MODELAGEM E ÉTICA NO APOIO ÀS DECISÕES -...

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O decisor racional deve,

dentro da sua

subjetividade, seguir o

rumo indicado pelo

procedimento.

TENDÊNCIAS

RAE Light • v. 6 • n. 2 • p. 11-13 • Abr./Jun. 1999

INTRODUÇÃO

Os modelos e suas corresponden-tes teorias para o apoio às decisões sãoo fruto de um processo dedutivo lógi-co, na mais pura herança cartesiana.Seus objetivos normativos ouprescritivos dispensam o trabalho devalidação empírica. Por outro lado,seria impossível proceder a uma vali-dação experimental. O decisor racio-nal deve, dentro da sua subjetividade,seguir o rumo indicado pelo procedi-mento. Na prática, admite-se certatolerância (respaldada por uma análi-se de sensibilidade ou de estabilidadeda prescrição) por conta das simpli-ficações requeridas quando do pro-cesso de modelagem.

De fato, decisores confrontadoscom situações complexas em que aidentificação de alternativas é difícile ocorrem objetivos múltiplos e con-flitantes, bem como incerteza, teste-munham o precioso auxílio dos mo-delos para o apoio às decisões. A neu-tralidade do analista de apoio às deci-sões e dos seus procedimentos se ba-seia na mais completa incorporaçãodos valores, das preferências e daspercepções do decisor.

Na realidade, existem diversosprocessos distintos para o apoio àsdecisões, cada um desenvolvido den-tro de uma racionalidade que lhe éprópria. Para cada um deles, os ele-mentos do decisor, acima menciona-dos, assim como a mecânica de cál-culos, agregações e análises, são di-

ferentes. Conseqüentemente, essesdistintos processos iluminam a situa-ção sob diferentes ângulos, enfatizamdistintos aspectos e podem conduzira diferentes recomendações. A reco-mendação para a utilização de um pro-cesso em lugar de outro é o trabalhodo analista. Pode, nessas circunstân-cias, o analista aspirar a uma verda-deira neutralidade? Deve ele questio-nar a ética da sua atuação?

O problema mais abrangente deética e modelagem pouco aparece na

literatura. É como se existisse umalógica única, verdadeira, consensual,atemporal, a-histórica e acultural.Wallace (1994) constitui rara exce-ção ao abordar o tópico. De fato, amodelagem sempre serve para a aná-lise de situações e freqüentementepara o apoio às decisões. Entretanto,existe um corpo específico de conhe-cimento e técnicas para o apoio àsdecisões. Desejamos analisar o pro-blema, título do presente texto, noâmbito específico desse instrumen-tal de apoio às decisões.

OS MODELOS PARA O APOIOÀS DECISÕES E SEU USO

Os modelos respondem a proble-máticas específicas. Apesar disso, elessão bastante flexíveis para se adaptara situações que não correspondam à suavocação primeira. Todos permitem li-dar com situações complexas e incor-porar os elementos de risco, apesar deo fazerem de modos bem distintos.

Citando apenas os métodos maisconsagrados, ao se tratar de objetivosmúltiplos e conflitantes, observamosa abordagem anglo-saxã com a Multi-Attribute Utility Theory - MAUT -,

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A modelagem sempre

serve para a análise de

situações e

freqüentemente para o

apoio às decisões.

TENDÊNCIAS

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descrita por Dyer e Sarin (1977),assim como sua versão simplificadae de utilização mais fácil, a SingleMeasure Attribute Rating and Swing- SMARTS. A abordagem da EuropaContinental é a Multi-CriteriaDecision Aid - MCDA - e sua versãosimplificada, Promethée. Finalmen-te, o Analytic Hierarchy Process -AHP -, de origem norte-americana, émuito criticado nos meios acadêmicos,mas sua simplicidade lhe garante umagrande popularidade. Referências so-bre todos esses métodos podem serencontradas em Ehrlich (1996).

Um decisor, confrontado com umasituação de decisão complexa, podedesejar recorrer a um desses modelosde apoio às decisões. Mas como es-colher? Quando a situação atinge essenível de dificuldade, ele começa porum caminho que lhe seja familiar ede fácil compreensão. Por exemplo,ele utiliza um processo bem simplese ingênuo, como uma média ponde-rada das preferências em cada atribu-to. Se o decisor se sentir pouco apoi-ado ou desconfortável com os resul-tados de tal procedimento, ele irá pro-curar, diretamente ou por meio de umanalista profissional, um método queele possa aprender rapidamente e uti-lizar facilmente, como, por exemplo,o AHP. Por outro lado, ferramentas deuso excessivamente simples podemlevar ao famoso erro do tipo III: usode procedimentos inadequados que,mesmo que escrupulosamente bemseguidos, conduzem a soluções erra-das. Não há como o não-especialistater domínio das estruturas implícitasnos modelos mais sofisticados. Apartir desse ponto, se houver neces-sidade de um maior aprofundamento,o decisor estará irremediavelmentenas mãos do analista. Mesmo que asrecomendações do analista venhama ser discutidas e descartadas, todo oprocesso estará girando em torno daâncora ditada pelo processo utiliza-do pelo analista.

