérito
Policial Federal nº 0002895-09.2018.403.6102 em que foram indiciados AGDA DIAS DA
SILVA, RENAN LOPES CAMARGOS, ARTUR PEREIRA CERQUEIRA, FERNANDO PARCATU
DE MATOS RIBEIRO, ANA PAULA OLIVEIRA BORGES DA SILVEIRA, ANTÔNIO ALENÍSIO
DA SILVA, MARLENE DA SILVA, ALEXANDRE FERREIRA COSTA E ROBERVAL DA SILVA
FERREIRA e outros, os quais respondem pela suposta prática dos seguintes crimes:
organização criminosa, redução à condição análoga de escravo, exploração
sexual e tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, inclusive de
menores (art. 2º da Lei nº 12.850/2013, arts. 149, 149-A, 229 e 231-A do
Código Penal) e outros delitos conexos.
O IPF nº 0002895-09.2018.403.6102 foi instaurado a partir de
requisição da Procuradoria da República no Município de Ribeirão Preto/SP, formulada
com base em representação da Delegacia de Polícia Federal de Ribeirão Preto/SP, para
que fosse decretada a prisão preventiva dos indiciados AGDA DIAS DA SILVA, RENAN
LOPES CAMARGOS, ARTUR PEREIRA CERQUEIRA, FERNANDO PARCATU DE MATOS
RIBEIRO, ANA PAULA OLIVEIRA BORGES DA SILVEIRA, ANTÔNIO ALENÍSIO DA SILVA,
MARLENE DA SILVA, ALEXANDRE FERREIRA COSTA E ROBERVAL DA SILVA FERREIRA,
bem como autorizada a busca e apreensão em 14 (catorze) domicílios (fls. 08/09).
No curso das investigações do referido IPF, foram apensados a este
último o Inquérito Policial Estadual nº 100/2017, oriundo da Polícia Civil do Estado de São
Paulo. Na ocasião, o Parquet Federal (PRM de Ribeirão Preto/SP) encampou integralmente
a representação policial no citado Inquérito Policial da PC/SP, pugnando pela expedição
dos necessários mandados judiciais.
Nesse contexto, o JUÍZO FEDERAL DA 5ª VARA DE RIBEIRÃO PRETO
- SJ/SP (suscitado) deferiu as medidas requeridas pela PRM de Ribeirão Preto/SP,
contudo, o Juízo Federal declarou-se incompetente e ordenou a remessa dos
autos nº 0002895-09.2018.403.6102 ao Juízo Estadual, conforme conforme
decisão de fls. 289/290, assim exarada:
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Ato contínuo, o O JUÍZO DE DIREITO DA 2ª VARA CRIMINAL DE
RIBEIRÃO PRETO/SP (suscitante) proferiu a decisão de fls. 309/316, na qual
suscitou o presente conflito negativo de competência e, ao final, autodeclarou-
se provisoriamente competente apenas para eventuais decisões urgentes, até decisão
de mérito do c. STJ, nos seguintes termos:
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“Determino e instauro o CONFLITO NEGATIVO DE
COMPETÊNCIA em razão dos motivos que abaixo se expõem,
devendo a Unidade Cartorária observar e cumprir imediatamente
o que no final deliberei.
(…).
Inicialmente, a par da nova e última remessa dos autos
pelo DD. Juiz da Justiça Federal sem a já indicada, e necessária
a nosso ver, instauração do incidente próprio relacionado ao
conflito negativo de competência, registro que esse Juízo o faz
nessa oportunidade.
Por outro lado, já da necessidade de se evitarem delongas
indevidas, não se concebendo de omissão para questões
urgentes pendentes de análise ou apreciação judicial enquanto
não equacionada a questão da competência e ainda que sob o
risco de que eventual decisão desse Juízo, enquanto
incompetente, possa ser eventualmente anulada -, entendo por
bem manter o feito nessa mesma Vara.
Assim, o que mais de urgente, na sequência, vier a se
decidido, decorre, sem dúvida, do poder geral de cautela, em
sua respectiva extensão e fundamentos, atentando-se ao que se
deve preservar dos direitos dos investigados e por suas legítimas
defesas, evitando-se constrangimentos ilegais.
Agora e já acerca das razões pelas quais entendemos que
o caso é mesmo da fixação da competência na Justiça Federal,
nos fundamentos do conflito que deve ser apreciado pela
Superior Instância, vale primeiro recapitular o que Liebman
conceitua acerca da competência, ou seja, “a quantidade de
jurisdição cujo exercício é atribuído por lei a cada órgão ou
grupo de órgãos”. Dessa mesma definição também subsiste
aquela nossa primeira divergência com o que decidido aqui logo
antes pelo julgador da Justiça Federal, ou seja, considerando
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que não pode ser ele, e nem a Justiça Estadual, por essa
subscritora, a que define qualquer coisa apenas e com seu
decreto. Daí porque já se registrou que caberia ao magistrado
daquela Justiça Federal suscitar o conflito naquela oportunidade
precedente, ou seja, da acepção de que magistrados afetos a
justiças distintas submetem-se ao que prevê a Constituição
Federal em relação à matéria ou extensão de suas competências.
Indo adiante, no caso versado e como já antes também
nesses autos fundamentamos (fls. 132/136, do apenso V e fls.
72/73), os fatos ou crimes investigados estão na ordem das
matérias que a Lei Maior relaciona com os de âmbito ou
circunscrição federal.
A esse respeito, e de novo retomando o estágio em que se
encontra o processo, antes de peça inaugural acusatória
ofertada, o que se delineiam são fatos típicos relacionados à
exploração do trabalho, do sexo ou da sexualidade e da
dignidade das ditas pessoas “Ts” - transexuais, transgêneros e
travestis.
