Mito e Literatura Anais Do II Coloquio de Estudos Vikings-libre

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Notícias Asgardianas, N. 8, 2014 ISSN 1679-9313 | 1 SUMÁRIO (ANAIS DO II COLÓQUIO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS) NEVE: NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS Notícias Asgardianas João Pessoa-PB 160p. N. 8 2014

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Mito e Literatura Anais Do II Coloquio de Estudos Vikings-libre

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    SUMRIO

    (ANAIS DO II COLQUIO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS)

    NEVE: NCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS

    Notcias Asgardianas Joo Pessoa-PB 160p. N. 8 2014

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    Expediente Boletim semestral, ISSN: 1679-9313 Coordenao editorial: Johnni Langer

    Reviso: Luciana de Campos e Pablo Miranda Capa: Pablo Miranda

    Colaboradores desta edio: Ricardo Menezes.

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    R454 Catalogao na fonte NOTCIAS ASGARDIANAS N. 8 (Nova Srie). Joo Pessoa: PB/NEVE, 2014. V.: III. Semestral ISSN: 1679-9313 1. Escandinvia Medieval Peridicos. 2 Idade Mdia. 3 Era Viking. I Ncleo de Estudos Vikings e Escandinavos. NEVE.

    CDU 931(05)

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    Impresso no Brasil Feito o Depsito Legal

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    ESTUDOS NRDICOS Prefcio MITO E LITERATURA ........................................................................... 5 ARTHUR E OS HOMENS DO NORTE: A MATRIA DA BRETANHA E A IMAGEM DO REX SACERDOS NA ESCANDINVIA DO INCIO DO SCULO XIII ................................ 9 Marcus Baccega MITO E XAMANISMO: A CAADA SELVAGEM NAS BALADAS DE HELGI HUNDINGSBANI .............................................................. 19 Pablo Gomes de Miranda MITO, ORALIDADE E ESCRITA: O CONTAR E O RECONTAR ... 27 Munir Lutfe Ayoub DA CAVALARIA PAG CRIST: ASPECTOS DE DIFERENTES CDIGOS DE TICA CAVALEIRESCOS EM SIGURD E GALAAZ ................................................................................................. 35 Letcia Santos CONTATO E EMPRSTIMO LINGUSTICO EM INGLS E NRDICO ANTIGOS: EVIDNCIAS EM MANUSCRITOS DOS SCULOS IX A XI ................................................................................. 45 Luiz Antonio de Sousa Netto AS RELIGIOSIDADES VIKINGS EM MONUMENTOS DE PEDRA .................................................................................................... 55 Ricardo Wagner Menezes de Oliveira SEGUINDO A CANO COM O MARTELO NA MO: THOR E SUAS REPRESENTAES NO HEAVY METAL .......................... 63 Joo Paulo Garcia Teixeira REPRESENTAES E A PROPRIAES: ESTERETIPOS NO QUADRINHO OS JULGAMENTOS DE LOKI DA MARVEL ...... 71 Elvio Franklin Caio Brito Barreira

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    ESTUDOS MEDIEVAIS E RESSIGNIFICAES A CONCEPO DA MULHER NO IMAGINRIO MEDIEVAL A PARTIR DO TESTEMUNHO DE TEXTOS LITERRIOS EM LNGUA CASTELHANA AT O SCULO XV .................................85 Prof. Dr. Jos Alberto Miranda Poza

    O LEGADO DAS BESTAS: UM APANHADO HISTRICO-LITERRIO ACERCA DOS BESTIRIOS MEDIEVAIS ...................97 Andressa Furlan Ferreira A REPRESENTAO FEMININA NO FABLIAU OS CALES DO FRANCISCANO ..........................................................................107 Gerlndia Gouveia Garcia ......................................................................107 A MULHER NO MALLEUS MALEFICARUM: ENSAIO SOBRE A (DES)CONSTRUO DO FEMININO .............................................115 Elenilson Delmiro dos Santos UMA LEITURA DAS CORRESPONDNCIAS DE ABELARDO E HELOSA E A NOVA HELOSA DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU ......................................................................125 Jozelma Oliveira Pereira NOS DOMNIOS DE SEVENWATERS: UMA ANLISE DA ........135 PERSONAGEM SORCHA DO ROMANCE FILHA DA FLORESTA DE JULIET MARILLIER ......................................................................135 Fernanda Cardoso Nunes O AMOR NA PERSPECTIVA DE ISABEL DE ARAGO NO ROMANCE MEMRIAS DA RAINHA SANTA ..............................143 Simone dos Santos Alves Ferreira ..........................................................143 BEST-SELLER DO SERTO? A DIFUSO DA CANO DE ROLANDO NA LITERATURA DE CORDEL DO NORDESTE BRASILEIRO NOS SCULOS XX E XXI ................................................153 Aniely Walesca Oliveira Santiago

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    EDITORIAL

    Os ensaios reunidos neste volume do Notcias Asgardianas correspondem a alguns dos trabalhos apresentados durante o II Colquio de Estudos Vikings e Escandinavos/I Ciclo de Pesquisas Medievais, ocorrido em outubro de 2014 na UFPB e promovido pelo grupo NEVE. So pesquisas de diversas reas e especiali-dades das cincias humanas, cujo enfoque dominante foi o eixo mito e literatura, o tema geral do evento. A escolha deste par no foi fortuita. H muito tempo os acadmicos discutem as frontei-ras, as relaes, semelhanas e diferenas entre a narrativa mti-ca e a narrativa literria.

    Tradicionalmente o enfoque literrio retirava das fontes mitolgicas seu carter dito sagrado ou numinoso, concei-tos caros interpretao fenomenolgica. Tratado dentro de uma perspectiva da ideologia religiosa, o mito explica e revela, mas destitudo dela, ele apenas torna-se um produto histrico de uma determinada poca, uma obra fechada e sem muito dinamismo. Mas e como ter acesso ao mito sem que seja pelo registro literrio? Aqui certamente temos um dos maiores para-doxos nas investigaes das cincias humanas. Tentando se desvincular desta ambiguidade, alguns apelaram para o estudo dos temas e motivos, especialmente na Frana (Brunnel, 1997, p. xviii), ou ento para seus pontos em comum, a exemplo da nar-rativa e a organizao dos acontecimentos (Astier, 1997, p. 497).

    Por sua vez, a desmitologizao dos mitos tornou-se muito comum aps o Iluminismo, afetando nossa compreenso sobre o passado: os mitos passam a ser vistos como obras de literatura, especialmente no mundo clssico (Ruthven, 1997, p. 63-78). Mais recentemente, as diferenas entre as formas mticas como produtos culturais extremamente dinmicos e as obras literrias como produtos culturais fechados vem tomando

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    novos direcionamentos, mesmo entre os estudos escandinavis-tas.

    Retomando a perspectiva da histria das religies, o pes-quisador Jens Schjdt atentou mais para o carter simblico e ideolgico dos mitos nrdicos, deixando seu aspecto literrio para um segundo plano, no importando suas diferenas estru-turais (poesia ddica e escldica ou sagas islandesas): o impor-tante o contedo e no a forma (Schjdt, 2008, pp. 85-107).

    Mais recentemente, Chris Abram reconsiderou a impor-tncia literria dos mitos escandinavos, relegando as evidncias materiais, visuais, folclricas e orais a um segundo plano, mas do mesmo modo que Schjdt, concedendo mais importncia ao contedo do que a forma. Ao contrrio da literatura, o mito nunca coerente, sistemtico, estvel, imutvel ou universal. Ele permanece sempre relacionado ao ritual, sendo uma expres-so do religioso (Abram, 2011, p. 1-50, 230-231). E acima de tu-do, ele nunca cessa de mudar e de ter um poder infindvel na imaginao humana, dos tempos antigos ao mundo contempo-rneo.

    Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)

    [email protected] Profa. Ms. Luciana de Campos (PPGL-UFPB/NEVE)

    [email protected]

    Referncias ABRAM, Christopher. Myths of the Pagan North: the Gods of the Norsemen. London/New York: Continuum, 2011. ASTIER, Colete. Interferncias e coincidncias das narraes liter-rias e mitolgicas. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionrio de mitos literrios. Braslia: Editora da UNB, 1997, pp. 491-498. BRUNEL, Pierre. Prefcio. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionrio de mitos literrios. Braslia: Editora da UNB, 1997, pp. xv-xx. RUTHVEN, K. K. O mito. So Paulo: Perspectiva, 1997. SCHODT, Jens Peter. Initiation between two worlds: structure and symbolism in pre-christian scandianvian religion. Odense: The Uni-versity Press of Southern Denmark, 2008.

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    Prof. Dr. Marcus Baccega

    (UFMA) [email protected]

    Esta comunicao pretende suscitar algumas refle-

    xes iniciais a respeito da recepo da Matria da Bretanha entre os escandinavos na transio entre os sculos XII e XIII. Trata-se do perodo em que estas formaes sociais j se en-contram em acelerado processo de cristianizao e centrali-zao do poder poltico na figura dos reis (kunnunga). O pro-psito central do trabalho ser ensaiar, ainda que de modo sucinto e apenas propositivo, uma interpretao acerca do papel exercido pela figura do Rei Arthur, como modelo ideal de realeza crist, no processo de centralizao do poder na Escandinvia, no perodo posterior Era Viking (783-1066).

    O corpus documental aqui analisado consiste na Breta Sgur (c. 1200), uma saga de cavalaria ou riddarasgur, que corresponde a uma adaptao, para o antigo nrdico, das narrativas insulares britnicas e continentais sobre o Rei Ar-thur, o Santo Graal e os Cavaleiros da Tvola Redonda. Para tanto, iniciaremos a anlise com o resgate da gesta mitopo-tico do Rei de Camelot, com o intuito de compreender como

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    este mitema atingiu esta grande regio de fronteira do mun-do centro-medieval que a Escandinvia.

    Cabe, de modo propedutico, observar que, neste tex-to, realiza-se uma opo metodolgica de base: considerar as narrativas arturianas como conjunto de narremas-semantemas constitutivos de um mito, que, por sua vez, in-sere-se em uma moldura mtica maior, o Cristianismo. Neste lastro, o mito se define como um relato (mythos) engendrado por uma determinada formao social para explicar, enquan-to instncia veiculadora de um efeito de verdade, as origens, causas primeiras (cosmogonia) e atual estudo do mundo. Em outras palavras, o mito explica como e por quais razes, bem como para quais finalidades (teleologia), o mundo o que e como (ELIADE, 2002: 11-12).

    Convm agora delinear os traos da constituio plu-rissecular deste mitema, ainda to atual e evocativo de nos-sas razes medievais, que o Rei Arthur. Tal resgate pressu-pe um breve escoro acerca da gesta do conjunto ou inter-texto das narrativas componentes da Matria da Bretanha. Com efeito, a Breta Sgur, mesmo advindo de uma tradu-o/recriao/adaptao processo de transculturao, nas palavras do intelectual cubano Fernando Ortiz da Historia Regum Britanniae (1136), do prelado ingls Geoffrey of Mon-mouth, constitui um corpus hbrido, forjado a partir do conta-to inevitvel entre os mitemas arturianos da Grande e da Pequena Bretanha, a partir da Conquista Normanda, na Ba-talha de Hastings (1066), efetuada por Guilherme, o Con-quistador.

    O mito arturiano se forjou, gradualmente, ainda no lastro da cultura oral da Primeira e da Alta Idade Mdia, a partir do VI d.C., e se desenvolveu, com os primeiros regis-tros celtas galeses que se supe terem sido compilados nesta ocasio. Os cdices de que hoje se dispe, no entanto, datam da Baixa Idade Mdia. Esses escritos so atribudos a uma

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    personagem constante de seu prprio enredo, o bardo (cyfarwydd) celta Dafydd ap Gwilyn.

    Estes contos celtas, cujo ttulo original gals Y Mabi-nogi constituem-se de quatro ramos de narrativas, cujos ma-nuscritos completos remanescentes so o White Book of Rhydderch (Llyfr Gwyn Rhydderch, c.1350 d.C.) e o Red Book of Hergest (Llyfr Coch Hergest, c.1400 d.C.). Um possvel lo-cal de compilao destes contos orais seria a abadia galesa de Llanbadarn. Muitas vezes, alm de Dafydd ap Gwilyn, os contos tambm so atribudos ao monge local Rhygyfarch, podendo tais escritos ter sido produzidos na segunda meta-de do sculo XI. O pesquisador austraco Helmut Birkhan assinala que se poderia tratar, neste caso, de manuais de ins-truo para aprendizes de bardos, portadores de aventuras heroicas, a serem memorizadas, que encontrariam paralelo nas Enfances francesas ou nos Macgnmartha ou Atos dos Meninos dos celtas da Irlanda (DAVIS, 2007: ix-xxi).

    Em uma elegia (um lamento gals), presumivelmente datada do sculo VI d.C. e atribuda ao bardo celta Aneirin, Y Goddodin, h uma primeira referncia nominal ao Rei Ar-thur. Trata-se da narrativa de uma incurso de 300 comba-tentes celtas da regio de Goddodin, atuais cercanias de Edimburgo, na Esccia, para reconquistar a rea de Catte-rick, ao norte de Yorkshire, que o pico em versos nomeia Catraeth. Localizada na antiga Britannia romana, Catterick havia sido invadida e dominada pelos saxes de Octha. A expedio dos celtas foi fracassada, tendo o embate aconte-cido entre c. 595 e 600 d.C (BIRKHAN, 2004: 32-38)

    Alm dos Mabinogion, outros escritos de antiga tradi-o celta insular apresentam referncias ao Rei Artur, como o Livro Negro de Carmathen (Das Schwarze Buch von Carmathen), que data de cerca do ano 1000 (portanto pr-normando), em que o monarca se faz acompanhar de Key, figurando ambos como campees de Hexen, ocasio em que teriam conhecido um gato gigantesco maravilhoso. O mesmo livro relata uma

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    batalha, nos montes que circundam Edimburgo, entre os dois heris e homens cinocfalos. Da mesma forma, em ou-tro conto gals, O saque do inframundo (Preideu Annwvyn), narra-se a ida do Rei Artur ao Alm cltico, de onde teria trazido um caldeiro mgico e sua espada maravilhosa Cale-dvwlch, depois denominada Excallibur, que havia estado sob a tutela de nove virgens no supramundo. Tal narrativa foi atribuda ao bardo gals do sculo VI Taliesin, declamador na corte do rei Urien de Rheged (BIRKHAN, 2004: 32-34). Em Bran, Filha de Llr, tambm se fala de uma expedio mi-litar Hibrnia, comandada por Artur, com o fito de apos-sar-se de um caldeiro mgico, possvel prottipo do futuro Santo Graal. (BARBER, 2004: 245)

    As narrativas arturianas, propriamente ditas, datam j da Primeira Idade Mdia (sculos IV a VIII). A primazia parece corresponder a De excidio et conquestu Britanniae (c. 560), do prelado gals Gildas (c. 504-570 d.C.), que descreve a invaso de hordas anglo-saxs Britnia romana e as ten-tativas de resistncia da populao romano-bret, sob a lide-rana de Artorius, destacando-se tambm a Historia Bri-tonnum (c. 800 d.C.), de Nennius e a Gesta regum anglorum (1125). Nessa ltima, o monge beneditino William of Malmsbury apresenta Artur e seu sobrinho, Galwain, como personagens histricos referidos narrativa das origens da monarquia britnica, confirmando suas virtudes guerreiras e denegando as expectativas messinicas acerca do retorno do rei da Ilha de Avalon (MEGALE, 2002: 49-50).

    Ademais, em Historia regum Britanniae (c. 1136), que Volker Mertens considera o momento fundador da tradi-o arturiana (MERTENS, 2007, 151): 146-150), Geoffrey of Monmouth alude, a par das virtudes blicas do heri, a sua generosidade, citando sua ascenso ao trono de Logres aos 15 anos de idade, predicando-lhe o mesmo estatuto de figura histrica atribudo a Carlos Magno. Este compilador clamava ter escrito com base em auctoritates como Nennius, o Vener-

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    vel Beda ou Gildas, a par de um livro escrito em lngua bri-tnica, que estaria traduzindo, entregue pelo arquedicono e corteso do rei anglo-normando Henrique II Plantageneta (1152-1189), Walter Map, ou Gautier Map (BARBER, 2004: 26-30).

    A contribuio fundamental de Geoffrey of Mon-mouth para a gesta mtica de Artur seria sua caracterizao inaugural como conquistador gals contemporneo do imperador romano do Oriente Leo I (457-474). Ademais, na Historia Anglorum (c. 1129), de Henry of Hundingdon, situa-se o reinado de Artur entre 527 e 530 d.C., e o Chronicon Mon-tis Sancti Michaelis in Periculo Maris associa o rei data de 421 d.C. Helmut Birkhan apresenta uma narrativa galesa de c. 1188 d.C., o Itinerarium Kambriae, atribudo a Giraldus Cam-brensis, em que Artur teria assassinado o irmo do prprio Gildas. O narrador semiannimo ainda se refere, em Caer-lon, a primeira corte do Rei Artur, presena de um mago, Myrddin, uma possvel prefigurao do Mago Merlin (BIRKHAN, 19-25.

    A primeira metade do sculo XIII testemunhou o aparecimento dos dois grandes ciclos de prosificao da Ma-tria da Bretanha, que ser ento expresso em estilo formal e linguagem prxima quela das crnicas, relatos constitutivos do gnero historiogrfico. A denominada Vulgata da Matria da Bretanha representa a primeira prosificao pela qual pas-sou o contedo anterior em versos, ao redor de 1220. Abran-ge a sequncia narrativa dos romans Estoire de Merlin, Estoire dou Graal, Lancelot du Lac (roman redigido em trs livros, que ocupa mais de metade desse primeiro ciclo), La Queste del Saint Graal e La Mort le roi Artu (MEGALE, 2002: 46-47) .

    Como expe Heitor Megale (MEGALE, 2002: 47-48), a constituio plena do Ciclo da Vulgata exigia a redao das Suites ao roman sobre o Mago Merlin, com as necessrias acomodaes para tornar coerentes tais narrativas. O Ciclo do Lancelot-Graal conheceu incontveis cpias que geraram uma

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    abundante tradio manuscrita no Ocidente europeu medie-val, o que atesta uma difuso mpar, sem qualquer paralelo conhecido, da Matria da Bretanha no universo medieval. Ob-serve-se que as expresses Ciclo da Vulgata e Ciclo da Post-Vulgata devem-se terminologia proposta pela estudiosa Fanny Bogdanow, em seu ensaio The Romance of the Grail (1966) (MEGALE, 2002: 70). O Ciclo da Vulgata findou por ser atribudo a um s compilador, apesar da improbabilida-de de se deverem todos os romans a uma pena solitria. Esse escriba seria Walter Map (ou Gautier Map), porm j h tempos denominado Pseudo-Map, pois j era falecido tal compilador quando da primeira prosificao.

    Desde a primeira prosificao, percebe-se uma dire-triz ideolgica de cristianizao do contedo da Matria da Bretanha, o que conduz Paul Zumthor, em seu Essai de poti-que mdivale (ZUMTHOR, 1972: 426) a pensar em uma scrip-tura virtualis comparvel quela dos livros componentes da Bblia, asseverando que todos os romans de fins do sculo XII e do XIII representam uma forma de reinterpretao da B-blia. Em virtude dessa associao, o que Megale conclui que a Matria da Bretanha adaptou-se a diversos cnones esti-lsticos e influxos religiosos, de modo que os heris so ori-entados para a demanda do Graal como metfora da graa crist, havendo uma contraposio entre o inicial ethos cava-leiresco e o ascetismo de heris como Galaad e Percival. De acordo com Megale, o processo de cristianizao j se vis-lumbra desde a Estoire dou Graal, autorrepresentada como proveniente das palavras do prprio Deus, por meio de um livro que Cristo teria cedido s cpias (MEGALE, 2002: 49-50).

    O estudioso Albert Pauphilet contempla em A De-manda do Santo Graal do Ciclo da Vulgata um verdadeiro ar-qutipo da existncia crist, a partir das ideias de um esprito monstico, que acalenta o ascetismo e o misticismo guerreiro

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    das ordens militares, sendo, para esse estudioso, um roman da Ordem de Cister (MEGALE, 2002: 49-50).

    Nos romans centro-medievais da Matria da Bretanha, Arthur no figura mais como o rei guerreiro, frente das aventuras de seu comitatus de cavaleiros, mas como uma instncia simblica de agregao dos cavaleiros vivncia corts. neste contexto que o monarca de Logres pode en-carnar a figura do rei cristo e do senhor feudal por exceln-cia, do primus inter pares que exerce sua suserania sobre to-dos os barones, representados pelos Cavaleiros da Tvola Redonda. Arthur o rex por excelncia, centro de gravidade da vida curializada de seus vassalos guerreiros, em nome do qual e para o qual as aventuras sero protagonizadas, com destaque para a demanda pelo Santo Vaso.

    Os romans do Ciclo Arturiano, com especial destaque para a Demanda do Santo Graal do Ciclo da Post-Vulgata, cons-truram uma normativa supra-individual para a pequena nobreza guerreira (uma das formas do ethos cavaleiresco) e, mediatamente, para a configurao de toda a sociedade cris-t. Para tanto, veicularam modelos de perfeio categorial, como Galahad, ou mesmo Perceval, e contramodelos de des-virtude, como o cavaleiro pecador e desleal Lancelot. Con-destvel de Camelot, tal cavaleiro rompe o contrato feudo-vasslico com seu suserano, Arthur, e comete um adultrio simbolicamente incestuoso com a Rainha Guinevere.

    A persona mitopotica do Rei Arthur recepcionada pe-las formaes sociais escandinavas j um mitema compsi-to. Foi forjado pelas caractersticas do rei guerreiro, portador das virtudes cavaleirescas da bravura, honra e lealdade, co-mo na Historia Regum Britanniae de Geoffrey of Monmouth, ao mesmo tempo que pela configurao de um monarca feu-dal que induz, em alguma medida, a centralizao das aven-turas e do poder senhorial em sua pessoa e na corte de Camelot.

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    Esta configurao hbrida de Arthur, que o habilita a aparecer como exemplum de rei guerreiro que tambm atua a progressiva centralizao das aventuras, feitos heroicos e do impulso blico de seus cavaleiros sob seu controle senhorial, ser potencializada como exemplum para legitimar as incipi-entes formaes monrquicas na Escandinvia ps-viking. Com efeito, Arthur incitar os guerreiros e aristocratas (Jarls) aceitao da preeminncia poltica destes potentados ger-mnicos que se centralizam e constituem monarquias de molde feudal.

    Por fim, dentro do processo de expanso feudal, ini-ciado em torno do ano mil, que se alastra para as regies de fronteira como a Escandinvia e a Ibria, Arthur ser tam-bm o vetor de induo de uma transformao paulatina na concepo da realeza entre os germnicos insulares. A prin-cpio com a agregao da figura do Mago Merlin corte de Camelot como sbio assessor do Rei, depois encarnando o prprio monarca as virtudes taumatrgicas e tergicas, Ar-thur introduz a ideia do rex sacerdos cristo, to bem descrita no primoroso trabalho de Marc Bloch, Os Reis Taumaturgos (1924).

    Referncias BARBER, Richard. The Holy Grail. Imagination and belief. Cam-bridge: Harvard University Press, 2004. BIRKHAN, Helmut. Keltische Erzhlungen vom Kaiser Arthur. Wien: Lit Verlag, 2004. DAVIES, Sioned. Introduction. In: The Mabinogion. Oxford: Ox-ford University Press, 2007. FRANCO JR, Hilrio. O Retorno de Artur: O Imaginrio da Polti-ca e a Poltica do Imaginrio no sculo XII. In: Idem. Os trs dedos de Ado. Ensaios de Mitologia Medieval. So Paulo: EDUSP, 201.

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    LANGER, Johnni. Vikings. In: FUNARI, Pedro Paulo (Org.). As religies que o mundo esqueceu. So Paulo, Editora Contexto, 2013. Disponvel em: https://www.academia.edu/753503 MEGALE, Heitor. A Demanda do Santo Graal. Das origens ao cdice portugus. Cotia: Ateli Editorial, 2001. MERTENS, Volker. Der deutsche Artusroman. Stuttgart: Reclam, 2007. ZUMTHOR, Paul. La lettre et la voix. De la littrature mdivale. Paris: ditions du Seuil, 1987.

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    Prof. Ms. Pablo Gomes de Miranda

    (UFRN/Membro do NEVE) [email protected]

    Conta-se que na aldeia de Mykland, ao sul da Norue-ga, um certo idoso de nome Taddak Tveit se retirou cedo para sua cama; quando se deu conta, estava no lombo de um cavalo que pertencia a uma hoste fantstica, o qual o bater dos cascos provocava fascas, tremenda era sua violncia. Taddak fora avistado quilmetros dali, em Grennes, por Nottov Haugann, que avistou cerca de trinta cavalos que mergulharam no lago Hvring. A hoste reapareceu em Brenne, onde tomaram toda a cerveja que estava reservada para o natal, causando estardalhao, foi quando algum avis-tou Gyro, o lder dessa hoste que possua uma marcante cauda, utilizada no esconjuro desse bando (Oskorei; Osko-reia), que se recolheu ruidosamente ao monte Tveite. Igual-mente no natal, no vilarejo de Aase, em Flatdal, dois homens se envolveram em um evento onde um foi esfaqueado e morreu. O bando apareceu e levou o corpo do homem morto consigo, enquanto jogou uma tocha para dentro da casa. J em Vokslev, na Jutlndia, uma crena folclrica diz para evitar assobiar quando se ouve o som dos latidos dos cachorros do bando de Joen. Os pais ali advertiam os filhos a no assobiar no perodo da noite para no atrair o bando de Joen. Em Fur, igualmente na Jutlndia, dito que certa vez

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    um fazendeiro segurou os cachorros de um caador que la-ou duas elfas para si. Quando a figura misteriosa retomou seus cachorros, prometeu uma recompensa ao fazendeiro, paga na forma de marcas de queimadura no brao do pobre homem. Tais relatos folclricos (retirados de Kvideland; Seh-msdorf: 1999, pp. 272 274) que se multiplicam pela Escan-dinvia, referindo-se sempre a visitantes sobrenaturais os quais aparecem geralmente no meio do inverno (natal ou slhvrf, se pensarmos em um equivalente pr-cristo), aca-bando com a comida e bebida preparadas para as festivida-des desse perodo, encontram paralelos antigos, podendo ser observados em algumas sagas islandesas como a Eyrbyggja saga e a Grettis saga smundarsonar, onde esses visitantes in-desejados so representados como fantasmas, gigantes, Ber-serkir ou Trolls, mais tarde assumindo tambm a forma de elfos ou do Hulduflk nos sculos XIX e XX, (como observou GUNNELL, 2004, pp. 52 - 61). H, ainda, uma srie de liga-es traadas por folcloristas escandinavos que produzem uma rede de conexes entre as manifestaes precoces e tar-dias dessas lendas, envolvendo tambm viajantes e animais (ursos ou cachorros). As fontes da mitologia escandinava nos trazem al-gumas informaes sobre o uso de fantasias ou mscaras: motivos ornitfilos podem ser vistos na rymskvia (que pos-sui tambm referncias a Loki e rr disfarados de mulhe-res), Haustlng, Vlundarkvia e Hrmundar saga Gripssonar (alm do uso de barbas de bodes falsas, como tambm visto na orleifs ttur jarlsklds); na rvar-Odds saga citado os disfarces de casca de btula; Byggvir no poema Lokasenna tambm pode ser interpretado como utilizando uma roupa feita de palha. H referncias a mscaras na Krmaks saga e o deus inn possui algumas alcunhas curiosas nesse sentido: Arnhfi (cabea de guia), Grmur e Grmnir (mscara ou mascarado). possvel que essas referncias possam estar

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    ligadas dramatizao como um componente vital da orali-dade que envolve a transmisso desses poemas e sagas, ain-da que essa informao deva ser encarada de forma conjec-tural. O uso de elementos caprinos na orleifs ttur jar-lsklds em muito nos lembra as mscaras e disfarces utiliza-das nos festejos de Natal comuns a diversas localidades da Escandinvias (entre as variantes das vestimentas esto Jule-bukk, Julbock, Julget, etc) e com registros muito recentes. Como esse conjunto de relatos se relaciona com um panora-ma europeu geral do mito da Caada Selvagem? Vimos j algumas conexes com as tradies escritas da Islndia me-dieval (tradies calcadas em uma memria oral bem anteri-or pena do escriba), mas at onde podemos encontrar ma-nifestaes paralelas que nos proporcione uma viso geral desse mito? Talvez possamos comear com uma possvel defini-o do mito da Caada Selvagem. Esse mito diz respeito s longas noites de inverno, quando hostes estranhas e no identificadas podiam ser ouvidas ou avistadas, procisses de cavaleiros e guerreiros, ensanguentados ou de aparncia medonha, liderados por uma figura imponente: inn, Wo-tan, Me Hulda, Percht, Hellequin (a criatura fantstica cole-tiva por excelncia), entre outros, inclusive o prprio diabo. Essas hostes poderiam estar ligadas a diversos locais que representasse algo para a comunidade que vivenciasse o mito, como montanhas ou lagos. A prpria constituio des-sas hostes variam, indo de cavaleiros mortos, a simples car-ruagens celestes. Na Escandinvia suas manifestaes podem ser en-contradas na Oskoreia, achada principalmente na Noruega, quando hostes de homens ou espritos mascarados surgem durante o Natal ou o dia de Santa Lcia (13 de dezembro, quando a Oskoreia se chama Luciferdi). H ainda outros no-mes a serem mencionados: Julereia, Trettenreia, Fossareia e

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    Imridn todas incluindo a palavra rei ou reid, significando cavalgar ou ir a cavalo (LECOUTEX, 2011, p. 187). Nos-so mpeto foi logo o de traar comparaes com as Valkrias e os exrcitos dos mortos, onde elas so descritas em poemas ddicos e escldicos como as figuras que trazem os mortos das batalhas, ou que recebem-nos no Valhll ou, ainda, ser-vir os guerreiros mortos, os Einherjar, de inn. Os exemplos citados no incio de nosso texto expres-sam seu estgio certamente tardio na Escandinvia, mas com viabilidades comparativas interessantssimas em relao ao medievo, principalmente no tocante a possibilidade de sua dramatizao. A consistncia desse mito e de seus princpios passaram por uma srie de mudanas e de interpretaes, entre elas uma interpretatio christiana (to necessria para o nosso acesso a cultura desse mito no medievo), de modo que nossa percepo desse mito no compreende uma viso de mundo (Weltanschauung) das populaes que conviveram com esses elementos, que foram reorganizados de forma que encaramos um fantstico, misterioso e perplexo mundo (LECOUTEUX, 2011, p. 3). Talvez seja interessante fazer um estudo no da raz desse mito, se que isso possvel (mui-tos trabalhos apontam para longnquas conjecturas indo-europeias, dificilmente verificveis), mas da viso de mundo dessas populaes e a histria das transformaes desse te-ma mtico. De qualquer maneira deixamos expressos nossas intenes investigaes futuras desse objeto, envolvendo os elementos aqui discutidos. Ainda que seja possvel traar paralelos de tais mani-festaes com outros conjuntos complexos de ritos e mitos (nos vem cabea o folclore islands sobre a Trollkvina Grlla e a vasta documentao sobre ela nas sagas islande-sas), faamos uma breve esquematizao das baladas de Helgi Hundingsbani de forma que possamos melhor ilustrar as associaes com o mito da Caada Selvagem. A estrutura do primeiro poema de Helgi Hundingsbani segue dessa ma-

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    neira: Helgi mata o chefe guerreiro Hundingr e, posterior-mente, todos os seus filhos. H o encontro com a Valkria Sigrn, que no se entrega ao heri por estar prometida a outro. Helgi faz guerra ao lado de Sinfjtli com o noivo de Sigrn e vence no fim. No h muito que possa ser analisado nesse primeiro poema na direo do rito ou dramatizao do mesmo, h alguns pontos em comum com o material literrio dos Vlsungos, em destaque o amor pela Valkria. Talvez a pre-sena dessa personagem possa indicar uma pista. Por en-quanto, continuemos. A histria de sua vida segue no segundo poema: Helgi se disfara e visita a casa dos descendentes de Hudingr e s consegue escapar porque se disfara de mulher que fin-ge trabalhar em um moinho. Helgi conhece Sigrn e fazem amizade. Sigrn foge ao encontro de Helgi e que est na praia, ensanguentado e exausto da batalha contra os filhos de Hundingr, eles se beijam e ele promete lutar contra a fa-mlia de seu noivo. A famlia de Sigrn esteva do lado inimi-go e morreram, sendo apenas Dagr poupado. Helgi e Hun-dingr se casam. Dagr promete sacrificar Helgi a inn e o mata com uma lana. Uma criada avisa que uma hoste de cavaleiros cruzam o cu em direo ao montculo de Helgi. Sigrn encontra Helgi ali, ensanguentado e com os cabelos e mos molhados por todas as lgrimas que sua esposa der-ramou. Eles preparam uma cama sobre o montculo e se dei-tam juntos uma ltima vez. O mito da Valkria se transforma radicalmente na literatura islandesa medieval, outrora uma figura sanguino-lenta, domestica-se nas donzelas cisnes, sem perder, entre-tanto, seu aspecto guerreiro. Sua identidade malfica j esta-va atestada em documentao anglo-sax, onde as Wlcyrge aparecem como sinnimos de entidades malficas da mito-logia clssica ou mesmo bruxas (LANGER, 2004, p. 55). A cultura material atesta tambm o seu papel de anfitri: pin-

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    gentes de prata e representaes em estelas corroboram os versos da poesia escldica, onde o deus inn apressa essas mulheres a receber os reis que chegavam ao Valhll. A mes-ma cultura material as representa com cabelos arrumados em ns ou coques que podem atestar uma propriedade m-gica relativa ao destino. Um segundo ponto, e talvez o mais importante, a volta do morto Helgi, para se deitar uma ltima vez com sua amada. No incomum encontrarmos sagas onde os mortos se fazem presente, mas acreditamos que essa especfica pas-sagem oferece uma janela antiga para a compreenso do mi-to da Caada Selvagem no corpo mitolgico escandinavo. A Valkria visitando um Helgi moribundo e o incitando ao combate pode estar de fato inserida em um contexto xamni-co? O tema do morto guerreiro Einheri j delineado desde a dificuldade da consumao amorosa entre Helgi e Sigrn, a viso da Valkria pode representar o vislumbre de um plano espiritual e o acesso a esferas mgicas prprias ao guerreiro odnico. , no entanto, na sua cavalgada fantasmagrica no-turna, que ele atinge o pice desse trnsito espiritual, onde morto entra em contato com a amada. Consideremos o poema Helgakvia Hjrvarssonar como integrante desse nosso esquema, onde podemos apon-tar em linhas gerais: a conversa de Atli com um pssaro. Hostes flamejantes do rei Hrmarr e rapto de Sigrlinn. Hel-gi (filho de Hjrvarr) nasce e visitado por nove Valkrias, entre elas Svfa, por quem ele vai se apaixonar. Ela o protege das batalhas e eles se casam posteriormente. Helgi duela com o seu irmo (duelo amaldioado por uma Trollkona) e morre. Helgi e Svfa renascem na figura de Helgi e Sigrn. Os acontecimentos desse poema s reforam o carter xamnico do ciclo de Helgi Hudingsbani: o elemento ornit-foro, representando a leveza com que o xam se projeta para outros planos, o nmero nove relativo inn, entidade xamnica por excelncia, o interceder da Trollkona, um ser

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    do Hulduflk inserida em uma complexa teia de conexes com os Jtnar, os Gigantes, detentores do conhecimento m-gico que desafia os deuses nrdicos e o renascimento, um motivo indito na cultura mitolgica islandesa; talvez os personagens renasam como parte de uma influncia crist sobre a cultura escrita islandesa, talvez faam parte de uma ritualstica talvez j pouco clara ao prprio escriba. Em particular pensamos em tiseta, um mtodo de consulta aos espritos e praticados por homens e mulheres (diferente do Seir, a feitiaria cuja prtica traz afetao ao praticante masculino). Entretanto apenas um entre vrios mtodos de adivinhao praticados na cultura nrdica e com barreiras pouco definidas em relao prtica mgica. Onde comea de fato a prtica xamnica entre os escandinavos? Iniciamos nossa escrita evidenciando alguma dramatizao do mito, talvez apontando para a prtica ritualstica. Mas ela puramente conjectural? Talvez a viso de Helgi cavalgando os cus faa parte de um bolso mitolgico que possa estar representado nas prticas xamnicas vistas em outras fontes e que de alguma maneira se relacione com as manifestaes da Caada Selvagem apontadas no comeo dessa escrita. O assunto, entretanto, carece de uma melhor investigao para que seja abordado com a profundidade merecida, por ora o nosso objetivo foi abordar essas relaes de modo amplo e de maneira geral.

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    Referncias GINZBURG, Carlo. Histria Noturna. So Paulo: Companhia das Letras, 2012. GUNNELL, Terry. The Coming of the Christmas Visitors... Folk Legends Concerning the Attacks on Icelandic Farmhouse Made By Spirits at Christmas. In: Northern Studies, v. 38, 2004, pp. 51 75. KVIDELAND, Reimund; SEHMSDORF, Henning K. Scandinavian Folk Belief and Legend. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999. LANGER, Johnni. Guerreiras de inn: as valkyrjor na mitologia viking. In: Brathair, v. 4, n. 1, 2004, pp. 52 69. Disponvel em: https://www.academia.edu/752728 LECOUTEX, Claude. Phantom Armies of the Night: the wild hunt and the ghostly processions of the undead. Toronto: Inner Tradi-tions, 2011. TOLLEY, Clive. Shamanism in Norse Myth and Magic, vol. I e II. Helsinque: Academia Scientarum Fennica, 2009.

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    Munir Lutfe Ayoub

    (Mestre em Histria pela PUC/Membro do NEVE) [email protected]

    Os mitos nada mais so do que as historias dos anti-

    gos povos na tentativa de explicar o surgimento do cosmos, o surgimento e o funcionamento de suas sociedades, as for-mas de agir dos seres humanos e at mesmo o fim dessas sociedades, desse cosmos e no caso dos mitos nrdicos o fim de alguns de seus prprios deuses que morreriam em uma batalha final contra seus grandes rivais, os gigantes. Contu-do esses mitos antes de serem compilados nas fontes liter-rias que nos chegam eram cantados por poetas nrdicos co-nhecidos como escaldos, canes que deviam sofrer varia-es em conformidades com o tempo e com o espao, por-tanto os historiadores contemporneos acreditam que as historias que nos chegam so na verdade apenas uma pe-quena parte das que naqueles perodos foram cantadas. Por-tanto hoje em dia no temos a possibilidade de trabalharmos com as variaes destes mitos, o que j nos apontam uma grande problemtica na tentativa de compreenso dos povos escandinavos praticantes desta antiga f (Schjdt, 2009: 9-22).

    Nosso entendimento de mitologia na atualidade fornecido pela compilao de todos esses fragmentos em grandes obras, fragmentos que no caso do mundo Nrdico se encontram na Edda prosaica escrita por Snorri Sturluson e na Edda potica de compositor desconhecido, a Edda potica

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    considerada como uma obra prpria do mundo da antiga f nrdica na analise dos historiadores por estar em um forma-to muito prprio do perodo pr-cristo. Formato esse onde a oralidade e a potica eram de grande presena, alm de con-tar com recursos como as kenings, recurso potico de carter figurativo muito prprio dos poemas do perodo Viking.

    Contudo ambas as Eddas tiveram seus momentos de compilao por volta do sculo XIII, sculo que pode ter in-fluenciado os mitos que nos chega, sendo assim os mesmos sofrem alteraes devido a influencias crists, o cristianismo j havia chegado ilha da Islndia terra de origem destas obras por volta do ano 1000, alm de alguns historiadores considerarem essas obras tambm como influenciadas por alguns contextos polticos e sociais de seus sculos (Abram, 2011: 69-85).

    Portanto hoje em dia na tentativa de resolver esses problemas os historiadores buscam comprovaes do mun-do viking que apoiem as literaturas produzidas aps esse perodo, acabando assim por cruzar diversas fontes textuais com o intuito de percepo dos temas recorrentes entre elas, sugerindo por fim um ponto de partida em comum entre essas diversas produes (Ross, 2010: 231-234).

    Entra essas fontes encontramos as j comentadas Ed-das, as sagas de reis que geralmente tem o carter de relatar os antigos costumes e praticas do mundo viking e que costu-mam tratar dos reis e heris mais prximos das compilaes destas obras, compilaes que tiveram inicio no sculo XIII e que acabavam por tambm sofrer influencias crists e as sa-gas lendrias que costumam tratar de reis e heris primordiais e misturam geralmente elementos mitolgicos em suas nar-rativas, porm que tambm foram produzidas a partir do sculo XIII. Os poemas escldicos tambm fazem parte destas fontes que podem ser utilizadas, contudo conta com uma compreenso por parte dos historiadores um pouco diversa das sagas, esses poemas so compreendidos como uma pro-

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    duo cantada durante o perodo viking ganhando assim um carter mais prximo do perodo pr-cristo, contudo esses tambm se encontram compilados nas sagas de reis e nas sagas lendrias, o reconhecimento de um carter pr-cristo, no entanto, se deve as normas mtricas e a musicalidade apre-sentadas, alm das j citadas kenings.

    Apesar destas infinidades de fontes a principal fonte para o estudo dos mitos e para a anlise destes continua sendo as fontes arqueolgicas como as runestones, pedras do perodo viking que contam com inscries rnicas, as estelas, pedras do perodo viking que contam com cenas dos ritos e feitos dos homens do norte da Europa alm de por vezes contar tambm com cenas mitologias. As fontes arqueolgi-cas tambm podem contar com amuletos que, por exemplo, podem ter o formato de martelos o que representaria o culto ao deus Thor, alm de pedaos de metais ou mesmo espadas e moedas que podem conter a gravao de imagens de deida-des ou de smbolos vinculados a estas como, por exemplo, o j citado martelo de Thor.

    Por fim podemos dizer que ao estudarmos os mitos nrdicos nos deparamos com duas grandes problemticas, a primeira advindo da no possibilidade de estudarmos todas as possveis variaes que estes mitos provavelmente tive-ram durante o perodo em que foram transmitidos de forma oral e a segunda sendo a necessidade do cruzamento das mais diversas fontes para que possamos comprovar um de-terminado mito como prprio do perodo da antiga f nrdi-ca e no como simplesmente uma produo de outras cultu-ras, povos e tempos sobre os antigos deuses escandinavos.

    Na tentativa de explorarmos mais essa multiplicidade optamos pela analise das diferentes fontes sobre o deus Thor buscando os diversos pontos de vista sobre o deus, seus fei-tos e suas caractersticas.

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    rr e suas mltiplas faces A principal caracterstica de rr ser um exmio ma-

    tador de gigantes. Encontramos estes feitos nos mitos compi-lados nos livros denominados Eddas. O culto a rr se encon-trava muito difundido durante o Perodo Viking. O deus teve sua imagem disseminada principalmente mediante as imigraes que ocorreram nas pocas de expanso de poder dos reinos escandinavos, entre as quais as ocorridas para a Islndia durante o reinado de Harald Finehar na Noruega, como relatado na Eyrbyggja Saga (Obra Annima, Eyrbyggja saga 4).

    Observamos a dimenso do culto a rr pelas estelas e runestones que apresentam imagens do deus e/ou do seu martelo. Tais objetos podem ser achados tanto nas regies de toda a pennsula escandinava como tambm nas ilhas em que os vikings estiveram presentes, como a j citada ilha da Islndia. O martelo era um verdadeiro smbolo do paganis-mo, muitos deles foram achados em escavaes de locais de culto do Perodo Viking, alguns junto aos mortos em enter-ramentos. Sendo assim, os vestgios arqueolgicos nos indi-cam uma grande difuso do culto ao deus rr por boa parte da Escandinvia.

    Uma das estelas estudadas que permite vislumbrar-mos a amplitude do culto ao deus rr a estela de Hrdum na Dinamarca, a qual foi datada para o sculo IX e associada por arquelogos como Christopher Abram a mitos que en-contramos compilados no poema Hymiskvida presente na Edda Potica e em Gylfaginning na Edda Prosaica (Obra An-nima, Edda Potica, Hymiskvida, estrofes 18-25; Strluson, Edda Snorra Sturlusonar, Gylfaginning 47). Nesse mito, rr e o gigante Hymir saem para pescar Jrmungandr, serpente que circunda o mundo e que enfrentar o deus na batalha final, Ragnarok, na qual ambos cairo mortos. Utilizando como isca a cabea de um boi, o deus rr consegue pescar a

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    serpente, depois de muitas dificuldades e usando de muita fora, a ponto de at mesmo quebrar o barco com seu p. Mas quando ele vai mat-la, o gigante Hymir corta a linha e a serpente escapa. Na estela de Hrdum podemos observar um barco com duas figuras antropomrficas, no caso associ-adas ao deus rr e ao gigante Hymir. O p de uma dessas figuras aparece atravessando um buraco no barco enquanto a outra figura segura um objeto que ir utilizar para cortar a linha de pesca (Abram, 2011, p. 69-779).

    Ao retratarmos o deus, devemos logo salientar que sua principal caracterstica a de ser um exmio matador de gigantes. Os duelos contra os seus rivais gigantes do ao deus uma caracterstica guerreira e em muitas fontes pode-mos observar este seu carter. Por exemplo, na Edda de Snorri Strluson que relata os feitos de Thor como o guerrei-ro que venceu sozinho feras, drages, seus habituais inimi-gos os gigantes e at mesmo os bersekir (Strluson. Edda Snorra Sturlusonar, Prologus 3).

    Tacitus em seu trabalho identifica rr como Hrcu-les, o porqu desta identificao ainda no est muito claro para ns historiadores. Apesar da figura de Hrcules ter co-mo sua arma principal uma maa dourada que deve ter sido entendida por Tacitus como o martelo de rr. Contudo o que nos importa neste trabalho a descrio de Thor feita por Tacitus que o identifica como um deus celebrado por ser o primeiro heri a marchar para as pugnas (Tacitus, Germa-nia III).

    Entendemos assim tanto por Tacitus quanto pela Ed-da de Snorri Strlusson a figura de rr como um deus guer-reiro e valente, cultuado pela guerra e pela coragem. Contu-do ao passarmos a observar rr por outra perspectiva per-ceberemos tambm ligao deste deus com a terra e o co-meo de sua caracterizao como um deus voltado aos cultos agrrios da fertilidade, para tanto podemos comear obser-vando a Edda de Snorri Strluson onde rr apresentado

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    como filho da terra com Odin (Strluson. Edda Snorra Stur-lusonar, Gylfaginning 9).

    Outro autor que nos relata sobre rr e o coloca na posio de um deus a ser chamado em casos de fertilidade Adam of Bremen, este relata o templo de Uppsala na Sucia e caracteriza rr como um deus com carter de fertilidade. Este governa os ventos, os troves, as chuvas e o tempo, sendo assim controlando o clima que se constitui como ele-mento fundamental na vida dos agricultores e fazendeiros da Escandinvia da poca Viking (Adam of Bremen, Gesta Hammaburgensis Ecclesiae Pontificum, quarto livro).

    Assim passamos a notar que o mito por seus contares e recontares se torna mltiplo at mesmo nas associaes da imagem de um deus como Thor, nos possibilitando a visua-lizao de suas mltiplas facetas como guerreiro e um deus de fertilidade, o mito assim no se encontra prezo a modelos prontos sendo criado no momento de seu contar e seus per-sonagens adquirindo papeis que nos demonstra as mltiplas facetas e possibilidades dos homens na sociedade escandi-nava onde guerreiros e fazendeiros no eram homens dife-rentes, nem mesmo posies excludentes.

    Consideraes finais Pretendemos encerrar este nosso trabalho no por

    concluir a questo de divergncia entre guerra e fertilidade em uma figura nica do deus Thor, porm por refletir por tal figura mitolgica a compreenso mltipla que a historiogra-fia carrega sobre essa expresso histrica chamada mitologia. Ao tambm demonstrarmos que, pelas compreenses de um conflito de caractersticas apresentadas em inmeras obras, com suas variaes e pontos em comum, seria trgico con-cluirmos por uma compreenso simples, que retiraria desse a

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    sua multiplicidade, alm de tambm simplificar a compreen-so das obras medievais.

    Vale aqui salientarmos que as obras que nos chegam pelos escritos como as Eddas por tempos foram cantadas pe-los povos escandinavos, sofrendo, portanto, um grande pro-cesso de oralidade que permitiria no somente as variaes nos seus fatos, porm tambm as variaes em suas compre-enses. O que nos chega dos mitos nrdicos apenas a ponta de um grande iceberg que um dia existiu nas canes dos escaldos e que, pelas suas execues no tempo e no espao, acabaram por sofrer adaptaes, a fim de melhor se enqua-drarem no contexto de prticas e crenas de cada perodo e regio. Portanto, uma compreenso nica sobre obras acaba-ria por iluminar parte de seus elementos, porm no nos conseguiria demonstrar a prpria variao existente no mundo escandinavo e no nos permitiria vislumbrar o pro-cesso de oralidade e de compilao sofrido por elas (Schjdt, 2009: 9-22).

    Referncias ABRAM, Christopher. Myths of the Pagan North. Auckland: Contin-uum International Publishing Group, 2011. ADAM OF BREMEN. Gesta Hammaburgensis Ecclesiae Pontificum. Traduo de F. J. Tschan. New York: Columbia University Press, 2002. OBRA ANNIMA. Eyrbyggja saga. In: slenzk fornrt. Traduo de Einar lafur Sveinsson and Matthas Prdarson. Reykjavk: Hid slenzka Fornritaflag, 1935. v. 4. OBRA ANNIMA. Edda potica. Traduo de Henry Adams Bel-lows. Disponvel em: . Acesso em: 8 ago. 2012.

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    TCITO, Publius Cornlio. Germnia. Traduo de Joo Penteado Erskine Stevenson Disponvel em: . Acesso em: 15 jan. 2012. ROSS, Margaret Clunies. The Cambridge Introduction to the Old-Norse Icelandic Saga. New York: Cambridge University Press, 2010. SCHJDT, Jens Peter. Diversity and its consequence for the study of Old Norse religion. What is it we are trying to reconstruct? In: SLUPECKI, Leszek P.; MORAWIEC, Jakub. (Orgs.). Between Pagan-ism and Christianity in the North. RzesZw: Wydawnictwo Uniwer-sytetu Rzeszowskiego, 2009. p. 9-22. STURLUSON, Snorri. Edda Snorra Sturlusonar. In: JNSSON, Finnur. (Ed.). Edda Snorra Sturlusonar. Reykjavk: Kostnadarmadur: Sigurdur Kristjnsson, 1907.

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    Letcia Santos

    (Graduanda em Letras pela UFPE) [email protected]

    A palavra cavaleiro, de acordo com Flori (2005), an-

    tes de tudo, refere-se ao guerreiro que anda a cavalo. No entanto, diversas foram as conotaes que esse termo rece-beu ao longo do tempo: em Roma, no Alto Imprio, ele pos-sua o sentido genrico de soldado; nos sculos XI e XII refe-ria-se aos guerreiros de elite que estavam a servio dos caste-les; e, decorridos cem anos, designava apenas uma corpora-o de guerreiros nobres. Tratarei aqui, especificamente, da noo de cavalaria que comea a ser gestada na sociedade medieval a partir do sculo XI e que, posteriormente, mais ou menos por volta dos anos 1.100, passa a se fazer presente na literatura. Contudo, importante assinalar que nem sempre a cavalaria esteve em alta conta na Idade Mdia. De acordo com Flori (2005, pp. 35-36), antes do sculo XII, ela ainda est no limbo e os cavaleiros so apenas guerreiros, subal-ternos na maioria, que combatem por seus mestres e dos quais se exige somente fora fsica, coragem, fidelidade e obedincia, que so as virtudes basilares dessa ordem guer-reira.

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    Entretanto, ao deparar-se com o poderio esmagador da cavalaria, a Igreja, que antes rejeitava e condenava aque-les que fizessem parte dela, decidiu unir-se a essa ordem, tentando disciplin-la e coloc-la a seu servio durante a Primeira Cruzada. Desse modo, os guerreiros, ao aceitarem os cdigos de tica clericais, j no eram mais cavaleiros co-muns, mas guerreiros de um tipo particular, os defensores ou vassalos-guerreiros das igrejas (Flori, 2005, p. 37). Sendo assim, criou-se, ao longo do sculo XII, a noo de uma cava-laria crist, defensora dos ideais eclesisticos, das vivas e dos rfos. A partir desse momento, surgem duas concepes de cavalaria distintas: a secular e a crist (FLORI, 2005). Como vimos, a segunda colocava-se inteiramente a servio da Igre-ja, devendo, pois, ser composta por guerreiros reconhecida-mente cristos e que possussem uma conduta que estivesse de acordo com os preceitos bblicos. A primeira no tinha necessariamente relaes com a Igreja crist, podendo ser formada, inclusive, por guerreiros que no fossem seguido-res dos ensinamentos de Cristo ou que fossem adeptos a ou-tros tipos de crenas religiosas tidas, para os cristos, como pags. Tomando por base os conceitos definidos por Flori (2005) em relao aos dois tipos de cavalaria que podemos encontrar na Idade Mdia, foram escolhidos dois heris da literatura medieval para a realizao de algumas confronta-es: Sigurd e Galaaz, ambos personagens-chave das narra-tivas as quais esto vinculados. O primeiro, pertencente Saga dos Volsungos, e o segundo, a A Demanda do Santo Graal.

    Introduzida em Portugal durante o reinado de Afon-so III, no sculo XIII, juntamente com outras novelas de cava-laria arturianas, A Demanda do Santo Graal foi traduzida para o portugus, sendo, no decorrer desse processo, mutilada, e at certo ponto, recriada (MEGALE, 2008). Ela conta a hist-ria da incansvel busca realizada pelos cavaleiros da Tvola

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    Redonda, ao Vaso sagrado, o Graal, no qual Jos de Arima-teia recolheu o sangue de Jesus Cristo.

    Na vspera de Pentecostes, diversos cavaleiros vo a Camalote para integrarem a Tvola Redonda do rei Artur; quando, enfim, todos esto reunidos, surge flutuando miste-riosamente no pao o Santo Graal, coberto por um veludo branco, e proporcionando manjares a todos os que estavam ali presentes. Logo em seguida, o Santo Vaso vai embora, despertando nos homens que compunham a mesa, o desejo de provar outra vez das maravilhas proporcionadas por ele. A obra narra as aventuras vividas pelos cavaleiros da Tvola Redonda durante a insistente busca para presenciar mais uma vez o milagre que lhes foi proporcionado em Camalote.

    De acordo com Richard Barber (2007), o primeiro ro-man cavaleiresco que abordou a temtica do mais famoso vaso mstico da histria da literatura corts foi A Histria do Graal, de Chrtien de Troyes, escrita no sculo XII. Aps a morte do autor e a consequente no concluso dessa obra, abriu-se uma lacuna na histria da literatura que, ao longo de muitos sculos, diversos autores tentaram preencher. Qual era a origem do Graal? E mais especificamente, o que seria, de fato, aquele misterioso objeto? Durante bastante tempo, tentou-se responder a essas questes. Iniciam-se, com a incompletude dA Histria do Graal, diversas novelas que tentavam dar um fim ao que o monge francs havia comeado. Muitas e variadas so as verses que so escritas ao longo do tempo; algumas, seguindo risca o primeiro manuscrito, outras, divergindo dele em grande parte (BARBER, 2007). No sculo XIII, surge na Fran-a uma novela de autoria annima que atribuiu ao Graal conotaes religiosas. Essa obra seria, mais tarde, em Portu-gal, a principal fonte para realizao da traduo dA De-manda do Santo Graal para o portugus (MEGALE, 2001).

    A Saga dos Volsungos, assim como A Demanda do Santo Graal, tambm uma obra originada no sculo XIII. A partir

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    da chegada do cristianismo nas regies escandinavas, as nar-rativas mitolgicas e heroicas, presentes anteriormente ape-nas na oralidade, lograram, enfim, ser redigidas. A Igreja legou, nos sculos XII e XIII, aos os povos nrdicos a tradio literria latina e, consequentemente, a importao de seu alfabeto, possibilitando o surgimento de uma srie de textos escritos em lngua verncula (MOOSBURGER, 2009). Antes da chegada do cristianismo, os escandinavos j possuam uma forma de escrita, as runas; no entanto, elas no permiti-am que fossem regidas obras muito longas. Por isso, antes do sculo XII, s se tem registro de poemas de curta durao (ALVAREZ; ANTN, 2003).

    Tradicionalmente classificadas por referenciais tem-ticos, de acordo com Johnni Langer (2009), temos, na litera-tura nrdica, de modo geral, alguns tipos de sagas como as lendrias, de reis, de famlia, de bispos e de cavalaria tra-duzidas ou de origem nativa. No entanto, na Islndia que as sagas tomam uma maior proporo e frutificam-se.

    A Saga dos Volsungos pertence ao grupo das sagas lendrias, que, segundo Moosburger (2009, p. 22), retrata os tempos antigos das terras do norte. O autor ainda afirma que as sagas lendrias, assim como a dos Volsungos possuem um carter pico e, por vezes, traos da literatura corts.

    As novelas de cavalaria de origem europeia causaram fortes impactos na Islndia, pois juntamente com elas, chega-ram tambm novos ideais heroicos e vises sobre as relaes humanas. A partir do contato com a literatura corts, as nar-rativas islandesas ganharam o colorido da aventura fantasi-osa, personagens femininos mais vivos e amores idealiza-dos (MOOSBURGER, 2009, p. 26).

    Obra annima da literatura islandesa, a Saga dos Volsungos, de modo geral, retrata a mesma lenda encontrada no pico alemo medieval Cano dos Niberlungos. Nela, nar-ra-se os grandes feitos e padecimentos dos descendentes do rei Volsung, que bisneto de Odin. Entre os diferentes heris

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    pertencentes a essa dinastia, destaca-se a histria de Sigurd, retratado na histria como um rei corajoso e um dos mais fortes cavaleiros do seu tempo. Personagem que, nA Demanda tornou-se um grande smbolo de uma cavalaria mstica e crist, o Galaaz da litera-tura corts portuguesa obedece ao ideal cavaleiresco criado pela Igreja catlica em meados do sculo XII. Ele retratado, ao longo de toda a obra, como um cavaleiro puro, justo e temente a deus, que possui uma beleza fsica que reflete seus valores espirituais e morais. O significado do seu prprio nome j o assinala como o escolhido de deus. Ele apresen-ta um carter nA Demanda que se assemelha ao do prprio Cristo, pois assim como o filho de Deus que veio ao mundo encarnado, expulsa os diabos com a sua simples presena e demonstra santidade elevada e obedincia a Deus:

    Depois disto, no esperou mais Galaaz, mas logo foi ao tmulo; e assim que chegou l, ouviu logo uma voz de to grande dor que maravilha era, e dizia assim: -Ai, Galaaz, servo de Jesus Cristo, no te chegues a mim, porque me fars deixar este lugar em que at agora fiquei. Mas Galaaz isto ouviu, no se espantou, como aquele que era mais esforado do que outro cavaleiro, e foi ao tmulo e quis erguer a pedra, e viu sair uma fumaa, to negra como pez, depois uma chama, depois uma figura em semelhana de homem, a mais feia e a mais estranha coisa que nunca se viu, e persignou-se, por-que bem lhe pareceu coisa do diabo. Ento ouviu uma voz que lhe disse: -Ai, Galaaz santa coisa em ti vejo; eu te vejo cercado de anjos, que no posso resistir contra ti. E por isso te deixo o meu lugar, em que longo tempo folguei. (p. 68)

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    Nota-se que, para Galaaz, importa, antes de qualquer coisa, agradar a Deus. Todos os seus feitos em batalha, seus prodgios, suas vitrias e sua conquista, ao final da obra, do Graal, so dedicados a Deus e feitos para a exaltao Dele. Galaaz apresenta-se o tempo todo como um ideal mximo da boa cavalaria crist que a Igreja tentou durante aquele pero-do, pouco a pouco, estabelecer; tendo seus bons valores ca-valeirescos e cristos exaltados por toda a obra. Ele retrata-do como um dos grandes paradigmas da cavalaria servidora de Cristo. NA Demanda, medida que os demais cavaleiros aproximam-se de sua conduta, mais virtuosos e louvveis mostram-se; entretanto, quanto mais se distanciam, mais desleais e reprovveis aos olhos de Deus se apresentam. Na Saga dos Volsungos, Sigurd apresenta-se como o heri principal, pois apesar da obra relatar os feitos e a vida de toda a descendncia do rei Volsung, a ele que a obra deu mais destaque sua histria narrada do captulo XII ao XXXIII. O nome Sigurd, como afirma Amorim (2013) vem do nrdico antigo e significa favorecido pela vitria. Esse per-sonagem, chamado cerca de duas vezes ao longo da obra tambm de cavaleiro, apresenta-se, ao longo da narrativa, como um heri forte, imbatvel, sempre vitorioso e justo, encerrando em si mesmo os mais importantes ideais guerrei-ros vikings:

    O heri sempre um modelo, e esse personagem aca-bou encarnando os antigos ideais to caros aos vi-kings: nobreza, retido, fidelidade. importante lem-brar que a figura de Sigurr como vrias outras figu-ras heroicas, possui em sua estrutura elementos co-muns e de certo modo Sigurr possui alguns atributos tpicos do heri de cavalaria medieval repleto de co-notaes honorficas, idealistas e ticas, a saber: a su-perioridade de seu equipamento e a excelncia de seu comportamento e seu fsico [...] (AMORIM, 2013, p. 86)

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    Sigurd surge sempre como um heri temvel, leal e corajoso. Os deuses, principalmente Odin, de quem descen-de, esto sempre ao seu favor, guardando-o e livrando-o da morte e do mal no decorrer de suas aventuras. Sua suprema-cia em relao a todo e qualquer guerreiro nrdico assina-lada desde o seu nascimento:

    Conta-se que Hiordis d a luz a um menino, e ele le-vado presena do rei Hialprek. O rei alegrou-se ao ver os olhos penetrantes que o garoto tinha fronte, e disse que ningum jamais seria seu igual ou seu equi-valente, e ele foi respingado com gua e chamado Si-gurd. Com relao a ele, todos dizem a mesma coisa: ningum preo para ele em conduta ou estatura. Ele foi criado l junto ao rei Hialprek, em meio a muito afeto. E, mesmo com todos aqueles nobilssimos ho-mens e reis sendo mencionados nas velhas histrias, ainda assim Sigurd ser, em fora e em faanhas, em obstinao e em valor, superior a qualquer outro ho-mem do norte do mundo. (p. 66)

    Ao conquistar sua maturidade guerreira, a primeira

    realizao de Sigurd , antes de dar cabo do drago Fafnir, vingar a morte de seu pai, Sigmund, no intuito de lavar a honra de toda a sua descendncia. Aps isso, o heri segue travando grandes combates, dos quais ele sempre o vence-dor. No entanto, a trajetria de glrias do guerreiro sofre algumas alteraes a partir do momento em que ele se apai-xona e se envolve com Brynhild, uma Valquria. A partir do momento em que, ao ser enganado pela rainha Grimhild, o heri ingere uma bebida enfeitiada que o faz esquecer Brynhild e possibilita que ele se case com ou-tra Gudrum -, sua sorte comea a mudar. A sua amada, que outrora o protegia dos perigosos combates, ao ser trada e magoada, assinala para Sigurd um trgico fim.

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    Em relao a Galaaz e Sigurd, nota-se que o primeiro configura-se, na literatura corts, como um dos maiores exemplos de uma cavalaria ligada Igreja crist; j o segun-do, apresenta-se como um forte expoente da cavalaria heroi-ca e pag, presente nas sagas lendrias islandesas. Galaaz realiza os seus combates em prol da exaltao do nome de Cristo e em busca de um reconhecimento divino. J Sigurd batalha, acima de tudo, para provar a sua fora guerreira e honrar a sua descendncia. Galaaz busca sempre ser justo com seus oponentes, no deixando de ter compaixo dos mesmos quando no se encontram em boas condies de combate ou de poupar a vida daqueles que pertencem, assim como ele, Tvola Re-donda, por mais que no sejam merecedores, como o caso de Galvo. Sigurd, semelhantemente a Galaaz, esfora-se ao m-ximo para ser justo, no entanto, quando algum, mesmo sendo prximo a ele, quebra a sua confiana, o heri no hesita em punir essa pessoa severamente. No h espao para compaixo, piedade ou misericrdia nesse guerreiro, pois essas so caractersticas caras ao cristianismo. No entanto, um aspecto que, de certo modo, aproxi-ma essas duas concepes de cavalaria o seu carter, sobre-tudo heroico e honorfico. Galaaz e Sigurd so exmios com-batentes por excelncia, os mais fortes de seus grupos, os mais valentes e exemplares. Ambos herdam de seus pais o direito a serem armados guerreiros: Galaaz, por ser herdeiro de Lancelote, o melhor cavaleiro do mundo; e Sigurd por ser descendente do rei Volsung.

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    Referncias Annimo. A Demanda do Santo Graal. Organizao e atualizao do portugus por Heitor Megale. So Paulo: Companhia das Letras, 2008. Annimo. Saga dos volsungos. So Paulo: Hedra, 2009. AMORIM, Sunia de Sousa. Mito, magia e religio na Volsunga Sa-ga: um olhar sobre a trajetria mtica do heri Sigurd. Dissertao. (Mestrado em Cincia das Religies) Universidade Federal da Paraba, 2013. LVAREZ, M Pilar Fernndez; ANTN, Teodoro Manrique. An-tologa de la Literatura Nrdica Antigua. Edicin Bilnge. 1 ed. Sa-lamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2003. BARBER, Richard W. O Santo Graal. Trad. Maria Beatriz de Medi-na. Rio de Janeiro/ So Paulo: Editora Record, 2007. FLORI, Jean. A cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Mdia. Trad. Eni Tenrio dos Santos. So Paulo: Madras, 2005. LANGER, Johnni. Histria e sociedade nas sagas islandesas: perspecti-vas metodolgicas. Alethia: revista de estudos sobre antiguidade e medievo, vol. 1, 2009. Disponvel em: https://www.academia.edu /752526 MEGALE, Heitor. A demanda do Santo Graal: das origens ao cdice portugus. So Paulo: Ateli Editorial, 2001.

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    Luiz Antonio de Sousa Netto

    (Graduando em Letras pela UFPE) [email protected]

    Introduo

    A Idade Mdia bem conhecida como um perodo em que os limites e fronteiras lingusticas iam se estabele-cendo na formao de futuras lnguas, as lnguas vernculas, tendo em vista os constantes contatos gerados pelas expan-ses territoriais. Nesse perodo em que a escrita estava em sua aurora, com o incio dos movimentos vernculos e do surgimento das primeiras gramticas, os limites estabeleci-dos entre lnguas advindas de uma mesma raiz comum eram, por assim dizer, bastante tnues. A tessitura do aparato lexical e estrutural das lnguas era bastante etrea, de natureza plsmica, indefinida e hete-rognea, sendo cronos e topos os principais agentes determi-nantes na separao, distino e variao entre lnguas de um tronco lingustico comum.

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    O ingls antigo e o nrdico antigo, oriundas de uma mesma matriz comum, um exemplo de como a compleio de uma lngua pode ser, por vezes, fundida a outra. Nesse ento reino da oralidade medieval, termo este cunhado por Pas (1992, p. 9), o trabalho de investigao, elicitao e traado desses processos de emprstimos lingus-ticos, que se estendem em uma mirade de nveis de anlise e formao lingustica, desde contribuies lexicais e fonolgi-cas a complexas ressignificaes semnticas e pragmticas, de natureza complexa e minuciosa. Com base nos documen-tos histricos, tendo em vista os testemunhos oferecidos pela lingustica histrica, ao partir das chamadas protolnguas indo-europeia e protogermnica, com relao, no caso, ao nrdico antigo e ao ingls antigo, possvel estabelecer pa-rmetros em que o emprstimo lingustico evidenciado e sua origem, muitas vezes incerta, pode ser ento decifrada e distinguida. Daz razes indo-europias Grande parte das lnguas faladas na Europa origi-nria de um mesmo ancestral lingustico. O Indo-europeu, cujas origens so atribudas historicamente Era do Bronze, um filo lingustico cujo substrato foi legado em centenas de lnguas nas regies geogrficas que abrangem a Europa, o Ir e o norte da ndia, Anatlia (tambm conhecida por sia Menor, territrio da atual Turquia) e na sia Central. Teorias iniciais relacionadas ao Indo-europeu surgi-ram a partir do redescobrimento do snscrito por meio dos vedas e a gramtica de Panini, mas foi somente em 1647 pelo linguista holands Marcus Zuerius van Boxhorn ao relacio-nar, por meio da lingustica comparativa, relaes entre as lnguas holandesa, grega, latina, persa, alem e um punhado

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    de lnguas eslavas, celtas e blticas, que o indo-europeu co-mo lngua ancestral comeou a tomar forma. Aps as contribuies de van Boxhorn, sculos de-pois, o alemo Franz Bopp (1833 1852) desenvolveu sua gramtica comparativa e usou o termo Indo-europeu, cu-nhado por Gaston Coerdoux, para se referir lngua ances-tral que deu origem s 449 lnguas e dialetos falados na atual regio euroasitica. A famlia lingustica indo-europeia constituda por diversos subgrupos, ou subfamlias, a saber: lnguas anatli-cas, lnguas helnicas, lnguas indo-iranianas (descendentes do proto-indo-iraniano: lnguas indo-arianas, lnguas irania-nas, lnguas drdicas, lnguas nuristnicas), lnguas itlicas (latim e seus descendentes romnicos, incluindo o portu-gus), lnguas celtas, lnguas germnicas (oriundas do proto-germnico, incluindo o ingls e nrdico antigos, objetos des-te trabalho), lngua armnia, lnguas tocarianas, lnguas bal-to-eslavas (dividias em lnguas eslavas e lnguas blticas), lngua albanesa, lnguas ilrias, lngua ventica, lngua li-brmia, lngua messpia, lngua, lngua frgia, lngua penia, lngua trcia, lngua dcia, lngua macednica antiga, lngua lgure e lngua lusitana (associada aos subgrupos cltico, lgure e itlico). Do indo-europeu ao protogermnico

    Como foi elencado anteriormente, as lnguas nrdica antiga e ingls antigo so descendentes de uma mesma ln-gua-ancestral comum, que por sua vez um subgrupo indo-europeu (PIE). O Protogermnico (que a partir deste ponto ser refe-rido por PGmc) uma lngua que no deixou registros escri-tos, sendo, portanto, advinda da relao do mtodo compa-rativo para que ela possa ser reconstruda. Dentre os regis-

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    tros mais longnquos de sua prole lingustica, esto as inscri-es rnicas escandinavas, datadas primordialmente da primeira metade do sculo I, que no constituem a lngua PGmc per se, mas um estgio consecutivo conhecido por Pro-tonrdico. Ao lidarmos neste trabalho com os termos Ingls An-tigo (IA) e Nrdico Antigo (NA), salientamos que nos refe-rimos a estas lnguas, na verdade, como no somente duas lnguas. Por IA, referimo-nos aos dialetos anglicanos (Angli-an), merciano (Mercian), nortumbriano (Northumbrian), kentiano (Kentish) e o saxo ocidental (West Saxon), o mais conhecido pelo grande pblico por meio da tradio liter-ria, dialetos estes distinguidos pelo tipo de colonizao e povo germnico que o constituiu e/ ou influenciou. J no que diz respeito ao termo NA, ele se refere ao nrdico antigo oriental, nrdico antigo gtnico e nrdico antigo ocidental (o mais conhecido, devido riqueza das sagas islandesas). Ingls e nrdico antigos: aproximaes fonolgicas Compreender o sistema fonolgico das lnguas um fator essencial para compreenso e reconstruo de suas ori-gens. O PIE, como demonstra Lass (1994, p.17), deu origem a subfamlias, dentre elas o PGmc que por sua vez originou o NA e IA. A distino das lnguas, a partir de uma protoln-gua, se d por meio de ramificaes lingusticas que apresen-tam inovaes e caractersticas que as diferencia das outras.

    Linguisticamente, ramificaes podem ser definidas mais ou menos como assim o em Biologia: ns pro-pomos uma diviso em uma linhagem quando um subgrupo se torna diferente o bastante para incorrer em ser designado como uma nova classe. Em outras palavras, ramificaes so divises dialetais; elas re-presentam o surgimento de uma ou mais inovaes

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    estruturais por demais notveis para nos fazer dar um novo nome ao grupo inovador. (LASS, 1944, p. 17 tra-duo nossa)

    No caso do PGm, o aparato voclico foi reduzido do original PIE. Alm disso, a Lei de Grimm (que consiste em transformaes radicais no sistema de consoantes) e Lei de Verner (que desencadeou a mudana acentual e levou ao desenvolvimento da teoria da Regra da Acentuao Germ-nica Germanic Stress Rule), so consideradas inovaes, consistindo assim o grupo de lnguas que sofreram esses fenmenos, as lnguas germnicas (incluindo o africner, flamengo, ingls, islands, etc). A teoria do PGm surgiu atravs da comparao dos sistemas fonolgicos das lnguas germnicas mais antigas (incluindo o IA e o NA) e suas contrapartes modernas como o feroico (uma das lnguas oficiais das Ilhas Faro) para compreender e traar a origem das palavras e dos sons pre-sentes numa dada lngua. A fonologia (do grego , som, e o sufixo , estudo) por sua natureza abstrata, inclui o ponto de vista das funes dos sons que a constituem (fonemas) em um sistema de comunicao lingustica. Em NA, (Spurkland, 2007, p.19) o sistema sonoro composto por dezesseis vogais, sendo oito curtas (/i/, /e/, /y/, //, /u/,/o/, //, /a/) e oito longas (/i/, /e/, //,/y/, //, /u/,/o/, //). No que tange s consoan-tes, existem em NA /b/, /p, /d, /t/, [g], /k/, /[v], [f]/, /[], []/, [], [x], /h/, /s/, /r/, /l/, /m/, /[n], []/, /w/, /j/. As vogais em IA so apenas quatorze, sendo dois pares agrupados de acordo com a durao. Para as vogais curtas, temos /i/, /y/, /e/, /u/,/o/, //, //. J suas cor-respondentes longas so /i/, /y/, /e/, /u/,/o/, //, //. Devido a variao dialetal, outro par de fonemas voc-

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    licos pode ser considerado: // e / /. As consoantes em IA, por sua vez, compreendem em /p/, /b/, /t/, /d/, /k/, /g/, /m/, /n/, [], /t/, [d], /f/, [v], //, [], /s/, [z], //, [], //, /x/, /h/, /r/, /j/, /w/, /l/. Todos os sons aqui descritos foram grafados segundo as regras do AFI (Alfabeto Fontico Internacional), sendo os que esto entre barras fonemas em si e os em colchetes alo-fones (variante fontica de um fonema). Contatos lingusticos em manuscritos: Era Viking na Ingla-terra anglo-Saxnica A Era Viking teve incio no desenvolver da Era An-glo-Saxnica inglesa, a partir do sculo IX (c. 820 d.C.) e per-durou at a Conquista normanda da Inglaterra, no sculo XII. Embora seja difcil de traar geneticamente a origem dos invasores, as invases Inglaterra pelos vikings eram, como apontam os documentos histricos, de natureza noru-eguesa e dinamarquesa (Richards, 2007, p.17). As regies mais invadidas so os Reinos da nglia Oriental, Northmbria e Mrcia. A Crnica Anglo-Saxnica aponta momentos em que anglo-saxes e escandinavos exer-ciam contato entre si, para partilhar terras e bens:

    876 A.D. Neste mesmo ano, o exrcito dos Nrdicos na Inglaterra fez juramentos ao Rei Alfredo perante o anel sagrado, que outrora jamais fizera a outra nao; e entregaram refns ao rei dentre os quais os mais ilustres homens do exrcito, aos quais ligeiramente partiriam de seu reino. 877 A.D. Neste ano, o exrcito Dans invade Exeter, partindo de Wareham; enquanto isso, a marinha de guerra navegava para oeste, at que eles se deparam com uma densa neblina ao mar, e l pereceram cento e

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    vinte navios em Swanwich. (36) Entrementes, o Rei Alfredo com seu exrcito, cavalgou com sua cavalaria at Exeter; porm, no pudera ultrapass-los antes da chegada deles fortaleza, onde no poderiam entrar. L, eles [os nrdicos] deram tantos refns a ele quanto pedira, ao fazer juramentos solenes de modo a cele-brar a mais estrita amizade. (Anglo-Saxon Chronicle, traduo nossa).

    Ora, se as lnguas distintas eram utilizadas e a comu-

    nicao era de fato utilizada, elas possuam, em certo grau, inteligibilidade. Cdigo de Lei de Cnut 1018, compilado por Wulfstan (Towndend, 2002, p. 07), outro exemplo em que comunicao e contato so estabelecidos por falantes das duas lnguas:

    IN NOMINE DOMINI is is seo gerdnes e witan gerddon. 7 be mangenum godum bisnum. asmea-don. And t ws geworden sona swa cnt cyngc. mid his witena geeahte. fri 7 freomdscipe. betweox denum 7 englum. fullice gefstnode 7 heora rran saca. Ealle getwmde. Em nome do Senhor. Eis o curso ao qual os conselhei-ros determinaram e estabeleceram com bons prece-dentes. E isso ocorreu to logo que o Rei Cnut, com aconselhamento de seus conselheiros, estabeleceu paz e amizade plenas entre os Ingleses e Dinamarqueses, pondo fim completamente a sua inimizade preceden-te.

    O Stockholm Codex Aureus (integrante da Coleo da Biblioteca Nacional da Sucia, Estocolmo, MS A. 35), tam-bm conhecido por Codex Aureus de Canterbury, um evange-lho escrito em meados do sculo VIII, provavelmente em Canterbury, tambm aponta momentos em que anglo-saxes e nrdicos estabeleciam contatos, nas anotaes feitas em seu corpo:

  • 52 | Dossi: Mito e Literatura

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    Eu, Ealdorman lfred, e Werburg, minha esposa, ad-quirimos esses livros do exrcito pago com nosso prprio dinheiro; em outras palavras, ouro puro. E ns dois assim fizemos por amor a Deus e por neces-sidade de nossas almas; e por que no desejvamos que estes livros sagrados perdurassem em mos pa-gs; e agora, desejamos do-los aos cuidados da Igreja Crist [Caterbury], para a exaltao, honra e glria do Senhor. (Towndend, 2002: 04, traduo nossa).

    Os Evangelhos de Lindisfarne (Londres, Biblioteca

    Britnica Cotton MS Nero D.IV), um conjunto de evangelhos com iluminuras, produzido por volta do ano de 700 no mo-nastrio de Lindisfarne, Reino da Northmbria, indicam um fenmeno bastante intrigante para historiadores e linguistas. Os manuscritos dos evangelhos, escritos orginalmente em latim, contm anotaes e tradues feitas em IA. O mais curioso que, alm de registrar o dialeto northumbriano, ele contm em seu corpus anotaes com palavras em NA, inclu-indo trechos escritos com runas. Tal evidncia, aponta para uma contnua relao entre os falantes das lnguas IA e NA. Emprstimos lingusticos: como delimitar? Pons-Sanz (2007, p. 36), analisa os processos e resul-tados de identificao de transferncia e emprstimo lingus-ticos. No caso da proximidade das duas lnguas em questo, NA e IA, devido a semelhanas estruturais e fnicas, a tarefa ainda mais rdua para trao o qu vem antes de qu. Existem como ela ressalta mtodos de anlise lingus-tica que auxiliam nesse processo de investigao etimolgi-ca. Basicamente, possvel traar a origem da palavra, caso sua estrutura possa ser explicada por meio das leis internas da lngua em que ela est sendo utilizada.

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    Esses emprstimos e mudanas podem ser observa-dos com a escandinavizao, especialmente relacionados toponmia. Dentre os principais fenmenos fonolgicos ocor-ridos esto, por meio da influncia da invaso nrdica no IA, esto: 1) /d/ > //; 2) /j/>/g/; 3) // >/g/; 4) / t/ > /k/; // > /sk/. S a modo de exemplo, as palavras s [], freixo, que passou a reproduzir-se na escrita como askr, com altera-o da pronncia [askr] e bus, arbusto, pronunciada inici-almente como [bu] e mais tarde como [buskr], por influncia do NA, ocorreu a reposio da velar, como no caso anterior, influenciada pelo contgio do NA, visto que as palavras no eram assim grafadas anteriormente, bem como esse padro silbico no ocorria em IA. Outro exemplo que reproduz outros fenmenos se d na forma do IA brycg, ponte, pronunciada originalmente [bry], e que na poca em tela passou a ser escrita como hrycg, correspondente pronncia [hryg], tambm por in-fluncia do NA. Concluso Os processos e relaes lingusticas aqui descritos do evidncias de relaes genticas entre IA e NA. Os fe-nmenos observados nas mudanas ortogrficas e fonticas das palavras em IA aps a invaso viking atuam indicadores de divergncias fonolgicas em IA, representam analogica-mente, um resgate de suas origens protogermncias, visto que certas entidades e padres (como o coda silbico kr em buskr, foi resgatado), sendo oriundos dos contatos lingusti-cos entre as lnguas IA e NA em questo.

  • 54 | Dossi: Mito e Literatura

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    Referncias LASS, Roger. Old English: A historical linguistic companion. Cam-bridge: Cambridge University Press, 1994. MITCHELL, Bruce. ROBINSON, Fred C. A Guide to Old English. Oxford: Willey-Blackwell, 2012. PAS, Maria et al. Le Passage Lcrit des Langues Romanes. Tbing-en: Gunter Narr, 1993. PONS-SANZ, Sara M. Norse-derived Vocabulary in Late Old English Texts: Wulfstans Works, A Case Study. Odense: University Press of Southern Denmark, 2007. RICHARDS, Julian D. Viking Age England. The Mill: The History Press, 2007. SPURKLAND, Terje. Innfring i norrnt sprk. 9. Opplag. Oslo: Universitetsforlaget Oslo: 2007. TOWNEND, Matthew. Language and History in Viking Age England: Linguistic Relations between Speakers of Old Norse and Old English. Brepols Publishers: 2002.

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    Ricardo Wagner Menezes de Oliveira

    (PPGCR-UFPB/Valknut/NEVE) [email protected]

    Para se estudar a religiosidade nrdica pr-crist,

    comumente nos utilizamos dos escritos posteriores a Era Viking, principalmente as Eddas, sagas e demais manuscri-tos. Entretanto, fontes assim so de origem crist ou foram transcritas (e provavelmente adulteradas durante o proces-so) por cristos. No queremos com isso deslegitimar as fon-tes literrias tradicionais, pelo contrrio, acreditamos que elas devem ser utilizadas sim, mas no podem ser entendi-das como uma fonte produzida por escandinavos antes da cristianizao, ainda que o contedo diga o contrrio, pois podem ter sido escritos nos mosteiros duzentos ou trezen-tos anos aps a converso, e isso abre uma possibilidade de preconceito, erro de interpretao ou adaptao deliberada quando autores se deparavam com crenas no-crists (DAVIDSON, 2004, p. 12).

    Este artigo objetiva demonstrar, atravs de alguns exemplos, a possibilidade de se utilizar os monumentos de pedra escandinavos como fonte de estudo das religiosidades na Escandinvia Medieval como produo contempornea e vlida.

    As manifestaes das religiosidades na Escandinvia durante a Era Viking constituem-se da somatria das prti-cas e costumes que denominamos de mito, religio e magia.

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    Para esclarecer um pouco mais, definiremos o mito como a narrativa fantstica que trata da cosmoviso de um povo e conferem sentido a vida; a religio como os ritos pblicos edificados na sociedade e que lhe fornece uma identificao coletiva; e a magia como as prticas rituais de cunho doms-tico e cotidiano.

    No caso viking, a religiosidade nrdica pr-crist se apresenta como uma religio no-centralizada, ou seja, sem sacerdotes profissionais, sem hierarquia e no revelada, por-tanto sem dogmas centrais, poder social/militar hierrquico e livro sagrado. Seus ritos pblicos, normalmente sacrificiais (Blt), marcavam datas importantes e eram conduzidos pelo lder local (que ficar conhecido posteriormente na Islndia como Goi), envolvendo a comunidade como um todo, tanto nos preparativos quanto nos objetivos finais. A prece por fertilidade da terra e boas condies climticas so alguns exemplos destes ritos.

    As prticas mgicas, por possuirem um carter mais pessoal, apresentam uma intencionalidade particular, po-dendo tambm estar ligadas fertilidade e fartura, mas tambm podem ser feitas com o objetivo de amaldioar ou proteger algum e at de falar com os mortos. Dentre as v-rias categorias mgicas, a mais conhecida chamada de Seiir, presente tanto no mundo do campo como no da elite.

    Os mitos nrdicos fundamentavam-se puramente na tradio oral e sobreviveram na memria das pessoas em forma de contos e poesias. Algumas pessoas especializavam-se na composio de poemas sobre personagens fantsticos ou mesmo histricos, mas sempre recorriam mitologia atravs de uma das mais fortes caractersticas da poesia es-candinava, a metfora mitolgica chamada Kenning.

    A narrao e reapropriao dos mitos pelo escaldo (o poeta escandinavo) e pelos ouvintes, ainda que possusse ferramentas mnemnicas para manuteno da estrutura,

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    tornava a mitologia do norte um conjunto de narrativas com algumas variaes regionais e temporais.

    Essas categorias coexistiam e mesclavam-se na vida religiosa do homem escandinavo medieval, atravessando o tempo. Dessa maneira, adaptavam-se e produziam ressigni-ficaes quando o contexto cultural sofria mutaes ou al-gum costume especfico era difundido para outras regies. Exemplo disso so os monumentos de pedra espalhados pela Escandinvia, que possuem caractersticas variantes em tempos e espacialidades distintas.

    Essa variabilidade vem induzindo os historiadores em um recorrente erro, com relao nomenclatura desses monumentos, os quais, comumente, so chamados de Pedras Rnicas ou Runestones. Todavia, a aplicao de tal designa-o somente possvel em se tratando de nos monumentos que possuem a escrita rnica no seu corpo (MENEZES, 2014, p 43). Os referidos monumentos devem ser divididos e no-meados de acordo com sua tipologia, e assim, o faremos, em uma breve anlise de suas caractersticas morfolgicas a se-guir. No entanto, como a classificao no o objetivo deste estudo, iremos nos concentrar no ponto que nos interessa, a saber, as expresses religiosas.

    Antes de tambm serem abordados os monumentos do perodo propriamente viking, esta anlise tem como foco um tipo mais antigo, que foi a base para o desenvolvimento dos modelos futuros, qual seja, os Petrglifos, produes que datam da Idade do Bronze Escandinava (1500-500 a.C.), ca-racterizadas por retratarem, em geral, cenas fantsticas, re-pletas de simbolismos cosmognicos. Tomaremos como exemplo a pedra de Bakkehaugen (Figura 1), na Noruega, onde podemos identificar um grande navio (ou tren?), so-bre ele, trs homens armados esto de p e com seus braos erguidos. Tambm podemos notar quatro formas circulares, sendo uma incompleta e outra ligada ao transporte.

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    Rapidamente percebemos que o barco tem uma for-ma similar ao famoso langskip da Era Viking, que possua adornos na popa e na proa em formato de serpente. No caso analisado, a serpente est associada a um par de chifres, o que denota, segundo Johnni Langer, o poder sobre a morte, sendo uma combinao comum nas religiosidades europeias pr-crists (LANGER, 2009, p. 112, 114). Os crculos no cu fazem claramente uma referncia ao sol, smbolo amplamen-te utilizado no norte europeu. Os smbolos solares esto li-gados ao cu, ao transe, morte, ao barco e ao cavalo, bem como acabaram por ser transmutados nos cultos de Odin, Thor e Tr (LANGER, 2010, p.5). Em outros petrglifos po-demos encontrar diversos elementos religiosos diferentes, como corpos mutilados, carruagens solares, gigantes, ani-mais sagrados, procisses, entre outros.

    Durante o Perodo das Migraes (200-400 d.C.), um novo estilo de monumentos comeou a surgir na ilha de Go-tland, Sucia, continuando a existir at o sculo XII (LAN-GER, 2006, p. 13), so as chamadas Pedras Pintadas. Os es-cultores e pintores gotlandeses adaptaram as antigas tradi-es e comearam a erguer monumentos repletos de imagens e adornos que acreditamos ser representaes da morte de um indivduo importante na sociedade, cenas cotidianas e at mitolgicas. Se observarmos o monumento de Hammars I (Figura 2), temos um belo exemplo do quo ricas de ima-gens e detalhes essas produes so. Interessante perceber a verticalizao do objeto, possuindo um formato flico e apontando para o cu. Sua leitura tambm verticalizada, onde encontramos uma narrativa em que identificamos qua-dros sequenciais, indicando a viagem, a batalha, o retorno, o sacrifcio e o Valhll.

    Vrios elementos fazem referncia a aspectos religio-sos. O fato da prpria leitura ser verticalizada, pode indicar o monumento como uma prpria estrutura csmica, conceito to importante para o xamanismo, indicando a viagem entre

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    os mundos. A parte superior destes monumentos, separada do restante por motivos horizontais, normalmente est re-servada para o alm vida, mas nesse caso temos a represen-tao de dois sacrifcios, sendo um homem enforcado em uma rvore e outro sendo morto sobre uma mesa ou altar. Um importante detalhe nesse conjunto a presena de um escultor de monumentos entre os sacrificados, que parece pintar o monumento com o sangue do sacrificado, uma pr-tica conhecida para sacralizar o monumento (LANGER, 2009, p. 89). Seguindo acima, temos novamente pssaros e du