Em princípio, o decisor nunca de-lega a decisão final a um modelo ma-

nipulado por um analista. Na prática,o decisor sempre fica com a últimapalavra e com a decisão final. Entre-tanto, para alcançar sua escolha final,ele terá que se basear num instrumen-tal que ele nunca dominará. Na reali-dade, a situação não é muito diferenteda atuação de qualquer profissional deconsultoria. Ela pode chegar a ser tãocrítica como a atuação de um médico -sempre podemos procurar outra opi-nião de outro profissional, mas adisparidade nas competências espe-cíficas reduz enormemente o livre-

arbítrio do paciente. Não é por acasoque a profissão médica se defrontaconstantemente com problemas éticos.

Esse problema aparece, em prin-cípio, em todas as atividades de con-sultoria. Entretanto, ele somente setorna relevante quando: a) o encami-nhamento do consultor pode afetarprofundamente os resultados e b) aatuação do consultor é difícil de seracompanhada pelo interessado (nocaso, o decisor), levando a uma de-legação do processo com a ilusão detambém ter delegado a responsabili-dade e o arcar com as conseqüênci-as. Assim como em medicina, ambosesses aspectos estão presentes noapoio às decisões.

Por outro lado, a vida do médiconão está em jogo nem os prejuízosoriundos de uma má decisão recaemsobre o consultor. As recompensastambém se limitam à remuneraçãopelo serviço profissional.

Os modelos são de grande serven-tia nos casos de decisões complexas.Seu poder reside na abordagem ana-lítica de decompor a complexidade empartes mais simples e na recomposi-

ção final para chegar à seleção de al-ternativas. A estruturação dentro deum procedimento analítico é tão po-derosa que uma grande maioria de si-tuações de decisão é resolvida já nes-sa fase, sem que seja necessário avan-çar para as fases subseqüentes. Umdecisor encantado com o poder damodelagem para tratar da complexi-dade terá dificuldades em aceitar aslimitações da modelagem para lidarcom situações difíceis. Uma situaçãodifícil é aquela na qual temos difi-culdades em ordenar alternativas:apesar de termos analisado bem ascomplexidades, temos dificuldadeem desempatar alternativas que com-petem pela seleção.

MODELOS E RESULTADOS

Existem muitos testemunhos dedecisores atestando a utilidade e aimportância de sistemas, de procedi-mentos e de modelos de apoio às de-cisões. Isso ocorre nos mais variadostipos de trabalhos, de engenharia amarketing (Bruggen et al., 1998), pla-nejamento estratégico, finanças etc.Como explicar esse sucesso pratica-mente idêntico para as mais variadastécnicas de apoio às decisões? Os es-pecialistas investem grandes esforçosem desqualificar a racionalidade dosprocedimentos e modelos que não sãoda sua predileção, enquanto, para osusuários, todos os modelos ajudam.

Sendo os modelos oriundos de umprocedimento exclusivamente deduti-vo, dentro de uma lógica, fica bemdifícil compará-los. Isso seria o mes-mo que comparar opções de fé. En-tretanto, Olson et al. (1995) se pro-puseram a essa tarefa no âmbito deum experimento controlado. Vinte eum estudantes de MBA foram colo-cados diante de um problema comple-xo que eles conheciam bem: escolherum emprego após a formatura. Osquatro objetivos foram salário, loca-lização geográfica, cargo e potencialde desenvolvimento na empresa. Fo-ram descritas cinco alternativas. De

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Pierre J. Ehrlich é Professor doDepartamento de Informática e

Métodos Quantitativos Aplicadosà Administração da EAESP/FGV.

Em princípio, o decisor

nunca delega a decisão

final a um modelo

manipulado por um

analista.