Outrossim, ainda que se possa compreender o
entendimento decorrente da expressão do art. 109, VI, da CF
como restritivo, ou seja, considerando da competência federal
apenas os delitos contra a organização do trabalho que atentem,
global ou amplamente, contra uma classe ou categoria geral de
trabalhadores, sem causação de danos a vítimas
individualizadas, esse é justamente o caso dos autos.
Mais uma vez, anoto que o desbarate pretendido foi contra
uma serial atuação relacionada à preservação dos reconhecidos
como pessoas “Ts” transexuais, transgêneros e travestis -, e
assim do que vinham mantidos em cômodos ou
estabelecimentos distintos da cidade, explorados de forma
ampla, variada e indiscriminada pelos investigados. Pois é
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justamente essa condição das vítimas, amplificada ou global que,
a nosso ver e data vênia, torna certa a competência da Justiça
Federal.
Nesse mesmíssimo sentido acumulam-se julgados, dentre
os citados antes em decisões precedentes que proferi, e mesmo
os trazidos pelo Ministério Público Federal.
Como mais uma ilustração, aqui ainda trazemos o seguinte,
de mesma orientação:
“PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE
ESCRAVO. ARTIGO 149 DO CÓDIGO PENAL.
MANUTENÇÃO DE CASA DE PROSTITUIÇÃO. ART. 229 DO
CÓDIGO PENAL. ART. 14 DA LEI Nº 10.826/2003.
RECONHECIDA A PRESCRIÇÃO.
1. O art. 149 do Código Penal, em sua atual redação,
estabeleceu quatro meios de execução que, alternativamente,
poderão conduzir à consumação do delito de redução a condição
análoga à de escravo, quais sejam: a) submissão a trabalhos
forçados; b) submissão a jornada de trabalho exaustiva; c)
sujeição a condições degradantes de trabalho; ou d) restrição,
por qualquer meio, de sua locomoção em razão de dívida
contraída com o empregador ou preposto.
2. In casu, evidenciou-se que ambos os apelantes, de
modo consciente e voluntário, submeterem as vítimas a
trabalhos forçados, em condições degradantes, porquanto as
obrigavam a se prostituir, cerceando sua liberdade de
locomoção, além de as agredirem física e psicologicamente.
3. As vítimas foram submetidas a condições de trabalho
verdadeiramente degradantes, que atingiram de forma profunda
o núcleo da dignidade da pessoa humana, nos termos
específicos estabelecidos no tipo capitulado no art. 149 do
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Código Penal (...)” (TRF 04ª R.; ACR 5000087-
84.2013.4.04.7009; PR; Oitava Turma; Rel. Juiz Fed. Nivaldo
Brunoni; Julg. 18/04/2018; DEJF 20/04/2018).
Como também bem explicou o Procurador em seu último
parecer desses autos, “(...) Em terceiro e mais relevante lugar, o
fato de a sujeição análogas à de escravo figurar como
FINALIDADE típica (art. 149-A) não elimina a possibilidade de
essa mesma circunstância elementar (sujeição escravizante)
figurar como MODO DE EXECUÇÃO até porque, mesmo após a
alteração legislativa (inclusão no art. 149-A), tal elementar
continuou existindo fora do tipo que a instituiu como finalidade
(art. 149-A); isto é continuou existindo no tipo do artigo 149”
(pág. 163).
Afora o acima exposto, também em reforço ao nosso
entendimento, temos que já no caderno investigativo foram
apresentados indícios efetivos não só da sujeição de pessoas em
condições análogas à de escravo, como também ao tráfico
internacional de pessoas. Ouvidos determinados depoentes,
cujos relatos acabaram reservados ao sigilo, os mesmos fizeram
alusão àquela segunda prática, supostamente a cargo da
organização criminosa comandada por AGDA DIAS DA SILVA.
Nesse sentido, também endosso o parecer da Procuradoria
Geral da República em Ribeirão Preto, quando assim indicou:
“Em síntese, a primeira depoente (...) Asseverou que AGDA
também trafica mulheres e transexuais para a Europa, como, por
exemplo, Fernanda Suzuki e Rafaela Ferreira. Esta última teria
tido as pernas quebradas e sido jogada do 15º andar por um
marroquino na Rússia”
Pág. 13: Conforme diálogo Síntese 06 B (f. 199, apenso
IV), uma pessoa não identificada (PNI) liga para FERNANDA
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dizendo que acabou de mandar o dinheiro. FERNANDA diz “vai
arrasando aí, se até no final do ano você conseguir mandar um
pouquinho a mais, porque... pra eu começar a quitar com os
colombianos para o dia quinze com certeza te levar pro Cabero”.
FERNANDA diz que vai ver se consegue levar vocês, “já
conversei com a Talita e a Graça, aproveita me dá umas
coisinhas a mais pra mim já ir jogando que aí acabo de pagar
ele rapidinho, se eu conseguir pagar os colombianos antes, as
vezes nois vai até antes, aí eu te aviso” (pág. 170).
Do diálogo supra-transcrito, extrai-se que, após os tais
pagamentos a serem feitos aos colombianos, FERNANDA seria
responsável por levar outras pessoas para fora do país, tudo
indicando, em tese, que ainda eram cometidas as condutas
atreladas ao tráfico internacional de pessoas.
Ainda se deve salientar que a configuração multiplicada ou
e concurso de delitos igualmente atrairia a competência da
Justiça Federal, por irretorquível conexão. Nesse sentido
também:
“PROCESSUAL PENAL. DENÚNCIA. DESCRIÇÃO
FÁTICA SUFICIENTE E CLARA. DEMONSTRAÇÃO DE
INDÍCIOS DE AUTORIA E DA MATERIALIDADE. INÉPCIA.
NÃO OCORRÊNCIA. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À
DE ESCRAVO. ART. 149 DO CÓDIGO PENAL.
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. DIREITOS
HUMANOS. ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO. OUTROS
DELITOS CONEXOS. LIAME FÁTICO E PROBATÓRIO.
MESMA COMPETÊNCIA FEDERAL. SÚMULA 122 DO STJ.
(…)
No caso, os demais crimes, por conexão fática e
probatória, também ficam sob jurisdição federal. Súmula
122 deste Superior Tribunal de Justiça” (6ª turma, Rel.
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Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado: 09.09.2012,
publicação: 20.08.2012).
Não bastasse, a Suprema Corte, ao julgar o RE
398.041/PA, de Relatoria do Min. JOAQUIM BARBOSA, também
já firmou orientação nesse sentido:
"DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. ART. 149
DO CÓDIGO PENAL. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À
DE ESCRAVO. TRABALHO ESCRAVO. DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. CRIME
CONTRA A COLETIVIDADE DOS TRABALHADORES. ART.
109, VI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA.
JUSTIÇA FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO
PROVIDO. A Constituição de 1988 traz um robusto
conjunto normativo que visa à proteção e efetivação dos
direitos fundamentais do ser humano. A existência de
trabalhadores a laborar sob escolta, alguns
acorrentados, em situação de total violação da liberdade
e da autodeterminação de cada um, configura crime
contra a organização do trabalho. Quaisquer condutas
que possam ser tidas como violadoras não somente do
sistema de órgãos e instituições com atribuições para
proteger os direitos e deveres dos trabalhadores, mas
também dos próprios trabalhadores, atingidos em
esferas que lhes são mais caras, em que a Constituição
lhes confere proteção máxima, são enquadráveis na
categoria dos crimes contra a organização do trabalho,
se praticadas no contexto das relações de trabalho.
Nesses casos, a prática do crime prevista no art. 149 do
Código Penal (Redução à condição análoga à de escravo)
se caracteriza como crime contra a organização do
trabalho, de modo a atrair a competência da Justiça
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federal (art. 109, VI, da Constituição) para processá-lo e
julgá-lo. Recurso extraordinário conhecido e provido. "
(grifei) Cumpre ressaltar, por necessário, que esse
entendimento que reconhece a competência penal da
Justiça Federal para processar e julgar, com apoio no art.
109, inciso VI, da Constituição da República, o crime
tipificado no art. 149 do CP. vem sendo observado em
sucessivos julgamentos proferidos no âmbito desta Corte
a propósito da mesma questão prévia suscitada nestes
autos (ACO 1.869/PA, Rel. Min. ROBERTO BARROSO. ARE
696.763/TO, Rel. Min. CELSO DE MELLO. HC 91.959/TO,
Rel. Min. EROS GRAU. RE 428.863 - AgR/SC, Rel. Min.
JOAQUIM BARBOSA. RE 466.428/PA, Rel. Min. GILMAR
MENDES. RE 466.429/TO, Rel. Min. AYRES BRITTO. RE
480.139/PA, Rel. Min. GILMAR MENDES. RE 499.143/PA,
Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. RE 508.717/PA, Rel.
Min. CÁRMEN LÚCIA. RE 538.541/PA, Rel. Min. EROS
GRAU. RE 541.627/PA, Rel. Min. ELLEN GRACIE. RE
543.249/PA, Rel. Min. GILMAR MENDES. RE 555.565 -
AgR/PA, Rel. Min. MARCO AURÉLIO. RE 587.530 -
AgR/SC, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, V. g.): "Recurso
extraordinário. Constitucional. Penal. Processual Penal.
Competência. Redução a condição análoga à de escravo.
Conduta tipificada no art. 149 do Código Penal. Crime
contra a organização do trabalho. Competência da
Justiça Federal. Artigo 109, inciso VI, da Constituição
Federal. Conhecimento e provimento do recurso. 1. O
bem jurídico objeto de tutela pelo art. 149 do Código
Penal vai além da liberdade individual, já que a prática
da conduta em questão acaba por vilipendiar outros bens
jurídicos protegidos constitucionalmente como a
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dignidade da pessoa humana, os direitos trabalhistas e
previdenciários, indistintamente considerados. 2. A
referida conduta acaba por frustrar os direitos
assegurados pela Lei trabalhista, atingindo, sobremodo,
a organização do trabalho, que visa exatamente a
consubstanciar o sistema social trazido pela Constituição
Federal em seus arts. 7º e 8º, em conjunto com os
postulados do art. 5º, cujo escopo, evidentemente, é
proteger o trabalhador em todos os sentidos, evitando a
usurpação de sua força de trabalho de forma vil. 3. É
dever do Estado (lato sensu) proteger a atividade laboral
do trabalhador por meio de sua organização social e
trabalhista, bem como zelar pelo respeito à dignidade da
pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III; RE 459.510/MT,
Red. p/ o acórdão Min. DIAS TOFFOLI. Grifei)”.
Enfim, sendo esses mesmos, além dos antes já
alinhavados, fundamentos do nosso declínio de competência,
passo a outras determinações a respeito do que mais necessário
à instauração do incidente e sua remessa.
Sobre o procedimento a ser adotado no conflito inaugurado
a partir desta decisão e porque, como já dito, elegeu-se que o
feito aqui remanescesse para decisões urgentes evitando-se o
risco de que o magistrado da Justiça Federal retornasse com ele
mais uma vez -, entendo que os mesmos autos físicos devem ser
digitalizados em todas as suas principais peças, capeando-as por
ofícios e enviados ao SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA para
conhecimento e julgamento.
Tratando-se de feito investigativo no qual foram mantidas
prisões preventivas oportunamente decretadas, registre-se - de
acordo com o que for necessário e inclusive em eventual
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anotação ou tarjeamento próprios - que o presente incidente ou
conflito requer urgente decisão.
No mais, convém também que sejam cientificados os
Ministérios Públicos Estadual e Federal, das providências aqui
tomadas, os mesmos para quem se deve vista a cada eventual
pedido, de ordem urgente, da Autoridade Policial oficiante ou das
Defesas, a menos que eles assim expressamente declinem de
tais oportunidades.
Os autos ainda pendem de solução ou encerramento pela
autoridade policial federal, de modo que, regularizado o que aqui
determinado, remeta-os àquela autoridade para que prossiga no
que necessário for, inclusive com relatório final.
Cumpra-se tudo e com urgência.
Ciência aos Ministérios Públicos Estadual e Federal.
Ribeirão Preto, 21 de março de 2019.
CAROLINA MOREIRA GAMA-4a. JUÍZA AUXILIAR DE RIBEIRÃO
PRETO
DOCUMENTO ASSINADO DIGITALMENTE NOS TERMOS
DA LEI 11.419/2006, CONFORME IMPRESSÃO À
MARGEM DIREITA.”
Em 25 de março de 2019, vieram os autos ao MINISTÉRIO
PÚBLICO FEDERAL parecer (fl. 321).
É o relatório. Opino.
2. FUNDAMENTAÇÃO
O Parecer é pelo conhecimento do conflito negativo de
competência, para declarar como competente o JUÍZO
FEDERAL DA 5ª VARA DE RIBEIRÃO PRETO – SJ/SP, o
suscitado.
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Conheço do conflito, uma vez presentes os requisitos do art.
105, inciso I, alínea "d" da Constituição da República, cuidando-se de incidente
instaurado entre juízos federal e estadual vinculados a Tribunais distintos.
A controvérsia cinge-se em definir qual o Juízo competente para
o processamento e a apreciação do Inquérito Policial Federal nº 0002895-
09.2018.403.6102 em que foram indiciados AGDA DIAS DA SILVA, RENAN LOPES
CAMARGOS, ARTUR PEREIRA CERQUEIRA, FERNANDO PARCATU DE MATOS RIBEIRO,
ANA PAULA OLIVEIRA BORGES DA SILVEIRA, ANTÔNIO ALENÍSIO DA SILVA,
MARLENE DA SILVA, ALEXANDRE FERREIRA COSTA E ROBERVAL DA SILVA FERREIRA
e outros, os quais respondem pela suposta prática do crimes de redução à
condição análoga de escravo, exploração sexual e tráfico de pessoas para
fins de exploração sexual, inclusive de menores (arts. 149, 149-A, 229 e
231-A do Código Penal) e outros delitos conexos.
No mérito, assiste razão ao JUÍZO FEDERAL DA 5ª VARA DE
RIBEIRÃO PRETO – SJ/SP.
Este MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL para evitar
tautologia, ratifica/ reitera o PARECER da PROCURADORIA DA REPÚBLICA
NO MUNICÍPIO DE RIBEIRÃO PRETO - SP , às fls. 292/ 307 , emitido na
primeira instância pelo eminente Procurador da República Doutor ANDRÉ MENEZES,
com acuidade e proficiência, nos seguintes termos, in verbis:
“I – PREÂMBULO
Ab initio, este órgão ministerial toma ciência da decisão que
deferiu a execução das medidas cautelares pleiteadas.
Porém, e com a devida vênia, discorda dos motivos que, num
primeiro momento, rechaçaram a competência federal (f. 67), conforme se passa a
expor de modo fundamentado.
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Em linhas gerais, este juízo apontou, como fatores estruturantes
da conclusão pela competência comum estadual, o seguinte: (i) a distinção entre as
condutas delineadas nos arts. 149 e 149-A do Código Penal (respectivamente,
redução a condição análoga à de escravo e tráfico de pessoas), (ii) a autonomia do
art. 149-A, caput, V, do mesmo código (finalidade de exploração sexual) e (iii) o
enquadramento das condutas em exame neste último tipo (art. 149-A, caput, V).
II – PRECARIEDADE DA CONCLUSÃO SOBRE O ENQUADRAMENTO TÍPICO
Preliminarmente, esclareça-se que o vocábulo “precariedade”,
do título deste tópico, está a significar provisoriedade, já que, nesta fase pré-
processual, as condutas, sob o prisma típico, ainda estão em curso de delineamento
(formação da culpa).
A certeza quanto à classificação jurídica, como é natural, só se
pode atingir a partir do momento imputativo (sem prejuízo, claro, de eventual
corrigenda, a teor dos arts. 383 e 384 do Código de Processo Penal).
Não se pode pretender, diante da perspectiva de apreensão
ainda vindoura (ou seja, de material probatório que ainda não se conhece), estatuir a
priori a classificação jurídica a ser tirada justamente da análise desse material,
classificação essa que, nos termos do art. 41 do Código de Processo Penal, só se
estabiliza com a inauguração da demanda penal principal.
III.A – EQUÍVOCO CLASSIFICATÓRIO DA DECISÃO: CONSTATAÇÃO
Sem prejuízo do quanto vazado no tópico acima, mas
pressupondo que a análise do material apreendido em nada venha a alterar, em
termos de tipificação, o quadro indiciário levado a exame no pleito cautelar
(buscas e prisões), ainda assim não há de prevalecer a conclusão pela ausência de
competência federal. Cuidemos de demonstrar cabal e analiticamente.
São conceitualmente corretas tanto a distinção quanto a
autonomia típicas vazadas na decisão em comento (reportadas nos itens i e ii do
último parágrafo do tópico I, acima).
Todavia, a correta classificação jurídica das condutas (mesmo
pressuposta a ausência de qualquer alteração substancial em função do revolvimento
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probatório ainda por ocorrer) não se alcança com a singeleza vazada no ato
declinatório.
Reconhece a doutrina que, não raro, enquadramento típico é
tarefa das mais delicadas, nem sempre superável de pronto pelos conhecidos
princípios doutrinários, dado que os vários tipos enunciados na regra positiva se
interpenetram de maneiras diversas e nem sempre sistemáticas (até porque criados
em épocas e segundo necessidades diferentes).
Esse fenômeno de interpenetração ocorre no caso em exame –
e, o que é pior, de maneira dúplice (bifronte). Vejamos:
O art. 149-A pode ser especial em relação ao art. 149 no que se
refere à finalidade (como, aliás, apontado na decisão de f. 67). Já o art. 149 pode ser
especial em relação ao art. 149-A no que se refere ao modo de execução . Deveras,
“sujeição a trabalhos forçados”, “sujeição a jornada exaustiva”, “sujeição a condições
degradantes de trabalho” e “restrição de locomoção em razão de dívida” (art. 149)
são inequívocas formas especiais de “coação” e quiçá de “violência”, “fraude” (v.g.
dívida simulada) ou “abuso” (v.g. dívida oriunda de lesão – art. 157 do Código Civil).
Repare-se que, numa camada de cognição mais sumária e
superficial, o art. 149-A, II (sujeição escravizante) absorve o art. 149, fazendo então
parecer que o teor típico do 149-A, V (finalidade de exploração sexual) seja imiscível
com o do art. 149.
Porém – e esse é um dado epistemológico – , os fatos não
ocorrem seguindo os padrões típico-penais. Ao contrário, estes (padrões típico-
penais) é que devem seguir os fatos. O que implica dizer que os fatos podem ocorrer
de modo a “tocar” (mais propriamente, “atrair a incidência de”) mais de uma figura
típica – donde a previsão de mecanismos de superação de conflitos típicos.
É verdade que o 149-A, V, realmente foi pensado para um fato-
tipo semelhante aos aqui narrados como causa de pedir – a fazer crer que, por si só,
encerra com exclusividade a classificação jurídica das condutas sob escrutínio.
Mas aqui é preciso assinalar uma distinção (entre a suposição
acima e o caso em exame) que é inequívoca: o 149-A, V, pode comportar uma
conduta (agenciamento, aliciamento, etc) que atinja um único indivíduo (embora
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comporte também a perpetração em detrimento de um grupo de indivíduos). Vale
dizer: atingida uma única vítima, já se tem desvalor penal, já se tem tipicidade
segundo o art. 149-A, V.
Ocorre que a exploração na dimensão coletiva e feita de
forma sistemática, como no caso sub judice (em que importa menos a
identidade/individualidade da vítima, e mais sua aptidão a gerar proventos para
os agentes – divisando “coisificação” humana), altera sensivelmente a
tipificação, por três razões básicas.
Em primeiro lugar – e ainda sem qualquer repercussão na
questão da competência, mas apenas por apreço ao debate – , a exploração em
escala coletiva ora noticiada geralmente depende do funcionamento de uma
associação ou organização criminosa, o que configura infração penal autônoma e
cumulável com as resultantes da associação ou organização. Numa exploração
“indivíduo a indivíduo” (agente único contra vítima única), ou mesmo “indivíduo a
grupo” (agente único contra vítimas várias), esse tipo penal “adicional” (associação
ou organização) não se configuraria.
Em segundo – e aqui já com repercussão na competência – , a
exploração coletiva (isto é, em detrimento de um grupo indeterminado de indivíduos)
implica afetação da liberdade de trabalho.
Como se sabe, a prostituição decidida individual e livremente
não é crime nem sequer fato ilícito – ao contrário, para muitos deve ser vista como
trabalho, a merecer alguma proteção (diferente de estímulo) do Estado.
Portanto, a exploração sistemática da prostituição alheia atinge
a organização do trabalho, na medida em que tira proveito do que é juridicamente
enquadrável como labor (a despeito de considerações morais que não vêm ao caso)
e que, como tal (labor) e em razão das conhecidas vedações de sua mercantilização ,
deveria organizar-se unicamente com base no livre arbítrio do indivíduo que se
prostitui. No entanto, tal livre arbítrio é deformado ora pela fraude ora pela coação
lato sensu, gerando proscrita mercantilização do trabalho alheio, por meio de uma
organização voltada exclusivamente à intermediação lucrativa. Se isso não é
afetação da organização do trabalho, difícil saber o que o seja.
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CC nº 164828/SP
Na mesma linha, importa consignar também que o art. 149-A,
V, certamente não abrange condutas aqui verificadas, anterior es à exploração
propriamente dita mas também penalmente relevante s , de provocação (ou pelo
menos influência) do deslocamento das vítimas de um local para outro do
território nacional, tal como definido no art. 207 do Código Penal. Deveras, apenas
“aliciar”, como consta no art. 149-A, não abrange esse resultado (deslocamento em
massa de indivíduos dentro do território, sendo desimportante sua identidade e
relevante apenas sua força de trabalho), o qual, inequivocamente, verificou-se na
situação em apreço.
Em terceiro e mais relevante lugar, o fato de a sujeição a
condições análogas à de escravo figurar como FINALIDADE típica (art. 149-A) não
elimina a possibilidade de essa mesma circunstância elementar (sujeição
escravizante) figurar como MODO DE EXECUÇÃO até porque, mesmo após a
alteração legislativa (inclusão no art. 149-A), tal elementar continuou existindo fora do
tipo que a instituiu como finalidade (art. 149-A); isto é, continuou existindo no tipo do
art. 149.
Esse fenômeno (figuração de uma mesma elementar em
categorias típicas diferentes) nada tem de extraordinário; ao contrário, é bastante
comezinho. Ilustrativamente, o conjunto elementar “ameaçar alguém de mal injusto e
grave” pode ser visto tipicamente como um fim em si mesmo (singelo crime de
ameaça) ou como um meio para se atingir outro fim (diversos exemplos cogitáveis,
inclusive em tipos de elevada gravidade, como os do roubo e da extorsão).
Aliás, um eventual apego ao conceito de finalidade típica como
categoria estanque, no sentido de perfeitamente coincidente com a realidade, pode
conduzir a erros prontos. Basta pensar que a finalidade “realística” no art. 149-A,
V, nem sempre será (ou raramente será) a exploração sexual em si mesma
(diletantismo sexual do agente), e sim a obtenção de lucro – o que, aliás,
confirma o traço de exploração laborativa (art. 207 do CP). E a obtenção de lucro,
por sua vez, nem sequer figura como elementar.
Pois bem. Certamente houve, no iter criminis das condutas em
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CC nº 164828/SP
apreço1, algum “agenciamento” e/ou algum “aliciamento” (art. 149-A). E
posteriormente a tal “agenciamento/aliciamento”, também é certo que passou a haver
“grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso” (igualmente art. 149-A).
Relevantíssimo discernir, contudo, que o AGENCIAMENTO/ALICIAMENTO
(atração da inicial vítima, para que se distanciasse de suas origens) se deu pela
FRAUDE (promessas em sites e redes sociais), e não pela GRAVE AMEAÇA,
VIOLÊNCIA, COAÇÃO OU ABUSO; e que estas últimas elementares (grave
ameaça etc) residem no segundo momento do iter, ou seja, QUANDO NÃO
MAIS HÁ QUE SE FALAR EM TRÁFICO DE PESSOAS, pois a vítima já terá ido
ao locus comissi influenciada apenas pela FRAUDE.
Ora, se assim é, tem-se: num PRIMEIRO MOMENTO, a
incidência do art. 149-A, V (tráfico de pessoas) na modalidade “mediante fraude”
(agenciar/aliciar para exploração sexual); e, num SEGUNDO MOMENTO, o art. 149,
caput (redução escravizante) na modalidade “restrição de locomoção em razão de
dívida” quando menos – nada impedindo que se configure também nas modalidades
“sujeição a trabalhos forçados”, “sujeição a jornada exaustiva” e “sujeição a
condições degradantes de trabalho” – todas elas (modalidades citadas), repare-se,
especificações em relação à elementar “grave ameaça” prevista no art. 149-A
(princípio da especialidade).
Em síntese, o art. 149-A e o art. 149 surgem em momentos
distintos da cadeia factual – mas ambos surgem! – , a demonstrar a fragilidade
(para além da extemporaneidade) da conclusão segundo a qual a plêiade de
condutas aqui investigadas preencherá somente o tipo do art. 149-A, V, do
Código Penal.
A prova de que tais momentos são tipicamente separáveis é a
perfeita possibilidade cogitativa de um existir sem o outro, e reciprocamente.
Deveras, não é sequer cerebrino cogitar a existência isolada de um aliciamento
(atração) com a finalidade de exploração sexual, assim como não o é cogitar a
existência isolada de uma redução a condição análoga à de escravo de indivíduo(s)
que não precisou(aram) ser aliciado(s).
1 Iter aqui considerado em sua dimensão cronológica, isto é, abstraídas as amarras típicas econsiderado tudo quanto, sob qualquer roupagem, seja proibido pela norma penal.
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III.B – EQUÍVOCO CLASSIFICATÓRIO DA DECISÃO: SOLUÇÃO?
A coexistência de condutas tipificadas em dispositivos diversos
precisa ser equacionada pelo sistema penal, já que nem sempre o desvalor de duas
incidências (no sentido fenomênico) corresponde à soma dos desvalores de cada um
das incidências isoladamente consideradas. Esse equacionamento se faz ora pelas
balizas doutrinárias (princípios aplicáveis ao concurso de crimes) ora pelas legais
(figuras normativas do concurso material, do concurso formal e do crime continuado).
Porém, não cabe aqui exaurir o tema concursal (onde e que
tipo de concurso, se material ou formal, se caracterizará nas condutas em tela),
até porque se trata de matéria própria de outro momento procedimental
(oferecimento/recebimento da denúncia). Basta por ora revelar que a futura
classificação jurídica (fixação exata por ocasião da inicial de ação penal) terá
como substrato condutas indubitavelmente sujeitas a exame da jurisdição
federal, como são:
- a redução escravizante (art. 149 do CP);
- o aliciamento de trabalhadores de um local para outro do
território nacional (art. 207, caput e § 1º, do CP).
Também é cogitável, diante do material até aqui amealhado, a
configuração do:
- atentado contra a liberdade de trabalho (art. 197, I, do
Código Penal).
Enfatize-se: a menção a condutas enquadráveis nos tipos
acima não significa que a classificação jurídica imputativa necessariamente os
exprimirá. Em razão das operações equacionadoras dos concursos delinquenciais é
possível que um ou outro tipo seja suprimido, a respeito de uma ou outra porção
fática cognoscível.
Deveras, o reconhecimento da competência penal
federal não se faz em função da prevalência, para fins de classificação,
de certos tipos, e sim – como não poderia ser diferente em matéria de
competência jurisdicional – em função da única regra válida para
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responder a esse tipo de indagação: a constitucional (art. 109 da Carta). A
regra de competência jurisdicional é logicamente anterior às preferências
legislativas sobre repartição típica de condutas.
O contrário disso implicaria admitir que o legislador
infraconstitucional, ao fazer a repartição típica, pode alterar a norma
constitucional (que, repita-se, elege como discrímen não as feições
típicas ou a divisão de capítulos do Código Penal, mas o atingimento ou
não de interesse federal).
Pode haver ou não – e normalmente não há – perfeita
correspondência entre um tipo (ou subtipo) e uma dada competência (federal ou
estadual). Os exemplos da proposição negativa, de tão variados, seriam
despiciendos. Em todo caso, e para se ilustrar com um tipo já referido neste mesmo
arrazoado, qualquer delito cometido por meio de ameaça (e não apenas a própria
ameaça) a funcionário público federal em razão de seu ofício será da competência
jurisdicional da União.
Em suma: no cotejo entre tipos distintos, as especificidades
(especialidades típicas) se revelam em diferentes trechos/ classes da estrutura típica,
tornando praticamente impossível, em alguns casos (e é o que se tem exame,
conforme demonstrado), uma “pureza típica” apta a divisar, por si só, a competência
jurisdicional.
Isso implica dizer, de forma mais pertinente ao caso concreto,
que eventual (e por ora apenas cogitável) prevalência de um dado tipo sobre outros,
na futura classificação jurídica, em nada afasta, para fins de definição de
competência, o reconhecimento do atingimento de interesses da União. Dito de
outro modo: ainda que o tipo “protetivo do interesse da União” reste
“encoberto” por outro(s) mercê do equacionamento de conflito típico, isso em
nada desqualifica tal interesse como vetor de fixação da competência.
Afora os listados na própria norma-matriz constitucional, são
raríssimos os tipos que, sempre e sempre, serão da competência federal (art. 109,
caput, IV, da Constituição). Exemplo dessa raridade é o tipo de moeda falsa. Pode
soar tosca a invocação desse tipo no caso em apreço, mas logo se verá que ele bem
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ilustra o raciocínio em curso.
Embora em sua modalidade mais comum (introdução em
circulação por meio da entrega a sujeito de boa-fé) a moeda falsa não passe de um
subtipo do estelionato (lesado imediato é o recebedor), a competência sempre será
federal porque, competindo à União emitir moeda, compete-lhe também velar pela
higidez do meio circulante, de modo que a “poluição” deste com um exemplar falso
viola o interesse federal na manutenção de dita higidez. Enfim, a competência será
ou não federal, na esmagadora maioria das situações, não em razão da incidência
de um dado tipo, mas da presença de uma dada circunstância (sempre redutível à
afetação em detrimento de ente federal).
Dito de outro modo: não está escrito em lugar algum que a
moeda falsa é delito federal, nem está esse tipo em algum capítulo do Código
Penal reservado a crimes “sempre” federais, ou em capítulo de crimes
mencionados na norma-matriz (art. 109, IV, da Constituição).
Mesmo as referências do art. 109, IV, da Constituição não são a
tipos específicos (até porque o legislador constitucional desconhece qual será a
repartição típica infraconstitucional), e sim a atributos de certas condutas (v.g. crimes
contra a organização do trabalho).
E m suma , a conclusão possível neste momento não é, nem
poderia ser, sobre o perfeito e firme enquadramento típico pós-acusação; e,
consoante demonstrado, ainda que fosse, não teria tal conclusão sobre
tipicidade o condão de nortear, por si só, a competência jurisdicional. O que é
possível aferir neste momento, sem sombra de dúvida, é o atingimento de
interesse constitucionalmente afeto à jurisdição federal, qual seja, a livre
organização do trabalho em sua dimensão coletiva, inclusive por envolver
recrutamento e deslocamento (por atração dolosa) de trabalhadores de um
ponto para outro do território nacional.
III.C – EQUÍVOCO CLASSIFICATÓRIO DA DECISÃO: ABONO DOUTRINÁRIO
A demonstrar que o raciocínio acima esgrimido não é isolado,
calha consignar excelente doutrina a apontar que, se algumas das finalidades
mencionadas no art. 149-A forem atingidas, estará também configurado crime
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autônomo, incidindo, por conseguinte, concurso material entre o delito de tráfico de
pessoas e outros crimes eventualmente praticados, como é o caso, por exemplo, do
delito de redução à condição análoga a de escravo.
Vejamos o magistério de Rogério Sanches Cunha:
Consuma-se o crime com a realização das ações previstas notipo penal, independentemente do efetivo exercício da finalidade quemova o agente.
Em algumas modalidades (transporte, transferência, aacolhimento e alojamento) o crime é permanente, admitindo flagrante aqualquer tempo.
A tentativa é admitida.
Como vimos ao tratar da voluntariedade, o tipo traz diversasfinalidades especiais que podem caracterizar, caso atingidas, figuraspenais autônomas. Neste caso, não há absorção de uma figura penalpor outra, mas sim concurso material, a exemplo do que ocorreentre o crime de associação criminosa e eventuais infrações penaisque o grupo cometa.
Dessa forma, se o agente, além de traficar pessoas, retirar-lhesilegalmente órgãos, tecidos e partes do corpo, haverá concurso materialentre o art. 149-A e o art. 14 da Lei 9.434/97; se trafica e submete avítima a trabalho a condições análogas à de escravo ou a servidão; oconcurso será entre os arts. 149-A e 149; se há também adoção ilegalpela própria pessoa que traficou (por exemplo, o agente acolhe, mediantefraude, à margem do sistema de adoção, um recém-nascido), pode haverconcurso entre os arts. 149-A e 242 do Código Penal (registrar como seuo filho de outrem); por fim, se além do tráfico de pessoas, ocorre aexploração sexual, pode haver concurso do art. 149-A com os arts.228 ou 230 do Código Penal, conforme o caso2. [d.n]
III.D – EQUÍVOCO CLASSIFICATÓRIO DA DECISÃO: DESCONSIDERAÇÃO DE
INDÍCIO CONCRETO E IDÔNEO
Ainda que venham a ser superados os sólidos argumentos até
aqui expostos, não se pode olvidar que o requerimento de injunção pré-acusatória
apresentou os seguintes indícios de tráfico internacional de pessoas e, portanto, de
2 Cunha, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte especial (arts. 121 ao 361). 9. ed. rev.,ampl. e atual. - Salvador: JusPodium, 2017, páginas 233-234.
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transnacionalidade:
➢ páginas 2/33:
As investigações se iniciaram a partir de depoimentosespontâneos de duas pessoas, cujas identidades estão sendo mantidasem sigilo, as quais relataram a ocorrência de exploração sexual bemcomo tráfico interno e internacional de pessoas, supostamente praticadospor organização criminosa liderada por AGDA DIAS DA SILVA.
Em síntese, a primeira depoente (...)
Asseverou que AGDA também trafica mulheres e transexuaispara a Europa, como, por exemplo, Fernanda Suzuki e Rafaela Ferreira.Esta última teria tido as pernas quebradas e sido jogada do 15º andar porum marroquino na Rússia.
➢ página 13:
Conforme diálogo Síntese 06 B (f. 199, apenso IV), uma pessoanão identificada (PNI) liga para FERNANDA, dizendo que acabou demandar o dinheiro. FERNANDA diz “vai arrasando aí, se até no final doano você conseguir mandar um pouquinho a mais, porque... pra eucomeçar a quitar com os colombianos pra o dia quinze com certeza televar pro Cabero”. FERNANDA pergunta se o interlocutor vai quererperuca ou alongamento (megahair). O interlocutor responde que quermeio quilo de cabelo. FERNANDA diz que vai ver se consegue levarvocês, “já conversei com a Talita e a Graça, aproveita me dá umascoisinhas a mais pra mim já ir jogando que aí acabo de pagar elerapidinho, se eu conseguir pagar os colombianos antes, as vezes nois vaiaté antes, aí eu te aviso”.
Extrai-se do último diálogo que, após o pagamento das dívidascom os colombianos, FERNANDA levaria algumas pessoas para fora dopaís, assinalando possível caso de tráfico internacional.
É verdade que tais indícios ainda são um tanto fluidos, mas não
menos verdadeiro é que, na presente fase persecutória, há que pesar mais a
idoneidade do que propriamente a consistência probatória do indício. Afinal, o
pré-acionamento da jurisdição se deu em função da existência dos indícios (isto é, da
fragilidade ínsita desse meio de prova).
3 Paginação da manifestação ministerial.
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Se há necessidade de aprofundamento a partir de medidas de
reserva jurisdicional (busca e apreensão) é porque ainda não se tem provas, se sim
apenas indícios.
Ora, seria um contrassenso admitir que o indício possa
funcionar para afastamento da garantia individual (inviolabilidade domiciliar)
mas não para o provisório reconhecimento da competência. No caso em apreço,
o indício é extremamente idôneo, haurido que foi de diálogo entre agentes que
desconheciam o monitoramento de sua comunicação. Não se trata de denúncia
anônima ou de qualquer outro elemento descontextualizado.
Com base nessa correta lógica, a 3ª Seção do Superior
Tribunal de Justiça estabeleceu entendimento no sentido de que a existência de
indícios de transnacionalidade é suficiente para fixação da competência
federal:
PROCESSO PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. TRÁFICOINTERNACIONAL DE ENTORPECENTES. INDÍCIOS ACERCA DA ORIGEMESTRANGEIRA DA DROGA APREENDIDA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇAFEDERAL.
1. Havendo indícios da transnacionalidade do tráfico dedrogas, não há que se falar em competência da Justiça Estadual,tendo em vista o disposto no art. 70 da Lei 11.343/06 e no art. 109,V, da Constituição Federal.
2. Conflito conhecido para declarar competente o JuízoFederal, o suscitante.
(STJ, 3ª Seção, Rel. Min. Alderita Ramos de Oliveira, desembargadoraconvocada, julgamento: 26.09.2012, publicação: 02.10.2012). (Grifamos)
IV – DADO PROCESSUAL
Ad argumentandum tantum e para que não fique de fora a
dimensão puramente processual do problema, calha por fim pontuar o seguinte:
ainda que o conflito típico-concursal que mais se vislumbra neste caso (art. 149
versus art. 149-A do Código Penal) se resolva em favor do concurso material (ou
seja, que se conclua não haver absorção ou especialidade típica, e sim dois tipos,
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ausente liame material entre eles), certo é que o contexto fático uno aqui vazado
apontaria fortemente para a existência de conexão (liame processual) entre as duas
condutas reputadas autônomas (ausência de liame material). Ora, desnecessário
dizer que, nesse caso (conexão), um delito sujeito à competência federal atrairia os
demais inicialmente não sujeitos.
Outra não poderia ser a orientação jurisprudencial, verbis:
PROCESSUAL PENAL. DENÚNCIA. DESCRIÇÃO FÁTICASUFICIENTE E CLARA. DEMONSTRAÇÃO DE INDÍCIOS DE AUTORIA EDA MATERIALIDADE. INÉPCIA. NÃO OCORRÊNCIA. REDUÇÃO ÀCONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ART. 149 DO CÓDIGO PENAL.COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. DIREITOS HUMANOS.ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO. OUTROS DELITOS CONEXOS. LIAMEFÁTICO E PROBATÓRIO. MESMA COMPETÊNCIA FEDERAL. SÚMULA122 DO STJ.
(…)
No caso, os demais crimes, por conexão fática e probatória,também ficam sob jurisdição federal. Súmula 122 deste SuperiorTribunal de Justiça.
(STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado:09.08.2012, publicação: 20.08.2012). (Grifamos)
(…).” (fls. 292/307).
Por fim, para que não pairem quaisquer dúvidas, cumpreconsignar a inteligência da Súmula/STJ nº 122: “Compete à Justiça Federal oprocesso e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal eestadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a do Código de Processo Penal.”
3. CONCLUSÃO
Diante do exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL manifesta-
se pela competência do JUÍZO FEDERAL DA 5ª VARA DE RIBEIRÃO PRETO -
SJ/SP, o suscitado.
É O PARECER.
Brasília, 28 de março de 2019.
JOÃO PEDRO DE SABOIA BANDEIRA DE MELLO FILHOSubprocurador-Geral da República
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