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1 Monografia onografia onografia onografia de de de de Vila Franca da Beira Vila Franca da Beira Vila Franca da Beira Vila Franca da Beira 1993 Autor José Marques Lopes - também conhecido por “Zé Vicente”

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Vila Franca da BeiraVila Franca da BeiraVila Franca da BeiraVila Franca da Beira

1993

Autor

José Marques Lopes - também conhecido por “Zé Vicente”

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ÍNDICE

PREFÁCIO – Página 3

PRIMEIRA PARTE

ARCAINHA - Pag. 6

POVOAMENTO DE PORTUGAL NA PRÉ-HISTÓRIA - 7

CARTA MOSTRANDO O POVOAMENTO DE PORTUGAL NA

PRÉ-HISTÓRIA - 8

I - DO VALOR DA TOPONÍMIA NA DEFINIÇÃO DO PASSADO

PRÉ-HISTÓRICO DE VILA FRANCA - 9

II - PROJECTO ADIADO - 16

III - CORDINHA A DESCONHECIDA - 18

IV - SUGESTÃO - 20

SEGUNDA PARTE

A PEDRA DA MOIRA – MEMÓRIA DO PASSADO - 22

I - NA ALVORADA DA HISTÓRIA - 23

II - PASTORES – GUERREIROS TROCAM IMPRESSÕES - 24

III - É VILA FRANCA UM ANTIGO CASTRO LUSITANO? - 26

IV - ONDE FICAVA A LUSITÂNIA? QUEM ERAM OS

LUSITANOS? E VIRIATO? - 28

V - O CASAMENTO DE VIRIATO - 32

VI - VILA ROMANA? 35

VII - QUE REPERCUSSÃO TEVE EM VILA FRANCA O FIM DA

DOMINAÇÃO ROMANA? - 38

VIII - QUEM ERA ESSE NOBRE QUE SEGUNDO A TRADIÇÃO

ESTEVE DESTERRADO NO VIEIRO? - 40

IX - A SEGUIR AOS VISIGODOS, OS MOUROS - 41

X - A LENDA DA PEDRA DA MOIRA - 44

TERCEIRA PARTE

VILA RAIZ QUE DO PASSADO FICOU FRANCA SE BAPTIZOU.

- 46

I - NOS ALVORES DA NACIONALIDADE - 47

II - MARTIM GONÇALVES - 48

III - QUAL A GÉNESE DAS MUDANÇAS DE NOME DA NOSSA

POVOAÇÃO, OU QUE FENÓMENO AS MOTIVARAM?

QUEM SOMOS? - 50

IV - RENASCIMENTO DE VILA FRANCA - 53

V - DESDE QUANDO É QUE VILA FRANCA ASPIRAVA A SER

FREGUESIA? - 56

VI - DE FACTO O POVO DE VILA FRANCA PRETENDIA IR

MAIS ALÉM MAS FALTAVA-LHE A VONTADE POLÍTICA - 61

VII - O HOMEM CERTO NO MOMENTO CERTO - 63

VIII - COMO É QUE A CRIAÇÃO DA FREGUESIA DE VILA

FRANCA DA BEIRA PASSOU DE REMOTA ASPIRAÇÃO A

REALIDADE TANGÍVEL MAIS CEDO DO QUE SE CONTAVA? -

65

IX - A SEDE DA JUNTA DE FREGUESIA - 72

X - A ANTIGA CAPELA DE SANTA MARGARIDA - 74

XI - CONSTRUÇÃO DA NOVA CAPELA, JUSTIFICAÇÃO - 75

XII - DIVERGÊNCIAS - 78

XIII - RELAÇÕES DO PÁROCO COM A POPULAÇÃO - 79

XIV - INÍCIO DAS OBRAS - 81

XV - O PÁROCO PEDE LICENÇA PARA BENZER A CAPELA - 83

XVI - PARA QUANDO A PROMOÇÃO DA CAPELA A IGREJA?

- 88

QUARTA PARTE

USOS E COSTUMES - 90

I - VILA FRANCA, ESSA DESCONHECIDA - 91

II - O POVO QUE SOMOS - 93

III - AS CASAS - 96

IV - GEOGRAFIA HUMANA, DOIS APONTAMENTOS - 99

V - O TRAJE - 102

VI - ROMARIAS - 104

VII - FEIRAS - 106

VIII - BUSTO DO DR. AGOSTINHO MARQUES ANTUNES -

108

IX - AS ALMINHAS - 110

X - HÁBITOS ALIMENTARES A MATANÇA DO PORCO A

BROA A CASTANHA, ETC.…- 112

XI - A LÃ E O LINHO - 119

XII - JOGOS - 122

XIII - INSTITUIÇOES. CULTURA - 125

NOTA FINAL - 131

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PREFÁCIO

Esta é a Monografia – seria mais correcto chamar-lhe simples ensaio – que desde há muitos anos

vimos congeminando.

À guisa de prefácio, com estas palavras pretendemos dar a conhecer as intenções que nos levaram

a embarcar nesta aventura e se possível fazer participar os leitores, sem lhes ensinar nada, na

viagem à descoberta das nossas raízes.

Se bem nos lembra, nós a princípio interrogávamo-nos se na realidade valeria a pena escrever esta

monografia e de cada vez que o fazíamos parecia-nos invariavelmente ouvir a voz do Poeta

responder: “… Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena …”.

Mas depois de se meter mãos à obra é que se sabe quão enganoso é o canto da Sereia em fazer-nos

crer que “Deus quer, o Homem sonha e a Obra nasce” assim como a coisa mais natural deste

Mundo.

Inexperiente mas atrevido, metemo-nos ao trabalho e já estávamos quase a terminar a faina

quando surge o Decreto nº 94/78 de 12 de Setembro do Governo da República a alterar a

denominação de Vila Franca do Ervedal para Vila Franca da Beira.

O facto, além de nos trazer, a todos, muita alegria, em nós suscitou novas ideias para a feitura

deste trabalho ainda em fase de acabamento.

Desse período são alguns dos apontamentos avulsos publicados em A Comarca de Arganil, sob o

título genérico de Vila Franca da Beira, retocando os que aproveitámos.

Volvidos 10 anos, a Lei nº 69/88, de 23 de Maio, aprovada pela Assembleia da República em 11 de

Março de 1988, fez-nos repensar outra vez tudo, desde os fundamentos.

A nossa preocupação dominante, o nosso maior desejo era, no campo cultural, dotar a nossa terra

duma Monografia digna do seu Passado obscuro, que sempre nos fascinou. Do seu Presente, agora

enriquecido pelos dois documentos oficiais atrás citados, a darem-lhe um certo conforto moral. E

do seu Futuro, que queríamos e queremos mais promissor.

Não era, não é fácil esta tarefa. Ora vacilando, ora confiando na nossa intuição mais do que no

nosso fraco saber, temos avançado com muitas cautelas.

Com tantas emendas e alterações, nós não escrevemos uma, mas três ou quatro monografias,

fundidas e refundidas nesta.

Esperemos que não sejam baldados os nossos esforços, e que esta monografia não seja definitiva,

mas tão somente, um ponto de partida para os estudos mais sérios sobre Vila Franca, elaborados

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não por um simples “aprendiz de feiticeiro” mas por algum dos muitos mestres que felizmente a

terra já tem, mourejando arredios do rincão natal, como nós.

Com a inauguração da Escola 123 da Cordinha em Ervedal da Beira, espera-se que a desertificação

humana dos novos licenciados seja menor e alguns deles possam robustecer os comandos do povo

rumo ao progresso futuro.

É essa a nossa esperança na nova aurora do provir.

Para facilitar a localização de Vila Franca, apresentamos em fotocópia, extraída da Monografia

Coimbra e o seu Distrito, de Manuel Aires de Falcão Machado, este pormenor do Mapa do Alto

Distrito de Coimbra.

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PRIMEIRA

PARTE

ARCAINHA

Para que a nossa condição humana nos inspire um pouco de modéstia, não precisamos de olhar

atentamente para o céu estrelado. Basta contemplarmos as civilizações que existiram milhares de

anos antes de nós, que antes de nós foram grandes e antes de nós existiram.

C. W. Ceram – Deuses, Túmulos e Sábios

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POVOAMENTO DE PORTUGAL NA PRÉ-HISTÓRIA

Extraídos da obra de J. Leite de Vasconcelos, Opúsculos, volume V, Etnologia (parte I),

apresentamos a seguir uma relação de concelhos antigos e modernos, e uma carta sobre o

povoamento da Lusitânia.

� Lista dos Concelhos indicados na carta, por ordem numérica

1. Monção 2. Valença 3. Paredes de

Coura (Coura) 4. Caminha 5. Arcos de

Valdevez 6. Ponte da Barca

(Barca) 7. Ponte de Lima 8. Terras de

Bouro (Bouro) 9. Viana do

Castelo 10. Póvoa de

Lenhoso 11. Esposende 12. Matosinhos

(Bouças) 13. Braga 14. Vila Nova de

Famalicão (Famalicão)

15. Guimarães 16. Santo Tirso 17. Vila do Conde 18. Maia 19. Vila Nova de

Gaia (Gaia) 20. Paredes 21. Porto

22. Marco de Canaveses

23. Chaves 24. Bragança 25. Miranda do

Douro 26. Sabrosa 27. Moncorvo

(Torre de Moncorvo)

28. Vila Pouca de Aguiar

29. Mondim de Basto

30. Celorico de Basto

31. S. João de Areias (a)

32. Cinfães (Sinfães)

33. Resende 34. Santa Maria da

Feira (Feira) 35. Penedono 36. Aguiar da

Beira 37. Estarreja 38. Oliveira de

Frades 39. Sátão (Çatão) 40. Albergaria-a-

velha 41. Penalva do

Castelo

42. Aveiro 43. Mangualde 44. Nelas 45. Viseu 46. Gouveia 47. Guarda 48. Tábua 49. Sabugal 50. Fundão 51. Figueira da Foz 52. Pombal 53. Vila Nova de

Ourém (Ourém)

54. Tomar 55. Caldas da

Rainha 56. Castelo de

Vide 57. Ponte de Sôr 58. Avis 59. Fronteira 60. Monforte 61. Alenquer 62. Sobral de

Monte Agraço (Sobral)

63. Mora 64. Mafra 65. Estremoz 66. Montemor-o-

Novo 67. Redondo 68. Arraiolos

69. Fornos de Algodres (Algodres)

70. Évora 71. Seia 72. Cuba 73. S. Tiago do

Cacém 74. Lisboa 75. Almodôvar 76. Aljustrel 77. Vila do Bispo 78. Albufeira 79. Tavira 80. Arouca 81. Arruda 82. Moura 83. Oliveira do

Hospital 84. S. Pedro do Sul 85. Sever de

Vouga 86. S. Vicente da

Beira (b) 87. Barcelos 88. Nazaré

(a) Já não é Concelho e situa-se na margem direita do rio Mondego (b) Já não é Concelho

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CARTA MOSTRANDO O POVOAMENTO DE PORTUGAL NA PRÉ-HISTÓRIA

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I

DO VALOR DA TOPONÍMIA NA DEFINIÇÃO DO PASSADO PRÉ-HISTÓRICO DE VILA

FRANCA

A maioria das povoações antigas, como a nossa, é de geração espontânea. A sua origem terá,

provavelmente, obedecido a razões estratégicas, de substância ou fortuitas, sentidas pelos

fundadores. Vila Franca não foge à regra, por isso se enquadra perfeitamente nos estudos que

alguns dos nossos mais consagrados autores nos legaram.

Comecemos pelo Dr. José Leite de Vasconcelos, já que a sua obra, no campo da etnologia,

arqueologia e linguística, principalmente, é ainda hoje muito considerada, pelo conhecimento que o

autor adquiriu dos costumes, lendas e tradições de muitas terras do País e estrangeiro.

MEMÓRIA

Apresentada por Leite de Vasconcelos ao Congresso Internacional de Arqueologia de Roma em

Outubro de 1912, em francês, fazendo parte de Opúsculos, vol. V, Etnologia, Parte I intitula-se: Le

peuplement du Portugal d’aprés les données de la toponomye (Memoire presenté au Congrés

International d’Archeologie tenu a Rome en Octobre 1912).

Com este importante depoimento e os que se lhes seguirão penso que ficaremos melhor elucidados

sobre a real projecção arqueológica do dólmen que até fins do terceiro quartel do século passado

existiu no terreno. Presentemente ocupado pela escola primária, denominado, no conjunto,

arcainha.

Eis a memória: “Diz-se num conto popular, que certos meninos, fora de portas, deixavam cair, aqui e

além, cascas de noz e migalhas de pão, para encontrarem o caminho de regresso à casa paterna. Os

povos – conclui – na sua marcha interminável, através dos séculos, assemelham-se, de algum modo,

a essas crianças, porque eles legam à posteridade vocábulos e formas de linguagem que fornecem

muitas vezes ao filólogo meios de esclarecer o historiador, ou de o ajudar no estudo do passado,

mesmo o mais longínquo.”

Continuando diz: “Assim sendo, nós temos problemas arqueológicos – linguísticos. É de um desses

problemas que venho aqui hoje ocupar-me do ponto de vista da pré-história portuguesa.”

E explica: “A parte arquitectural dos monumentos funerários, que se dominam, em arqueologia,

dolmens, têm em português, na linguagem vulgar, nomes apelativos, anta e orca, ainda que o povo

não atribua a essas palavras, como é natural, o significado que os eruditos atribuem a dólmen.

Como diminutivo aplica-se antinha ou orquinha. ”

Adiante esclarece: “… estudei as etimologias dessas palavras, que são metáforas latinas: anta da

linguagem dos arquitectos e orca da linguagem dos agrimensores. Ao mesmo tempo mostrei que

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devia ter havido, outrora, outras denominações apelativas análogas àquelas, a saber: arca (também

tirada metaforicamente do vocábulo dos agrimensores), antela e talvez pala. Há ainda nesta classe

a palavra arcainha, que achei após a publicação do meu volume de Religião da Lusitânia, termo que

prossupõe, como etimologia, arca. O montículo que envolve o dólmen ou túmulos, tem, ou teve,

entre outras denominações, mamôa ou mámoa e o diminutivo mamoinha ou mamunha.”

Desculpando-nos da longa transcrição, o autor elucida: “… Nós temos aqui mesmo uma metáfora do

latim mama, por causa do paralelismo que se estabeleceu entre essa elevação de terra e um seio de

mulher.”

Com o tempo, todos esses nomes comuns, aplicados a lugares onde havia dólmens, tornaram-se

nomes próprios e é em resultado disso que se acha hoje em Portugal numerosas localidades que

tomaram essas denominações, de tal maneira que, se pegarmos numa carta, poderemos, somente

pela Toponímia, saber alguma coisa do estado da população de Portugal nos tempos Pré-Históricos.

Eis aqui uma carta desse género. Assinalei nela com números correspondentes aos concelhos, ou

divisões administrativas médias, os nomes que pode escolher:

� anta, antas, antela, antinha, …

� arca, arcas, arcainha, …

� mama, mamaltar, mamoa, mamoinha, mamunha, …

� orca, …

� pala, …

� paradanta, paradantas, …

Ora vemos um só desses nomes num concelho, ora vemos diversos.

Ainda que haja muitas mais localidades, que as que indiquei na carta, usando os nomes de mama e

arca, limitei-me a estas, porque são as únicas onde sei pertinentemente que há monumentos Pré-

Históricos, podendo as mesmas palavras ter outro significado. Paradanta, no (antigo) concelho de

S. Vicente da Beira, decompõe-se em pedra d’anta (cf. Pradanta, Peranta e Perafita): observou-se

aqui o fenómeno glotológico que se chama próclise; Paradantas, poderá ser o plural de Paradanta.

A expressão Mamunha de Mamaltar é pleonástica e muito notável, quer dizer Mamaltar

decompondo-se em Mama (do) Altar, túmulos e dólmen, propriamente dito; sabe-se que os

megálitos, em diversos países, recebem o nome de altar, por exemplo: altar do lobo, pedras altares,

etc. …, não que o povo, por invenção sua ou por influência literária, os tenha considerado como

altares, mas simplesmente por metáforas, às quais ligou, mais tarde, lendas. No concelho de Viseu

há também um Outeiro do Altar, perto de um dólmen; é possível que o nome da colina esteja

relacionada com o dólmen. Nos concelhos de Mora e Pombal cito Antões, que suponho ser o plural

de Antão, aumentativo de Anta; é curioso notar que no primeiro desses concelhos há localidades

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cujos nomes apresentam três formas gramaticais (Anta, Antinha e Antões), o positivo, o diminutivo

e o aumentativo. A nossa toponímia oferece, frequentemente, Antão; não tendo falado deste

nome, porque, se ele pode ser aumentativo plural de anta, também pode proceder de Antão, nome

próprio masculino.

Todos os nomes assinalados na carta são modernos. Folheando documentos antigos, achar-se-ão

nomes semelhantes, seja porque são os antepassados daqueles que hoje existem, seja porque eles

correspondem a outros lugares onde já havia megalíticos.

Apesar de já não ter muito a ver com o caso da nossa Arcainha, transcrevemos também esta última

parte da Memória.

Por exemplo:

“anta e antas nos séculos XVIII, XVII, XVI,XIII e XI

mamona no século XIII

mamoas nos séculos XIV, XIII e XI

mamonela no século XI

mamola nos séculos XIII e XI.

Sou mesmo levado a inserir nesta lista a expressão ad septem aras que se lê no Itinerário de António

como designando um lugarna via de Lisboa a Mérida, (…) septem aras pode significar aqui sete

dólmens, ou melhor, vários dolméns. (…)

O exame desta carta mostra-nos, em primeiro lugar, - e é sobretudo este ponto que quis

particularmente chamar a vossa atenção – Portugal, nos tempos da Pré-Históricos, era muito

povoado. Com efeito, nós vemos aí marcados monumentos megalíticos desde o extremo Norte até

ao extremo Sul; mesmo admitindo que não sejam todos contemporâneos uns dos outros, eles

revelam todavia a existência de séries sucessivas de povos em cada região. A doçura do clima, um

solo fértil, irrigado por rios tranquilos e piscosos, a proximidade do mar, tudo isso cedo havia de

atrair imigrantes, e favorecer o desenvolvimento das populações preexistentes. As lacunas que se

descobrem na carta são facilmente colmatadas pelas notícias literárias (remontando já ao século

XVI) e sobretudo pelas ruínas e os pequenos objectos que restam do passado.

Temos, pois três espécies de fontes, para o estabelecimento dum cadastro dos dólmens

portugueses: fontes arqueológicas, fontes históricas e fontes toponímicas. Somente quis falar destas

últimas. O meu método poderá aplicar-se a outros países que possuam monumentos Pré-Históricos

e usem nomes apelativos, por exemplo, a Espanha, onde a Galiza, que é aliás um prolongamento de

Portugal, nos apresenta duas séries: mamoa – mamoas e anta – antela – antas, e onde Zamora nos

oferece a anta. ”

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Não desejaria terminar sem fazer notar que a carta que tenho a honra de vos apresentar,

incompleta como é, evidencia ainda um facto de geografia linguística: ao lado da palavra anta que

existe ou existia em todo o território português como nome genérico, temos:

Orca e arcainha em certos sítios da Beira e da Estremadura;

Mamoa na Beira e no Minho

Arcas pelo menos em Trás-os-montes e Alto Minho

Pala em Trás-os-Montes.

Isso depende do estado onde se acham os monumentos, a descoberto, ou ainda revestidos de

túmulos, e de aptidão imaginativa do povo em sugestionar os caracteres descritivos, uns vendo, por

exemplo, orca onde outros vêem arca. No Sul parece que não havia nomes especiais, mas anta é

muito vivaz no Alentejo.

É tempo de concluir.

Penso ter provado suficientemente, por exemplo, a proposição enunciada no começo da minha

memória. Se a filosofia pode prestar auxilio à arqueologia pré-histórica, definindo-lhe um

monumento que ela descobriu, pode igualmente, pela investigação de antigas palavras, que

permanecem, como fósseis, na linguagem corrente, descobrir ela própria monumentos num lugar

onde não eram suspeitados. As ciências, ainda que na aparência muito diferentes umas das outras,

estão estreitamente ligadas, entre si, à maneira de cubos de mosaico: e desta ligação segue-se um

conhecimento perfeito do universo, o que constitui o supremo desiderato do homem, sempre em

luta para o realizar.”

Sabemos que nos alongámos demasiado esta transcrição, mas julgamos que valeu a pena, pela luz

que ilumina nossos espíritos tão rica toponímia do passado longínquo da nossa terra, como

autentico certificado de origem antiga.

ORIGENS

Acaso existe algum paralelismo entre essa memória e a realidade pré-histórica de Vila Franca?

Existe. Basta que se diga que temos um pequeno cabeço denominado arcainha. Situado entre Vila

Franca e Aldeia Formosa, ali se construiu, na década de 1930, espaçosa e elegante escola primária,

que desde o início é frequentada pelas crianças das duas povoações. O local escolhido foi

precisamente o terreno onde existia uma vinha, plantada na década de 1870. Para a sua plantação

foi preciso proceder ao arroteamento da terra. Estava-se talvez no período da reconversão das

antigas vinhas e bardões, dizimados pela filoxera, substituindo-se velhas cepas por novas espécies

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importadas da América, resistentes ao insecto portador da doença. No terreno crescia o mato,

encobrindo o monumento que aí permanecia, desde épocas remotas, sendo erradamente atribuído

aos Mouros. Sobre ela se teceram lendas que passaram, de geração em geração, aventando-se a

hipótese de esconder um tesouro, que pertencia àquele que, um dia, libertasse a moura encantada,

encarcerada na câmara da arcainha, sob a forma de serpente.

Por isso tudo não admira que o Tio Manuel, na verdura dos seus 17 ou 18 anos, se sentisse

empolgado e como que predestinado para a libertação da princesa moura. O que ele não sabia,

então, nem depois, é que destruiu talvez a principal raiz da nossa àrvore geneológica comum com

milhares de anos de existência! E para quê? No fim de contas para desenterrar um vaso de

cerâmica preta, que não continha tesouro algum, mas simplesmente terra misturada com carvão,

como lhe ouvimos muitas vezes dizer. Para cúmulo quebrou-o, por desconhecer o seu valor pré-

histórico, crê-se e mais depressa poder ver as moedas com que sonhara desde menino.

Assim, hoje, desse monumento arqueológico, só resta o nome.

Aventada a hipótese de haver no cabeço mais uma ou duas mamoas, levou-se lá o Professor João

Martinez, que disse tratar-se somente de afloramentos rochosos. (A Comarca de Arganil de

12/09/1987).

Na carta apenas à memória atrás citada, de J. Leite Vasconcelos, figura só o nome de arcainha nos

concelhos de Viseu, Seia e Oliveira do Hospital. Em todos os outros, e temos muitos, desde o Minho

ao Algarve, são mais usuais os de anta, antas, antelas, etc….

Na nossa terra perduram ainda os seguintes nomes de propriedades agrícolas: ponte d’arca, ribeiro

d’arca, fonte romana, pedrão, que julgamos ser reminiscência de um menir ou marco sem

significado arqueológico, e, finalmente, forninho, diminutivo de forno: “Também o povo imaginava

que alguns dólmens eram fornos dos mouros, o que, com as designações antes citadas, se reflete na

toponímia, rica nessas expressões. (…) A lenda popular atribui, em geral, os dólmens aos Mouros

relacionando-os frequentemente com episódios de mouras encantadas. Também não é rara a

crença que eles contêm tesouros, o que sugere, lamentáveis actos de vandalismo, na sua pesquisa,

às vezes repetidas, em diferentes gerações.” (História de Portugal – Capítulo IV – Os Pré Celtas dos

Dólmens das Grutas e das Citas, de A. A. Mendes Correia).

Não foi esse o caso da nossa arcainha, mas os resultados foram idênticos. Desapareceu por causa

da plantação duma vinha, perdendo-se o seu espólio arqueológico.

Equidistante de Vila Franca e de Aldeia Formosa, a arcainha, pertence, física e espiritualmente às

duas povoações. Nela se cruzam, como na palma da mão, a antiga estrada, com a linha divisória e

respectivos marcos das freguesias do Seixo e do Ervedal. Desde 23 de Maio de 1988 que o lado Sul

dessa linha pertence à recém criada freguesia de Vila Franca da Beira, desde o Moinho do Buraco às

Arroteias.

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Mau grado sempre conhecermos, os dois lugares, de costas voltadas um para o outro, é de supor

que a arcainha seja o berço comum de ambos. A explicação é de A. Amorim Girão: “Monumentos

funerários construídos de grandes pedras ou megalíticos, que podemos admirar nos restos

imponentes, ou adivinhar no rasto que deles ficou na toponímia, dão-nos indicações sobre a

distribuição das populações que os levantaram, os quais deviam habitar, por via de regra, em sítios

não muito afastados.

(…) Pode dizer-se que esses monumentos megalíticos se localizam, de preferência, em esplanadas

abundantes de água que fortemente condicionava a existência do homem primitivo.

(…) Constituindo as primeiras obras materiais com que o homem inscreveu os seus pensamentos e

as suas aspirações nas nossas paisagens, eles revelam também já no arrojo da sua construção, a par

da ideia da imortalidade da alma, uma forte organização colectiva, notável grau de civilização, e,

por tais motivos, um considerável adensamento populacional.” (Geografia de Portugal – capítulo

VIII – Povoamento Humano – População Pré-Histórica).

Sobre o arrojo da sua construção, permite-nos fazer a seguinte transcrição, doutro autor: “para

construir um dólmen era necessário cortar na rocha blocos de grandes dimensões e de elevado

peso, chegando alguns a alcançar 15 ou mais toneladas; transportavam-nos a seguir do local do

arranque até àquele que fora escolhido para a edificação do monumento; em alguns casos tal

distância era da ordem das dezenas de quilómetros.

As lajes deslizavam até ao local da construção sobre troncos de madeira e puxados por grossos

cabos.

A erecção de um dólmen iniciava-se pela colocação na vertical ou em posição ligeiramente inclinada

para dentro, dos esteios da câmara colocados imbrincadamente.

Seguia-se a construção da galaria de acesso, de comprimento variável.

As lajes da cobertura, designadamente a grande mesa que cobria a câmara, eram transportadas

para o alto através de rampas de terreno firme, que, após a conclusão do monumento, iriam servir

de ponto de partida para a formação da mamoa.

A monumentalidade de grande parte destas construções funerárias e o esforço que era necessário

dispensar para transportar gigantescos blocos ao longo de quilómetros, sem estradas ou caminhos

aplanados, permitem admitir a participação de muitas dezenas de pessoas, durante dias sem conto,

nesses trabalhos, o que revela a existência de uma organização social suficientemente estruturadas

para garantir a subsistência dos que se dedicavam a tal actividade.” (Pré-História de Portugal, de

M. Farinha dos Santos).

Desde a Arcainha do Neolítico à Escola Primária no tempo presente, apesar dos inevitáveis

acidentes de percurso, este lugar foi e continuará a ser um pólo de ligação entre as povoações de

Vila Franca e de Aldeia Formosa.

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Além de ter sido escolhido para a construção da escola primária que acolhe tanto as crianças de

Vila Franca como as de Aldeia Formosa, há da parte da nossa povoação iniciativas que provam à

sociedade que este local lhe merece uma atenção especial.

Uma dessas iniciativas, da autoria do Dr. António Marques Frade, consistiu no pedido que fez à

Câmara Municipal, sob a presidência do distinto ervedalense, Dr. António Simões Saraiva, para que

a mata que fica atrás da escola fosse adquirida por aquela autarquia com o fim de servir de lugar de

lazer e convívio.

O pedido teve bom acolhimento e hoje ainda sem estar nas melhores condições para acolher os

seus mais directos beneficiários, alunos e professores das escolas primárias e pré-primárias, dadas

as suas óptimas condições ambientais, poderá ser num futuro próximo, por exemplo, um belíssimo

parque de merendas.

Ideias, julgamos que não faltam, o que poderá talvez faltar é o dinheiro necessário para realizar as

obras mais elementares.

No capítulo seguinte vamos fazer referência a outra iniciativa que esteve para ser levada a cabo

neste atractivo local e das razões que não permitiram fosse concretizada e o dinheiro desviado para

outros fins, igualmente altruístas.

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II

PROJECTO ADIADO

Um projecto bastante digno de realce, embora cada vez esteja mais distante de poder vir a ser o

que os seus autores idealizaram, é a ideia/sonho que docemente embalou o casal Maria de

Lurdes/Manuel Escada Almeida, ela de Aldeia Formosa, já falecida, ele de Vila Franca. Pretendia

aquele distinto casal construir, na arcainha, um lar para idosos das duas povoações. Só que as

dificuldades preliminares na realização desse sonho foram tantas, que o instituidor sobrevivo, há

tempos, convencido que nada havia de fazer, resolveu dividir, em partes iguais, o dinheiro

destinado à referida obra de solidariedade social, pelas respectivas terras de ambos, e adiar sine die

a realização do projecto inicial.

Outra iniciativa que talvez à margem deva ser posta em destaque é a de a comissão que se

encarregou de obter do povo os fundos necessários à construção do monumento e jardim em

memória do Dr. Agostinho Antunes, ter destinado o remanescente da respectiva subscrição pública

à descoberta da rua principal que liga pelo meio das duas povoações, com passagem pela escola

primária, beneficiando, desta feita, não só alunos e professores, em tempo de aulas, por lhes

encurtar o caminho a percorrer na ida e na volta, como a própria arcainha, e respectiva mata.

Pelo local devia também passar uma estrada ligando a povoação das Seixas à Cagadalta, onde

entroncaria na estrada Seixo da Beira/Ponte do Salto. De facto foi iniciada, mas não se sabe quando

será concluída.

Mas do que ainda ninguém se lembrou foi de propor a construção duma réplica da arcainha. No

entanto, consideramos a ideia muito interessante, e não hesitamos, sem vaidade, em propô-la à

consideração dos nossos conterrâneos, para que a mesma seja implantada no terreno que era

destinado ao lar de idosos, como símbolo da força telúrica que aglutina os dois povos vizinhos.

Quem sabe se as pedras alinhadas à beira da “estrada” que primeiro ligou as duas povoações,

colocadas ao alto, sem aparelho, cobertas de musgo, não são contemporâneas da arcainha? E que

não sejam! São, pelo menos, suficientemente antigas e dignas de tal fim as que forem precisas para

edificação da citada réplica, com a patina e rusticidade autênticas.

Devíamos já terminar aqui esta breve digressão ao passado remoto da nossa aldeia, mas

pressupondo que na arcainha estão as nossas raízes ancestrais, não resistimos ao fascínio de nos

determos um pouco mais em meditação sobre o valor desse pedaço de terra onde emergiu a

cultura megalítica.

Nunca ouvimos dizer ao tio Manuel que encontrou ossos ou objectos, quando escavou a arcainha,

mas segundo a opinião generalizada de antropólogos e arqueólogos, esse género de monumentos

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pré-históricos destinava-se essencialmente a perpetuar a memória dos que das leis da vida terrena

se iam libertando.

Por outro lado, ele nunca escondeu de ninguém a acabrunhadora decepção que lhes causou o

conteúdo do vaso quando o desenterrou da câmara da arcainha, cheio de terra e fragmentos de

carvão, em vez de moedas de ouro, tesouro de uma moura encantada, tal como ouvia ao serão, nas

noites de Inverno, da boca dos mais velhos, com que sonhara.

Esse facto leva-nos a aceitar a opinião dos antropólogos, segundo a qual o rito funerário da

incineração impediu, em grande parte, a conservação de restos esqueléticos no interior desses

monumentos, sendo pois lógico admitir que os carvões contidos no vaso da arcainha de Vila Franca,

pertenciam a ser ou seres humanos, conforme fosse individual ou colectiva.

Outra reflexão que fazemos a seguir prende-se com o facto de na câmara da arcainha apenas ter

sido encontrado um vaso. Ou aquele pertencia a uma única família ou já anteriormente tinha sido

violada, hipótese que não é de excluir, de acordo com as conclusões dos arqueólogos em relação a

monumentos congénitos selvaticamente desmoronados e as câmaras remexidas em busca de

hipotéticos tesouros.

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III

CORDINHA A DESCONHECIDA

Medite-se no que aconteceu aqui bem perto de nós à arcainha do Seixo. É a única que,

ligeiramente, conhecemos na região. O seu estado de conservação, quando há mais ou menos

trinta anos a vimos, era… simplesmente caótico.

O livro Tesouros Artísticos de Portugal encabeça a notícia, que dela dá aos seus leitores, com um

pleonasmo, chamando-lhe dólmen da Arcainha, e refere-se nos seguintes termos: “Situa-se nesta

freguesia, a 2 Km a sudoeste da povoação, é constituído por uma câmara de 8 esteiros, coberta por

um espesso chapéu com 4 metros de diâmetro e por um corredor de 7 metros. O espólio recolhido

nas escavações efectuadas no início do século reveste-se de grande importância: é constituído por

fragmentos de cerâmica campaniforme decorada com incisões, elemento raro no interior e no Norte

do País.”

Dada a proximidade a que ficava da nossa arcainha, mais ou menos 2 a 3 Km, é de supor que o vaso

aí encontrado, fosse do mesmo género, pelo que esta informação assume também, para nós,

alguma importância analógica.

Supomos que deve ter sido Santos Rocha que procedeu às escavações na arcainha do Seixo,

baseado na seguinte informação de M. Farinha dos Santos em A Pré-História de Portugal: “Em

1896, Leite de Vasconcelos, identificou pinturas nos esteios de quatro orcas do concelho de Sátão.

Dois anos depois, em 1898, Santos Rocha Moiros, da Sobreda, concelho de Oliveira do Hospital, cujo

significado ainda não foi possível determinar.”

Mas depois desse e quem sabe se antes desse, outros arqueólogos ou pseudo - arqueólogos, por lá

devem ter passado, contribuindo para a sua degradação. Ainda assim no local perduram as pedras

que constituem, parcial ou totalmente, a arcainha, ao contrário da nossa, que se sumiu, constando-

nos que a lareira da casa de antepassados nossos, sita nas imediações do Rossio, era uma antiga

mesa de arcainha, cuja procedência não temos a certeza de alguma vez ouvir dizer qual era.

Tesouros Artísticos de Portugal refere-se também à Casa dos Moiros da Sobreda nestes termos:

“Dólmen. Situado na freguesia do Seixo, perto desta povoação. É constituído por uma câmara

octogonal com cerca de 3 metros de diâmetro e 3,5 metros de altura e por um corredor com 6

metros de comprimento. Num dos esteiros da câmara existem vestígios de uma composição

geométrica pintada a vermelho. O espólio é constituído por micrólitos, pontas de seta e recipientes

de cerâmica troncocónicos e hemisféricos atribuíveis ao Neolítico Médio.”

Além destes, quantos outros não terão existido na Cordinha que, devido ao desconhecimento do

seu valor intrínseco por parte dos seus habitantes, foram atribuídos e as suas pedras enquadradas

noutras construções?

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Mesmo os poucos que existem não são conhecidos do comum dos moradores, porque deles não se

faz na escola a merecido propaganda, levando lá os professores os seus alunos ao menos uma vez

por ano, para que lhes fique na mente a noção da obra deixada por uma civilização com a qual a

nossa pouco, ou nada, terá a ver, mas que povoou e amanhou estas terras, que chamamos nossas e

amanhã outros poderão chamar deles, há milhares de anos atrás.

Diz-se que não se pode amar aquilo que não se conhece.

Por isso é preciso conservar e desmistificar… Porquê?

Porque o que temos desses tempos heróicos da passagem do Homem por estas terras não foi

deixado pelos mouros, como diz a lenda.

No entanto, é bom lembrá-lo, se não fosse a toponímia ou memória do passado, se pouco temos da

pré-história, menos teríamos ainda.

E assim, em vez de censurar, devemos agradecer às gerações que nos precederam por não terem

destruído todas as suas e nossas raízes, deixando de pé alguns monumentos, conservando nomes

ou inventando lendas para não deixarem de ficar com uma imagem de eras passadas, que nós ainda

hoje podemos admirar.

Isso acontece no Seixo da Beira e na Sobreda, como já dissemos; no Vieiro, onde existe um castro

sobre um cabeço sobranceiro à margem esquerda do rio Mondego, construído estrategicamente

junto à foz do ribeiro d’arca ; na Cagadalta há alguns monólitos, um dos quais se assemelha a um

dólmen, em que foram esculpidas cruzes no esteiro voltado a leste, noutro foi escavada uma cova

de que parte o sulco rasgado na ilharga voltada a Sul, até à base, e por último, refira-se a arcainha

dos Fiais, para se ficar com uma pálida ideia dos vestígios da pré-história na Cordinha, de que Vila

Franca é parte, com base na toponímia.

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IV

SUGESTÃO

O sonho é ver as formas invisíveis

(Fernando Pessoa)

Voltemos, pois, à arcainha, tema central desta aguarela em termos alegóricos, para lhe darmos os

últimos retoques.

Retoques que consistem em novas sugestões, como forma de valorizar e transformar a mata numa

sala de visitas sui generis.

A primeira dessas sugestões reporta-se a uma casa abrigo, de que o esboço que nos foi mostrado,

pretende dar uma ideia. Quatro colunas, um telhado, com uma mesa e bancos de pedra, fixos, onde

os naturais ou forasteiros possam, querendo, descansar, saborear uma merenda ou um magusto, e

confraternizar, beneficiando do ambiente saudável da mata, enriquecido com a réplica da arcainha

de que igualmente o lápis da Maria Odete nos deixou um esboço (não se incluem aqui os referidos

esboços).

A última das sugestões, nada tendo de lúdica, é culturalmente, a mais interessante e a que pode

mobilizar mais pessoas na sua concretização. Trata-se de buscar, ainda que superficialmente,

dentro e fora da mata, fragmentos de rocha e de cerâmica, que pelas suas características se

presume sejam antigas, catalogue-las e… guardá-las numa vitrina, aproveitando provisoriamente

qualquer sala da escola primária, onde posteriormente sejam estudadas e classificadas por

especialista. Esta tarefa exige a colaboração de alunos e professores e se for abraçada com

entusiasmo e humildade pode, até para eles, ter o maior interesse e proveito.

Todas estas iniciativas e outras que se possam ou devam acrescentar, farão com que o parque seja

um cantinho do céu na terra, tal como os nossos antepassados do Neolítico o idealizaram para eles.

Dizem os sábios que estudaram as grandes migrações dos povos antigos que peregrinaram pela

Península, que eles terão vindo da Síria e eram portadores duma civilização superior à dos

autóctenes e terá sido pela sua técnica, mais do que pela sua força, como até há pouco tempo por

cá se supunha, que conseguiram arrastar, por vezes de lugares distantes, as enormes pedras com

que construíram os seus monumentos, de que a nossa arcainha era um dos muitos espécimes

espalhadas neste jardim à beira Mondego plantado, devorados pelo tempo ou pela incúria dos

homens, a maior parte.

A. A. Mendes Correia, diz-se que a “história de uma população não oferece uma linha ascensional

indefinida, mas é feita de altos e baixos, de êxitos e de insucessos, de triunfos e de decepções, de

avanços e de recuos.” Estabelecendo a diferença de duas civilizações o autor acrescenta: “Entre a

civilização megalítica do eneolítico português e a epopeia lusitana medeia um longo período em que

gentes da mesma estripe étnica vivem uma existência precária e humilde, de rotina e obscuridade. A

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sua cultura e o seu papel histórico não têm o menor brilho em confronto com a civilização vasta e

expansiva dos seus antepassados, construtores dos dólmens e pródigos em manifestações de

vitalidade psíquica e social.” Parece assim querer dizer que, populações sedentárias deixadas a sós,

de novo tiveram vida essencialmente vegetativa, enquanto as migradoras talvez acossadas por

quaisquer fenómenos naturais como a invenção doutros povos, desapareceram na noite da

História, deixando atrás de si um rasto de luz.

Mas fique bem claro: ao gravitar na órbita desses grandes astros da ciência universal, como simples

grão de poeira cósmica, significa, só, o desejo de atrair as atenções dos nossos conterrâneos para as

enormes potencialidades culturais da arcainha, com a realização das acções que atrás referimos.

Se, por acaso, algumas vezes mergulhamos nos meandros da pré-história, com teimosia semelhante

à da borboleta que se deixa enfeitiçar pelo brilho da candeia até queimar as asas, só o fazemos

protegido pelo escudo invisível da ciência alheia. E, mesmo assim, se os caminhos se afiguram

tortuosos ou inatingíveis as metas a que nos propusemos, relemos o que elas escreveram como que

toma fôlego antes de iniciar nova escalada, com redobradas cautelas.

Até aqui, na elaboração destes trabalhos, citamos muitos etnólogos, arqueólogos, antropólogos e

historiadores. Mas agora é a vez de um Poeta fechar a porta desta primeira parte do nosso

incipiente ensaio, para amenizar a sua insipidez:

O Bandarra

Sonhava anónimo e disperso

O império por Deus mesmo visto,

Confuso como o Universo

E plebeu como Jesus Cristo.

Não foi nem santo nem herói

Mas Deus sagrou com seu sinal

Este, cujo coração foi

Não português mas de Portugal.

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SEGUNDA

PARTE

A PEDRA DA MOIRA – MEMÓRIA DO PASSADO

Quem quiser fazer uma ideia

Exacta do seu tempo

Deve contemplá-lo à distância.

De que distância?

É muito simples:

Suficientemente longe para já

Não reconhecer o nariz de Cleópatra.

Ortega & Gasset

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I

NA ALVORADA DA HISTÓRIA

Julgo que nenhum historiador tentou sequer imaginar qual seria a situação com que se debatia a

população da vasta região que se estende desde os contrafortes da Serra da Estrela aos do

Caramulo quando houve notícia de que Viriato estava disposto a enfrentar a sanha avassaladora

das legiões de Roma que vinham entrando de forma arrogante e concertada pelo leste e sul da

Lusitânia, espalhando o terror, a morte e a destruição. Viriato era, segundo o relato insuspeito dos

autores latinos, o mais forte e hábil adversário a opor-se que os Romanos conquistassem as terras

pertencentes ao povo de quem se arvorara defensor intransigente. Nós atrevemo-nos a imaginá-la.

Relativamente ao País, segundo o Professor A. A. Mendes Correia diz, “… se tão longe pudesse

alcançar o esforço da evocação histórica, talvez surgisse das trevas um império mais admirável do

que muitos que a História enaltece, e um povo mais glorioso do que muitos que a História enaltece,

e um povo mais glorioso do que muitos dos poetas imortalizaram em versos inspirados.” Mas

adverte: “Triste seria depois a reconstituição da decadência, duma obliteração progressiva da

solidariedade nacional, do esquecimento dos costumes tradicionais, da perda da própria memória

dos factos e dos chefes religiosos cujos despojos haviam sido religiosamente obrigados sob as lajes

formidáveis dos monumentos dolménicos. Talvez já nem aí os deixassem dormir em paz, num sono

inviolado.”

E ainda mais directamente diz o ilustre historiador e antropólogo: “Os lusitanos, herdeiros dum

espólio magro, duma cultura decadente, não possuíam a psicologia depressiva de vencidos ou

degenerados estiolando num deplorável fim de raça.”

Ao contrário, como acrescenta depois: “A decadência cultural não extinguira as energias viris e os

anseios nacionalistas, que despertam, clamorosos e ardentes, perante o invasor culto, rico e

poderoso e que, transitoriamente subjugados após uma luta ingente de duzentos anos, revivem

enfim, organizados e fecundos, na brilhante acção histórica dos Portugueses.”

É também, aliás, sobre esse aspecto subjectivo que imaginamos entroncar o apego telúrico,

interesses e aspirações dos rotineiros pastores de todos os tempos ao conduzirem, com pertinácia

e independência os seus rebanhos pelas mesmas canadas sinuosas dos seus antepassados em

busca das melhores pastagens para gado. A sua rotina é quase intemporal, tão lenta tem sido a sua

evolução, através dos séculos.

Eles são os legítimos herdeiros duma cultura milenária quase em vias de extinção devido à

mudança de hábitos de produção e consumo dos seus principais produtos: a lã e o queijo. Mas

ninguém melhor que os pastores aproveita as benesses da Natureza nem se sente tão à vontade a

percorrer as veredas por montes e vales à frente do seu rebanho.

No mato ou no prado, de manhã à noite, ele é rei e senhor.

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II

PASTORES – GUERREIROS

TROCAM IMPRESSÕES

Como praticam a transumância, mal o calor se anuncia, desimpedidas as veredas sinuosas,

encaminham-se os pastores ciclicamente com as parcas bagagens, conduzindo os rebanhos até

algures nos Montes Hermínios, onde a verdura da erva e do mato rasteiro, alimento preferido das

ovelhas, veio substituir o alvo manto com que a Serra se recobre e agasalha no Inverno.

Vão encontrar-se habitualmente no acampamento com outros pastores das redondezas,

convivendo e permutando experiências, alegrias e tristezas que trouxeram das respectivas aldeias,

umas já diluídas, outras ainda bem vincadas nos semblantes graves e sombrios que os caracterizam.

São histórias, misto do real e do fantástico, umas que ouviram por lá contar e se contam de pais

para filhos, outras mais recentes em que directa ou indirectamente estiveram envolvidos, ditas ao

redor da fogueira, repartindo o pão, a carne e o leite comunitários. Servem-lhes de entretenimento

até o sono vir prostrar nas palhas da cama nas suas improvisadas cabanas, ao lado da malhada.

Foi num desses serões dos tempos passados que um pastor jovem e alentado contou ter ouvido

dizer na sua aldeia de Folgosinho, que um poderoso exército de Roma se encaminhava para os

Montes Hermínios, em perseguição de Viriato, um dos poucos sobreviventes do terrível massacre

cobardemente perpetrado por Galba contra os Lusitanos. Estava-se então no ano 150 a. C..

Como os Romanos, diz a História, derrotados mais uma vez, tivessem conseguido as pazes com os

Celtiberos dois anos antes, Sérvio Galba, governador da Ulterior, espumando de raiva, pediu auxilio

a Lúcio, governador de Citerior, e juntos declaram guerra, sem tréguas, contra os Lusitanos, no

suposto destes se deixarem desarmar e separar em grupos. Foi então que as tropas romanas os

cercaram e os massacraram sem piedade. Viriato foi um dos poucos que escapou à terrível

carnificina, da qual tirou algum ensinamento para futuro, diz o historiador.

Disse ainda, o mesmo pastor, que na sua aldeia se esperava, de um dia para o outro, que Viriato

aparecesse a pedir ajuda e que esta lhe não ia ser negada.

Aquela conversa de pastores na serra marca uma nova etapa nas relações existentes entre as várias

tribos.

Logo que o Verão chega ao fim, ultimam-se os preparativos do regresso; cada pastor trata de

apartar do conjunto o gado confiado à sua guarda, junta a pequena bagagem, coloca-a no lombo do

burro com os primeiros queijos da safra e abalam todos.

Uns vão para perto, mas outros chegam a levar muitos dias até aos seus destinos. Em poucas horas

o animado arraial volta a ser o ermo que normalmente é: silencioso, sem baldios de ovelhas, nem

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latidos de cães ou assobios de zagais, sem vozes de pegureiros ou melodiosos acordes de flauta

ecoando pelas quebradas da montanha ao pôr-do-sol. Até as alvéolas tão irrequietas e as

prestimosas graças sempre por perto dos rebanhos, desapareceram como por encanto sem delas se

ouvir sequer um pio.

Ao longe, as nuvens de poeira, erguem-se em espiral, marcam o ritmo e o rumo da marcha que

cada rebanho leva, movimento que hoje estamos a rever como um filme de ficção.

Os costumes dos pastores pouco evoluem e as nossas memórias são as retransmissoras das

hipotéticas imagens emergindo dum passado longínquo, que hoje estaria de todo perdido se os

autores latinos não nos tivessem legado as suas impressões dos Lusitanos, povo quase lendário, por

Roma dominado ao fim de dois séculos de renhidas batalhas, em que se mostrou ser adversário de

respeito.

A chegada dos pastores vão ter com o chefe do clã, como é costume, a quem dão conta da missão

que lhes foi confiada, não omitindo os rumores que ouviram sobre o avanço das legiões de Roma e

dos propósitos de Viriato de dar combate ao estrangeiro que invade, mata e saqueia as suas terras.

O velho chefe deve tê-los ouvido com atenção e feito esta ou outra recomendação semelhante:

“Filhos, apesar desses anúncios que me trazeis não propiciarem dias de paz à nossa pátria, não

deixareis de, no tempo próprio, levardes os rebanhos às pastagens nas encostas da Serra. Nós cá

nos havemos de arranjar – velhos, mulheres e crianças defendemos o nosso castro até à morte.”

Mutatis, mutandis, todos os chefes da tribo lusitanas se prenunciaram pela luta ao invasor, e o

nosso não fugiria à regra, assim o imaginamos.

E mais não nos é lícito fantasiar, porque, como escreveu Fernando Pessoa:

“Se a alma que sente e faz conhece

Só porque lembra o que esqueceu,

Vivemos, raça, porque houvesse

Memória em nós do instinto teu.”

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III

É VILA FRANCA UM ANTIGO

CASTRO LUSITANO?

Deixando implícita essa hipótese no capítulo anterior, resta-nos agora responder

esquematicamente à pergunta em hipótese empregando sempre o estilo ficcionista do capítulo

anterior.

Ao contrário do castro do Vieiro, hipotético lugar degredo dum esfíngico conde, de quem a lenda

reteve o nome de que se extrairia o topónimo, cuja semântica é tão duvidosa a própria lenda,

ocupando um cabeço à beira do rio Mondego, na confluência deste com o ribeiro d’Arca, de várias

escarpas, consonante com as regras de defesa dos povos da pré-história, há séculos abandonado,

como deixam entrever as ruínas visíveis, o nosso mais ou menos distante cerce de 4 quilómetros

daquele, sobre pequena colina, terminando num patamar voltado a ocidente de onde se poderia

espreitar para o congénere pelo rasgão que o ribeiro teve de abrir ladeando a povoação hercínica

da Póvoa, rodeavam-no uma paisagem luxuriante coberta por verdes prados e lameiras, em parte

por zonas de cultivo e pasto umas e outras propícias à manutenção de uma população pastoril e à

criação e sustento do gado, e cujo repovoamento não termina com interrupções perlongadas,

sofrendo, embora, os efeitos das melhorias levadas a cabo por povos estranhos, que aqui deixaram

marcas na amálgama dos materiais de que são feitas as casas com carácter dos próprios habitantes.

Em suma: é uma antiga povoação castreja, característica que a qualquer um é difícil descobrir na

rusticidade das pedras algumas casas do Cimo do Povo, construídas ou reconstruídas sobre os

ombros das primitivas orcas lusitanas, feitas de pequenas pedras, sem aparelho, sem reboco ou

assaz rebocadas com o barro vermelho do Outeiro de Santa Margarida, mantendo-se de pé e ao

abrigo do vento que teria como única entrada o janelo ou a porta voltados para o pátio ou terreiro

comum, comunicando umas com as outras, como nos velhos tempos patriarcais, de modo a

permitir aos seus moradores comunicarem entre si a coberto do incómodo da rua.

Pesquisas? Julgo que ninguém em tal pensou porque não seria tarefa fácil realizá-las qualquer que

fosse a sua índole ou extensão, mas o que na I Parte alvitrámos para a zona da Arcaínha à

igualmente válido para o Cimo do Povo: - qualquer fragmento pode ser útil para nos identificar na

descoberta das nossas raízes.

Em relação ao Castro do Vieiro, como ainda por lá se prenuncia, já em Agosto de 1987, se iniciaram

pesquisas arqueológicas, conforme noticiámos em A Comarca de Arganil, de 12-09-1987,

superiormente orientadas pelo Professor da Universidade Clássica de Lisboa, João Martinez, com a

colaboração de três assistentes, um homem e duas senhoras, que ao fim de três semanas

conseguiram reunir no Ervedal, onde se hospedaram, uma vasta colecção de fragmentos de

cerâmica preta, encontrada à superfície, já que o solo estava inçado de giestas, cujas raízes

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dificultavam, sobremaneira, a recolha, não permitindo que se fizessem escavações, que pusessem,

por exemplo, a descoberto algumas habitações, sem primeiro serem cortadas ou, melhor,

queimadas, como in loco alvitrou a Presidente da Junta, D. Esmeralda Pombo Albuquerque, numa

breve troca de impressões com o Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Hospital, Dr.

António Simões Saraiva, no dia em que ali foi o Dr. Martinez para conhecer o castro.

Quanto à importância arqueológica e sua antiguidade, o sábio catedrático mostrou-se reticente,

como não podia deixar de ser, sem deixar, no entanto, de dizer que, em sua opinião, a fundação do

castro remontaria ao segundo ou terceiro milénio antes de Cristo, já que se insere numa zona

muito rica em monumentos pré-históricos, como havia constatado nos dois últimos anos, nas férias

em que opera na região, graças às preciosas informações que lhe foram dadas pelo senhor

Madeira, de Canas de Senhorim.

De facto, como refere o Dr. José Leite de Vasconcelos, quando em suas pesquisas no concelho de

Nelas considerou antiquíssima a superstição do banho santo em Senhorim no dia 24 de Agosto, pois

tinha em mente que ela, em seu entender, ascenderia aos povos que, segundo as relíquias

existentes, uma anta e dois castros, habitaram a região em tempos pré-romanos.

Em virtude de no Vale de Ferro terem sido há anos compradas duas propriedades por dois jovens

casais holandeses cujas casas, assaz melhoradas, habitam boa parte do ano e quando interrogados

sobre as razões que os levaram a vir habitar num lugar ermo infértil, respondem que estão fugindo

à poluição e ao sobrepovoamento do seu País, acode-nos à mente que são guardas avançadas

descendentes dos prováveis fundadores do Vieiro, os Celtas, que vêm em busca da paz e do silêncio

que aqui ainda é possível desfrutar à sombra tutelar das ruínas dum dos seus castros, calmos e

alheios às riquezas que dizem existir no subsolo e consequentemente à controvérsia que as suas

presenças levantam.

Aliás, desde que venham possuídos de rectas intenções pensamos que ninguém irá contestar a sua

presença.

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IV

ONDE FICAVA A LUSITÂNIA?

QUEM ERAM OS LUSITANOS?

E VIRIATO?

Tendo e linha de conta as informações, não coincidentes, deixadas à posteridade… por escritores

romanos, a Lusitânia teria como limites, a Sul o Rio Tejo, a Norte e Oeste o Oceano e a Leste eram

seus vizinhos, além de outros, Carpetanos, Vetões, Vaceus e Calaios, segundo Estrabão e Diodoro

Sículo, que a consideravam a mais poderosa das nações ibéricas e aos Lusitanos, os mais fortes dos

Iberos. Mas já para Pompónio Mela e Plínio a Lusitânia situava-se entre o Guadiana e o Douro.

Quanto aos Lusitanos, eram pré – Celtas, talvez aparentados com os iberos de Leste e do Sul, tendo

sofrido a influência cultural e porventura antropológica dos invasores Celtas. Eram uma das muitas

tribos do território, que em face da nomeada e importância que alcançou na História, os próprios

Romanos deram do nome uma acepção e generalização mais amplas.

Eram frugais os Lusitanos. Segundo Estrabão, normalmente bebiam àgua, cerveja de cevada e leite

de cabra. Vinho, só em festins. O alimento principal dos montanheses eram as bolotas das

carvalhas, durante boa parte do ano, moendo-as para o fabrico de pão. Cultivavam em especial a

vinha, o olival, a figueira e cereais (a cevada e o trigo). Sendo donos de numerosos rebanhos

também deviam utilizar na alimentação a carne dos seus e doutros animais selvagens.

Os convivas nos banquetes sentavam-se em bancos de pedra, por ordem de idade e condição social

e a comida passava de mão em mão. Bebiam, como os Celtas, por recipientes de madeira. A

cerâmica castreja era do tipo arcaico na maior parte dos castros, onde só na época romana a roda

de oleiro se vulgarizou.

O vestuário, como se pode imaginar, além do negro, era confeccionado de lã grosseira ou de pêlo

de cabra, nos homens. As mulheres trajavam de cor. Uns e outros usavam os cabelos compridos,

atados com uma fita em combate.

Refira-se ainda duas excentricidades registadas pelos autores romanos:

- para Estrabão, os Lusitanos untavam o corpo com azeite

- para Diodoro, os Celtiberos e os montanheses tinham, apesar dos seus cuidados de limpeza, o

estranho costume de lavar o corpo e os dentes com urina.

Deve-se a Schulten, historiador germânico, a tarefa, menosprezada por alguns escritores

portugueses, nomeadamente, Alexandre Herculano, a reconstituição da bibliografia de Viriato, com

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fundamento em fontes relativamente numerosas e insuspeitas, como são os textos dos autores

latinos era, resumidamente, não só um adversário forte, valente e hábil, como revelou sempre,

sentimentos de justiça, generosidade e desinteresse, durante as campanhas que travou contra

Roma.

Com o seu desaparecimento, a epopeia dos castros não findara, mudara, porém, a eficácia dos

Lusitanos nos combates que travavam contra os Romanos, dentro do próprio território

montanhoso que eles tão bem conheciam. Cada castro era um reduto formidável da liberdade

pátria. Porém, mais nenhum outro chefe conseguiu restabelecer a unidade das hostes lusitanas, até

que em 81 apareceu Sertório a chefiar os Lusitanos, com conhecimentos militares suficientes para

pôr um pouco de ordem nos grupos que isoladamente defendiam o solo pátrio, mas, sendo súbdito

romano, contribuiu nessa qualidade mais eficiente na romanização da Lusitânia do que o próprio

Décimo Bruto, de armas na mão para subjugar a rebeldia lusa.

Um pouco esquecida, com o Renascimento, a fama de Viriato perpetua-se na história, na lenda e na

poesia. Aparecem várias terras a disputarem a honra de lhe terem sido berço, tendo-se como mais

provável ser natural da Serra da Estrela (Montes Hermínios) ou das suas imediações. É neste

sentido que aponta a Monografia de Vila de Seia da autoria do Pe. José Quelhas Bigote, citando Frei

Agostinho de Santa Maria que na obra Santuário Mariano escreve que Viriato era da Póvoa Velha,

da freguesia de Seia, enaltece os povos dos Hermínios na resistência aos Romanos.

A fantasia erudita, a emoção poética e o ardor patriótico inspiraram Camões nos Lusíadas e o nosso

Brás Garcia de Mascarenhas em Viriato Trágico, para que a memória de Viriato fosse um símbolo de

perene liberdade para os Portugueses, assim como Vercingetórix é para os franceses.

Também o Dr. Tarquínio Hall, poeta e escritor contemporâneo do nosso concelho, em Poemas,

emocionado verseja assim esse tema, com o título:

Serra da Estrela

(…)

Há sangue de Viriatos

Em poemas de Sol e rocha

De neve e gelo e frio de luar

Cantando epopeias

Que ninguém soube cantar.

Há naqueles lugares

No coração dos Hermínios

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Sangue lusitano

De milhares de Viriatos

Que o Império Romano

Levou séculos a vencer!

Sangue de mil pastores

Desta terra mais que todas lusitana

Zagais humildes, valentes,

Que os Romanos, à pedrada sustidos

E à paulada varridos

Só à traição conseguiram bater!

Há sangue de Viriatos

Em poemas de Sol e de rocha

Saídos de sepulturas

Sumidas pelos séculos

- Poemas que ressoam

Em tumbas de granito

E se encarnem

Na flauta dos pastores

Embalando rebanhos

Com solos de cristal.

Música ao vento

Em terras de ninguém…

Músicas de flautas

De chocalhos e balidos

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Que no vento solto ao vento

Se renova encosta além…

Poemas de sangue de cajados lusitanos

Escritos em mantas tecidas de rebanhos.

Poemas que são História

Que corre e tropeça

Em graníticas esculturas

Na geografia dos alcantis,

Na topografia sinuosa das alturas!

(…)

Serra da Estrela…

Um brasão quase lendário

Cravado de pedras…

Nas contas do teu rosário

Há Pedras – Nossos Romanos

Há bênçãos de lusitanos

E longas Ave-Marias…

Com a oferta do livro permitimo-nos esta transcrição, sem que não nos tivéssemos sentido

obrigados a dar conhecimento pessoalmente ao seu ilustre autor e nosso querido amigo.

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V

O CASAMENTO DE VIRIATO

“Os arqueólogos dos séculos XIX e XX, em vez de monumentos intactos que poderiam facultar-lhes

os conhecimentos, só viram destroços” – escreve C. W. Ceram em Deuses, Túmulos e Sábios.

Embora não tenhamos que enfrentar esses magnos problemas da arqueologia, nem sequer

autoridade para o fazer, podemos, no entanto, com legitimidade bastante vir a vasculhar à vontade

as nossas raízes, mais profundas, para tentar saber de onde vimos e quem somos.

Convencidos, até prova em contrário, que os nossos antepassados fizeram parte das hostes de

Viriato, o grande e valoroso estratega, de quem os escritores romanos muito se ocuparam, vamos

respingando, aqui e além, alguns dados da sua rica biografia, completando assim a matéria deste

capítulo.

Diodoro, já citado, conta que o casamento de Viriato com a filha do opulento Astolpas foi, naquela

época, um acontecimento mundano relevante. Diz que houve um faustoso banquete, em que o

sogro ostentara trajes dispendiosos, e uma rica baixela composta com vasos de ouro, e que Viriato

contemplara, tudo e todos, silencioso e irónico, servindo-se apenas de algumas iguarias para os

seus sequazes. No final, sacrificou aos deuses e saltou com a noiva para cima do seu cavalo,

regressando de imediato às montanhas, o seu mundo em perigo de perder-se.

Foi depois da perfídia de Gelba e Luculo que Viriato se propôs salvar os Lusitanos da crítica situação

em que ficaram, imaginando-se, percorrendo todas as terras desde os contrafortes do Caramulo

aos da Estrela, mobilizando as tribos para combaterem com ele os invasores tão longe quanto

pudessem e com as armas que tivessem à mão. Com os outros, terão deixado o castro entregue às

mulheres, às crianças e aos anciães para se juntarem às tropas do chefe incontestado, alcançando-

se assinaláveis êxitos nos ataques dispersos e bruscos realizados por pequenos grupos de

guerrilheiros, enquanto Viriato à frente de numerosa força a cavalo acabava por desbaratar o êxito

inimigo, poderoso e bem treinado em várias batalhas campais, usando estratagemas, emboscadas,

avanços e recuos, que só um bom estratega seria capaz de realizar.

A história dos feitos de Viriato, contada pelos próprios Romanos, uma vez que os Lusitanos são

tendo adquirido ainda certos primores da civilização de que aqueles eram os arautos na Península

Ibérica, deixariam sepultar no olvido estes e muitos outros factos tão insuspeitos que hoje nos

enchem o coração de patriótico orgulho.

Não é, no entanto, nosso propósito alongarmo-nos mais que o necessário neste ponto, nem tão

longe teríamos ido se não estivéssemos convencidos que alguns dos nossos lusos antepassados

pereceram nessas batalhas travadas contra Roma, algumas bem para lá das fronteiras da Lusitânia,

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pretendendo com estas palavras exaltar os seus sacrifícios, e dar sequência a esta narrativa

fantástica.

Considere-se, ou não, desnecessária é nossa tenção continuar a citar a resenha das últimas batalhas

de Viriato contra os Romanos, na convicção de que nelas também participaram antepassados

nossos, e foram vítimas, como o caudilho, da perfídia dos generais romanos.

Assim, seguindo o rasto do rumo traçado por A. A. Mendes Correia em A Lusitânia Pré-História,

veremos que Viriato ludibriou Serviliano na cidade andaluza de Erisane ou Arsa e como depois de

encurralar o grosso do seu exército, o deixa são e salvo, a troco de vãs promessas, prova ao mesmo

tempo da sua valentia e da sua ingenuidade.

Em Roma louva-se essa clemência, sancionando o tratado e concedendo ao caudilho o título de

amicus populi Romani, com o significado implícito de rei.

Efémera foi, porém a paz resultante deste tratado humilhante e injurioso para o orgulho de Roma

Imperial.

Um irmão de Serviliano, Servilio Cepião, provoca Viriato com os maiores vexames, sem êxito, o que

exasperou e levou a obter do Senado autorização para começar a guerra contra os Lusitanos.

O desalento e o cansaço apoderam-se, entretanto do exército lusitano, que deixa a Andaluzia e vem

refugiar-se na Carpetânia, enquanto Servílio Cepião invade os países dos Calaicos e dos Vetões e

estabelece um acampamento permanente, Castra Servilia, perto de Cáceres, combinando com o

cônsul Pompílio Lenas um ataque convergente contra Viriato. Este é coagido pelos seus a entabular

negociações, aceitando muitas das exigências de ambos na esperança vã de alcançar a paz. Devia

estar mesmo perdido, senão não entregaria à degola o próprio sogro, Astolpas e outros notáveis

Lusitanos. Aos que escaparam à morte imediata e infame, os Romanos cortam-lhes as mãos,

costume lusitano que já tinham adoptado noutras ocasiões, levando a crer que eles alguma coisa

aprendiam com os Lusitanos. Com o redobrar das exigências de Viriato suspende as negociações

com Lenas. Mas os seus, cansados de tantas batalhas e demoras, levam-no a reatar as negociações

diplomáticas com Cepião, tendo como intermediário junto deste três amigos seus (Audas, Ditalco e

Minuro), a quem o chefe romano suborna com dádivas e promessas. Para alguma coisa servindo a

sua superioridade cultural, instiga-os a assassinar Viriato, e consegue que eles, os traidores,

pratiquem o crime quando o chefe estava dormindo na sua tenda. Em 138 a. C. reclamam de Roma

o prémio da traição, mas este recusou-lho, por o Senado não ter sancionado tão torpe combinação,

apesar da sua profunda decadência moral.

Diodoro e Apiano descrevem os funerais de Viriato e as suas Homenagens imponentes e comovidas

que os seus compatriotas lhe prestaram. Todo o exército, a pé e a cavalo, desfilou em torno da pira,

cantando hinos guerreiros, glorificando o seu chefe assassinado. Depois de construído o túmulo,

200 pares de guerreiros simularam um combate. Era, aliás com estes jogos de destreza física, que

os Lusitanos fortaleciam o corpo e a alma.

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Para substituir o chefe glorioso é eleito Táutalo, mas nunca mais os Lusitanos conseguiram vencer o

profundo desânimo que se seguiu ao assassínio de Viriato, o herói que ninguém ao certo ninguém

sabe onde nasceu, pelo que muitas terras do País disputam essa honra. Há anos nas termas de

Vidago veio-nos à mão um livrinho, creio que uma monografia de Chaves, não me lembro bem, da

autoria de um padre das relações da dona da pensão, onde estávamos hospedados com a família,

que reivindica para aquela cidade fronteiriça a pátria de Viriato. Já não nos recordamos dos

argumentos invocados na defesa desta tese, porém lembramo-nos de um antigo colega de

emprego prestes a terminar a tese de licenciatura da Faculdade de Letras da Universidade de

Lisboa, ter-me contado que na sua terra natal, Folgosinho, existia uma casa que, segundo a

tradição, teria pertencido a Viriato. E, no mesmo contexto, pergunta-nos que interpretação se deve

dar à toponímia nos casos concretos de Cabanas de Viriato, e Cova de Viriato em Viseu? Esta, diz-

se, com fundamento em escavações arqueológicas, fazia parte dum antigo acampamento romano

construído talvez por Bruto Calaico no ano 138 a. C..

Presume-se que o casamento de Viriato com a filha do rico Astolpas tenha sido realizado em Évora,

por esta “… ter sido escolhida para capital do reino Céltico…” do “… sogro do famoso caudilho…”.

(Évora, cidade museu, de Túlio Espanca). Mas, como se chamava a mulher que Viriato escolheu

para esposa? Houve descendência desse casamento? São estas e muitas outras perguntas que a

História deixou sem resposta que tornam misteriosa a vida do nosso HEROI.

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VI

VILA ROMANA?

Ao alcançarem a vasta região natural de entre as Serras da Estrela e Caramulo, talvez no século I,

aos avanços e recuos impostos pela guerra de guerrilhas dos Lusitanos, os conquistadores romanos

vieram encontrar uma sociedade vivendo em pequenos lugarejos duma agricultura e duma

pecuária pobres, como é de calcular, que logo procuraram captar sem modificarem repentinamente

os hábitos vigentes, com a instalação das suas vilas nos melhores locais do território. Vilas que

eram, nem mais nem menos, que pequenas, ou médias, quintas para exploração das terras mais

férteis.

Segundo o Elucidário, de Fr. Joaquim de Santos Rosa de Viterbo, “Em todos os nossos documentos

que decorrem até os fins do século XII, se tomou villa, não por uma povoação grande, numerosa,

superior a uma aldeia, e que tivesse juiz, senado e pelourinho, com os mais distintivos de jurisdição

civil e criminal, mas sim por uma pequena herdade, casa ou granja, constante de algumas peças de

terra, com a sua casa rústica e de abegoaria para recolher os frutos e criar os gados e outros

animais. ”

Supondo que fosse este também o caso de Vila Franca, transcreve-se mais ainda do referido

Elucidário o seguinte:

“Dividia-se a villa, segundo Columela, em urbana, rústica e frutuária. A primeira constava duma

casa mais elegante, grave e asseada, em que o senhor da villa ia por algum tempo, ou mesmo de

residência fixa. A segunda, pouco ou nada tinha de polida, destinada só para habitação do colmo e

sua família, constava também de currais, encerradouros, palhais, cortes e cobertos para os animais

e apeiros da lavoura. A terceira, finalmente, era o que hoje dizemos adega ou celeiro. E todas estas

três partes estamos nós vendo em qualquer quinta ou herdade, etc.”

No nosso caso, segundo a tradição, a villa, situar-se-ia no fundo do povo e a casa do caseiro e

família, currais, adega e celeiro no cimo do povo.

Não se sabe como mais tarde o nome que prevaleceu tinha só a ver com a parte rústica, ficando na

penumbra qualquer referência à parte nobre. De propósito, ou não, só com o Renascimento é que

esta situação se modificou, mas, segundo a consulta dos registos paroquiais não foi fácil a alteração

do nome.

Para dissipar dúvidas de Vila Franca pode ter sido uma antiga vila romana, poder-se-ia citar a

Bobadela ou Meruge, onde existem importantes ruínas, como se sabe, além doutros vestígios

disseminados por todo o concelho, se com isso se pudesse acrescentar algo ao valor da nossa terra.

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Mas como estamos convictos que esse valor, se existe, cabe inteiro às nobres qualidades do seu

povo que sempre ao longo dos séculos se distinguiu pelo trabalho que realizou, com condições

sociais e humanas vigentes, para deixar atrás de si uma imagem que não se fundamentando em

obras materiais importantes à um exemplo de honradez transmitido de geração em geração,

limitar-nos-emos em dizer que todo o segredo da sua existência como povoação está nos alicerces

das suas casas mais humildes, como resquício dum passado que se conta por milhares de anos,

quer nos pretendamos transportar à época romana quer a qualquer outra época anterior a essa.

Outros, muito melhor dotados que nós, têm esbarrado com dificuldades intransponíveis, quando

pretendem debruçar-se sobre o passado dum lugar humilde como o nosso ou notável como Lisboa

e de um modo ou do outro têm que ficar-se no campo das hipóteses ou a produzir ambiguidade

que nem são pão nem queijo.

Claro que isto não é uma critica aos nossos investigadores, mas antes a constatação duma realidade

que qualquer um de nós poderá verificar se ler algum dos muitos trabalhos que se publicam sobre o

assunto, que não é tanto de lana caprina como muitos julgam.

Essas dificuldades existem e compreende-se porquê. Em relação às origens de qualquer povoado,

para as ter não precisa de ser importante ou humilde, basta que exista, mesmo que não seja no

mapa ou no tempo presente.

É o caso do nosso lugar e mostraremos já a seguir porque nos referimos tão extensamente ao

problema das suas origens.

É que, analisando o artigo da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira sobre Vila Franca, fica-

nos a sensação que o seu autor se sentiu frustrado por não ter podido levar mais longe a sua

investigação dada a carência de documentação directa existente. No entanto os Vilafranquenses

têm já motivo para lhe estarem muito gratos, principalmente pela ênfase que dá à expressão, “pois

villa, apesar do Ervedal ter sido concelho tem em Vila Franca o sentido antigo”.

Mais uma vez assim se prova a importância que tem a toponímia na história. Sem o seu

testemunho neste, como em muitos outros casos, não teria a mesma transparência, qualquer

tentativa feita para avaliar da antiguidade de um lugar. Todavia pensamos que, em relação a Vila

Franca, posteriormente, alguma coisa de errado se passou, pretendendo-se, talvez com a mudança

de nome, obliterar-lhe o sentido antigo. Mas, também aqui, “…carece-se de documentação directa”

que faça prova.

Ao contrário do Ervedal, onde no sítio denominado Olival dos Pobres, têm sido encontrados

vestígios do período luso-romano, em Vila Franca, até hoje, nada se descobriu ainda que possa ser

atribuído a tempos antigos. Pensa-se que isso se deverá ao facto de o núcleo primitivo de Vila

Franca permanecer o mesmo que foi implantado pelos nossos antepassados, donde, querendo

fazer-se qualquer prospecção esta só seria possível revolvendo os alicerces das habitações ainda

existentes, no que nem é bom pensar.

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Assim, o mais sensato é esperar que alguns vestígios que porventura existam na amálgama de

materiais com que foram construídas as casas ao longo dos séculos, desde a pré-história ou proto-

história à Idade Média, surjam à luz do dia, espontaneamente, guardando-os então para serem

identificados por especialistas que saibam separar o trigo do joio, não se vá tomar a nuvem por

Juno.

Pois, não nos devemos esquecer que, as nossas raízes são muito humildes mas que nem por isso

nos deve merecer menos carinho e interesse o seu inventário criterioso.

E também não seremos nós a pessoa indicada para o realizar, apesar do aventureirismo das nossas

palavras.

Elas são apenas uma denúncia do que poderá ainda existir para ser descoberto.

Em suma: é mais uma pedrada no charco.

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VII

QUE REPERCUSSÃO TEVE EM VILA FRANCA O FIM DA DOMINAÇÃO ROMANA?

Ainda que pareça pretensioso, fazemos esta interrogação porque ninguém sabe, por melhor que

interprete as narrativas de Tácito, e de outros autores latinos, quais terão sido as repercussões

geradas nas populações das aldeias lusitanas, quando no século V os exércitos de Roma não são

capazes de conter o ímpeto das hordas de bárbaros armados apenas com o seu desprezo pela

morte e com as armas de pedra ou madeira, conseguem abrir brecha na fronteira norte do Império,

inundando e alastrando pelas províncias romanas da Dácia, Mésia, Panónia, Ilíria, Acaia, Nórica,

Vindelícia, Récia, Germânia, Bélgica, Gálias, etc., onde godos, alanos, vândalos, suevos, burgundos,

francos, lombardos e outros que, em avalanche, aniquilam as legiões, e aliciam os contingentes

para engrossar a onda avassaladora contra um povo civilizado, prepotente e poderoso.

Mas, é de presumir, embora romanizados, estávamos e estamos tão longe dos centros nevrálgicos

dos ventos de mudança, que continuaríamos a viver a mesma vida calma, pastoril, primitiva e

apagada que até ai se tinha vivido. Só, quando depois à Península aportaram os Mouros, dotados

de uma agricultura e duma indústria artesanal mais evoluídas e também por não professarem a fé

em Cristo que desde a conversão de Constantino os apóstolos iam pregando desde as praias da

Andaluzia até às montanhas das Astúrias, é que provavelmente se começou a notar a diferença.

Nuns casos para melhor, noutros para pior, como é natural.

Por muito respeito que nos mereçam os historiadores, acho mais sensato usar o nosso pobre

amadorismo em vez de altos voos que acaso as suas leituras mal assimiladas nos possam surgir,

servindo-nos para isso tão somente dos nossos próprios meios para tentar alcançar o fim proposto:

servir fielmente a terra onde nascemos, utilizando regradamente de quando em vez uma pitadinha

do sal alheio. Só o plágio é condenável.

Segundo Dahn, o grande historiador dos bárbaros citado por F. Newton de Macedo em O Domínio

Germânico, inserto no I volume da História de Portugal, dirigida por Damião Peres, “… os germanos

ao entrarem na história já não se encontravam no estado selvagem: a natureza tinha sido pródiga

com eles dotando-se nobre e profundamente.”

É então dessa variedade de povos ou etnias nómadas, pastoris, vivendo para lá do Reno e do

Danúbio, fronteira Norte do Império, em permanente luta com as feras que enfestam as florestas

nas quais abriam clareiras para construírem as suas aldeias de casas de madeira, cobertas de colmo,

onde César e Trajano temeram os riscos que correriam as legiões de se atascarem nos pântanos nos

curtos meses do ano em que a guerra poderia ser feita com algum êxito; dessa variedade, de povos

semi-bárbaros, refira-se, que atacavam em cunha as tropas inimigas, com as armas mais

rudimentares, que emergem as duas tribos que entre si repartiam a posse da Lusitânia, após uma

luta ingente dilatada por séculos durante os quais se autopromoveram de escravos a senhores do

Império do Ocidente, mercê das qualidades guerreiras e organizativas de que deram provas esses

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dois povos denominados Suevos e Visigodos, estabelecendo-se estes a Leste, abrangendo a nossa

região e aqueles a Ocidente e a Norte do território na parte a que mais tarde seria dado o nome de

Portugal.

Será talvez despropositado ou ocioso falar desse período da História, dado que não há sinais ou

requisitos que nos garantam que os Visigodos, convertidos ao cristianismo, tivessem assentado

arraiais na Cordinha, a menos que as cruzes esculpidas no esteio da pedra da Cagadalta lhes sejam

imputadas, e assim já se justificariam estas notas, sem contudo se poder sair do campo das

hipóteses para uma explicação mais lata e credível.

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VIII

QUEM ERA ESSE NOBRE QUE SEGUNDO A TRADIÇÃO ESTEVE DESTERRADO NO

VIEIRO?

Dizia o povo no nosso tempo de rapaz que o Vieiro tinha sido, em data imprecisa, lugar de desterro

dum Conde, o Conde Viegas, e que Vieiro derivaria de Viegas, como atrás foi dito.

Salvo o devido respeito pela tradição, o Elucidário de Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo diz que

“Vieiro é o foro real, pensão que se pagava à coroa, que era o terço do ouro, prata e cobre que nas

minas do reino se tiravam…”

Recordamos ainda a este propósito uma conversa havida em tempos com o falecido Pe. Abílio

Fernandes de Seixas da Beira, que foi muitos anos pároco do Ervedal. Segundo ele Vieiro significaria

encruzilhada de vias.

Finalmente, o Dicionário da Sociedade da Língua Portuguesa diz o seguinte: “Vieiro, s.m. (do Latim

Venariu -) veio de qualquer filão metal ou outra substância em mina; filão. Linha por onde uma

pedra abre quando é percutida. Antigo imposto que se pagava à coroa e consistia na terça parte de

oiro, prata ou cobre que se extraia das minas de Portugal.”

Ainda nos recordamos como se fosse hoje quando da primeira vez que passámos pelo Vieiro (ainda

era habitado) o companheiro que nos levou até lá, apontando para as ruínas duma casa, meio

cobertas de silvas, dizia: esta era a casa do Conde. Aqui é que ele morou.

Tanto o Vieiro, a que estão associados a Penha e o Castro, como o Vale de Ferro, são para nós

lugares de peregrinação, aonde fomos poucas vezes, mas sempre compenetrados de que

visitávamos verdadeiros santuários rupestres, envoltos no esquecimento e no mistério da sua

criação.

Soltando a imaginação através dos ínvios caminhos da história relativos à invasão suevo-visigótica

da Península, acabaríamos por encontrar lugar para o Conde Viegas nas fileiras do rei Sisebuto que,

segundo o Professor Newton de Macedo, em História de Portugal, cunhou moeda em Eaminium

(Coimbra), Vezeo (Viseu), Lamego e Egitânia (Idanha–a-Velha). Como razão para a sua condenação

a degredo no Vieiro esse imaginário diz ter sido por causa dum latrocínio que o Conde praticou,

exorbitando das funções que lhe foram cometidas pelo rei, numa batida a terras de Sena.

Mais diz a lenda que o Conde tendo gostado do sítio, depois de cumprido o degredo, atravessou o

rio com o seu séquito e foi fundar à vista da outra riba do Munda (Mondego) uma povoação, a que

mais tarde seria dado o nome de Oliveira do Conde, em sua honra ou memória.

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IX

A SEGUIR AOS VISIGODOS, OS MOUROS

Abrimos, este novo capítulo, convencidos que as invasões estrangeiras de que foi passível o nosso

País não modificaram de forma imediata, radical e generalizada os costumes do nosso povo, até

porque os autores latinos e os herdeiros da sua cultura, principalmente a Igreja Católica, deixaram

provas suficientes para acreditarmos que a maioria da população rural, como a nossa, nunca

encontrou dificuldades em coexistir com aqueles que chegavam como imigrantes. Só em povoações

fortificadas, como seria o caso de Conímbriga, que naturalmente, aí resistiu à penetração dos

conquistadores, é que se travariam renhidas batalhas pela posse de bens e pessoas, matando-as ou

reduzindo-as à escravidão. Não sabemos mesmo se o castro do Vieiro em tempos não terá sido

submetido às duras provas de rapina ou se, simplesmente, foi abandonado pelos seus moradores

logo que verificaram não haver mais razão para viverem isolados das restantes aldeias vizinhas,

transferindo-se, por comodidade, para lugares próximos.

D. Rodrigo, o último rei Visigodo, viu-se apunhalado pelas costas em 711 quando tentava no Norte

da Hispânia submeter os Bascos, sendo informado que Tarique e Murça, com a conivência de

renegados familiares seus, atravessaram o Estreito de Gibraltar e entraram pela Andaluzia, levando

tudo e todos na sua frente a ferro e fogo. Quando D. Rodrigo chegou com o seu exército ao

encontro dos Muçulmanos já nada pode fazer e diz a História que desapareceu misteriosamente,

com ele acabando o reino Visigótico da Ibéria. Os combates entre cristãos e a moirama, sedenta de

riqueza, prosseguiram ainda por alguns anos, até que os últimos visigodos se refugiaram nas

montanhas das Astúrias; com os poucos que escaparam à perseguição constituiu-se o fermento do

exército que Pelágio, à dois séculos do primeiro milénio da era cristã, teve a honra de combater,

dando início ao longo e doloroso retorno às origens.

Entretanto, o que se terá passado na nossa aldeia? Terá ela sido espezinhada pelos ginetes dos

Mouros, habituados às travessias das areias escaldantes dos desertos africanos? Ou terá sido uma

das muitas bolsas que mercê da situação geográfica que desfrutam, longe das grandes vias,

escaparam à passagem das tropas, seguida de massacres e pilhagens?

As tribos muçulmanas que invadiram a Península Ibérica não estavam muito ligadas entre si, como

já acontecera com os bárbaros, por eles expulsos; eles eram berberes, mouros, árabes de todas as

etnias, e até judeus, que vinham desde as margens do Indo às costas do Atlântico construindo um

novo Império. Essa desunião era de bom augúrio para os naturais da Ibéria.

De O Domínio Árabe (História de Portugal), do Professor David Lopes, respigamos algumas palavras

relativas às Beiras:

“Referindo-se a Abu Amir Mafamede, que aparece como grande homem de estado no reinado de

Alháqueme II, príncipe amigo das letras, mais que da guerra, cuja carreira chegou ao fastígio no

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reinado seguinte, de Hexemene II, como primeiro-ministro, algebe, diz na campanha de 987 tomou

Conímbriga e Leon, que arrasou: e no fim, no regresso dela, foi que tomou o título de Almançor com

que é conhecido na História.”

Anos depois “… começa um período confuso, o dos reinos de taifas ou dissidentes em que as Beiras,

Estremadura e grande parte do Alentejo actual, eram abrangidas por Badajoz.” Daqui se pode

concluir que a acção do príncipe na nossa, como noutras aldeias da região, seria atenuada pela

distância.

Assim, continuando a citar o mesmo autor: “… os cristãos aproveitaram esta desordem para

apressarem a reconquista. Parecia ter soado a última hora do domínio árabe. Nas fronteiras não

cessava o retinir das armas. O rei de Leão, Fernando Magno, no extremo Ocidente, arrancava Viseu,

Lamego e Coimbra ao rei de Badajoz; este, e mais alguns, temendo a sua cólera, fazem-se seus

tributários.”

A Península foi chamada Iúçufe para repõe a fé e o direito defendidos pelos Almorávidas – e em

1117 ali em pessoa vinha pôr cerco a Coimbra, sem poder tomar. A cidade era cristã desde 1064.

Sabe-se que neste período os Moçárabes que renegavam o Alcorão foram perseguidos, pois eram,

grosso modo, o fruto do acasalamento de duas religiões e de duas culturas, a cristã e a muçulmana.

Felizmente no nosso concelho, temos um templo moçárabe, a Igreja de Lourosa, que melhor que

quaisquer palavras fala, na mudez das suas paredes e arcos de ferradura, dum período transitório e

conturbado da nossa História.

O Professor Damião Peres em História de Portugal, sétima parte, A reconquista cristã, capítulo II, a

reconquista até ao Mondego dedica 10 páginas ilustradas, demonstrando o grande interesse que a

Igreja de Lourosa representa.

Era rei da Galiza Ordonho. Em 911 mandou demarcar o termo do bispo de Dume pelos antigos

limites, e com a data do ano seguinte foi construída a Igreja de Lourosa, “espécime único em

território português do estilo moçárabe.”

“ (…) A fúria transformadora, que destruiu tantas outras igrejas dos séculos da reconquista, deixou

que esta chegasse até nossos dias, acrescentada embora de adições posteriores, mas respeitada nas

suas linhas fundamentais primitivas.”

“ (…) A fúria transformadora, que destruiu tantas outras igrejas dos séculos da reconquista, deixou

que esta chegasse até nossos dias, acrescentada embora de adições posteriores, mas respeitada nas

suas linhas fundamentais primitivas.”

“ (…) O alto valor deste monumento foi reconhecido muito modernamente. O padre Carvalho da

Costa, na sua Corographia Portuguesa, dizia ainda dele, vagamente, que foi fábrica dos Mouros.”

Pois é verdade, os nossos avós atribuíam tudo o que era antigo aos Mouros. Assim pagaram pelo

que fizeram e pelo que não fizeram. Tinham-nos como uma espécie de seres sobrenaturais.

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Sobre crendices populares, ninguém melhor que Leite de Vasconcelos pode fornecer elementos

autênticos por ele recolhidos nas suas peregrinações pelo País. Eis uma dessas superstições de que

se conhece uma versa local a que adiante será dado o devido destaque: (…) os Moiros são olhados

de modo geral como os construtores de todos os edifícios antigos.

“Na ocasião de se fundar o convento de Vila da Feira segundo me informa uma velha de noventa

anos, andavam moiras a acarretar, para ele, pedras à cabeça, indo ao mesmo tempo com a roca à

cinta a fiarem. Foram as Moiras, em iguais circunstâncias (pedras à cabeça e roca à cinta), que

edificaram a torre de Leça do Balio. A pedra formosa da Citânia de Briteiros foi por uma Moira

levada à cabeça, desde o alto de S. Romão até Stº Estêvão, enquanto fiava na roca. etc., etc.….”

Extraordinários os feitos destas Mouras Encantadas. Mas a nossa não lhes ficaria a dever nada, nem

em força nem em destreza.

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X

A LENDA DA PEDRA DA MOIRA

Esta lenda é antiga, devíamos ser ainda crianças, quando a ouvimos contar a primeira vez ao nosso

pai. Cresceu connosco. A isso se deve talvez a simpatia que temos pelos penedos. Também é

verdade que alguns têm formas bizarras que nos atraem, por lembrarem monumentos, animais e

mesmo pessoas, como é o caso da Cabeça do Velho ou da Velha, situados a grande distância um do

outro, algures na Serra da Estrela. Outros ainda foram habitações de trogloditas, de que a Lapa

Seixinha é um espécime, ou enigmáticos como a que existe no rio Seia, encostada ao açude do

Moinho do Buraco, na Quinta da Baleia. A própria Pedra da Cagadalta, vista do lado Sul, assemelha-

se a um animal antediluviano, talvez um mamute. No concelho de Chaves, à beira da estrada que

segue para Bragança, existe uma pedra chamada Bulideira, porque, embora pese algumas

toneladas, assenta numa base tão diminuta que qualquer pessoa, como é da tradição, quando por

lá passa, a faz oscilar, com um pouco de esforço. Com igual predicado há outra na Penha de

Guimarães. Consta dos Opúsculos de J. Leite de Vasconcelos com a referência de o Penedo do Sino

com uma Moira.

Pois a chamada Pedra da Moira, com que encerramos a segunda parte do nosso modesto trabalho,

situa-se junto a uma laje em que se malham e secam cereais produzidos nas imediações. Segundo a

lenda, numa noite de luar, uma Moira Encantada, contrariando quaisquer leis, pegou nela, pô-la à

cabeça com um filho ao colo e a roca na cinta, fiando… desceu a ladeira desde o fundo da Lagariça,

atravessou o ribeiro e, como a coisa mais natural deste mundo, deixou-a ficar no sítio chamado

Algar.

O mais curioso da lenda é que Algar é mesmo uma palavra do léxico árabe (al-gar) que significa

cova profunda, despenhadeiro, barranco feito pelas torrentes e enxurradas, etc. Dicionário da

Sociedade da Língua Portuguesa.

Quer seja mera coincidência, quer sejam resquícios da cultura moçárabe, o nome parece que está

bem adaptado, donde não é de excluir a hipótese de se tratar duma antiga granja, pertencente a

um califa. Atravessada pelo caminho, provável estrada romana, ligando as povoações de Vila Franca

e Vale do Ferro, onde se poderia extrair o metal com que se fariam as relhas dos arados, bem como

ferramentas e pontas de lança, abrangeria ainda as férteis margens do ribeiro d’Arca, e para Norte

as Lajes do Ouro, nome que sugere uma exploração do precioso metal que, desde eras remotas, foi

avidamente procurado pelas diversas tribos invasoras da Lusitânia.

Honestamente confessamos, até prova em contrário, que em nossa opinião as Lajes do Ouro são

tão lendárias como o arado, grade e cambão de ouro, enterradas entre o Campelinho e o

Pousadouro. Superstição idêntica recolheu-a o Dr. José Leite de Vasconcelos em 1892 na povoação

de Senhorim, onde no rio do Castelo, continuação do rio Santo, pensa o vulgo que vive encantada

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uma Moira, que na noite de S. João, sempre fabulosa, traz ao lume d’água uma grade de oiro e um

cambão, que nunca ninguém conseguiu apanhar porque a Moira foge quando alguém se aproxima.

Ao reflectir-se sobre a moral destas lendas, admite-se, desde logo, que existe na sua concepção um

fundo de verdade que tem a ver com as necessidades de arrotear e cultivar as melhores terras, para

sustento das populações, dando ainda combate à vadiagem que prolifera nas viragens da história

como consequência da insegurança gerada pelas guerras, peste e fome cíclicas, tornando mais

premente a necessidade de fixar o homem à terra, prometendo-lhe tesouros fabulosos.

Assim seria em todo o condado portucalense que então começava a organizar-se. Assim seria nas

nossas aldeias, cada vez mais devastadas pelas algaras. Em Coimbra governava então o conde

Sesnando, foco moçárabe de renitentes tradições, como moçárabe era o conde e até o bispo D.

Patermo, cujo domínio abrangia as terras de Entre – Douro – e – Mondego e nesta região se

alargava até ao sopé dos Montes Hermínios, onde Fernando Magno encarregou Pedro Cêa de

construir um castelo para defesa de Seia. Segundo documentação posterior, presume-se que os

concelhos do Seixo e Ervedal, e ainda outros a Sul, situados na margem esquerda do Mondego,

ficaram, desde logo, sob sua jurisdição.

Por nos termos alargado demasiadamente nos meandros da História da Pátria, com o propósito de

por esse caminho mais longo podermos “levar a água ao nosso moinho”, esta segunda parte, como

já acontecera à primeira, “tem mais parra que uva”.

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TERCEIRA

PARTE

VILA raiz que do passado ficou

FRANCA se baptizou.

Quase todos os capítulos desta Terceira Parte, já estavam escritos há muito tempo, pelo que,

houve necessidade de os rever e modificar para melhor se enquadrarem na nova MONOGRAFIA.

Noutros Mundos esquecidos

Há novos Mundos perdidos

Há diamantes caídos

Na profundura dos céus

Que no céu foram embutidos

Por obra e graça de Deus…

São espaços de ninguém

Com lampejos de infinito

A volitar nas alturas

A navegar serra além…

Tarquínio Hall

(Poemas)

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I

NOS ALVORES DA NACIONALIDADE

No século XIII, segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, “Vila Franca era povoada de

vilões – herdadores, a quem a rainha D. Dulce, mulher de D. Sancho I cerca de 1190, a comprou,

com Ervedal, para fazer de tudo doação à albergaria de Poiares, razão por que se incluía nos séculos

XIII/XIV na honra do couto do Ervedal, desde a albergaria, não fazendo à coroa qualquer foro. Os

habitantes foram desde logo da freguesia da igreja de Santo André.”

Uma conclusão que daqui se tira à que Vila Franca não tinha Igreja, teria, quanto muito, uma

capela, uma vez que num documento do tombo da igreja de Santo André se diz que a capela de

Santa Margarida data de tempos imemoriais.

Não admira, pois nesse tempo, como diz o Elucidário de Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, “…

em todos os nossos documentos que decorrem até os finais do século XII, se tomou villa, não por

uma povoação grande, numerosa, superior a uma aldeia, e que tivesse Juiz, senado ou pelourinho,

mas sim por uma pequena herdade, casal ou granja, constante de algumas peças de terra, com sua

casa rústica e de abegoaria para recolher os frutos e criar os gados, e outros animais domésticos.”

Mas, mais importante que essa, ou outras conclusões que acaso o referido documento suscite, é

saber quem foi o intermediário na compra de Vila Franca, pois embora a rainha vivesse em

Coimbra, onde estava nessa altura a corte, com certeza que não a conhecia nem agiu de moto-

próprio na compra na compra. Alguém daquela instituição religiosa, ou próximo dela, a conhecia, e

sabendo que se encontrava à venda, conseguiu que a rainha D. Dulce fizesse dela doação à citada

albergaria de Poiares.

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II

MARTIM GONÇALVES

Quem era Martim Gonçalves?

É uma incógnita, que abordamos com natural parcimónia, somente porque não é de desprezar

qualquer hipótese de descobrir as nossas raízes, o mais fundo possível, ainda que para essa tarefa

nos sintamos desprovidos de competência.

Para nós, moradores de Vila Franca, dentro do nosso microcosmo, é um topónimo que designa

umas terras ou Quelhas implantadas numa encosta à direita do ribeiro David, que desagua no rio

Seia, junto ao Moinho das Figueiras.

Enquanto que, para Coimbra e para a igreja à o nome dum bispo, contemporâneo de D. Afonso

Henriques, que governou a diocese de 1183 a 1191. Sobre este assunto se dão adiante mais

pormenores.

Ora o que interessava saber, evidentemente, é se entre o topónimo das terras de Vila Franca e o

nome do bispo de Coimbra há alguma relação, para se continuar este raciocínio num tom optimista,

ou conciliatório.

Mas, infelizmente, embora se suspeite de ter havido um bispo nascido em Vila Franca; D. Martim

Gonçalves ter presidido às celebrações da coroação do rei D. Sancho I e da rainha, sua mulher, e

ainda daquela ter comprado estas terras aos vilões – herdadores que a povoaram, o que colocaria o

bispo, se fosse daqui natural, em posição privilegiada para interferir nas negociações, nada prova

que haja qualquer relação entre as duas entidades, além do nome em comum.

Apesar da toponímia, tão útil na descoberta de pistas respeitantes ao passado dos povos, neste

caso pouco ter para dar, não quer dizer que seja motivo para não acreditarmos que ela de facto

representa as casas de noz e migalhas de pão do conto popular referido na primeira parte ou seja:

o caminho tantas vezes indispensável aos que pretendiam fazer a viagem de retorno às origens.

Como atrás referimos, é possível saber algo mais a respeito do bispo, transcrevendo-se a seguir

nota contida no primeiro volume da obra intitulada Sé Velha de Coimbra, do dilecto oliveirense, Dr.

António Garcia Ribeiro de Vasconcelos, que foi ilustre Professor da Universidade e distinto escritor:

“D. Afonso Henriques faleceu em 1185, e ascendeu então ao trono seu filho e herdeiro D. Sancho I.

Foi já na nova Sé, então revestida de toda a louçania da juventude, embora ainda não

perfeitamente acabada, que a 9 de Dezembro, 3 dias depois da morte do fundador da Nação, o

bispo D. Martim Gonçalves (1183/1191), que pouco depois havia de lidar como herói na conquista

de Silves, coroou, com grande pompa e solenidade, como reis de Portugal, a D. Sancho e a sua

mulher D. Aldonça (Dulce).”

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Monografia Lusitana, Tomo IV, Pag. I

Frei António Brandão

A página 27 do segundo volume da referida obra insere-se mais a seguinte nota:

“Achando-se o edifício da Sé em condições de poder ser aberto ao culto, marcou-se a solenidade

para dia do mês de Novembro ou Dezembro de 1184, sendo então bispo de Coimbra D. Martim

Gonçalves.”

Ainda se regista uma terceira referência ao bispo D. Martim Gonçalves a respeito dum altar por ele

sagrado em 1184.

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III

QUAL A GÉNESE DAS MUDANÇAS DE NOME DA NOSSA POVOAÇÃO, OU QUE

FENÓMENO AS MOTIVARAM?

QUEM SOMOS?

Desde já se previne que não é fácil responder capazmente às perguntas formuladas até por haver

certos topónimos que sendo tabu para muita gente, desmotivam as pessoas de fazerem pesquisas

e promoverem debates, sem inibição, publicamente.

Excluindo, é evidente, épocas mais recuadas, a que fizemos ligeiríssimas referências na primeira e

segunda partes, na Idade Média e no Renascimento, a nossa terra constou em documentos oficiais

referenciada com várias cores toponímicas, quais sejam: Villa Franca na compra e consequente

doação da nossa aldeia do Ervedal efectuadas pela rainha D. Dulce a favor da albergaria de Poiares,

cerca de 1190, segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira; Urrais no Censo da

População do Reino, edição de 1922, coligida por Magalhães Collaço, mandando fazer em 1527 por

D. João III, e Curral de cães no Livro Preto da Universidade de Coimbra, termo de Seia e concelho do

Ervedal, no ano de 1570.

Mas se passarmos aos Registos Paroquiais da freguesia do Ervedal, então deparamos com

verdadeiras charadas, embora por razões diferentes, como tentaremos explicar.

Tornados obrigatórios pelo Concílio de Trento (1545/1563), verifica-se isto: desde o princípio era

vulgar cada vigário ou seu encomendado escrever o nome do nosso lugar como sabia ou queria,

desrespeitando-se as regras ortográficas ou gramaticais, nos assentos que cada um fazia nos livros

de baptizados, casamentos e defuntos, em uso.

Menos castigados por tais erros foram os Fiais, Louriçal, Vale do Ferro e Vieiro. Em 1595 deparam-

se-nos duas mudanças extraordinárias: em vez de Curral de Cães e Louriçal aparecem os nomes de

Villa Franca e Póvoa de S. Cosme, respectivamente. No entanto não se acha ou não existe nos livros

explicação alguma. O vigário era Valentim do Louro. Estranha-se que só Louriçal tenha sido

erradicado dos livros, mas é verdade, Curral dos Cães, passados uns anos, alternava por vezes com

Villa Franaua, dando por isso a sensação da haver dois lugares paralelos, correspondendo talvez ao

Cimo e ao Fundo do Povo.

O que se sabe, porque está nos livros, é que só em 1682 terminou essa dualidade de nomes. Mas

ainda nesse ano se lê pelo menos num assento: “… todos de Curral de Canis.” O vigário Manuel

Antunes.

Indirectamente a História dá-nos pistas para o arejamento das nossas raízes.

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O Professor Ângelo Ribeiro, referindo-se ao cerco e conquista de Lisboa aos Mouros por D. Afonso

Henriques, com a ajuda dos cruzados diz: “... e começou então o estabelecimento das colónias

estrangeiras, das colónias FRANCAS, pois, para os portugueses de então, eram francos,

indistintamente, os homens que vinham dos países do Norte. (…) Mais tarde, Childe Rolim, o

cavaleiro Rolim ou Raulino, teve a Vila Franca que a seguir se chamou Azambuja e que foi colónia de

flamengos.”

Para J. Leite de Vasconcelos, aqui muitas vezes citado, “… a expressão Vila Franca, que aparece

como designação topográfica em vários distritos, parece nada a ter com os FRANCOS, pelo menos

na mor parte dos casos, pois na Idade Média VILLA FRANCA ou FRANCA VILLA era a que gozava de

certas franquias, como atestam também as várias povoações que se chamam VILA FRANCA e VILLA

FRANCA, em Espanha, e VILLEFRANCHE, FRANCHEVILLE e FRANQUEVILLE, em França, e VLLA

FRANCA, em Itália; cfr. FREIBUG, na Suiça e na Alemanha.”

Por sua vez o Elucidário no vocábulo Maninhadego relata este caso insólito: “Não longe de

Bragança, havia uma grande povoação, chamada BRAGADINHA, cujos moradores, levados de

recíproco e implacável ódio, com inaudito furor se mataram todos, em um só dia, ficando apenas

alguma mulher que se pode esconder, como consta das inquisições D’el-rei D. Afonso III. El-rei D.

Dinis, achando-se em Tomar, a 9 de Dezembro de 1286, se propôs a restauração deste povo,

suprimindo-lhe o antigo nome e dando-lhe, de novo o de VILLA FRANCA no foral, que lhe fez passar,

e no qual determina: que todo o homem, ou melher, que for maninho, possa vender o seu à sua

morte, a quem muito quiser. ”

Documento de Bragança

Quais eram as franquias de que gozava a nossa villa?

“Os habitantes foram desde logo da freguesia da igreja de Santo André.”

Esta curta frase levanta uma ponta do véu com que se recobre a história do nosso povo? Mas…

Quem somos, donde viemos, de que raças descendemos, como vivíamos, quantos éramos?

Ora, o que se depreende da citada frase é que anteriormente à nossa integração na freguesia da

Igreja de Santo André os habitantes de Vila Franca tinham um grémio ou estatuto próprio. Qual?

As Igrejas do Ervedal e do Seixo são de fundação visigótica ou moçárabe, segundo supomos.

Vila Franca fica no meio sem espaço geopolítico da manobra, dada a curta distância a que fica de

ambas.

Foi até então terra de ninguém, livre ou passível de certas franquias como o nome indica?

Ainda está para nascer o homem, outro Champollion, que decifre estes e outros enigmas, que a

terra guarda e guardará ciosamente, sem a denúncia de qualquer documento epigráfico.

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Da análise da expressão contida no mesmo documento: “… era povoada de vilãos – herdadores …”

depreende-se que os moradores de Vila Franca, de então, já tinham atravessado um longo período

da História. Seriam eles os herdeiros da villa romana sobre a qual se construiu a povoação,

incólume nos períodos subsequentes, visigótico, muçulmano e moçárabe?

Será ousado supor que entre os vilãos – herdeiros pudesse haver também cavaleiros – vilãos e pelo

menos peões, com certeza que havia. Qualquer destas classes estava sujeita a fazer fossado

durante seis meses por ano e a defender o concelho. Não esquecer que se vivia, então, um período

de guerras contínuas.

O concelho pertencia ao termo de Seia, em cujo castelo o rei D. Sancho I colocara o alferes – mor e

o seu irmão bastardo, D. Pedro Afonso, que segundo Alexandre Herculano foi o chefe da hoste que

o rei enviou, por terra, com armas e mantimentos aos cruzados que a seu pedido cercaram e

conquistaram Silves ao fim de muitos meses de combates sangrentos. Além do bispo D. Martim

Gonçalves, quantos mais dos nossos fariam parte das hostes? Com certeza, todos os homens

válidos, ou os que a defesa do concelho dispensava, não se puderam escusar.

Consciente ou inconscientemente deste modo admitimos a hipótese de o bispo Martim Gonçalves

ter nascido em Vila Franca.

Sem valor probatório, a isto acrescentamos ainda que o património “Gonçalves” abundou em Vila

Franca até meados do século XIX, a par de “Rodrigues”, de “Marques” e de “Lopes”, e o seu declínio

deveu-se à tragédia começada a 8 de Dezembro do ano de 1838 com o assassínio e sumiço do

vigário António Francisco Gonçalves, que encheu de opróbrio uma família honrada e bastante

considerada por todos os conterrâneos, levando alguns dos seus membros à rejeição do apelido

como forma de se demarcarem desse drama horrível, do papel de comparsas.

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IV

RENASCIMENTO DE VILA FRANCA

No espaço de três séculos, de 1200 a 1500, o nosso lugar como que mergulha numa espécie de

penumbra ou hibernação.

Mas como escreveu o Dr. Tarquínio Hall no seu opúsculo sobre Vila Franca para introdução do

programa radiofónico do dia 4 de Março de 1990, da Rádio Boa Nova, de Oliveira do Hospital,

incluído na campanha de divulgação e promoção cultural das terras do concelho, a história do

nosso lugar “… vem de tempos pré-históricos e está inteiramente relacionada com a do Ervedal, em

cuja antiga vila (freguesia a partir de 24/08/1855) esteve longos anos integrada.”

Emergindo talvez de um longo período de trevas, agruras e estagnação, caracterizada a nível

nacional por guerras, peste e fome, não obstante pelo meio ficaram alguns marcos fulgurantes da

nossa história, a população do nosso lugar vê finalmente surgir no horizonte, aí por 1595, o nome

antigo, espécie de auréola ou legenda da pax romana, saudado e ostentado como um brasão

acabado de restaurar, não obstante notar-se nos registos paroquiais, onde o facto vem expresso,

certas contradições.

Isso leva-nos a pensar que a bandeira da mudança foi urdida pelo povo, embora depois sancionada

pelas autoridades civil e eclesiástica ou pela própria Universidade de Coimbra, à qual se pagava

foro. Se ficou ou não algum documento relativo a tal evento, não se sabe. Sabe-se, sim, que a

Corographia do Pe. António Carvalho Costa, na sua edição de 1707, menciona o Seixo, Vila Franca e

os Fiais, como lugares que na outra margem do Mondego confrontam com outras tantas povoações

do antigo concelho de Canas de Senhorim.

Mais tarde o nome de Vila Franca é acrescido das expressões do Ervedal ou de Ervedal da Beira,

para distinguir das suas homónimas, principalmente no encaminhamento do correio.

Porém, verifica-se logo que os dois novos elementos onomatológicos, encerram tal carga

psicológica negativa que o mais saudável era eliminá-los, o que de facto aconteceu, acabando-se de

vez com o afloramento de questiúnculas por vezes caricatas.

No opúsculo acima citado pode ler-se: “… De facto esta gente de Vila Franca sabe o que quer e

porfia até alcançar os seus desígnios.”

“Foi assim que aconteceu com a sua emancipação onomástica quando, a 12 de Setembro de 1978,

riscou, do seu nome, a expressão Ervedal (decreto nº 94), passando a designar-se Vila Franca da

Beira.”

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A isto é preciso acrescentar, necessariamente, com a devida vénia, o seguinte: - O grande milagre,

que fez calar os Velhos do Restelo, deve-se essencialmente a um homem que soube orientar, ouvir

e aglutinar, com a cabeça e o coração, esta gente de Vila Franca, o Dr. António Marques Frade.

Para encerrar este capítulo apenas desejamos lembrar o picaresco caso da tabuleta que a Junta

Autónoma de Estradas mandou colocar na chamada estrada nova, um pouco abaixo da mata do

Gregório, encomendando-a ao mesmo pintor que pintou pela mesma altura, década de 30, em

grandes parangonas, o nome da Escola Primária de Vila Franca, sob o olhar atento do capitalista

António Marques Antunes, não fosse ele cometer outro erro.

Arquivamos o recorte do Diário de Notícias que relata o acontecimento, nos seguintes termos, (vide

fotocópia):

“Percalços acontecem ao mais pintado. Mas é bom quando possível (e neste caso não haverá, com

certeza, dificuldade de maior), remediá-los com prontidão. Endereçado à Junta Autónoma de

Estradas vai o nosso reparo com o protesto de Vila Franca (Ervedal da Beira). A essa Junta, de

justiça é dizê-lo, deve o País trabalhos dignos da sua maior gratidão. Fala por nós, e mais alto e

mais eloquentemente que nós, o seu labor formidável na rede de comunicações de Portugal. E o que

se vai contar nunca visaria desmerecer, como se compreenderá, seus reconhecidos e elevados

préstimos. Nem ela deve ser a principal culpa do acontecimento.

Contudo, a Junta mandou pôr à entrada dessa povoação, como em tantas outras o tem feito e faz,

uma tabuleta com o respectivo nome, para os viajeiros saberem da sua proximidade. Ora sucedeu

que a pessoa incumbida de a pintar – sem propósito, certamente, mas cometendo erro e ofensa aos

brios do povoado – esqueceu-se do N inicial. E em vez de Vila Franca saiu, como se vê da gravura

junta Vila Fraca.

Franca e forte foi sempre essa vila beirã. E porque não lhe cabe o epíteto depreciativo e já se presta

a chacotas de quem passa ou de vizinhos, anda tudo ali compreensivelmente indignado.

Mas deve-lhe ser em breve sustado o agastamento, pois a Junta Autónoma, decerto, ao ler estas

linhas, providenciará para que volte o N essencial ao seu justo lugar.

E a formosa vila ver-se-á restituída aos seus foros de franqueza e a paz retornará ao coração dos

seus habitantes.”

Isto aconteceu porque – dizia-se – o pintor era mesmo analfabeto, pintava mas não sabia ler o que

escrevia, o que o livrou duma surra mas o revelou ao mundo, sem o manto diáfano da fantasia, tal

qual era, analfabeto.

O RECORTE DO DIÁRIO DE NOTÍCIAS QUE RELATA O ACONTECIMENTO

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V

DESDE QUANDO É QUE VILA FRANCA ASPIRAVA A SER FREGUESIA?

Já vimos quão importante é para uma povoação o nome que ostenta como uma bandeira ou rótulo

que a identifica e a distingue das outras, que levanta nos momentos de euforia, abate nos de

decadência ou nostalgia e se mantém na horizontalidade nos de calma e vida tranquila. Como

sucede às pessoas, nunca são as povoações que escolhem o seu nome, este é-lhes imposto, a

maioria das vezes, por padrinhos credenciados ou adventícios, segundo uma infinita variedade de

critérios ou circunstâncias, sendo alguns tão antigos, e derivados de dialectos ou línguas há muito

tempo desaparecidos, cuja etimologia ou especialistas suam as estopinhas a desvendar,

socorrendo-se de conhecimentos de filosofia e ciências afins, sem contudo muitas vezes chegarem

a resultados consensuais entre si, não obstante os malabarismos literário – científicos a que

recorrem com maior ou menor força imaginativa, para fazerem vingar as suas teses. Há povoações

a reclamarem do nome que têm, há mais ou menos tempo, com mais ou menos razão, como é o

caso da nossa, porque com ele, no todo ou em parte, se sentem deprimidas ou injustiçadas.

Que o nome se quer limpo e escarolado, como a camisa que vestimos, ou que seja à medida do

nosso pé, ou soa bem ao ouvido, são verdades com as quais todos estamos de acordo. O nosso,

para o Dr. Tarquínio Hall, foi o primeiro passo (talvez o mais decisivo) a justificar o sonho lindo – a

ascensão, por mérito próprio, de Vila Franca da Beira à tão desejada sede de freguesia (Decreto-Lei

nº 69, de 23 de Maio de 1988).

A questão em epígrafe comporta dois tempos. No primeiro está explícito o sentimento colectivo

que anima qualquer sociedade humana de prender com o seu esforço alcançar um “lugar ao sol”.

No segundo está patente o desejo de saber em que data surgiu o primeiro sinal público desse

desiderato de autonomia.

A seguinte resposta (indirecta) a respeito disto, pertence ao autor anónimo dum artigo publicado

no Diário de Coimbra com o qual pretendeu responder ao movimento independentista surgido em

Vila Franca aí pela década de 40, liderado por Jacob Esteves Borges, sendo o único, crê-se, até

então conhecido:

PRETENSÕES A SEDE DE FREGUESIA

Vila Franca de Ervedal aspira a ser sede de freguesia em detrimento da do Ervedal da Beira

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Tem-se notado desde algum tempo, que as notícias publicadas nos jornais e boatos postos a circular

por pessoas irresponsáveis, tem por vezes ocasionado nos espíritos dalguns ervedalenses que em

tudo acreditam, que Vila Franca do Ervedal vai ser elevada a sede de freguesia !!!

Ora não seria nada de espantar, se tal facto sucedesse, pois que todo o nosso Portugal assim

começou, dividindo-se política e administrativamente, como era reconhecido fazer-se a delimitação

das suas parcelas administrativas.

Mas agora, não é esse o caso, porque tais delimitações só são feitas, quando razões de ordem

económica ou outras especiais o impõem, pois que na parte que diz respeito à área administrativa

abrangida pela freguesia de Ervedal da Beira, é realmente pequena e a sua população não é

demasiada, para que seja, por enquanto mais dividida, e isto por várias razões, exemplificando

algumas:

1. A área abrangida pela freguesia de Ervedal da Beira é relativamente pequena e acessível à

sede;

2. A população que compõe todo o aglomerado da freguesia, é ainda insuficiente para que se

torne imperiosa uma nova divisão;

3. Não se vê na fórmula aspiração, vantagem alguma em que numa área tão pequena,

acessível e com pouca população seja de aconselhar a criação duma nova freguesia só por

capricho de alguns que naturalmente desconhecem a responsabilidade e funções de um

corpo administrativo, como é o de uma freguesia na província, onde as suas receitas são

sempre muito insuficientes e por vezes nenhumas, se as respectivas Câmaras Municipais

assim o entenderem como sucede, por exemplo, à do Ervedal da Beira.

4. Nenhuma povoação abrangida, dista da sede além de 5000 metros, ficando a povoação

citada a uns 2500 metros.

5. Compõem o aglomerado da freguesia, cinco pequenas povoações, possuindo as duas com

maior número de habitantes, cemitérios próprios e uma igreja cada, onde o prior diz missa,

para melhor comodidade dos fieis, evitando assim as suas deslocações à sede da freguesia.

6. Industrialmente e comercialmente também não se vê movimento para que Vila Franca

pretenda levar o Governo a considerar tal facto, de maneira que aquela possa só ser si exigir

a sua independência administrativa.

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E quanto à política, também não se sabe o que citar de especial para que tenha direito a colher

louros de independência!...

Por capricho pessoal.

Isso não basta.

Por enquanto durmam descansados os espíritos ervedalenses, que ainda não é este ano, nem

nos próximos mais chegados, que a nossa secular freguesia se desmembra.

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MUDANÇA DE NOME

No seu formalismo oficial o muito desejado Decreto que altera o nome de Vila Franca do

Ervedal para Vila Franca da Beira, não traduz o prazer que deu à nossa gente, para quem passa

a representar doravante como que uma carta de pré-alforria.

Fotocópia do Decreto nº 94/78 de 12 de Setembro

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VI

DE FACTO O POVO DE VILA FRANCA PRETENDIA IR MAIS ALÉM MAS FALTAVA-

LHE A VONTADE POLÍTICA

Talvez poucos dos nossos conterrâneos se recordem do movimento independentista que apareceu

na década de trinta, liderada pelo Tenente Simões da Costa, do Seixo, visando desmembrar as duas

freguesias da Cordinha, do Concelho de Oliveira do Hospital para formar um novo concelho.

Mas… porque tanto o Seixo como o Ervedal reivindicam a sede do município, levou o Tenente

Simões Costa a convocar uma reunião na escola primária de Vila Franca, então nova em folha, em

que propôs que o concelho ficasse sediado na nossa terra.

A proposta do emérito regionalista privilegiava Vila Franca para sede do novo concelho pelas

seguintes razões:

1. Estar situada sensivelmente a meio das duas vilas;

2. Ser a mais populosa das três povoações;

3. Ficar a sede do município em zonas neutras, num lugar que nem sede de freguesia era.

Claro que o representante do Ervedal não aceitou a nova proposta do líder do movimento porquê,

(ó Deus!) seria justo ficar o Ervedal subalterno da sua anexa ?...

E a iniciativa murchou, como aconteceu às rosas de Malherbe.

Mas isto contamo-lo de cor como uma curiosidade no processo de promoção da povoação de Vila

Franca, porque o nosso objectivo principal é historiar o que está realizado, e já é muito!

Esse muito é a prova, com várias etapas, que vêm sendo ganhas sistematicamente pelo povo de Vila

Franca graças ao saber, à persistência e ao amor clubista, em termos velocípedes, do orientador da

equipa, bem demonstrado ao longo da corrida, com vista a esta vir a conquistar os melhores

resultados.

A primeira etapa era a da água, que já vinha muito de trás, envolvendo muitas pessoas e uma

instituição fundada talvez com o fim principal de acabar com a carência crónica e alcançar esse bem

precioso, com abundância e qualidade.

Referimo-nos à Comissão de Melhoramentos de Vila Franca, à cuja acção na 4ª Parte, faremos mais

larga referência.

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A Comissão foi fundada precisamente para tentar suprir carências e preencher o vazio político

crónico com o qual a povoação se debatia nos momentos mais decisivos para dar um passo em

frente na senda do progresso desejado.

Mesmo assim o marasmo, o desinteresse pela coisa pública era demasiado evidente para não

preocupar aqueles que verdadeiramente se interessavam e interessam pelo futuro da nossa terra.

A emigração, no seu vaivém característico, leva para fora os filhos mais válidos, mas também é ela

que fornece à Comissão nos momentos cruciais os valores necessários à prossecução dos seus fins

estatuários.

Mas se era assim antigamente, hoje as regras do jogo político são muito diferentes e neste

particular pensamos que a Comissão se quiser continuar a ser a interlocutora do povo com as

autoridades, terá de modificar algo na sua filosofia de actuação.

E pelo que sabemos, isso já aconteceu.

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VII

O HOMEM CERTO NO MOMENTO CERTO

Sem a mudança de regime operada em 25 de Abril de 1974 e sem o Dr. António Marques Frade,

com residência em Coimbra, atento às transformações que os primeiros governos da “segunda

república” deliberaram introduzir no mundo rural, face ao seu manifesto atraso em relação às vilas

e cidades, a etapa da água, passe a expressão, não seria vencida com a mesma facilidade e nem o

saneamento básico viria por acréscimo valorizar a feliz intervenção do nosso ilustre conterrâneo na

resolução dessa velha aspiração da sua e nossa terra. Batendo à porta de todas as pessoas

influentes suas amigas, espreitou todas as oportunidades e não poupou energias nem a bolsa para

conseguir o almejado fim.

Desse modo foi-se a nossa terra pondo a par das localidades dotadas de melhoramentos essenciais

inerentes aos direitos e dignidade das respectivas populações, adiantando-se até das da vanguarda,

relativamente ao saneamento básico.

Mas as ruas arcaicas, sendo bastantes de terra batida e seixos rolados e umas tantas calçadas à

portuguesa em mau estado, com a abertura das respectivas valas tornaram-se praticamente

intransitáveis, cobrando-se dos moradores um preço elevado mais no Inverno que no Verão

durante anos a fio. Por fim as valas puderam ser tapadas e após mais uma pausa para retemperar

forças, iniciou-se nova etapa, não para repor o piso das ruas e largos como estavam antes, mas para

lhes dar nova feição, cómoda e asseada, graças à ajuda da Câmara Municipal de Oliveira do Hospital

da presidência do Dr. António Simões Saraiva, que deste modo se dispunha a premiar o esforço do

povo de Vila Franca na resolução dos seus mais prementes problemas, o da água e o das ruas.

Com a água a correr nas torneiras dumas centenas de casas, os canos de esgoto a funcionarem

eficazmente, as ruas quase todas modernamente calcetadas, o que faltava ainda ao povo de Vila

Franca para estar satisfeito? Por exemplo:

Que a água não faltasse. Porém, a veia do Outeiro de Santa Margarida, a galinha dos ovos de ouro,

quase secou, passado pouco tempo. Os antigos tinham uma crença arreigada na potencialidade

desta veia, ao ponto de imaginarem que o seu término era em Alcabideche, que outrora abastecera

a urbe de Coninbriga e hoje ainda move alguns moinhos da vila de Condeixa.

A batata quente, como soe dizer-se, passou então para as mãos da Câmara.

Esta, passados alguns anos, confirmada a insuficiência do caudal, desceu até à margem direita do

Rio Seia, à Quinta da Baleia, hoje propriedade do Dr. Francisco Antunes, distinto clínico de Lagares

da Beira, uma vez que o abastecimento de água a partir da barragem da Senhora do Desterro

enguiçou, depois de concluída a adutora até ao limite do concelho de Seia na freguesia de

Travancinha, por falta de entendimento entre as duas Câmara. Ao que julgamos, ainda não se sabe

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se foi a opção mais acertada, porque a ribeira, quase seca no Verão e as suas águas estão poluídas a

tão alto nível que a praia fluvial que se fez a sul do Ervedal, deu em águas de bacalhau ou, quiçá, de

azeitonas, acusando-se disso as descargas de efluentes que as fábricas de Vodra fazem na ribeira,

desde há anos.

Sempre pensámos que a Câmara se voltasse para o rio Mondego, com maior caudal e por enquanto

menos poluído. Talvez há meio século o Governo mandou fazer um levantamento das suas

potencialidades energéticas, tendo os técnicos que elaboraram o respectivo estudo, vislumbrando

a necessidade de ser construída uma barragem perto do Castro para abastecer as povoações

limítrofes já então muito carenciadas de água, aparecendo no mapa que vimos, com o nome de

Barragem do Ervedal.

Desse projecto nasceria unicamente a Barragem da Aguieira, entre as várias que foram então

previstas.

Na altura entusiasmámo-nos com o projecto, como qualquer comum leitor dos jornais em que o

relatório foi publicado, com gravuras e tudo, mas hoje pensamos que talvez isso tivesse sido mau

para a arqueologia e outras riquezas que envolvem as povoas do Vieiro e Vale de Ferro, se as

mesmas ficassem submersas. O que com certeza iria acontecer, segundo a leitura que, então

fizemos, do referido mapa. Mas como se trata de um problema de âmbito nacional competia e

compete ao Ministério das Obras Públicas a decisão de agir de forma mais consentânea com os

interesses da região e do País.

Porém, parece-nos que o concelho de Oliveira do Hospital teria muito a ganhar com a construção

da dita Barragem, mau grado ficar submerso algum do seu solo com o valor pré-histórico por

avaliar.

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VIII

COMO É QUE A CRIAÇÃO DA FREGUESIA DE VILA FRANCA DA BEIRA PASSOU DE

REMOTA ASPIRAÇÃO A REALIDADE TANGÍVEL MAIS CEDO DO QUE SE CONTAVA?

A situação privilegiada que o Dr. António Marques Frade desfruta nas tertúlias académicas de

Coimbra veio mais uma vez ao de cima, e a reflectir-se no progresso da sua terra berço. A sua

militância permite-lhe aproveitar-se do bom momento político que o País atravessa para organizar

metodicamente o processo de candidatura de Vila Franca a sede de Freguesia. A tarefa

apresentava-se eriçada de espinhos. Citamos alguns:

1. Vila Franca estava ligada à freguesia do Ervedal há 800 anos;

2. Apesar de ser demograficamente mais importante que a sede, não tinha voz activa nos órgãos

autárquicos;

3. Distava pouco mais que dois quilómetros da Ervedal;

4. Só podia contar consigo para formar Freguesia;

5. Todas as tentativas anteriormente feitas goraram-se antes de formalizadas;

6. Alguns recursos humanos, económicos e sociais situam-se extra-muros embora tivesse o

suficiente para ser independente, com a chamada “prata da casa”, intra-muros.

Ante este quadro de dificuldades, de modo nenhum exaustivo, julgam que era fácil conseguir

arranjar um homem para aglutinar as vontades, o querer de Vila Franca a candidatar-se à

independência administrativa?

Todos os Vilafranquense sabem que não, porque entre eles havia pelo menos alguns que pensavam

e diziam que era melhor continuar como antes.

Quem não se assustou com os obstáculos foi o Dr. António Frade. Ele já então sabia como torneá-

los, que não estava sozinho nesta nova etapa e para vencer basicamente precisava do apoio da

Junta e Assembleia de Freguesia do Ervedal, apoio que não lhe foi negado, porque na Presidência

da Junta estava a Sr.ª D. Esmeralda Pombo Albuquerque, que na legislatura anterior tinha presidido

a Assembleia, revelando-se em ambos os cargos extremamente simpática e justa quanto às

pretensões de Vila Franca, talvez por verificar inteligentemente que esta não lhe pedia nada a que

não tivesse direito, e Portugal era um Estado de Direito.

Outra figura do Ervedal que o Dr. Frade se orgulha de ter do seu lado neste e noutros momentos

decisivos para a resolução dos grandes e dos pequenos problemas de Vila Franca, é o Dr. António

Simões Saraiva, que durante doze anos foi presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Hospital

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onde conquistou uma posição nada fácil de igualar, dispensando-lhe como autarca e amigo apoio

indefectível ainda que por vezes tivesse de arrostar com a incompreensão, também natural da

Freguesia do Ervedal, o Prof. Dr. César Oliveira, de Fiais da Beira, sendo assim o terceiro a

desempenhar a presidência da Câmara no último meio século. O primeiro foi o visconde do Ervedal,

que deixou o seu nome ligado à construção do troço da estrada do Ervedal ao Seixo, enguiçado

havia várias décadas.

Na definição dos limites da nova Freguesia, por falta de acordo e da urgência burocrática de ultimar

o processo a apresentar na Assembleia da República, foram lamentavelmente ignorados dois

factores importantes em prejuízo de Vila Franca, o primeiro geográfico e o segundo histórico ou

atávico.

Porém em vez duma correcção equitativa, aconteceu que, a pedido do Ervedal, Vila Franca cedeu

ainda uma pequena faixa de terreno, que inclui os moinhos da Ponte do Salto, depois de aprovada

pela Assembleia da República, a respectiva divisão.

Peças fundamentais do processo de autonomia:

1 - Memória descritiva da área abrangida pela nova divisão administrativa

2 – Fotocópia do extracto da Carta Militar em cuja parte central a mesma foi tracejada

3 – Lei nº 69/88 de 23 de Maio relativa à criação da Freguesia de Vila Franca da Beira, do concelho

de Oliveira do Hospital, aprovada em 11 de Março de 1988 pela Assembleia da República,

promulgada em 29 de Abril de 1988 pelo Presidente da República e finalmente referendada em 6

de Maio de 1988 pelo Primeiro-ministro do Governo.

A freguesia que pretendemos criar, conforme representação cartográfica anexa, ficará delimitada a

Sul, pela margem direita do Rio Seia, desde a Ponte do Buraco até à Ponte do Salto.

Daqui em direcção ao Poente, até ao primeiro caminho que dá acesso ao Outeiro da Burra, nas

propriedades rústicas das Lapas, Donas Marinhas e Sobreirinho. Daqui, pelo mesmo caminho do

Outeiro da Burra, mais para Poente até à E.N. nº 231-2, até ao km 26,4.

Ultrapassando a E. N. entramos na estrada antiga, Ervedal da Beira, Vila Franca, até ao cruzamento

que dá acesso ao caminho do Outeiro do Viso. Daqui segue-se pelo caminho das Baiças até ao

cruzamento da Cova da Lebre.

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Continuando em direcção ao Poente, entra no caminho que dá acesso ao Vale Carvalinho

terminando na propriedade de Herdeiros de Bernardo Marques Antunes. Com o mesmo rumo a

Poente, através das propriedades de Herdeiros de Manuel Maria Ribeiro, António Rodrigues de

Oliveira e António Escada, atinge a margem direita do Ribeiro da Arca. Sempre na mesma direcção

e tendo como limite a margem direita para a Póvoa de S. Cosme, no término da propriedade Cerca.

Deste ponto e em direcção de Poente para Norte, entra no caminho do Vale da Flosa até ao

cruzamento no caminho que dá para a povoação de Vale de Ferro, cruzamento este também

conhecido pelo Largo do Senhor das Almas. Deste cruzamento segue finalmente até ao cruzamento

da Bucideira que dá ligação para Vila Franca e Seixas da Beira.

Partindo de Norte para Nascente, no cruzamento da Bucideira, segue a linha do limite da Freguesia

de Seixo da Beira, até à Ponte do Buraco a Sul.

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EXTRACTO DA CARTA MILITAR DOS S.C.DO EXÉRCITO

Nº 211 – ESCALA 1 / 25000

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LEI Nº 69/88 DE 23 DE MAIO

- CRIAÇÃO DA FREGUESIA DE VILA FRANCA DA BEIRA, NO CONCELHO DE OLIVEIRA DO HOSPITAL –

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Nota:

Devemos ao nosso conterrâneo e amigo, Dr. António Marques Frade, fotocópia do processo da

elevação da nossa terra a Freguesia.

Dele extraímos, com a devida vénia, os elementos necessários à elaboração da presente nota

explicativa, abaixo mencionados:

De harmonia com o Decreto-Lei nº 11/82, de 2 de Junho, foi requerido ao Presidente da Junta de

Freguesia de Ervedal da Beira parecer sobre a criação de uma Freguesia nesta localidade, por ser

uma antiga e legítima aspiração dos seus moradores.

O respectivo requerimento foi assinado por 127 eleitores / moradores, com data de 11 de Agosto

de 1986.

Sobre o mesmo se pronunciou a Assembleia de Freguesia, como consta da sua Acta nº 32 de 25 de

Outubro de 1986, em que foi aprovado por 4 votos a favor, 2 contra e 2 abstenções.

A 18 de Agosto de 1987 a Câmara de Oliveira do Hospital deliberou apoiar a pretensão de Vila

Franca e solicitar ao Governo Civil de Coimbra o parecer e a indicação da tramitação do processo.

A Assembleia Municipal, a 26 de Outubro do mesmo ano, deu o seu parecer favorável.

Segundo certidão passada pela Junta de Freguesia do Ervedal, o número de eleitores era de 524 em

1982 e 551 em 1987.

A pedido da mesma Junta de Freguesia a Câmara Municipal de Oliveira do Hospital mandou dois

funcionários seus confirmar os limites geográficos da nova Freguesia composta somente da

povoação de Vila Franca.

Por ofício nº 2755, de 18 de Novembro de 1987, a Câmara envia, por fotocópia, o processo da

criação da Freguesia ao Presidente do Grupo Parlamentar do PSD na Assembleia da República,

solicitando desta a melhor atenção.

Na realidade não foram baldados os esforços feitos ao longo deste processo, já que a 23 de Maio de

1988, a Assembleia da República dava o seu veredicto à criação da Freguesia de Vila Franca da

Beira, conforme fotocópia da Lei nº 69/88, com a qual o povo de Vila Franca viu satisfeita uma

velha e legítima aspiração.

A listagem de actividades apensa ao processo é disso a melhor prova, e embora algumas aí figurem

como mero ornamento, a mesma deu jus à pretensão de Vila Franca junto da Assembleia da

República. Nela se dá conta das seguintes indústrias, serviços e comércio: fábrica de pólvora e

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depósito de dinamites; tratamento de minérios; fábrica de serração de madeiras; de queijo da

Serra; carpintaria; serralharia civil; cooperativa de extracção de resina; oficinas de reparação de

electrodomésticos; de velocípedes com e sem motor; alambiques; teares de cobertas regionais; três

escritórios de estudos e projectos; vários estabelecimentos comerciais; minimercados; cafés; casa

de pasto e dormidas; sapataria; retrosaria; relojoaria; barbearias; electricistas; canalizador; posto

de farmácia; consultório médico; agentes de seguros; escritório de contabilidade e gestão de

empresas; automóvel de aluguer; construção civil; etc.….

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IX

A SEDE DA JUNTA DE FREGUESIA

Ainda não se tinha atingido os últimos ecos da vitória alcançada com a elevação de Vila Franca a

freguesia e já uma Comissão ad hoc incumbida de encontrar um terreno adequado ou casa onde se

pudesse instalar a sede da Junta, dava os primeiros passos no sentido de solucionar o novo

problema que se punha à Comissão Instaladora.

É do conhecimento geral que Vila Franca não é costume em determinadas circunstâncias que seja o

estado a dar o pontapé de saída nas questões cuja colocação esteja ao alcance do povo ou de quem

o represente.

Igualmente, toda a gente sabe quão difícil é encontrar alguém que queira vender um terreno, ainda

que, como no caso presente, se destine à colectividade, ao bem comum.

Assim, a Comissão ad hoc partiu para a sua missão com estas duas premissas bem presentes, com a

certeza de que casa ou terreno só seriam conseguidos puxando os cordões à bolsa. Por isso, é que,

os Fonseca, e, os Escadas foram um dia obrigados a expatriar-se construindo em Aldeia Formosa e

no Ervedal, as suas fábricas realizando um sonho que lhes era muito caro e valorizaria a terra! Ainda

recentemente um cidadão belga vindo gozar férias a Vila Franca ficou tão satisfeito com a

hospitalidade que aqui veio encontrar que quis comprar um terreno para construir a sua casa, não

encontrou quem lho vendesse. Mas não desistiu, e adiante, na periferia do Ervedal, num bonito

local à beira da estrada, alguém lhe vendeu o terreno onde construiu uma encantadora vivenda!

Passado algum tempo apareceram os herdeiros de Manuel Martins, a quererem vender a casa que

este mandara construir ao fundo da povoação no regresso do Brasil na década de vinte. Porém,

depois do fecho o negócio alguém se intrometeu obrigando lamentavelmente a Comissão a

esportular umas centenas de contos a mais do que inicialmente fora acordado entre ambas as

partes.

E o prédio lá está em adiantada fase de adaptação às novas funções, graças ao fundo conseguido

anteriormente com os dinheiros destinados a fins humanitários, com o intuito de ajudar os jovens e

idosos, passando por consensos passando para o cofre da Junta por esta assumir no campo social e

filantrópico fins idênticos.

Nesta, como em tantas outras ocasiões, não vale tanto o que se dá, como o amor com que se dá.

No entanto, não seria justo deixar de salientar que se não fosse a voltosa dádiva de Manuel Escada

Almeida e subsequentes ajudas dadas por António Garcia, de Vila Nova de Gaia, e D.ª Docilia

Monteiro Escada Fontes, o fundo não chegaria para cobrir o custo do prédio e quintal anexo, nem

sobrava como sobrou para imediatamente se iniciarem as obras de restaura e adaptação do imóvel

em adiantado estado de degradação, pois há muito que estava desabitado, processando-se as

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mesmas ao ritmo que os recursos materiais e humanos permitia, sendo, neste particular de justiça,

realçar a valiosa colaboração e orientação dos trabalhos que deu o Eng. Manuel Ribeiro de Almeida.

Valiosa foi também a carolice dos actuais membros da Junta, Artur Tavares, António Almeida e José

Carvalho, ainda antes da sua eleição. Como membros da Comissão fabriqueira foram incansáveis.

Como atrás se disse, o povo de Vila Franca nunca está à espera que outrem venha dar o pontapé de

saída. Mas seria estultices da sua parte não solicitar o necessário apoio material e institucional às

autoridades concelhias em primeira-mão, para que aquelas façam chegar à sua débil voz junta das

instâncias distritais e nacionais.

Foi o que fez e é futuramente o que sempre fará, pois é um povo trabalhador, ordeiro, honesto e

voluntarioso que quer prosperar e sentir-se orgulhoso de viver num cantinho de uma fértil

província, portuguesa de lei, que vê, a leste a Serra da Estrela com as suas neves; a oeste, Caramulo

com a sua tristeza; ao sul o Buçaco de gloriosa memória e de mística tradição. (in Mário, de A. Da

Silva Gaio).

Sede da Junta de Freguesia de Vila Franca da Beira

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74

X

A ANTIGA CAPELA DE SANTA MARGARIDA

A antiga Capela de Santa Margarida datava de tempos imemoráveis, segundo o Novo Tombo da

Igreja de Santo André do Ervedal.

Situava-se no Largo onde hoje se ergue um cruzeiro de granito, no cruzamento de quatro ruas no

cimo do Povo.

Era uma construção modesta, tanto no tamanho como na arquitectura. A porta principal, com

soleira, ombreiras e verga curva em granito rosado, de grão fino, nem grande nem pequena, abria

para um patamar lajeado, semi-circular com três ou quatro degraus acima da rua virada a sudoeste.

O primeiro destes estava desgastado pelas rodas dos carros de bois.

Do lado da Carreira erguia-se o campanário, ao nível do telhado, com um pequeno sino (sineta). A

escada de pedra teria mais dois degraus para se atingir o campanário. Ao fundo a sacristia cujo

lajeado estava deteriorado.

Numa das ombreiras tinha a data de 1779 que devia referir-se a obras de restauro, os algarismos

eram toscos e meio sumidos. A Capela de Santa Margarida já existia em 1721.

Em 1905 o tecto ameaçava ruína, e já então a gente da povoação desejava instalar nela uma escola.

No dia 19 de Novembro a imagem de Santa Margarida foi retirada do altar e transferida

processionalmente para o novo templo, de inovação de Nossa Senhora da Conceição. Desactivada,

não voltaria a ser o que foi nos tempos antigos, mas continuaria a ser útil ao povo que a mandou

edificar, durante mais 50 anos. Primeiro como escola primária, depois como sede da União

Desportiva e Tuna Vilafranquense.

Em 1964 a sua demolição gerou muita polémica, porque entendiam uns que as suas pedras não

deviam ser aplicadas em construção profana, mas antes em nova Capela a erguer no Outeiro de

Santa Margarida, onde segundo a lenda a Santa tinha aparecido, outros que as pedras deviam ser

vendidas, revertendo o seu produto em benefício da construção da nova sede da União Desportiva

e Tuna Vilafranquense, como de facto aconteceu.

Valiosa opinião está contida no parecer solicitado pelo Bispo, D. Manuel Correia de Bastos Pina, ao

Reverendo Arcipreste do distrito, para apreciação do competente pedido de construção da nova

Capela de Vila Franca, parecer integralmente transcrito no capítulo seguinte e que se identifica com

a opinião dos que defendiam o aproveitamento das pedras na edificação da nova Capela a

implantar noutro local.

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XI

CONSTRUÇÃO DA NOVA CAPELA,

JUSTIFICAÇÃO

Em 1875 – palavras do pároco Mamede Pães da Cunha contidas no Novo Tombo da Igreja de Santo

André – tomou-se a deliberação de se construir uma capela maior e em melhor local, e por isso se

dirigiu ao prelado da Diocese o seguinte requerimento:

“Exmº Senhor:

Há na povoação de Vila Franca, freguesia do Ervedal, deste Bispado de Coimbra, distante da matriz

três quilómetros, uma Capela, dedicada a Santa Margarida, de onde se hão ministrado o Santo

Viático aos enfermos, e onde aquele povo ouve missa nos dias santificados, dita por capelão seu.

Esta capela não comporta actualmente um terço da população do lugar, que excede já os

novecentos indivíduos. Os habitantes daquela povoação pretendem edificar uma capela maior e em

melhor local, prontificando-se a orná-la, paramentá-la e a velar por sua decente conservação, e

para ajuda do custo pretendem vender o edifício daquela depois de transferidos todos os

objectivos pertencentes ao culto.

P. a V. Ex.ª lhe conceda a devida licença, encarregando o seu Pároco da escolha do local e direcção

da obra.

E. R. Mce.”

Este requerimento foi por sua Ex.ª remetido ao Ver. Arcipreste (….), o qual deu a seguinte

informação:

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“Parece-me justa a pretensão dos habitantes de Vila Franca, porque a população tem crescido

muito, e decerto não cabe dentro da capela, nem esta se pode acrescentar por falta de espaço, que

está cercada de casas e da rua pública, bastante pantanosa no Inverno. Não me parece porém

decente que seja vendido o edifício da capela para usos profanos, mas que o terrado dela, a todo o

material seja empregado na construção da nova. Os habitantes são francos e piedosos e capazes de

levar a cabo com perfeição a obra que encetarem.

Lagares, 6 de Junho de 1875

O Arcipreste,

António Afonso Borges Garcia

DESPACHO:

Deferido

Coimbra, 24 de Fevereiro de 1876

Manuel, Bispo – Conde (1)”

Como se vê, entre a data de informação do arcipreste e a do despacho do bispo medeiam quase

nove meses, os suficientes para a gestação de uma criança, mas demasiado para se deferir um

requerimento, mesmo naquela época.

O relato do Novo Tombo é tão claro e conciso, que por ele ficamos a conhecer os principais factos

em que se envolveram pároco e paroquianos na construção da Capela, seguindo-o passo a passo:

“Pouco tempo depois instituiu-se uma comissão composta do Prior da freguesia e dos principais

habitantes da povoação. Esta, de acordo com todos os habitantes deliberou vender, como de facto

vendeu, vários pedaços de terreno do logradoiro comum, que renderam cerca de quatrocentos mil

reis, ficando depositário o principal e mais abonado da povoação, que tinha arrematado a maior

parte dos terrenos.

Em seguida procedeu-se a uma subscrição voluntária por todos os habitantes, cujo produto atingiu

quase outro tanto. (2) ”

Entretanto deve-se ter comprado o terreno para a Capela, porque houve logo divergências quanto

ao local escolhido, que protelaram o início das obras durante muitos anos, como se verá a seguir.

Apesar da forma com que apresentamos o assunto, seguimos par e passo o documento que nos

serve de base.

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Procuramos ser comedidos nos nossos comentários para não prejudicarmos as intenções do seu

autor, embora a opinião do povo nos meresse a maior consideração e respeito, se fosse possível

obtê-la na sua genuidade.

(1) – D. Manuel Correia Bastos Lima (1890-1919)

(2) – Embora não lhe refira o nome, sabe-se que o principal e mais abonado da povoação

era Sebastião Marques Antunes, o morgado, com quem o Prior não mantinha boas

relações como se depreende do tom sarcástico com que se lhe refere neste e noutros

passos da sua narrativa.

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XII

DIVERGÊNCIAS

“Restava dar-se inicio à obra – como se lê no Novo Tombo – mas por divergências entre a

comissão sobre o local, e mais ainda pelos obstáculos que foi apresentando o depositário, o

principal e mais abonado contribuinte – nada se fez no espaço de muitos anos! ”

De facto o local, segundo a informação oral que retivemos, não agradava a muita gente por ser

uma floresta de carvalhas e castanheiros, onde à noite se acoitavam os lobos na mira de

apanharem uma ovelha tresmalhada. Contava-se que uma bela tarde foi visto um a passear na

rua conhecida por estrada nova, então povoada apenas por cinco ou seis moradores, um dos

quais era o ferrador, que na circunstância arremessou uma ferradura que tinha na mão, para

assustar a fera, afugentando-a.

Das nossas recordações de infância, consta que, em 1876, os nossos avós paternos mudaram de

casas, vindo das proximidades da Capela de Santa Margarida para perto do local onde devia ser

edificada a nova Capela. A prole era numerosa, três rapazes e quatro raparigas. Estas, no dia das

mudanças, pareciam Madalenas arrependidas, chorando por “irem para tão longe, para um

sertão, onde não havia vizinhos” – diziam lamuriando-se.

Portanto, não seria difícil ao cabecilha do movimento de descontentes, o morgado, conseguir

adeptos para a sua causa, só que esta era indefensável, face ao poder que o Pároco retinha,

credenciado para escolher o local e dirigir a obra.

Seria, na altura bem escolhido, o local? Transportando-nos à época, talvez sim, talvez não. Hoje,

volvidos 114 anos, diríamos que foi bem escolhido, se tivesse o dobro e a Capela fosse maior, o

que já na época a população de Vila Franca aconselharia se houvesse coerência de critérios.

Voltando ao relatório, verifica-se que na realidade a situação piorava de ano para ano.

O Novo Tombo caracteriza-a nos seguintes termos:

“A festa de Santa Margarida não se tornou a fazer na antiga Capela, e pior que isso, esta esteve

a ponto de ser suspensa.”

Se interpretamos bem estas palavras, a Capela esteve na iminência de ser interdita!!!

Ainda bem que houve o necessário bom senso para se evitar essa situação extremamente

desagradável.

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XIII

RELAÇÕES DO PÁROCO COM A POPULAÇÃO

Por culpa do Pároco?

Por culpa do Povo?

Talvez por culpa de ambas as partes, a situação degradava-se de ano para ano e o projecto que

devia ser um traço de união transformou-se em traço de desunião.

O Pároco entendia que a Capela antiga não tinha as condições mínimas necessárias para que a festa

em honra da padroeira se celebrasse com dignidade que o culto exigia, e usava esta arma talvez

mais como forma de pressionar o povo a aceitar as suas regras de jogo do que por zelo apostólico.

O Povo, esse estava cansado, farto do autoritarismo farisaico do pastor, e entendia que só por birra

é que deixava venerar a Santa na única Capela que sempre tivera e continuaria a ter. Portanto, era

preciso acabar com a injusta situação de guerra-fria em que há longos anos se vivia, solicitando que

a questão fosse resolvida em tribunal eclesiástico de segunda instância.

O Novo Tombo, única fonte que temos para analisar o processo diz o seguinte:

“Em 1885 alguém da família mais abastada – a do depositário – se lembrou de levantar conflito

entre o Pároco e os habitantes daquela povoação, prometendo-lhes fazer-se a festa naquele ano e

que havia de mostrar ao Pároco quem governava na festa – se era o povo ou o Pároco.”

Reparem no jogo de palavras e no tom irónico com que o relator N. T. se refere ao requerimento

que lhe foi dirigido:

“Dirigiram (dirigidos pelo tal pimpão) um requerimento ao Pároco, pedindo a festa para não acabar

o costume de honrar a Santinha, etc.… (Não fica trasladado o requerimento, assinado só por seis!!!

Por não ter ficado cópia.) ”.

O Pe. Mamede Pães da Cunha não se dignou trasladar o requerimento assinado só por seis, “por

não ter ficado cópia”, mas dignou-se mostrar qual foi a resposta que deu aos requerentes!...

Apesar de lamentar essa enorme falha, transcreve-se a resposta à petição dos representantes do

povo de Vila Franca, convencido que mesmo assim vale a pena; por ela poder-se-á avaliar da

inocuidade aparente do requerimento:

“É muito digno e muito justo que Deus seja louvado nos Seus Santos, mas é muito digno e justo que

o seja louvado do modo devido. Os signatários bem sabem que na indicada capela não se pode

celebrar festividades com a decência devida. Sem contarem com a afluência dos povos vizinhos

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muito bem sabem que a capela não comporta um décimo da população, que actualmente ali existe:

- 794 indivíduos de sacramento

- 348 de menor idade

- Total 1142.

Tendo os nove décimos de ficar na rua; e aqui que decência é que pode haver? A Capela pode,

quando muito servir para viaticar os enfermos, mas nunca para satisfazer os preceitos da Igreja e

muito menos para nela se celebrarem festividades. Portanto, enquanto se não deliberarem construir

a nova Capela, há tantos anos em projecto e para que têm os suficientes meios, não consentirei que

mais festividades se celebrem em Vila Franca. Têm a Igreja Matriz, venham cá celebrar a festa em

questão.”

O Pároco

Mamede Pães da Cunha

Não se sabe se por vontade dos signatários, se por indicativa do Pároco do Ervedal … o que é certo

é que, “O requerimento com a resposta foi em recurso mandado ao Exmº Prelado, que mandou a

informar ao Arcipreste, Ver. Snr. Agostinho Pires da Silva Azevedo Loureiro, da freguesia de

Travanca de Lagos, que sucedeu ao Honrado Prior de Lagares, António Afonso Borges Garcia.

Veio o Arcipreste ao lugar de Vila Franca a ver a Capela; não se sabe ao certo qual foi o informe que

deu, mas alguém houve que o viu, que foi favorável aos requerentes, pelo que contavam com a

festa.”

E os anos foram passando…

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XIV

INÍCIO DAS OBRAS

De 1875 a 1885 muita água passou por baixo das pontes antes que o Pároco e paroquianos se

entendessem.

Quanto mais avançamos na dissecação do documento que nos serve de base mais nos

apercebermos do fosso que existia entre as ideias defendidas pelo Pe. Pães Cunha e as

preconizadas pelo juízo seguro dos acontecimentos se conhecêssemos também o depoimento

popular, sem com isto queremos dizer que se duvida do carácter e honestidade do Pároco, mas sim

que pode ter sido traído pela paixão com que defendia o seu ponto de vista e ao vertê-lo para as

páginas do Novo Tombo, dar-nos uma imagem distorcida do que se passou entre ele e o Povo de

Vila Franca.

O exemplo disso está nas palavras seguintes:

“Fosse qual fosse o informe, é certo que o Exmº Prelado não desautorizou o Pároco:

Decorreu mais um ano: os habitantes de Vila Franca ficaram sabendo que o Pároco é Bispo na sua

freguesia.”

Ora, em nosso entender, se não tivesse personalizado tanto o diferendo que vinha mantendo com

o povo havia mais de dez anos, as palavras que se seguem teriam menos ênfase:

“Acabou a Comissão primitiva, e só dois – Manuel Fernandes da Fonte e António Borges Diniz – com

o Pároco, se encarregaram de promover a construção da nova Capela.”

Isto, pelas nossas contas, deve-se ter passado ainda em 1886 e neste ou no seguinte começou as

obras em força.

“Com efeito – escreve, ufano, o Ver. Pe. Mamede Pães da Cunha – removidos os obstáculos e

vencidas muitas dificuldades, lá está já uma capela elegante e espaçosa, com a capacidade

excedente à de muitas Igrejas, estando já concluída de paredes, o corpo e a capela-mor, para o que

de boa mente tem concorrido toda a povoação e algumas pessoas de fora dela, esperando-se com

bom fundamento, que em breve se acabe – Deus conserve a saúde aos dois principais agentes.” A

seu tempo se continuará a história desta Capela.

O Pe. Mamede Pães da Cunha era senhor duma forte personalidade. Em épocas de crise, como foi a

duma grave epidemia, no ano de 1857, a sua capacidade organizativa foi muito útil à freguesia do

Ervedal e ainda à Capital ao ter-se promovido uma subscrição a favor dos seus habitantes vítimas

da febre-amarela. Em Vila Franca foram encarregados de fazer a recolha dos donativos Sebastião

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Antunes e António Frades Escadas, coadjuvados pelo secretário da Junta, Lourenço Marques

Gouveia. (in mensário Boa Viagem, de Agosto/Setembro de 1964).

Habituado como estava às duras campanhas, apesar da avançada idade que então já devia ter, não

era criatura para se deixar conduzir, mas para conduzir, por isso à que bastas vezes se chocou com

a oposição que os discolos, como ele os classificava, lhe moviam quando discordavam das suas

resoluções, como aconteceu com a aquisição da tribuna, que no Novo Tombo se relata da maneira

seguinte:

“Em 1888, estando a Capela (corpo e capela-mor) concluída tratou-se da tribuna; para mais

economia de dinheiro e de tempo pediu-se por intervenção de José Tavares, escultor, de Aldeia das

Dez, homem honrado, à Exmª Condessa de Valongo de Cea uma tribuna antiga que aquela senhora

tinha em uma capela de Oliveira do Conde, e que de boa-vontade cedeu, com a qual o povo de Vila

Franca ficava muito bem servido no entender de José Tavares, pessoa competente.

Reaparecem porém os díscolos, por cujas sugestões rejeitou o povo de Vila Franca a oferta, e

ajustaram com um sujeito de Lagares uma tribuna nova por 20.000 reis que ainda nesta data

(Março de 1991) está por fazer, e nunca se fará, porque se entregaram nas mãos dum intrujão.

O Pároco deixou de pertencer à Comissão, deliberou a não mais tratar da Capela, mas sendo em

1890 invadida a população da epidemia de bexigas, que bastantes vítimas fez, prometeu fazer uma

oferta a S. Sebastião e a Santa Margarida. O Pároco para andar coerente, não deixou celebrar esta

festa na capela antiga, e por não se dizer que ele se opunha a actos religiosos e aos votos do povo,

conseguiu do Exmº Prelado a devida licença para em altar provisório, se celebrar, como, de facto se

celebrou, na capela nova em Agosto de 1890.”

Aproximava-se do fim a velha questão em que o Pároco e o povo estiveram envolvidos, concluindo-

se assim “que há males que vêm por bem” ou que “Deus escreve direito por linhas tortas”.

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XV

O PÁROCO PEDE LICENÇA PARA BENZER A CAPELA

Depois da epidemia de bexigas e da consequente celebração duma festa na nova Capela em altar

provisório, como ficou relatado, as relações entre o padre e os habitantes de Vila Franca, deixaram

de ser tensas, porque no mês de Dezembro desse mesmo ano de 1890, “atenta à demora da obra

da tribuna e não podendo o povo continuar a ouvir missa nos dias santificados na capela velha sem

grande irreverência requereu ao Exmº Prelado concedesse licença para se benzer a nova capela ”

nos seguintes termos:

“Exmº Senhores:

Em 1876 permitiu V. Ex.ª (documento junto) que na povoação de Vila Franca desta freguesia do

Ervedal, fosse construída uma Capela, aonde os fiéis daquele povo e vizinhanças pudessem ouvir

missa com mais comodidade para eles e mais reverência ao Culto Divino do que na antiga e mui

pequena ali existente. A construção da nova Capela agora, apesar de não estar de todo concluída,

acha-se com a conveniente decência para nela se celebrar o Santo Sacrifício da missa e mais

solenidades religiosas, e não podendo os fiéis, que ali concorrem, continuar a ouvir missa na antiga

Capela por ter de ficar de fora o maior número de pessoas, e por não haver a união moral, peço a V.

Ex.ª a devida licença para a bênção da nova Capela, que será dedicada à Virgem Nossa Senhora,

com o título de Imaculada Conceição.

P. a V. Exmª S. Bispo Conde deferimento.

E. R. Mce.

Ervedal, 16 de Dezembro de 1890

O Pároco

Mamede Pães da Cunha ”.

Licença

“Dom Manuel Correia de Bastos Pina por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica Bispo de Coimbra,

Assistente ao Sólido Pontifício, Conde de Arganil, do Concelho de Sua Majestade par do Reino.

Fazemos saber que tendo sido edificada a Capela da invocação da Imaculada Conceição do lugar de

Vila Franca, freguesia do Ervedal desta Diocese para os fiéis poderem nela assistir ao Santo

Sacrifício da missa, nos pediram licença para a sua bênção. Ao que atendendo concedemos licença

ao Verº Pároco da dita freguesia do Ervedal para que possa benzer a sobredita capela, a fim de nela

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se celebrar o Santo Sacrifício da missa e mais solenidades cerimónias recomendadas no Cerimonial

do Santo Padre Paulo Quinto e nas leis da Igreja, e achando-se a mesma capela com a decência

devida para nela se exercerem os actos religiosos. Desta bênção se lavrará o competente auto, que

será conservado no arquivo da freguesia para consultar.

Dada em Coimbra sob nosso sinal e selo de nossas armas aos dezassete dias do mês de Janeiro do

ano de mil oitocentos e noventa e um.

Eu, Francisco de Almeida Quadros, secretário da Câmara Eclesiástica a subscrevi.

Manuel, Bispo Conde ”

“Recebi a licença que acima ficou transcrita, marcou-se para o dia 2 de Fevereiro de 1891 a bênção

solene, com dedicação à Virgem Nossa Senhora, com o título de Imaculada Conceição, cuja imagem

dada pelo devoto Sebastião Antunes Diniz, solteiro, de Vila Franca, se benzeu na mesma ocasião,

seguindo-se missa solene a expensas do mesmo devoto.”

Mais se diz no N. T. que “ficou a capela habilitada para se celebrar missa, levantando-se um altar

provisório no lado esquerdo, ficando desembaraçado o lugar para a tribuna (esta ficou-lhe

atravessada na garganta como um espinho), quando se faça, o que levará o seu tempo.”

Das cerimónias lavrou-se o seguinte documento:

Auto de Bênção

“Aos dois dias do mês de Fevereiro do ano de mil oitocentos noventa e um se procedeu à bênção da

nova capela de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, edificada na povoação de Vila Franca,

desta freguesia do Ervedal do Bispo de Coimbra, sendo na mesma ocasião benta também a imagem

da Senhora, e seguindo-se missa solene. Assistente o Pároco da freguesia Mamede Pães da Cunha, e

os clérigos Severino Esteves digo – digo – Francisco Esteves de Gouveia, coadjutor; Severino

Marques de Gouveia; Francisco Conde e Manuel da Fonseca, todos desta freguesia.

Para constar que se lavrou este auto, que assino.

O Pároco

Mamede Pães da Cunha ”

Depois deste auto o N. T. nada mais regista a respeito da capela de Vila Franca até ao fim do século.

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Só no ano de 1900, mas então já subscrita pelo novo prior, José Antunes Rodrigues, se torna a dar

nota das obras que foram lavradas a cabo pela Comissão Administrativa, presidida pelo referido

devoto Sebastião Antunes Diniz. Forrou-se a capela e de seguida iniciaram-se as obras da torre, a

qual ficou concluída no dia 30 de Julho de 1902.

Dado que o Pe. José Antunes Rodrigues que a nossa geração ainda conheceu muito bem, não

escrevia com a mesma clareza que o seu antecessor, obriga-nos a um maior esforço para que o

pouco que escreveu sobre a capela, conste desta memória, como não podia deixar de ser.

E após este parêntese, baseando-nos nas palavras, fica-se a saber que todas estas obras foram

feitas a expensas do povo, com realce para a acção e iniciativa de Sebastião Antunes Diniz, que

além de abonar sem levar juros um ano a importância de 210000 reis, trabalhou e estimulou os

outros a interessarem-se vivamente pelo mesmo fim. Por tudo isso – lê-se em comunicação ao que

foi escrito pelo seu antecessor – eu, prior desta freguesia louvo os meus ditos paroquianos de Vila

Franca, especializando a Sebastião Antunes Diniz, provou que sempre se tem esmerado em

promover o esplendor do culto na sua terra.

As obras da torre importam em 517105 reis.

Para que aos vindouros conste, eu, José Antunes Rodrigues, prior desta freguesia lavrei este termo

aos trinta dias de Dezembro de 1902.

A nota seguinte e última respeitante à capela diz que:

“No dia dezanove de Novembro de mil novecentos e cinco foi trasladada a imagem de Santa

Margarida da sua capela por o tecto ameaçar ruína e a gente da povoação desejar aplicá-la para

uma casa de escola; foi mudada para a capela processionalmente.

O prior José Antunes Rodrigues ”

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ESCOLA PRIMÁRIA 1937

Alunos da escola primária de Vila Franca 1937.

Professor Carlos Nogueira

Alguns nomes de alunos que constam nesta foto.

Agostinho Fontes - António da Lídia - Manuel Germano - Estevão Filho - Álvaro do Canto - António

Dentes - António da Gazé - Armando Portugal - José Tanoeiro - António Serafim - Amadeu Carias -

Américo da Gazé - José dos Santos - Manuel Cintlo - António Fogueteiro - António Linhol - Amândio

Linhol - Gil Casca - Fernando Candonga -Fernando Germano - Amadeu Pêta - António Pêta - Manuel

da Luvegada - Gaspar da Saca - Agostinho Silva - Manuel Troleca - Américo Cialista - Nelson Portugal

- Cezar Seguro - Napoleão Seixas - João Malhado - Lucas da Lídia - Manuel Carias - Artur da Carreira

- Chiloque - Armando Balhalha - Botija - Fernando da Mata - Mário Sapateiro - José Escada -

Armando Cristiano - Aurélio Gaguiço – Firmino -António Tanoeiro - Aurélio - Albinito Chibita – Bispo

- Marreco - Virgílio Filho – Manduca - Zangarilho- professor Carlos Nogueira.

( Fotos e texto de Manuel Esteves Cardoso – blogue: http://vilafrancadabeiranomundo.blogspot.pt/ )

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Aproveitamos este ensejo para transcrever uma notícia que veio publicada no mensário Boa

Viagem nº 16, de Maio de 1962, como singela homenagem ao primeiro professor da escola primária

de Vila Franca:

Prof. João Emídio Gonçalves de Almeida

“Sexto aniversário da sua morte

Passou no dia 29 de Abril o sexto aniversário do falecimento do saudoso professor João Emílio

Gonçalves de Almeida. Homem de verdadeiro carácter, amou sempre a justiça e a verdade, dons

que o impuseram à consideração e estima de todos.

Odiava tudo e todos os que não seguissem o caminho da honra e do dever.

A sua vida familiar foi um modelo de personificadas virtudes.

A sua esposa, D. Maria de Jesus Torres, em sua memória mandou celebrar, como sempre, missa de

Aniversário, e fez larga distribuição de artigos escolares às crianças da escola de Vila Franca, onde o

bondoso Mestre exerceu, longos anos, a sua condigna posição social, tendo em cada aluno um

amigo; as crianças das escolas de Alverca da Beira, terra a que estava ligado pelos Santos laços do

Matrimónio, e pela escola dos Fiais da Beira, sua terra natal e termo da sua vida profissional.

Pela sua generosidade não foi esquecido o nosso necessitado Seminário (sim porque o Seminário é

nosso).

E que, corações como o do João Emílio Gonçalves de Almeida não morrem, mas vivem eternamente

porque eternas são as suas acções.”

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XVI

PARA QUANDO A PROMOÇÃO DA CAPELA A IGREJA?

Não é necessário ser católico para gostar da Capela de Vila Franca. Quando muito é preciso ser

Vilafranquense. Tão limpa, tão escarolada, dá gosto entrar lá dentro! Tão diferente da Capela que

conhecíamos desde meninos! Então era moda vestir as paredes de cal branca até para tapar

mazelas. Hoje que o granito cedeu a primazia na construção ao cimento e tijolo, já se vêem muitas

paredes de casas e Igrejas sem o revestimento de cal, para lhes restituir a feição antiga, rústica e

genuína.

Ainda nos lembra de os altares laterais não serem dourados, não sendo se um deles seria o

provisório em que se celebrou missa pela primeira vez na Capela nova em Agosto de 1890.

Sendo a Capela da Invocação da Imaculada Conceição como consta da Licença concedida pelo Bispo

Conde D. Manuel C. Basto Pina, a 17 de Janeiro de 1891, poder-se-á querer saber porque razão o

povo a designa por Capela de Santa Margarida. Ainda nos recordamos de em programas antigos

constar em letras gordas no alto da folha o seguinte: FESTAS EM HONRA DE NOSSA SENHORA DA

CONCEIÇÃO E SANTA MARGARIDA.

Toda a gente sabe quão grande é a veneração dispensada pelo povo a Santa Margarida. Enquanto a

sua imagem se conservou na sua primitiva capela, esta seria e bem designada por Capela de Santa

Margarida ou Capela Velha, mesmo já quando funcionava como escola primária.

A tradição sobrepôs-se à realidade histórica, que se não pode escamotear, porque na licença se diz:

“Desta bênção se lavrará o competente auto, que será conservado na arquivo da freguesia para

constar ” e desse Auto de Bênção de facto consta que “aos dois dias do mês de Fevereiro do ano de

1891 se procedeu à bênção da nova capela de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, etc.….”

Depois deste esforço que o povo de Vila Franca fez ao longo dum século, o melhor prémio que se

lhe poderia dar, agora que teve a consolação de ver a sua terra elevada a sede de freguesia

administrativa, era elevar a sua Capela a Igreja.

Mas, disse o Bispo D. João Alves, à Comissão que lhe foi fazer verbalmente o pedido, que a falta de

padres que se verifica na Diocese, o obrigava a fazer uma profunda e demorada reflexão antes de

dar uma resposta definitiva.

Então pessoa mais experiente do que as que fizeram parte da dita Comissão, o advogado Dr.

Francisco Faria, aconselhou o seu e nosso amigo, Dr. Frade, a reiterar o pedido por escrito, porque

desse modo se daria começo a um processo burocrático que a qualquer momento podia ser

consultado e até insuflado com ar novo.

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Posto e prática este concelho, o povo de Vila Franca aguarda confiante que surja a hora de lhe ser

feita justiça, tanto mais que ele sabe que o padre destacado para as freguesias do Seixo e do

Ervedal, pouco mais obrigações terá, praticamente serão as mesmas que agora já tem, com a

criação da freguesia religiosa de Vila Franca, e para esta povoação será motivo de muito regozijo

por ver assim completado o ciclo da sua promoção. Sem esse passo aparentemente simples é como

morar numa casa desprovida de vidros nas janelas; claro que se pode morar nela, mas com um

certo desconforto; claro ainda que fosse o Padre António Vieira a tratar este tema traria à colação

exemplos muito mais conveniente do que este, mas para o caso temos de nos arranjar com a prata

da casa e nem por isso deixarmos de pregar aos peixes, até sermos ouvidos. Roma e Pavia não se

fizeram num dia. Só que estamos atravessando uma época de mutações rápidas no campo político,

social e económico, que não deixarão de ter reflexos no campo religioso.

Para terminar este discurso, não encontramos melhores palavras que as que o Ver. Arcipreste de

Lagares, em 6 de Junho de 1875, escreveu quando teve de informar sobre a necessidade de se

construir nova Capela em Vila Franca: “Os habitantes são francos e piedosos e capazes de levar a

cabo com perfeição a obra que encetaram.”

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QUARTA

PARTE

USOS E COSTUMES

Cada terra com seu uso,

Cada roca com seu fuso.

A vida familiar do serrano defluía,

Pode dizer-se à lareira;

A social, se é legítimo crismar com

Este palavrão as relações do homem

A homem na sua base mais elementar

De convívio, nos serões, no adro,

No terreiro da fonte e à porta

Do forno. Logradoiros públicos.

Já Ferreira de Vasconcelos, no século

XVI, situava os seus bate-línguas

Populares, alcofas, escudeiros, meninas

Da trama, lacaios, pelo que diz respeito

Á cidade, à boca dos talhos e dos

Oratórios nas esquinas das ruas.

(Aldeia, Terra, Gentes e Bichos, pág. 12

Aquilino Ribeiro)

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I

VILA FRANCA, ESSA DESCONHECIDA

É Vila Franca, sob os vários ângulos que, desfocadamente, nos é possível mostrá-la aos que a não

conhecem, lugar a muitos títulos interessantes, inclusive do ponto de vista arqueológico,

etnográfico e demográfico por exemplo, mau grado e escassez de elementos de avaliação, relativos

aos primeiro e segundo pontos e quanto ao terceiro (1) ter hoje menos habitantes que já tinha há

cem anos, devido principalmente ao fluxo migratório ser bastante intenso desde fins do século XIX.

Embora a sua origem se perca na noite dos tempos, que tanto se pode reportar à pré-história como

à proto-história, somos levados a concluir pelo que observamos e deduzimos que sempre teve

existência modesta, não possuindo famílias nobres ou de grandes teres e haveres, nem instituições

antigas, grandes riquezas ou monumentos assinaláveis adentro do seu perímetro.

Sobre tal matéria parece-nos bastante elucidativo o que relativamente a toda a freguesia deixou

escrito o vigário do Ervedal, António Nunes Alves, no ano de 1721 “obedecendo à ordem que o

Illmº e Revmº Cabido da Sé deste Bispado de Coimbra” lhe enviou, de que transcrevemos o

seguinte:

“…

2. Nesta Igreja não há relíquia alguma, nem em alguma das Capellas acima nomeadas; & suposto q

há mais três Capellas nos lugares desta fregª., a saber: a de Stª Margarida em Vª Franca; a de S.

Dos. Nso Fiaes; a de S. Cosme e Damião na Póvoa de S. Cosme; nenhua dellas tem relíquia nem he

frequentada por milagres q nellas Deos tena feito athe agora q saiba.

3. Contando os meos freguezes pello rol q fiz o presente anno, achey serem outo centos e vinte e

nove entrando neste número os de menor idade.

Não há Mosteyro nem Hospital, nem Caza de Misericórdia, nem Reconhecimento nesta freguesia.…

… … …

8. Nem pela memória dos que se achão vivos, nem por tradição dos antigos, nem acho ter havido

nesta freguesia varão ensine em Virtudes, e letras, cujo nome merecesse ser escrito nos annaes.

….”

Aliás, o topónimo por que era conhecido na Idade Média, além do seu deprimente significado, a

que atrás tivemos ocasião de fazer referência, fez naturalmente supor que, em tempos idos, Vila

Franca foi lugar muito humilde, quiçá espezinhado por pessoas e animais, nas constantes correrias,

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que cristãos e sarracenos empreendiam nas lutas que travam entre si pela posse das terras da

Cordinha a que pertence desde os tempos imemoriais.

(1) – Com suporte nos assentos paroquiais, preparava a Dr.ª Delfina Esteves dos Santos a sua tese

sobre o movimento demográfico de Vila Franca desde 1558. Até ao presente, só não a concluindo

porque no ano lectivo de 1974/75 os alunos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,

foram dispensados da sua apresentação.

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93

II

O POVO QUE SOMOS

O nosso povo é o resquício daquele outro povo antigo que os Celtas, os Romanos, os Visigodos, e os

Árabes, só para citar os mais importantes ou mais conhecidos da história, aqui encontraram quando

se expandiram para fora dos seus países de origem na acção de “presidir a tudo o que foi criado e

dominar a terra ” (Génesis, I, 26).

As suas raízes mergulham na pré-história, como tentamos expor na primeira parte, referenciadas

estas por alguns monumentos do neolítico ainda existentes e outros que, a toponímia mantêm

vivos na memória do povo.

Anteriormente a esse período é que os arqueólogos encontrariam maior dificuldade em descobrir

pistas, devido à rarefacção de elementos denunciadores da existência humana neste nosso

território. No entanto alguns haverá ainda do paleolítico, só fragmentos… mas que deixamos de

boa mente aos entendidos não só para fazerem o levantamento e prospecção como para se

pronunciarem sobre a longevidade e relativo valor de tais resíduos arqueológicos, se forem

achados.

O percurso da nossa imaginação bifurca-se aqui, escolhendo nova via chamada antropologia para

prosseguirmos viagem, levando connosco poucos mas bons guias, com receio da aspereza do

caminho.

Corre nas veias do povo português sangue de várias origens ou etnias explicando diferenças físicas,

morais e temperamentais dos habitantes deste rectângulo é beira-mar plantado, lato sensu.

Nós, coabitantes da Cordinha, constituímos um desses vários clãs espalhados a esmo no espaço

compreendido entre o rio Mondego e o seu modesto afluente Seia.

Pergunta-se: Porque razão, com tantos séculos de existência Vila Franca não saiu da mediocridade?

Porque não se uniu nesse longo período de vivência histórica a Aldeia Formosa, ao Seixo e ao

Ervedal, pelo menos, formando uma cidade? Administrativamente o Ervedal foi no século XIX

também cabeça de concelho das freguesias de Seixo, Sameice e Várzea de Meruge (in Ervedal de

Outros Tempos), diga-se de passagem, mas em verdade nada se alterou por haver factores contra

os quais o poder do homem é incapaz de modificar o stato quo do seu universo.

E, passado esse curto período de euforia política, tudo voltou ao que era dantes: povos vizinhos, de

costas voltados uns para os outros, como se não tivessem objectivos comuns a defender, nem os

ligassem laços étnicos antiquíssimos. Quanto mais perto, mais longe! Santos de ao pé da porta não

fazem milagres.

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Ora, os homens de boa vontade têm o dever de combater esta tendência isolacionista, de criar ou

recriar a unidade, de tornar mais solidários uns com os outros os habitantes das diversas povoações

da nossa sub-região. Por exemplo: agora que há um único pároco para as três freguesias, porque

não celebrar aos domingos, alternadamente, missa na Igreja de Santo André, na ainda Capela de

Santa Margarida e na Igreja de S. Pedro, especialmente dedicada aos jovens?

Outra medida interessante, com perdão dos que pensem que estamos a puxar a brasa para a nossa

sardinha, era a construção duma escola secundária em Vila Franca que abrangesse as três

freguesias. Porquê? Porque Vila Franca situa-se no centro, dividindo-se assim o mal que a distância

representa para os alunos das freguesias do Ervedal e do Seixo.

Nesta tinha que intervir o Estado, mas outras medidas há em que os próprios habitantes podem e

devem tomar a iniciativa de se unirem e realizarem planos culturais e desportivos em benefício das

populações das três freguesias.

Embora a unidade dialectal seja quase perfeita em toda a sub-região, existem cambiantes vocálicas

no linguajar de terra para terra, de que vamos ser parcos em dar exemplos, mas em nossa modesta

opinião não a prejudicam antes a enriquecem. Contudo, até essas pequenas cambiantes fonéticas

às vezes eram os catalisadores das rivalidades próprias de povos vizinhos, quando as relações se

inçavam de lana caprina. No Seixo o fonema ente é usado mergente, tenente, Clemente, etc.… Em

Aldeia Formosa não nos lembra de haver particularidades filológicas propriamente ditas, mas

somente que os de lá chamam curraleiros aos de Vila Franca e que estes em contrapartida os

apelidam de “carrafechos”, mas, caso curioso, nunca em dicionário algum dos muitos que

consultámos, achámos esse hermético vocábulo, “carrafecho”. Não nos parece que ele derive de

um nome, a não ser que esse termo tivesse localmente um significado diferente daquele que os

dicionaristas lhe dão. Inclinando-nos, pois, a que seja uma corruptela da expressão cá-te-fecho, ou

quejanda.

Segundo o Prof. A. Amorim Girão uma das características do nosso povo é ridicularizar, além dos

estranhos, os próprios naturais, naquela geografia tradicional de escarneo e mal dizer.

Do mesmo autor são ainda as palavras seguintes: Os Portugueses, com serem o resultado de

profunda mestiçagem, nem por isso deixaram de constituir hoje uma das populações mais

homogéneas da Europa, dado que a Península Ibérica desempenhou o papel de cadinho ou retorta,

fundindo (…) variados elementos estranhos sob a acção isoladora de um ambiente quase insular; e

caracterizam-se antropologicamente pela sua estatura baixa ou pouco inferior à média (1.64 m),

crânio comprido e cor morena de pele, para falarmos apenas dos mais importantes caracteres

morfológicos.

No que particularmente nos diz respeito, também entre a nossa população abunda a dolicocefalia,

sendo o tipo braquicéfalo, ou nórdico, bastante mais raro e são geralmente apelidados de ruços os

indivíduos de cabelos loiros e olhos azuis. Citamos como protótipo o nosso querido conterrâneo,

António Seguro, que internamente tinha a alcunha de António Ruço e extremamente o tomavam,

às vezes, por inglês. Na estatura cremos que não devemos fugir à medida geral, mas existiram e

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ainda existem entre a nossa população indivíduos com mais de 1.80m de altura, donde alguns, mais

gingões, merecem do povo o epíteto de zangarilhos, que se transmitiu aos descendentes.

Mesmo resumidamente, teríamos de compilar dezenas de páginas para esboçarmos um quadro

onde antropologicamente ficassem definidas as linhas gerais do povo que somos. Seria um trabalho

inglório. Historicamente somos parte do velho substratum ibérico ou celibérico sobre o qual

aluviões sucessivos de muito diversa natureza étnica deixaram impressa a sua passagem nesta

extremidade onde a terra acaba e o mar começa.

Geograficamente estamos situados numa quase mini-península, delimitada pelos rios Mondego e

Seia e a nordeste ligada ao concelho de Seia, distrito da Guarda, cidade que outrora foi sede da

Comarca da Beira e abrangia o antigo concelho do Ervedal, entre outros, e donde vieram alguns

judeus antigamente melhorar com os seus conhecimentos e experiência o comércio e a indústria

locais, aqui se tendo radicado alguns deles, segundo se dizia.

Tem origem no mesmo facto o complemento “da Beira”, adoptado por muitas das vilas e aldeias

abrangidas antigamente pela referida Comarca, há muito extinta.

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III

AS CASAS

A antiga casa beirã era na generalidade construída de pedra mais lascada que polida, o que levou

Aquilino Ribeiro a emitir o seguinte juízo a respeito das da sua região, a norte do distrito de Viseu:

As casas eram parentes próximos da orca, sem frestas, sem chaminé, com portal baixo, piso térreo,

colmadas umas, cobertas outras a telha moirisca, sucedânea da tégula, (…). A sua armação era

tudo o que há de mais primitivo: um carvalho deitado dobre o vértice das duas empenas; sobre essa

trave vinham articular-se os cabros, (…).

O fumo vadiava pelo interior, (…).

O lar ou lareira constituía a divisão por excelência da casa serrana. (…) Compunha-se de uma

grande lancha, tantas vezes a cobertura de um dólmen, e sobre ela assentava num dos extremos o

pequeno absidíliolo, que é a pilheira, em que se recolhem as cinzas e contra o qual arde o cepo. (…)

Algumas destas lareiras afundiam-se no solo o bastante para o piso que lhe sobrelevava servir de

assento. Chamava-se-lhes então cozinhas de balcão. Uma prancha com a largura de côvado – ou

duas encastalhadas – comprida de dois, perclusa ao frontal mediante dobradiças, descia, corrida a

carvalha, sobre um pé único para o meio recinto.

As principais aspirações do homem rústico desaguam na casa. Antes de pensar a sério no

casamento, pensa na casa. Se já tem algum dinheiro, terreno que baste, e não quer crédito ou

ajudas, constrói uma casa modesta, sem preocupações de conforto., para remediar. Depois,

passados anos, se conseguir amealhar mais dinheiro, se receber uma herança ou herdade uma casa

maior, muda-se para lá com a família, que, na primitiva, já vivia com a sardinha na canastra.

Parafraseando um velho aforismo popular, pode dizer-se: pela fachada da casa se vê quem lá mora.

O homem moderno, principalmente o que emigrou, é muito mais exigente com a habitação e

geralmente compreende-se porquê.

O próprio Aquilino, que escreveu que a aldeia lusitana não evoluiu, na mesma escala em que

evoluiu, por exemplo, na Inglaterra ou França, se pudesse agora tornar a percorrer os caminhos da

Serra da Nave, ficaria espantando com as novas maisons que enxameiam as aldeias da serranas.

Divisão e posse da terra

Um pedaço de terra e uma casa modesta bastava antigamente para o indivíduo se fixar na aldeia.

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Na nossa, desde há séculos que predomina o minifúndio, segundo se depreende da seguinte

expressão com que principia a carta-foral passada pela Universidade de Coimbra relativamente ao

concelho de Ervedal: E esta terra he toda terra chaa. E não é de casaes…

Já então, em 1570, a terra estava dividida por pequenos proprietários, que era uso, pagarem, cada

pessoa que faz fuogo meio alqueire de trigo e meio de centeo. E, cada morador, um capam. E dez

ovos. Soma e segue: E se matarem um porco hum corazil. E de toda a novidade pam, vinho, linho, de

nove hum e assim partem e paguam os de aldeã de feaes…

(…) E todo o lavrador inteiro de eiradegua o que lavrar co junta de bois ou co mais alqueire pela

medida de Coimbra que fazem quatro tres desta medida corrente. E se lavrar co bois alheos

paguara meio foro deste. Do que lavrar co hu boi, a saber: o quarto de eiradegua inteira. E o que

lavrar com enxada paguara este mesmo foro de eiradegua e não paguara outro foro nenhum de

qualquer pam que colher é enxada. E quem colher linho pagara somente hua manchea e de vinho

três alqueires pela medida coimbrã de eiradegua sem paguar foguaça. A malha ia-se apertando. E

paguará mais toda a casa que fazer foguo hu capam e dez ovos. E a molher cabaneira hua galinha e

cinco ovos. E quem matar porco de Sam Martinho atá ao Entrudo paguara hu corazil e antes e

depois o não paguaram. E cada lavrador fará serviço de hu dia de jornal sem levar mais que ho

mantimento ordenado para as pessoas e bestas que levar. E os que venderem suas propriedades

venderam sem licença e paguaram seu terradeguo.

Julgo que não se pode avaliar hoje das repercussões que tinha o pagamento destes impostos nos

magros orçamentos caseiros de então, mas o que não há dúvidas é que o sistema prestava-se, a

que se encobrissem os rendimentos sujeitos ao fisco.

Já a divisão da terra em pequenas courelas, embora seja ditada por razões várias, talvez seja mais

fácil de entender, porque, ao contrário do imposto, radicalmente alterado em 1834, ainda hoje

persiste.

Ouçamos agora o nosso Aquilino, nosso por ser beirão, ali da Soutosa, nosso por ser português,

para ficarmos a saber que lá como cá mas fadas há:

Os herdeiros de Manuel Lourenço partilharam amigavelmente a casinha que era pobre, já

retalhadas através de não se sabe quantas gerações. Em seguida repartiram os trastes da casa, no

geral arcas para os cereais, que a viúva julgou dispensáveis para as suas rendas diminutas, o bragal

de estopa e burel, as apeiras muito disputadas porque dois dos filhos encarreiraram para a lavoura.

Para o resto guardaram os nomes da cozinha. Uma panela a este, dois pratos àquele, a caçoila das

papas a fulano, a certa a sicrano, despejou-se o pucareiro, mantendo Anastácia aquele ar tácito e

tristonho dum empreendimento terreno tão requintadamente estóico.

Restava o pote de ferro de três pés, rotundo, com o seu testo modelado, onde se cozia por horas a

vianda do porco. Quem o levasse teria de dar tornas.

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Propôs-se Nelson, o mais novo, um ruço de pelo de rato, que só para o ano entra nas sortes, ficar

com ele.

(…)

Mas onde angariar dinheiro para essas coercivas e pesadas tornas? O pobre assalariou-se na malta

de ratinhos que partiam para o Alentejo.

E foi assim através de sucessivas gerações de moradores das nossas aldeias beirãs que a terra foi

impiedosamente retalhada e agora ao pretenderem reconverter a nossa agricultura verificam os

responsáveis pelo destino do País que é condição prioritária proceder ao seu emparcelamento, no

Centro e Norte, onde o problema se agudizou.

Dado o conservadorismo e individualismo dos nossos agricultores todos sabem, governantes e

governados, que é difícil fazer dum dia para o outro, aquilo que levou séculos a sedimentar.

Assim sendo, pergunta-se: Qual será o futuro da agricultura na Cordinha?

E sem esse mau suporte económico, será possível a sobrevivência da sua população ou esta

encontrará novas fontes de subsistência, para além da emigração?

O futuro a Deus pertence.

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IV

GEOGRAFIA HUMANA, DOIS APONTAMENTOS

Emigração

Não sabemos qual terá sido o contributo dado por Vila Franca às chamadas maltas de ratinhos ou

galegos, capitaneados por um manajeiro, que anualmente desciam das Beiras às planuras do

Ribatejo e Alentejo, para as fainas das cavas, mondas, ceifas, vindimas e apanha da azeitona, e que,

findos os contractos regressavam às origens, com algum dinheiro nos bolsos, razão principal das

suas deslocações sazonais.

O rápido crescimento da população que em cem anos deve ter quintiplicado, sem que saibamos

explicar correctamente tal explosão demográfica, leva-nos a admitir que tínhamos superavit

bastante para pormos à disposição dessas e doutras correntes migratórias, tanto internas como

externas, número razoável de indivíduos.

Na maioria trabalhadores muito jovens, alistavam-se nas maltas de “ratinhos”, à aventura, para ver

como era, sendo poucos os que se inscreviam no segundo ano e mais raros os veteranos.

Poder-se-iam comparar a bandos de aves ensaiando os primeiros voos, fora do ninho, daí

resultando que alguns voltavam com as penas crestadas pelas sessões endémicas e desalentados

pela falta de assistência.

Acontecia então que, enquanto convalesciam em casa, lhes sobrava tempo para irem arquitectando

projectos de novas viagens, projectos que muitas vezes abrangiam novos países, como o Brasil, a

África ou a América, consoante os ventos migratórios que na altura soprassem, ou as condições

particulares que a cada um se deparavam, iguais em tudo aos compatriotas que alguém classificara

de portugueses de torna viagem.

Porém, agora a lonjura, o dispêndio nas viagens, etc., já não permitiram um tão fácil regresso ao lar.

Quantos deles por lá não ficaram para sempre? Uns porque a morte chegou cedo demais, outros

porque não conseguiram amealhar o dinheiro suficiente para virem à terra matar saudades ou

porque encontraram acrescidas facilidades no seu desenraizamento, assim contribuindo com a sua

quota-parte na formação de novas comunidades lusíadas em países distantes.

Em relação ao nosso tamanho, foi enorme a sangria, o contributo em gente válida, como se

verificará na rubrica seguinte.

Demografia:

Para todo este incipiente estudo não dispomos dos resultados de todos os recenseamentos da

população realizados no País desde 1864.

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Como é sabido, alguns recenseamentos não incluíram os lugares. Pois, para Vila Franca, surge como

vértice do período ascensional o de 1911, com 1588 habitantes.

Atrevemo-nos, no entanto, a afirmar que até 1918 a população de Vila Franca continuou a crescer.

Só a partir deste ano, depois da terrível pneumónica, que tantas vidas ceifou, e com a aceleração

do fluxo migratório, a seguir à I Guerra Mundial (1914/18) e que a população diminuiu

acentuadamente. Enquanto a população do distrito no período de 1920 a 1940 subiu 15,9% (9,8 no

1º decénio e 6,1 no 2º), a de Vila Franca diminuiu, entre 1911 e 1940, 25%.

Eis os números relativos a Vila Franca:

Censos Habitantes

1885 1142

1911 1588

1940 1190

1950 1070

1960 888

1970 670

Com estes resultados é razoável interrogar-mo-nos, o que terá sucedido, para onde se terão

sumido os nossos conterrâneos?

Genericamente o Brasil, a América, a Argentina e a África foram os países preferidos pelos nossos

emigrantes.

Mas também o Barreiro (CUF), o Porto (Casas do Pasto), Angola e Lisboa absorveram muita da

nossa população.

A antiga província ultramarina de Angola em 1974, com a independência, expulsou quase um

milhão de portugueses do seu território, tendo alguns regressado só com a camisa, que na altura

tinha vestida. Mortos não os tivemos nós, mas somente espoliados. Dessas sequelas da

descolonização de Angola, efectuada sob a égide do Conselho da Revolução, cinicamente

denominada descolonização exemplar, se queixam, ainda hoje, dezenas de conterrâneos nossos.

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A mais de 450 anos do primeiro censo até hoje conhecido, o de 1527, ordenado por D. João III, por

carta enviada a cada um dos corregedores das seis comarcas do reino, em que Vila Franca figurava

com 31 moradores ou fogos, que é costume multiplicar por 4 para calcular o número de habitantes,

a população actual deve rondar os 1200 habitantes.

Assim, se o aumento populacional tivesse sido constante, poder-se-ia dizer que a média se cifrou

em mais ou menos 220 habitantes por séculos.

Mas o que de facto se verificou foi isto: só no século passado, o aumento da população subiu a

olhos vistos, cotando-se nos anteriores por um crescimento bastante mais lento.

Daí para cá, o movimento oscilatório, faz prever não um aumento mas uma regressão demográfica

em Vila Franca, apesar de ter havido, como em outro lugar se refere, uma evidente actualização das

condições vivenciais.

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V

O TRAJE

Seria ocioso ou pretensioso falar hoje de um traje típico. O pouco que desse traje antigo existe no

fundo de velhas arcas, pertence ao passado recente. Há muitas dezenas de anos que, como é

sabido, o povo deixou de vestir-se com a lã dos seus rebanhos e do linho caseiro.

Consequentemente, os teares foram apodrecendo nos pátios das casas avoengas, entre montões

de coisas sem préstimo. Dos modernos teares mecânicos, das fábricas, saíram novos tecidos e, por

extensão, o vestuário foi-se modificando, sob o impulso da moda soberana e cada vez mais

disciplinada e organizada. Só que o traje feminino, único que talvez valha a pena referir, sofre de

uma dicotomia. Enquanto as mulheres mais idosas, com o rigor que lhes é permitido, continuaram

a preferir o figurino das avós, as jovens, travando renhida luta a princípio quanto ao comprimento

da saia e ao decote da blusa, aderiram francamente à nova vaga.

Antigamente as mulheres cobriam a cabeça e parte do rosto com o lenço, feito de tecidos de

diferentes qualidades e desenhos, e posto de maneiras diversas, conforme as posses e as ocasiões.

Usavam blusa ou chambre folgado e sem decote, saia comprida, bainha a roçar os tornozelos,

muito rodada. O calçado mais usual, eram as tamancas ou as chinelas, sendo os sapatos reservados

para os dias de festa; e era vulgar, para poupar as solas, tirá-los dos pés e pô-los à cabeça, a

caminho das romarias.

O xaile era a peça de agasalho por excelência, com ele as mães se cobriam a si e aos filhos de colo,

para os proteger dos rigores do frio quando, por rotina ou lazer, os transportavam nas suas

deambulações quotidianas.

Do traje masculino, menos versátil que o feminino, apenas o vestuário dos pastores ainda conserva

linhas antigas diferenciadas, que por serem comuns à região, cujo núcleo central é a Serra da

Estrela, entendemos não dever pormenorizar.

Um pouco à margem e para terminar, registamos quatro fases na evolução da arte do vestuário.

Na primeira, os nossos avós iam de casa em casa prestar os seus serviços, cosendo, à mão, a roupa

dos fregueses.

Na segunda, a máquina de coser portátil, de manivela, facilitou o trabalho ao alfaiate e seus

ajudantes. O aprendiz tinha a obrigação de a transportar às costas.

Na terceira, o aparecimento da máquina de costura não portátil, suscitou a sedentariedade da

classe, dando lugar às oficinas de alfaiate – alfaiatarias.

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Nesta casa, desde as últimas décadas do século 19,

até ao primeiro quartel do século XX, existiu uma

oficina de alfaiate de José Borges “Guímaro”

Na quarta e última, as fábricas de confecções, o pronto-a-vestir, ocupam já um vasto espaço que há

pouco tempo pertencia às oficinas artesanal, de costureiras e alfaiates, sendo neste particular

notável o incremento da indústria verificado no nosso concelho, nomeadamente em redor de

Oliveira do Hospital, sem contudo atingir a Cordinha.

“A indumentária própria das diversas regiões, segundo o Prof. A. Amorim Girão, in Geografia de

Portugal, é sempre cheia de cor local. A garridice e policromia dos trajes no noroeste e na Beira

Alta… são bem o reflexo das galas da Natureza nessas mesmas regiões; onde o solo é mais ingrato,

e mais rude o clima, e mais monótona a paisagem, a gente veste-se de cores mais escuras…”.

Essa diferenciação, porem, hoje tende a desaparecer nas nossas aldeias do interlocutor excluindo

as mulheres de mais de setenta anos.

Bordadeiras de Vila Franca - 1949

Ilda Cardoso e irmão Manuel, Idalina Sembaga, Docília Sembaga, Lizete, Calinita, Lucinda Seguro.( Fotos e texto de Manuel

Esteves Cardoso – blogue: http://vilafrancadabeiranomundo.blogspot.pt/ )

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VI

ROMARIAS

As romarias da região, hoje menos concorridas que outrora, tiveram sempre larga participação de

gentes de Vila Franca. Tanto na festa que, com manifesta irregularidade, aqui se disponibilidade dos

mordomos por vezes minguavam, como nas que, à volta, tinham lugar, nenhuma clientela jovem

dava mais nas vistas que a nossa povoação, já pelo número, já pela exuberância de

comportamento, a tocar as raias da irreverência, provocando não raras vezes o escândalo nos

menos dispostos a condescender com as suas sacanagens.

A ronda começava anualmente pela festa da Senhora da Saúde, em Vale Torto, no Domingo de

Pascoela, para onde boa parte da população se encaminhava logo pela manhã, de cestos

merendeiros aviados, a fim de participar na festividade. Uma boa merenda em qualquer romaria,

ou o melhor complemento desta.

Normalmente ia-se a pé ainda que longe ficasse o Santuário. A Senhora das Preces, em Vale de

Maceira, no sopé do Colcurinho, era outrora das boas romarias do concelho a não perder. No dia

seguinte, Segunda-feira de Pentecostes era a Senhora das Necessidades, no Vale de Ferro, no

extremo oposto do concelho, a receber a visita dos nossos romeiros, onde se dançava e cantava ao

som do adufe, da flauta e da viola, até ao anoitecer.

Outra das romarias mais conhecidas e que todo o romeiro gostava de visitar, pelo menos uma vez,

era a da Senhora do Desterro em S. Romão, nas abas da Serra da Estrela, no mês de Junho. Abrimos

aqui um parêntese:

Há meio século ninguém previa que a água represada na albufeira da Senhora do Desterro, ainda

um dia viria a ser repartida pelas populações do nosso concelho, o que com a electricidade,

produzida pelas suas turbinas, constituía a melhor prova de que não é por acaso que a Serra da

Estrela é a mais alta de Portugal, e mais abundante de dons da Natureza.

Mas a electricidade que primeiro iluminou o nosso concelho, não provinha, nem provém da

barragem da Senhora do Desterro, enquanto, que a água, essa sim, embora tardia, finalmente

chega à vila de Oliveira do Hospital, para suprir carências, a vinte e oito de Outubro de 1980. (1)

Em Setembro, por altura das vindimas e das recolhenças, ficasse o que ficasse nos campos por

fazer, que à Santa Eufémia por força se havia de ir, com mais ou menos devoção, de promessa ou

espírito pagão, para ver o famoso arraial, o fogo preso e dançar até romper a madrugada, ninguém

faltava.

Se o plano desta monografia consentisse, dar ênfase à apologia das romarias da região, seria injusto

não mencionar outras, mas o verdadeiro sentido destas breves notas é o de referir, quaisquer

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manifestações lúdicas, que exteriorizem usos, tendências, ou costumes e a disponibilidade do nosso

povo em se relacionar com os seus vizinhos, onde quer que vá.

“Já António Arroio, diz-se também na Geografia de Portugal, de A. Amorim Girão, notou que se

pode dividir o País em duas zonas quanto aos divertimentos de que o povo gosta, sendo o rio Vouga

a linha divisória: o Vouga para o norte, dá-se preferência às romarias, e aí se realizam também as

grandes procissões religiosas; do Vouga para sul, o divertimento predilecto é a corrida de touros e

ainda a feira popular, com todos os espectáculos do costume.”

Não estaríamos de acordo. Quanto a isso e no máximo aceitamos que vivemos numa região de

transição de divertimentos e de costumes, onde os ecos das touradas são muito difusos mas em

contrapartida as romarias e as procissões, com os foguetes, as bandas de música, as cantigas e as

danças são ainda os divertimentos predilectos do povo das nossas aldeias e vilas.

(1) – A Comarca de Arganil

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VII

FEIRAS

Na vasta região em que o nosso lugar está inserido, várias feiras se realizam, mensais, umas, anuais

outras; uma mais, outras menos concorridas de gentes e mercadorias, com suas características

transaccionais próprias, onde facilmente podemos cruzar com virtuais compradores, vendedores ou

simples turistas nossos conterrâneos.

Começando pelas que ficaram mais perto e são, também, as únicas que na freguesia se realizam,

referiremos em primeiro lugar as feiras do Ervedal, a mensal e a anual. A primeira, dado o seu

reduzido movimento, não goza de preferências das nossas gentes e só por ser ao pé da porta ainda

lá vão bastantes pessoas. A anual, a de Santo André, patrono da vila, ao contrário daquela, goza de

muita fama e é largamente concorrida principalmente pelos povos das freguesias do Ervedal e do

Seixo. É conhecida por feira das nozes, pela grande quantidade que lá se transacciona. Também se

negoceia a carne de porco, a marra; comem-se as febras assadas na brasa, ou os torresmos na

caçoila de barro do Carvalhal. Mas se quiser mais e melhor então tem de se ir à feira dos Santos de

Travancinha ou mais longe ainda, a Oliveira do Hospital, onde na segunda-feira do segundo

Domingo de cada mês ou no dia 3 de Fevereiro, Feira anual de S. Braz, cresce a água na boca só

com o cheiro que se evola das caçoilas a transbordar de torresmos, a fervilharem ao calor das

fogueiras de cavacas, ao pé das barracas de comes e bebes.

Caçoilas de Torresmos

(foto de Manuel Esteves Cardoso –blogue: http://vilafrancadabeiranomundo.blogspot.pt/

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Aí, sim, encontra-se de tudo, desde as quinquilharias ao gado lanígero e bovino e num ambiente de

festa que está fora do nosso plano descrever, mas que vale a pena ver para crer, como S. Cosme.

Antigamente e principalmente em períodos de crise política e económica, como foi o que decorreu

de 1828 a 1860, nas feiras desenrolavam-se cenas como a que se transcreve do livro de João

Brandão O Terror das Beiras, estranhas ao negócio e ao puro ambiente que motiva as pessoas a

reunirem-se à sombra tutelar duma capela:

Logo que rebentou a revolução de Outubro de 1846, o meu irmão Roque foi, com meia dúzia de

rapazes, à feira dos Santos de Travancinha, desarmar o administrador do concelho do Ervedal,

então o Garcia do Seixo.

Como não temos feira própria, breves são estas notas, cuja justificação reside, por isso, única e

exclusivamente no desejo que nos anima de realçar, o espírito comunicativo que caracterizou o

nosso povo.

Poder-se-á ainda referir, para remate, que também havia, não muitos, os ourives, os chapeleiros, os

negociantes de panos e de gado, as tecedeiras e as queijeiras, que regularmente faziam as feiras da

região e fora da região, contribuindo com as suas presenças para as animar.

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VIII

BUSTO DO DR. AGOSTINHO MARQUES ANTUNES

Inaugurado a 16 de Março de 1953, perpetua a memória de um homem que, não sendo de Vila

Franca, era como se o fosse.

De facto, nascera em Alvôco de Várzeas, mas passara longos períodos da sua juventude em casa do

tio Morgado, irmão de seu pai, brincando e convivendo com os rapazes da sua geração.

Formado e Medicina, viria a ocupar o lugar de subdelegado de sede em Lagares da Beira. Tendo,

também, consultório em Vila Franca, onde veio anos a fio, duas ou três vezes por semana e sempre

que era preciso. Em cada habitante contava um amigo pelos cuidados que a todos prestava, quer

pudessem, quer não pudessem pagar os seus serviços. Contudo, os seus honorários eram bastante

modestos, se comparados com os que hoje de praticam.

Face a este relacionamento, natural e pungente foi a dor sentida pelo povo, surpreendido com a

morte do Dr. Agostinho, a 2 de Maio de 1953, num acidente de automóvel, algures na estrada da

Beira, quando, com amigos seus, se dirigia de Lagares para Coimbra, a fim de assistir à Queima das

Fitas em que participava o filho mais velho, que depois viria a ocupar a sua clientela e a seguir

fielmente o seu nobre exemplo de João Semana.

Patrocinada pelo recém-constituído grupo excursionista Os Arregaças, logo a 2 de Junho seguinte se

prestou a primeira lápide dando o seu nome ao Largo onde até há pouco tempo existira um velho e

espaçoso solar que fora propriedade e berço dos seus ancestrais, ao Rossio.

Ao acto assistiu, pode dizer-se, todo o povo e ainda pessoas de fora. Dois breves discursos, o

primeiro lido por Álvaro Martins Leitão, em nome dos promotores da homenagem póstuma, o

segundo proferido por seu irmão, Dr. António Marques Antunes, foram religiosamente escutados

pela numerosa assistência. Daqui, o povo dirigiu-se para a Capela de Santa Margarida, onde ouviu

missa de sufrágio e se encerrou a cerimónia evocativa.

Digna e grande, porém, foi a homenagem que Vila Franca voltou a prestar à memória do Dr.

Agostinho Antunes, com a inauguração do seu busto, em bronze, sobre plinto de granito da região,

colocado no meio do jardim, que para o efeito ficou a ocupar parte do Rossio, nessa tarde

memorável do dia atrás mencionada.

A Comissão, para esse fim constituída, presidida pelo seu bom e velho amigo, Jacob Esteves Borges,

fez questão que, com muito ou pouco, todo o povo comparticipasse no custo das obras, e assim

aconteceu. Foi um êxito. A homenagem, um grande acontecimento local! Nele participaram a

população de Vila Franca, as entidades representativas da Câmara e da Junta de Freguesia, um

piquete dos Bombeiros Voluntários de Oliveira do Hospital, que prestou a guarda de honra no

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descerramento do busto, feito por uma neta do principal zelador desta dívida de gratidão, e ainda

pessoas das mais distintas do concelho e muito povo das redondezas, que de algum modo se

quiseram associar à homenagem.

César Marques Seixas, em nome da Comissão, leu um discurso alusivo ao significado daquela solene

inauguração. O Ver. Pe. Eugénio Martins, de Lagares, capelão dos Hospitais da Universidade de

Coimbra, que fora amigo e confidente do Dr. Agostinho, não obstante a diferença de idades e

credo, proferiu brilhante improviso, comovente por se referir a casos típicos do carácter e do

coração do homem, pedaços da vida quotidiana do médico e chefe de família exemplar que,

afirmando-se ateu, pensava e procedia, face à dor e aos problemas dos outros, como um

verdadeiro cristão. Por fim, com a voz embargada pela comoção, usou da palavra o Dr. António

Marques Antunes, para agradecer em seu nome e no da família, a homenagem prestada à memória

do irmão, homenagem com a qual se mostrara profundamente sensibilizado e era razão mais que

suficiente – disse – mesmo que outras não houvesse, para ficar eternamente ligado e agradecido a

este bom povo.

Este acontecimento constituiu, sem dúvida, uma das manifestações mais dignas do bom povo de

VILA FRANCA.

Inauguração do busto do Dr. Agostinho Marques Antunes, a ser beijado pela neta de Jacob

Esteves Borges, com a presença do irmão, Dr. António Marques Antunes, em baixo à esquerda.

Foto actual - 2013

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IX

AS ALMINHAS

Várias alminhas se situam nas encruzilhadas periféricas da povoação.

O Autor se não de todos pelo menos da maior parte desses menires, na face voltada para o domínio

público, única que viu escopro, gravou e pintou várias figuras e símbolos cristãos, algumas palavras

abreviadas, inclusive o seu nome (João Fernandes de Figueiredo) e o ano da sua construção (1882).

Algumas alminhas evocam a morte de alguém, por assassínio ou acidente, ocorrido no local em que

estão implantadas. Estas, porém, pretendem suscitar dos transeuntes a piedade que as almas do

purgatório em geral, pensamos nós.

Não é heresia nenhuma dizer que, à sua erecção presidiu uma mistura de fé e superstição.

É, pois, útil e saudável conservar esses ingénuos monumentos da arte popular e evitar que a

malvadez, geradora de actos vandálicos, se desenvolva entre nós, a fim de que as alminhas possam

ser preservadas, como peças valiosas do nosso património cultural e transmitir, aos vindouros, sem

mutilações.

Infelizmente algumas já se encontram desde há muito no chão e – pior ainda – mutiladas, de que é

exemplo o estado degradante dado às da Pontinha, como se vê da fotografia adiante publicada.

Outras foram reerguidas, como é o caso das que estão implantadas na encruzilhada do Cutunho, a

provar ao mundo que o bem e o mal coexistem e coexistirão até ao fim dos séculos.

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X

HÁBITOS ALIMENTARES

A MATANÇA DO PORCO

A BROA

A CASTANHA, ETC.…

Podíamos se quisemos aumentar esta lista, porem sem interesse para o que é essencial mostrar ou

seja, aquilo que tem algum impacto na divulgação da nossa etnografia, e culinária.

1) A matança do porco pratica-se há séculos no antigo concelho do Ervedal, conforme está

consignado no foral passado pela Universidade de Coimbra, várias vezes referido. Tem o seu

ritual próprio, com alguns cambiantes de terra para terra. É uma festa de família em que se

convidam alguns amigos e se come bem e se bebe melhor, para encerrar o ano agrícola,

qualquer que ele tenha sido. No dia de S. Martinho matarás o teu porquinho e provarás o

teu vinho, diz o rifão. Uma boa salgadeira e um bom fumeiro, que desse para os gastos de

casa e ainda para vender ou presentear pessoa de família ou amiga a quem se devesse

favor, era um dos objectivos pelo qual todos os anos lutavam arduamente qualquer

honrado lavrador, até há bem poucos anos atrás.

Matança do Porco

Foto do site de António Coelho – em: http://amrc.do.sapo.pt/

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2) A broa ou o pão do milho, amassado, levedado e cozido em fornos caseiros era até há

pouco tempo o principal alimento do nosso povo, antes de as padarias de várias terras em

volta virem diariamente abastecer lojas e particulares, o que de certo modo não veio

aumentar o consumo de pão mas somente diversifica-lo, e aos poucos banalizar o consumo

do pão fino cuja versão vulgar, (o pão alveiro) normalmente se cozia 3 ou 4 vezes por ano:

na Páscoa, Natal, Festa de Santa Margarida e matança de porco.

Não sabemos ao certo se houve ou não um forno comunitário, mas sabe-se que havia e ainda

há fornos particulares funcionando com verdadeiros fornos comunitários, onde nos respectivos

alpendres as donas da fornada trocam entre si as novidades mais recentes enquanto o pão se

coze ou cozia.

E o que dizer daquela bola com recheio de toucinho, chouriça ou sardinha, espalmada com a pá

sobre o lastro do forno, que se acrescentava à fornada como um brinde e se comia ainda

quente enquanto o pão se acabava de cozer?!

Ma o cerne do ciclo do milho situa-se na desfolhada. Logo que os pés da gramínea originária do

México alouram, cortam-se rente ao solo com uma ceitoira e colocam-se em morouços. Depois

desfolham-se ou descamisam-se as espigas, geralmente à noite. Juntam-se os familiares,

vizinhos e amigos e à luz da lanterna ou gasómetro, senão há luar, forma-se um anel humano

em volta da meroiça, como nós dizemos, a palha para trás das costas e espigas para dentro dos

cestos e destes para os sacos de juta que por vezes chegam a ter mais de dois metros de altura,

ficam reduzidas a um montão de destroços, os canuchos.

Por que começamos por dizer que o cerne do ciclo do milho se situa na desfolhada?

Hoje ainda todos sabemos porquê, mas tempos virão que já poucos ou nenhuns se lembrarão.

Mesmo, agora, as descascas, como nós lhe chamamos, já são apenas uma sombra do que foram

aqui há umas dezenas de anos. Havia mais milho e mais interesse por parte dos jovens em se

ajudarem, juntando ao trabalho as cantigas e até algum, derriço. A espiga de grãos vermelhos

era desejada pelos jovens e não havia a certeza de alguns não levarem já no bolso quando

chegavam… Pela noite velha, apareciam os mantanas, lembram-se? Para se certificarem se já

não iam com conhecimento de causa, que ao pé da meroiça não se acoitava nenhum menor.

Porquê? Porque aos jovens, enquanto não fossem às sortes, nãos lhes era permitido sair de

casa depois da ceia. Com voz estentórea, disfarçada, os mantanas, se os apanhavam nas

descascas os for a de casa, ameaçavam-nos ou davam-lhes mesmo umas pauladas bem puxadas

com o porrete que levavam escondido debaixo da manta ou do varino. A salvação consistia em

não ser apanhado de ponta pela ronda e fugir, fugir enquanto era tempo.

A tuna na década de trinta influenciou o fim deste velho costume; certos jovens entre os 12 e os

18 anos ensaiavam à noite e ninguém se atreveria a estorvá-los de sair de casa, para irem ao

ensaio da tuna, naturalmente.

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Após este apontamento sobre o mais importante alimento da população, o pão, passamos a

outro, também importante, tempos atrás.

3) A CASTANHA. O castanheiro é uma árvore de grande porte, que se adaptou bem ao nosso

clima enquanto o nível freático do subsolo foi propício. Logo que se começaram a abrir

poços, a torto e, a direito, os lençóis de água baixaram tanto que – supomos nós – “o mal da

tinta” surgiu dizimando impiedosamente os nossos soutos. Já então a batata, com o nome

de castanha da Índia, começava a ser cultivada em certa escala pelos nossos lavradores. Mas

julgamos nós que foi só no século passado que um morador local conseguiu colher no seu

agro seis sacos de batatas, o que foi festejado por toda a população como um

acontecimento relevante. Até ao princípio do século XX a castanha fazia parte da

alimentação quotidiana das nossas gentes, como depois aconteceu com a batata, originária

do Peru donde teria sido trazida pelos soldados de Francisco Pizarro, cerca de 1580

espalhando-se rapidamente “em Espanha, Itália e Alemanha para alimentação dos animais”,

como se diz em Segredos e Virtudes das P. Medicinais.

Hoje praticamente não existem castanheiros em Vila Franca e a pouca castanha que se com

vem de fora. Num quintal junto à Capela de Santa Margarida existia ainda por 1925 um souto

com alguns bons exemplares de castanheiros de tronco oco e duas, ou três, enormes carvalhas,

semelhantes às que ainda hoje existem na periferia do campo de futebol.

Por essa época e ainda um pouco mais tarde a juventude, particularmente, assava as castanhas

no chão sobre um tapete de caruma, deitando alguma por cima para as acabar de assar,

castanhas que por vezes eram colhidas no rabisco e escondidas até se combinar o dia do

Magusto e se encontrar quem desse o vinho, a aguardente – fleima, a água-pé ou jeropiga, para

facilitar a sua deglutição.

Trivialmente as castanhas eram assadas no assador de barro ou de folha-de-flandres, com

buracos. Piladas, eram cozinhadas ou como sopa, ou segundo prato, misturadas com feijão ou

arroz.

Em 1915, segundo o nosso pai, chegou-se a transformar as castanhas em farinha, para fabrico

do pão, bem como o painço ou milho das vassouras, devido à enorme escassez de cereais então

verificada. A própria cevada, que moída era utilizada para engrossar a lavagem dos porcos,

tempos houve em que também serviu para fazer pão e uma espécie de filhós, que se

polvilhavam de açúcar.

4) A OLIVEIRA. O azeite é uma gordura vegetal com múltiplas aplicações, mais ontem que hoje,

por causa dos sucedâneos, é guardado em talhas, às vezes de uns anos para os outros, como

se fosse um tesouro perecível.

No entanto, supomos que a cultura da oliveira não era relevante no antigo concelho do Ervedal

por o azeite não ser arrolado no foral da Universidade de Coimbra, não se fazendo menção dele

como se fez doutros produtos colhidos pelos moradores, na cobrança do foro.

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As melhores terras para a cultura da oliveira e qualidade do azeite são as encostas e valeiros

voltados para a Ribeira ou Rio Seia, a sueste, e a seguir as voltadas para o Ribeiro D’Arca, a

sudoeste, havendo árvores com copas enormes e troncos esburacados, dos anos que têm de

existência.

O único lagar de Vila Franca de que se guarda memória pertenceu ao Morgado e situava-se no

extremo do Prado, próximo da sua casa solarenga, praticamente separada dele pelo Rossio, a

estrada e duas leiras de terra, doutros donos.

As galgas eram movidas por um boi, com os olhos vendados, amarrados ao cambão como nas

noras. Era um lugar de vara, sendo esta um grosso tronco de carvalho, precursor da prensa

hidráulica, com que anos mais tarde, o sobrinho, Doutor António Marques Antunes, dotou o

lagar do Buraco, talvez inspirado nas paródias em que tomou parte com os irmãos e amigos, no

velho lagar do tio, e pelo apego que o ligava à Quinta da Baleia.

Esse casarão enorme, o lagar, acabada a safra que decorria de Novembro a Fevereiro o máximo

era aproveitado para fins lúdicos, fazendo-se representações teatrais e sessões de cinema com

frequência. Ficou célebre não só na terra com nas redondezas, uma récita levada à cena por um

grupo de amadores local, composto por artistas de ambos os sexos, nos finais do século

passado, de que nos fala a nossa querida conterrânea D. Ivete Fontes Borges Dinis, na

monografia intitulada As Origens. (ver em:

http://www.vilafrancadabeira.net/historia/tradi-comedias.html ) e de que nós próprios

ouvimos muitas vezes da boca de alguns dos seus actores, nossos parentes, belos relatos

evocativos.

Foi lá no lagar, que vimos as primeiras fitas de cinema, talvez em 1922, na companhia da nossa

saudosa prima Lucinda, que de Lisboa, com sua mãe, a tia Augusta, vinha passar largas

temporadas à nossa casa. Desta evocação pessoal nos penitenciamos.

Também ficaram por largo tempo na memória do povo as representações levadas a efeito por

companhias de circo e saltimbancos, que o Morgado acolhia e acarinhava como verdadeiro

Mecenas, e galã, no lagar ou no pátio de sua casa.

O tradicional prato dos lagareiros, a tiborna, levava ao tempo, além do pão, as couves de cortar

e o bacalhau cozido em azeite fino, dando azo a que alguns produtores se reunissem com os

amigos ao menos uma vez por ano, em franca confraternização com o respectivo pessoal, para

se empanturrarem, democraticamente.

Nessas patuscadas não raro entrava, também, como principal conduto a chouriça acabada de

secar no fumeiro e quantas vezes retirada de lá à revelia da dona da casa, que assada nas brasas

da fornalha do lagar se tornava o lambe-lhe-os-beiços, de sabor imortal, como Aquilino lhe

chamava num dos seus livros.

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5) O VINHO. Tornava estas patuscadas dionisíacas. Palhete e pouco e pouco graduado, mas

quando fabricado com esmero e respeito pelas normas difundidas pelos organismos oficiais, no

nosso caso a Região Vinícola do Dão, mesmo bebido com algum excesso não afectava tanto os

sentidos como o que se comprava na loja baptizado e rebaptizado pelos mixordeiros na opinião

dos bebedores. Raras eram as bebedeiras, verificadas nessas comezainas.

Nós fomos anos atrás, razoáveis produtores de vinho, já que algumas courelas que outrora

foram soutos viraram, nas primeiras décadas deste século, em vinhas compactas, mas de pouca

extensão, obedecendo necessariamente à excessiva divisão do solo, donde se colhia nos anos

em que o míldio e o oídio atacavam moderadamente, alguns milhares de almudes de vinho de

boa qualidade, desde que na sua composição não entrassem uvas de bardões ou cacho s de

produtores directos, a chamada Uva Americana que as leis do País consideram persona non

grata, ordenando o arranque ou a enxertia dos pés existentes, eles carregam abundantemente

e são imunes às danças das videiras enxertas em Cavalos Americanos, mas por outro lado

produzem um vinho da baixa qualidade, com sabor a morangos e dai chamar-se-lhe nalgumas

regiões morangueiro. Infelizmente a maior parte das cepas das vinhas que verdejavam nas

suaves encostas das nossas colinas desde a Primavera e que vindo o Outono as parras após a

vindima se coloriam de tons amarelos e encarnados cujas uvas aconchegaram e defenderam da

geada e soalheira, já não existem ou se existem são espesinhadas ou comidas pelas ovelhas,

como ervas daninhas.

6) A Ovinicultura é outra apreciada riqueza da região em que a nossa terra se insere, muito

acarinhada presentemente mas outrora pode dizer-se desprezada, como de resto toda a

actividade em que a mesma desagua como rio no mar, a agricultura.

Donde vem então a importância que presentemente se atribui à ovinicultura? Precisamente da

importância que hoje tem o queijo artesanal, tipo Serra da Estrela, tanto no mercado nacional

como no internacional em paralelo com a elevação do nível económico do país após a sua

integração na Europa Comunitária.

Criaram-se associações a nível concelhio e regional, que visam promover o desenvolvimento da

ovinicultura, através de acções formativas e informativas no sentido de consciencializar o pastor

que a ninguém mais do que a ele interessa o processo de revitalização da sua industria, pois trás

proveito e fama à região si a oportunidade única de melhoras o seu próprio estatuto social,

deixando de ser o cidadão de segunda entre os seus conterrâneos, como sucedia

anteriormente, para se tornar cidadão de primeira, na sua aldeia e fora dela.

O pastor quase não tinha horas para se deitar nem para se levantar. Saía de noite, e de noite

entrava em casa, quando não dormia na choupana junto à malhada. Para ele não havia

domingos nem dias santos. Era um estranho na sua própria terra. E para quê? Qual o proveito

que tirava de tantos sacrifícios? Muito poucos: o maior seria o de viver ao ar livre, tocando

flauta de, quando em vez, a sós com o rebanho e o cão, fiel companheiro, nos dias nostálgicos

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de pastoreio, atento à ovelha ranhosa, não fosse saltar a cancela para ir lamber as couves da

horta mais próxima.

Pobrete mas alegrete, costuma-se dizer. Não seria o caso dos nossos pastores. Eram pobretes,

não alegretes. Porquê? Porque ganhavam mal, como os restantes trabalhadores da aldeia.

Comiam mal, isto é, pior do que os demais, dado que na maior parte dos dias a refeição do

meio-dia era fria e a ceia comida só depois o rebanho ter sido acomodado no curral. E não lhes

sobrava tempo para participar em qualquer divertimento dos poucos que a terra tinha se

fossem livres como os outros. Não é em vão que se chama ao Planeta Vénus, a estrela dos

pastores.

Presentemente, com a protecção que lhe é dada internamente e com as ajudas que chegam da

CEE, o nosso pastor é um cidadão privilegiado, um trabalhador feliz e respeitado apto a produzir

mais e melhor, dignificando a sua profissão milenária.

Geralmente o fabrico do queijo é fabrico da mulher – mãe ou filha casadoira. A sua qualidade

depende primeiro da pureza do leite, segundo do saber fazer da queijeira, das suas mãos que

quanto mais frias mais aptas são para produzir o bom queijo e terceiro da sua cura, exigindo

instalações apropriadas bem arejadas e limpas. Curiosamente havia antigamente um pastor de

apelido Chagas cujo queijo era afamado e tido pelos apreciadores como o mais saboroso. Dizia-

se e insistia-se a propósito: coma que é do Chagas. Todavia comentava-se que a cozinha não

primava pela higiene.

Os ingredientes deste produto são o leite da ovelha (se se lhe misturar o das cabras, que

geralmente fazem parte do rebanho, logo baixa de qualidade), o sal e o cardo.

Na Serra da Estrela, donde é originário, o queijo era fabricado (não sabemos se ainda é assim)

pelos próprios pastores durante a longa permanência do rebanho na serra.

Quando regressavam aos povoados transportavam sobre o dorso dos burros do séquito, os

queijos já curados que durante a longa permanência conseguiam fabricar no acampamento.

As nossas queijeiras têm obtido os melhores resultados do seu labor nos concursos que desde

há anos se vêm realizando na sede do concelho sob a égide de várias entidades concelhias e

regionais.

Longe vai o tempo em que o seu trabalho não tinha as devidas recompensas morais e materiais.

O requeijão, a que chamaremos talvez indevidamente, um subproduto do queijo, goza dentro e

fora da terra, dum prestígio muito grande, já que a produção não chega para as encomendas. O

mesmo não acontece c a manteiga que, em parte devido a defeitos de fabrico, tem fraca

aceitação, internamente.

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Antigamente, queijeiras nossas, deslocavam-se semanalmente à praça de Seia, onde vendiam

sobretudo a manteiga fazendo o trajecto a pé, ali granjearam fama os produtos que vendiam e

os modos com tratavam as freguesas, com franqueza e humildade.

Depois deixaram de precisar de sair de casa para vender o queijo e o requeijão, os negociantes

de Lisboa e de outras partes começaram a afluir regularmente, esgotando toda a produção e às

vezes mais que fosse, de tal modo que quando um particular precisava, pode dar-se o caso de

não encontrar queijeira que lho venda.

Começaram a aparecer as fábricas em substituição das queijeiras artesanais, e em Vila Franca

também já existe uma, veremos é se elas estarão aptas a apresentar um produto que não

desmereça do queijo tradicional.

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XI

A LÃ E O LINHO

A lã outro produto que os ovinos fornecem aos seus criadores, tinha antigamente um

aproveitamento e tratamento diferentes, por ser essencialmente uma industria artesanal donde

provinham as peças de agasalho pessoais fabricadas intra-muros do principio ao fim.

Nesta como noutras necessidades era hábito a aldeia bastar-se a si própria de tudo que a terra dá.

Chegada a Primavera, o mais tardar por meados de Abril, rogavam-se os tosquiadores, para a

tosquia.

Com uma pontinha de ironia, era então caso para dizer que se despiam os animais para vestir os

homens.

A operação era geralmente efectuada num velho alpendre sobre umas toscas tábuas de pinho. De

patas amarradas duas a duas as ovelhas submetiam-se a muito custo à tosquia da lã, não tanto pela

falta que esta lhes fazia mas sim pela posição incomoda e vexatória a que o tosquiador as submetia

à medida que a tesoura se ia insinuando rente à pele, salpicando-a de pedradas, até o velo se

transformar numa fofa bola de neve ou surrubeco.

Aí pelo começo do segundo quartel deste século um homem natural de Vale de Ferro, salvo erro de

apelido Ventura, trouxe da América do Norte, para onde emigrara, uma maquina de manivela que

realizava a tosquia das ovelhas em muito menos tempo e com mais perfeição, e terá sido a

precursora das actuais maquinas eléctricas.

Diziam os nossos familiares que ainda no primeiro quartel deste século existiam em Vila Franca

algumas dezenas de teares que produziam milhares de côvados de baeta, não tendo as tecedeiras

mãos a medir para satisfazerem as encomendas destinadas à feira da Senhora do Monte Alto em

Arganil. O transporte era feito em carros de bois. Juntamente com as peças de baeta acomodavam-

se as de linho e estopa, até completar a carga. Não sabemos porém se a carga ia daqui já vendida

ou se na feira entrava no jogo da oferta e procura.

Da mesma fonte procede esta outra informação, o desencadear da 1ª Grande Guerra Mundial

sufocou o fabrico das baetas devido à falta de anil, importado da Alemanha. Esta, por causa da

guerra em que se envolveu deixara de o exportar, mas nós atrevemo-nos a dizer que foram mais as

fabricas de lanifícios que determinaram a extinção desse industria caseira, com as quais esta não

podia competir nem em qualidade nem na variedade de tecidos, mantendo-se activos alguns teares

ainda alguns anos, porque o linho continuou a ser cultivado nos nossos agros, mas ano após ano foi

perdendo também todo o peso que tinha devido à concorrência que lhe movia o algodão.O linho

(Linum usitatissimo L), é conhecido em toda a Beira desde a antiguidade. É possível que tenham

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sido os Celtiberos a fomentar a sua cultura entre nós, mas foram os Árabes que com a invenção do

tear lhe deram maior impulso, bem como os Judeus, com os seu peculiar engodo por todo o

comércio de mercadorias vendáveis e lucrativas na Beira, incluindo os panos de linho e estopa,

artigos que rivalizavam com os melhores da Europa de então, sendo o Pa. José Quelhas Bigotte

(Monografia de Seia).

A cultura do linho data dos primórdios da Humanidade, lê-se em Segredos e Virtudes das Plantas

Medicinais, pelo que não é ousado dizer-se que o linho há milénios que era cultivado nos nossos

campos quando Portugal se tornou independente.

O linho sempre teve múltiplas aplicações e todas de grande valia. Mas sem dúvida que as nossas

fibras têxteis eram as mais importantes até meados do século XIX, embora na nossa terra a cultura

do linho ainda fosse florescente no primeiro quartel do século XX. Em muitas das nossas casas ainda

há toalhas, lençóis e outras peças dessa época, que se guardam em velhas arcas como recordação

duma avó ou duma tia que pacientemente as fiou e urdiu para as legar aos seus vindouros.

“No século VI a.C., o linho fazia parte da alimentação, e no século V a.C. foi citado como remédio

por Teofrasto na sua História das Plantas.” Quem não se lembra ainda das papas de linhaça

aplicadas nas costas e no peito como emoliete nas doenças brônquicas e pulmonares?

É por estas e outras razoes que muitos de nós se sentiriam felizes se tornassem a ver o linho com a

sua haste esbelta e flores azul claro, ondular ao vento no mês de Maio animando as nossas

Quelhas!

Com certeza que alguns dos leitores acharão que isso seria regredir. Mas nós diremos que não,

baseados em mais que uma razão observada na fase actual do artesanato português. Em primeiro

lugar porque de alguns anos a esta parte se tentar conservar ou restaurar muitas das nossas

pequenas indústrias tradicionais naquilo que elas são uma manifestação da vitalidade das raízes de

um povo com muitos séculos de existência por vezes atribulada. Em segundo lugar porque é, senão

a única, pelo menos a melhor forma de o individuo se revelar a si próprio e aos outros que tem

qualidades natas de artista a desenvolver, pelas quais ele se pode prender melhor ao meio onde

nasceu, sem necessidade de emigrar para outros lugares onde pode ou não dar continuidade ao

sonho que trouxe do berço. E em terceiro lugar, sem de modo nenhum pretender levar à exaustão

este assunto, devemos ter em conta que o artesão, seja qual for o ramo que abrace, é um homem

que geralmente vale por dois, pois alem da profissão que exerce a tempo inteiro, às vezes

contrafeito nas horas vagas ou de lazer realiza aquilo que lhe dá mais prazer, sem pôr em, primeiro

plano a recompensa material, sendo por via de regra um elemento estabilizador da sociedade em

que vive ao aproveitar o seu tempo da melhor forma possível, enquanto que outros à sua volta o

esbanjam em futilidades de que os próprios se envergonham nos momentos de tédio ou nostalgia.

E agora, perguntamo-nos: vale ou não vale a pena fazer outra vez renascer a indústria do linho em

Vila Franca?

A resposta é só uma, a do poeta… Tudo vale a pena se a alma não é pequena.

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Resumindo, o linho faz parte da nossa etnografia, da nossa história e constava da relação de bens e

serviços que o antigo concelho do Ervedal tinha que pagar à Universidade de Coimbra, rondando

uns anos pelos outros, cento e cinquenta varas de pano. Eram muito concorridos e alegres os seroes

que durante o Inverno se faziam sobretudo para fiar o linho e os tormentos ao redor da fogueira,

essa fonte do nosso folclore e do nosso sadio viver comunitário antigo.

Da união dos fios da lã e do linho nasceu a baeta, cuja manufactura foi muitos anos a principal

actividade das nossas operosas tecedeiras.

Tecelagem do Linho em Vila Franca da Beira – D. Dulcínia – Foto de 2004

Mas era sobretudo o linho que no decorrer das longas, laboriosas e complexas manipulações a que

o submetiam, fornecia ao folclore as mais belas quadras populares de que são exemplo estas que

transcrevemos da monografia de Seia:

Quem me dera ser o linho Que vós na roca fiais… Quem vos dera tantos beijos, Como vós ao linho dais!... As voltas que o linho leva, Antes de ir para o tear Não são tantas como as voltas Que nesta vida hei-de dar!... Aprendi a tecedeira E agora já estou repesa: Meu amor está lá fora E estou no tear presa!...

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XII

JOGOS

Servindo-nos da nossa própria experiência passamos a falar de jogos, dos jogos que se praticavam

na nossa juventude.

Não conseguiremos enumera-los todos sem um grande esforço de memória, dado que já se

passaram umas boas dezenas de anos. Isso quer dizer que já somos velhos – embora perfilhando o

aforismo mais por autodefesa que por convicção – que velhos são os trapos – tentaremos.

Falaremos só de alguns, dos mais praticados no nosso tempo. Era graças a eles que a mocidade de

então se treinava nas lides da vida e via acrescidas a força, agilidade, destreza e concentração. O

futebol ainda era embrionário, com ele deu-se o ocaso da maioria dos nossos jogos tradicionais.

Foram dois estudantes da antiga Escola Comercial Raul Dória do Porto, os saudosos Amadeu Borges

Dinis e Álvaro Martins Leitão, quem ensinou os rudimentos do foot-ball association, aí pelos anos

de 1924/1925, trazendo consigo uma bola de couro, semelhante às dos grupos de futebol da

Cidade Invicta improvisando-se um campo em qualquer sítio. O primeiro que houve com as

medidas regulamentares mínimas, situava-se às portas do Ervedal. Já então havia um grupo de

jogadores que treinava regularmente e iniciou os primeiros jogos com outros grupos de terras

vizinhas. Estes primeiros entusiasmos pelo popular desporto esfriaram quando o filho mais novo de

António Borges Dinis, o Fernando, partiu uma perna num jogo de treino, no embate com o irmão

mais velho e seu padrinho do baptismo, Albino, o qual, principalmente na fase seguinte, deixaria o

seu nome indelevelmente ligado ao popular desporto e clube local, como dirigente. O campo da

bola devia ter o seu nome.

Mas apesar desse e de outros acidentes de percurso o futebol germinou por toda a parte como o

escalrracho, atirando para segundo plano os jogos tradicionais que deram até então, o melhor

entretenimento dos rapazes nos momentos de laser, tornando-os fisicamente mais fortes e

moralmente mais competitivos.

Finalmente a relação desses jogos tradicionais:

ARCO – segundo o dicionário da Sociedade de Língua Portuguesa em que nos apoiamos é um

brinquedo de crianças, que o fazem rodar batendo-lhe com um pauzinho.

Na nossa terra usava-se não o pauzinho mas a furrencha, para fazer deslizar o arco, vocábulo que

talvez seja uma corruptela de ferrancha, feminino de ferrancho, ferro pequeno, etc.

BERLINDE – jogava-se com bolinhas de vidro.

BILHARDA – pela derivação comum, o francês Billart, e pelos instrumentos utilizados, este jogo este

jogo tem semelhanças com o bilhar.

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BOGALHINHA – era jogada de uma forma semelhante à do berlinde, salvo erro ou omissão, com

bugalhas de carvalha.

CABRA-CEGA – o jogador avançava para o alvo de olhos vendados e pau em riste para desferir o

golpe certeiro, ou não, ao calha.

CARTAS – ontem como hoje, novos e velhos, praticam este jogo a dinheiro ou como simples

divertimento, originando no primeiro caso dissensões familiares ou mesmo arruíno de alguns lares.

EIXO – era costume, cada um dos rapazes que saltava por cima dos parceiros em fila e curvados

dizer: eixo ribaldeixo e aplicar com o calcanhar do pé direito uma patada nas suas nádegas. Noutros

lugares dizia-se: eixo badeixo, segundo o dicionário da SLP.

ESCONDIDAS – é ainda nos nossos dias um jogo muito em voga, praticado por rapazes e raparigas

como temos observado.

FITO – jogava-se ao fito com vinténs de cobre cunhados por D. Luís ou por D. Carlos e raramente

com patacos de bronze por serem mais antigos e já então haver poucos.

MAES – jogo de rapazes com pouca popularidade.

MALHA – o jogo da malha é muito semelhante ao do fito. Praticamente só varia o tamanho do alvo,

pesa da malha e na distância a que é colocado do local de lançamento. Também é conhecido pelo

nome de chinquilho.

MOSCA – diz-se que o jogo da mosca era jogado nos séculos XVIII e XIX, pois em Vila Franca ainda

era jogado no segundo quartel do século vinte.

PELA – o jogo da pela aqui conhecido pensamos que seja uma replica do que era praticado com

uma bola e uma raquete.

PIAO – quem não conheceu este popular divertimento? Quem não deitou o peão, o fez adormecer

e apanhou à unha? Quem?

RALHA – o jogo da ralha obrigava os rapazes a correrem muito e foi deveras popular.

RAPA – quem na sua adolescência não conheceu este jogo?

Rapa, tira, deixa e põe.

RO-RO ou RÓ-RÓ – era jogado pelos rapazes à noite, pois os participantes deviam esconder-se o

melhor possível daquele que tinha por missão, descobri-los nos seus esconderijos, dificultando-lhes

a tarefa o mais possível.

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Esta lista quiçá incompleta, dos jogos que se praticavam à mais de cinquenta anos na nossa terra,

são a prova de que a nossa mocidade se preocupava com a máxima latina mens sana in corpore

sano, que recebera dos seus antepassados.

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XIII

INSTITUIÇOES. CULTURA

O teatro, a música, o desporto; melhoramentos.

Não só de pão vive o homem.

Quem canta seu mal espanta.

Primeiro a obrigação e depois a devoção.

E… outros…

São provérbios com que pretende traduzir a necessidade sentida pelo homem de alternar os seus

hábitos e actividades quotidianas no decurso da sua integração social.

Neste preciso clima se regaram os grupos de teatro, música, desporto e de apoio ao

desenvolvimento cultural e urbanísticos locais, e que resumidamente trataremos a seguir, já que

Vila Franca, como comunidade, não podia fugir a esta simples regra.

Só que ao fazermos a sua enunciação não significa, bem entendido, que sejamos nós a pessoa

indicada para contar a historia, ainda que resumida, dos organismos ou grupos que integram ou

integraram essas actividades lúdicas, pelo que nestas paginas nos limitaremos a inscrever somente

breves apontamentos a seu respeito, que não seria curial omitir, de acordo com o critério adoptado

em relação às restantes matérias.

TEATRO – O nosso é de cepa espontânea e terá germinado como simples divertimento ou

passatempo de rapazes nas longas noites de Inverno que precediam o Entrudo, nos seroes em que

mães, irmãs ou namoradas fiavam o linho e a lã, cumprindo-se assim o que consta do ditado: quem

não tem que fazer faz colheres.

Tornou-se adulto a partir do século XIX com a representação de um drama, levada a cabo por um

grupo constituído por homens e mulheres que obteve assinalável êxito, talvez por ser coisa nunca

vista, a que atrás se referencia.

Anteriormente os programas das representações não iam além dos entremezes, só homens os

interpretavam, ainda que alguns houvessem que se disfarçar com trajes femininos.

A inspiração da mudança deve ter tido por base o acentuado crescimento demográfico verificado, a

emigração e a vinda e consequente exibição no improvisado palco do lagar de azeite do Sr.

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Morgado ou mais tarde no pátio da sua residência, de companhias de teatro ambulantes, das quais

sobressai a dadores, de Cabanas de Viriato.1

Mas esta espontânea actividade, ferida de prolongadas intermitências, tinha por resultado que a

um período relativamente fecundo – citamos como exemplo o começo da década de trinta em que

o teatro renasceu das próprias cinzas, como a Fénix mitológica, sob a responsabilidade de

adolescentes, cedo divididos em dois grupos rivais, que levaram à cena, dramas, comédias, e poesia

vária – se seguisse outro mais longo de inoperância e esquecimento por virtude de condições

socioeconómicas adversas, e daí que alguns professores primários, reparando na apatia vigente,

tenham tentado colmatar lacunas e fomentar a arte e cultura populares, promovendo recitas

infantis como actividade circum-escolar, de inegável mérito.

Assim, sendo difícil obstar que os ventos adversos que hão-de soprar sempre, apaguem o facho, já

é muito saudável que, de tempos, a tempos, se reacendam as luzes da ribalta, aproveitando a

vantagem de desfrutarmos há longos anos de um palco, modesto, sim, mas definitivo a bem de

uma cultura popular equilibrada na sede da União Desportiva e Tuna Vilafranquense.

RECORTE ilustrado do semanário NOTÍCIAS DE OLIVEIRA DO HOSPITAL - 1936

1 Maria Ivete F. Borges Dinis, correspondente em diáspora, tem sido incansável em dar a conhecer a potencialidade e

importância das nossas actividades culturais, referindo inclusive, uma recita realizada com muito êxito em 1905 ( in A

Comarca de Arganil de 31/03/981). Se a memoria não nos atraiçoa, esta foi uma replica da recita a que se alude no texto.

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A TUNA – Vila Franca, ao contrário do Ervedal, onde até as galinhas sabem música, antes da criação

da tuna, no início dos anos 30, ninguém sabia música: os tocadores que havia tocavam de ouvido.

Mas a falta de tradição e de agrupamentos musicais representativos, não significava ausência de

sensibilidade artística nata ou do gosto na execução de instrumentos de corda e de sopro,

nomeadamente a viola e a flauta, por parte dos nossos conterrâneos.

Abstraindo o lado trágico da história, contêm-se no livro Assassinos da Beira, que Clemente Alves,

de 20 anos, clavineiro, na noite de 20 de Julho de 1834, quando se encontrava a tocar violino na

rua, foi de surpresa atacado por um grupo de indivíduos capitaneado pelo próprio vigário de

Ervedal, nosso conterrâneo, que não só lhe partiu o instrumento como lhe tirou a própria vida, ao

fazer esboço de dar resposta condigna à afronta recebida.

Pedindo vénia, prosseguimos focando a tuna, o organismo em que se consubstanciou, no passado,

a vocação musical da juventude.

Correu no Verão de 1992, pela povoação, uma folha de papel almaço, para recolha de assinaturas

de rapazes predispostos a frequentarem aulas de solfejo, com vista à fundação de uma tuna,

agrupamento musical então em voga na região.

Obtidas as inscrições possíveis, logo começaram as lições dos rudimentos de solfejo e a seguir,

volvidos alguns meses, os ensaios com os instrumentos, que cada um comprou à sua custa, sob a

direcção artística do regente da banda de música do Ervedal, que aqui vinha, salvo erro, duas noites

por semana.

Para o efeito, a família Seixas, moderna proprietária, cedeu graciosamente uma sala do antigo solar

do Morgado.

A população aplaudiu, satisfeita, a Tuna, quando completados os ensaios, dentro e fora da sede, o

regente achou que podia apresentar-se em público.

A Tuna foi a todas as festas, acontecimentos e manifestações relevantes e não relevantes:

inauguração da luz eléctrica, comemoração do aniversário da República, enquanto foi permitido;

récitas, bailes, serenatas e festas várias, profanas e religiosas, na e fora da terra; fez visitas, passeios

e entrou num concurso de Tunas de Travanca de Lagos, ficando em segundo lugar.

Mudou de sede várias vezes, mas nunca lhe faltou o apoio logístico, moral e material da população,

na pessoa dos seus lídimos representantes nomeados para a direcção.

De salientar aqui a ajuda que deu o Dr. José Carlos Gomes, que na diáspora, de Coimbra trouxe,

com a carta de curso, o verdadeiro violino de Ingres, cuja maviosidade de acordes vinculou alguns

de nós, sem qualquer exame prévio vocacional, a tão difícil instrumento.

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Esse amigo lembra-nos outro, António de Almeida, do Porto, que fundou um coral, participou em

festas e récitas, não sendo por acaso que a sua estadia coincidiu com a idade de ouro do nosso

teatro amador.

Os quadros da Tuna caracterizam-se por uma grande mutação e fragilidade, imputadas ao fluxo

migratório e ao serviço militar. Os seus melhores anos foram os de 1931 a 1936. Depois começou a

declinar progressivamente e logo na década de 40 já acusava evidentes sinais de senilidade

precoce. Acabaram os regentes de fora, o terceiro e último foi o senhor Rosa, a tempo inteiro,

porque fixou residência em Vila Franca. Os regentes de dentro, alguns com real talento, (o último e

único que não emigrou foi o Manuel Dinis – Né -) por várias razões, além das já anunciadas, não

veriam coroadas de êxito todas as tentativas para manterem viva e actuante a velha Tuna. Mas é

necessário que se diga em abono da verdade e em louvor da sua Direcção, que a comemoração, em

8 de Julho de 1984, do cinquentenário da União Desportiva e Tuna Vilafranquense, marca o início

de novo ciclo da Tuna.

RECORTE ilustrado do semanário NOTÍCIAS DE OLIVEIRA DO HOSPITAL - 1936

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UNIÃO DESPORTIVA – Desporto, no bom sentido da palavra, nunca existiu em Vila Franca. O único

desporto de massas conhecido é o futebol. A própria União Desportiva é uma consequência do

grupo de futebol, constituído nos anos 20 e ressuscitado nos anos 30, de uma forma semelhante à

Tuna, isto é: fazendo-se circular pela povoação uma folha de papel almaço, para a recolha de

assinaturas de rapazes dispostos a praticarem futebol. Só depois de se terem realizado alguns

desafios caseiros, criando ou reavivando rivalidades antigas, entre Solteiros e Casados, o Cimo e o

Fundo e Velhos e Novos, é que se combinou o primeiro desafio a sério com um grupo de fora e se

assentou no nome a dar-lhe, sendo o escolhido por consenso o de União Desportiva

Vilafranquense, porque essa era a designação do grupo pioneiro.

Passado pouco tempo ligou-se à Tuna para formar a que foi designada por União Desportiva e Tuna

Vilafranquense – uma só direcção e uma só sede (a Capela Velha).

Julgamos que o desporto em Vila Franca – melhor ou pior – dispõe de estruturas adequadas para

sobreviver, o que não dispõe, como qualquer outra aldeia do seu tipo, é de condições económicas e

até ocupacionais, proporcionando o seu desenvolvimento harmonioso, em moldes que, para além

da sobrevivência, garantem estabilidade de quadros e, com o equipamento social que já possui e

pode alargar e melhorar (faz falta uma piscina e um ginásio), torne compensador o esforço

desenvolvido pela colectividade.

Com sede, moderna e polivalente, desde os anos 50, e campo de futebol desde os anos 30,

sucessivamente melhorado e ampliado – duas conquistas que atestam insofismável mente o

bairrismo das gerações passadas e presentes – dispõe do que muitas vilas gostariam de ter e não

têm ainda.

Consideramos de interesse referir também, pelo ineditismo e arrojo de concepção a realização de

alguns números incluídos nas festas levadas a cabo pela União Desportiva, tanto na sede como no

campo, com desusada repercussão dentro e fora da localidade, nomeadamente as récitas, bailes,

desafios de futebol feminino e paraquedismo, militar e civil. O festival de 80 incluiu até

paraquedistas dum clube de Espanha.

Sede da União Desportiva e Tuna Vilafranquense em construção

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A COMISSÃO DE MELHORAMENTOS – a sua acção, ultimamente tem sido pouco perceptível, talvez

por falta de sede própria.

O papel da Comissão de Melhoramentos, nas sucessivas fases da sua evolução histórica, foi sempre

o de aglutinar, disciplinar e coordenar o trabalho de um grupo de pessoas eventualmente

interessadas em contribuir com o seu esforço para o bem comum.

Quando se planeou, há muitos anos (1930/1931), o abastecimento da água potável à povoação

através de chafarizes, automaticamente surgiu uma comissão a tutelar o movimento.

De momento era essa a sua única finalidade. Deveria durar enquanto durassem as obras. Acabadas

estas, acabaria a comissão. Só que as obras foram-se arrastando, até que outros melhoramentos

intermédios motivaram os homens, chamados carolas, a manterem-se de serviço permanente,

valendo-se do seu próprio prestígio, dinheiro e vontade para darem força ás acções desenvolvidas.

Eles eram a Comissão.

Não obstante a falta de estruturas, tem estatutos aprovados, e está credenciada para servir de

interlocutora válida com as autoridades responsáveis pela prossecução de quaisquer obras a

realizar na povoação.

Pertence já, por direito, ao património de Vila Franca.

Saudemos os carolas que na prática, transmitiram à Comissão de Melhoramentos as suas próprias

qualidades e defeitos, tornando-se possível ao longo de muitas dezenas de anos que o progresso de

Vila Franca e o bem-estar da sua população avançassem mais disciplinadamente.

Esta a história contada por nós, mas que outros podem contar melhor do que nós.

Temos a certeza disso.

O que apresentamos é somente um resumo da acção desses organismos dependentes do bairrismo

dos nossos conterrâneos, omitindo nomes com receio de ferimos susceptibilidades.

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NOTA FINAL

Antes de terminarmos não queremos deixar de expressar aqui os nossos sinceros agradecimentos

ao nosso antigo colega e amigo António Gil de Melo Roque Pimentel pela ajuda que deu em

dactilografar esta monografia com tal desinteresse e simpatia.

Ao querido amigo e conterrâneo Dr. António Marques Frade, agradecemos os elementos que nos

forneceu, relativos ao processo da criação da Freguesia de Vila Franca da Beira, honrando-nos mais

uma vez com a sua amizade.

À Junta de Freguesia a maior simpatia e respeito pelo desempenho das suas funções em prol do

progresso e desenvolvimento económico e social da nossa querida Vila Franca.

Aos nossos queridos familiares, cada vez menos e mais dispersos e aos nossos conterrâneos,

estejam onde estiverem, para todos eles vai o nosso abraço amigo.

E, por último, já tinha dado o livro por concluído, chega-nos a adesão, o apoio inesperado e

encorajador do nosso amigo e antigo companheiro de carteira na desaparecida escola velha de Vila

Franca, Fernando Borges Diniz.

Escola de Vila Franca da Beira

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Monografia de Vila Franca da Beira

1993

Autor:

JOSÉ MARQUES LOPES

(“Zé Vicente” )

( um Vilafranquense já falecido)

Na net em: 01.09.2013