MODELAGEM E ÉTICA NO APOIO ÀS DECISÕES

RAE Light • v. 6 • n. 2 • Abr./Jun. 1999

modo disfarçado, os estudantes forampostos diante do processo de seleçãoentre as cinco alternativas, utilizandoquatro procedimentos de apoio às de-cisões. O estudo se concentrou sobreas consistências dos estudantes diantedas mesmas alternativas, analisadascom diferentes modelos. O resultadofoi, de certo modo, surpreendente:a) as ordens de preferência, assim

como a primeira escolha, variarammuito com o modelo utilizado;

b) os modelos foram, todos, bemapreciados, e suas utilidades, bemsalientadas. Constatou-se prefe-rência por modelos de fácil com-preensão (como o AHP) em detri-mento daqueles que procuram ummaior rigor lógico (como oSMARTS).Nesse experimento, a montagem

do problema de decisão procurou umasituação evidentemente difícil, em quetodas as alternativas estivessem pró-ximas umas das outras. Todos os mo-delos partiram de um procedimento deestruturação hierárquica usualmenteapontado como um dos maiores be-nefícios dos modelos de apoio às de-cisões. Os resultados, entretanto, fo-ram fortemente afetados pelo modo deelicitação das preferências das alterna-tivas e das importâncias dos objetivos.

Esse experimento nos remete aoproblema original da ética. Se, ao re-comendar a utilização de um mode-lo, o analista pode influir no resulta-do, pode ele clamar por sua neutrali-dade? Se essa neutralidade é impos-sível, não conviria assumir de vez oviés introduzido pelo analista e tra-balhar essa dimensão de modo maisaparente e aberto?

O ANALISTA E A ÉTICA

Em todas as profissões, poderemosencontrar casos de comportamentoantiético: médicos a serviço de tortu-radores, psicólogos que internam dis-sidentes políticos em manicômios,engenheiros que realizam obras queeles próprios reconhecem serem inú-

teis e danosas ao meio ambiente etc.Modelagem e analistas de decisõesnão escapam às tentações - freqüen-temente estão a serviço da confirma-ção de decisões anteriormente toma-das e de moralidade duvidosa. Aban-donemos esse filão para os comitês deética profissional.

Os problemas em relação à dimen-são cultural dos processos de decisãosão bem mais difíceis de serem trata-dos. Novamente recaímos no proble-ma da exportação de valores. Proje-tamos nossa visão do mundo sobre

outras culturas. Todo processo de de-cisão varia de uma cultura para outra.Processos e modelos podem não serexportáveis. O conceito de eficiêncianão é universal, entretanto, está noâmago de todos os modelos de apoioàs decisões. A recomendação de umprocedimento, responsabilidade doanalista, pode influenciar os resultados.Por mais que os analistas desejem cla-mar por neutralidade no processo, elesestão irremediavelmente implicados noresultado da sua atuação.

Em muitas situações, um decisorpoderá não revelar os objetivos quelhe são importantes e manipular o tra-balho do analista para atingir essesobjetivos. A literatura está repleta deexemplos de manipulação da“racionalidade” para fins políticos oude barganha, não revelados. A coni-vência do analista nessa operação demanipulação é freqüente.

Volto à analogia com o bom mé-dico que informa ao paciente: “Meudiagnóstico é X, eu costumo ter o pro-cedimento Y e, na maioria das vezes,eu obtenho o resultado Z; entretanto,

existe um risco…”. Um paciente beminformado passa a decidir entre pros-seguir com esse médico ou consultaroutro. Se muitos médicos não agemdesse modo, pouquíssimos analistasde decisão o fazem. Em parte, porqueestão extremamente empenhados emvender a sua lógica - classificando deirracional o decisor que não a seguir -e, em parte, por desconhecer o traba-lho, os sucessos e fracassos de outrosprocedimentos.

Ética e prática empresarial consti-tuem um assunto muito em voga. Hojeem dia, poucos são os programas deadministração de empresas que nãotratam desse tópico tão importante. Aprática de consultoria em administra-ção costuma ser uma disciplina eletivae sem grande atrativo. Ética em con-sultoria é menos estudada ainda. Con-sultoria em modelagem é um assuntoconsiderado exótico e pouco inteligí-vel para a maioria dos administrado-res. Para muitas empresas, não fazsentido ter um corpo de funcionáriosdedicados à modelagem em decisão.O campo está aberto para a consulto-ria. Há muito o que fazer. �

BRUGGEN, G. H., SMIDTS, A., WIERENGA, B.Improving decision making by means of a mar-keting decision support system. ManagementScience, v.4, n.5, 1998.

DYER, J. S., SARIN, R. K. Multicriteria decisionmaking. The Encyclopedia of Computer ScienceTechnology, 1977.

EHRLICH, P. J. Modelos quantitativos de apoioàs decisões. RAE - Revista de Administração deEmpresas, v.36, n.1 e 2, 1996.

OLSON, D. L. et al. Consistency and accuracyin decision aids: experiments with fourmultiattribute systems. Decision Sciences, v.26,n.6, 1995.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS