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83 Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 1, n. 2, p. 83-108, jul./dez. 2011 Modernidade e angústia na obra de Charles Baudelaire: uma análise filosófica dos poemas de “As Flores do Mal1 Vinícius França de Sene 1 1 Orientadora: Semíramis Corsi Silva. Doutoranda em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Docente do Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). E-mail: <[email protected]>. 2 Acadêmico do Curso de Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). E-mail: <vin- [email protected]>. Resumo: O objetivo deste artigo é compreender a ideia de angústia relacionada à questão da modernidade na obra de Charles Baudelaire. Assim, pretendemos fazer uma análise filosófica dos poemas As Flores do Mal. Em tais poemas, percebemos a insatisfação do poeta em relação ao progresso da modernidade e à substituição do homem pelas máquinas, o que levava o homem moderno a pensar estar perdendo sua própria identidade. Para compreendermos filosoficamente o que causa angústia em um homem como Baudelaire, utilizaremos dois filósofos da corrente filosófica existencialista: Kierkegaard e Nietzsche, já que eles são contemporâneos de Baudelaire e críticos desta mesma modernidade. Além disso, percebemos que estes filósofos fazem a mesma afirmação de Baudelaire ao se referirem ao homem moderno perdido em meio à sua época, valendo-se de várias identidades pra sobreviver. Por fim, temos como objetivo estudar estes pensadores do período oitocentista para refletirmos também sobre a fragmentação do sujeito pós- moderno. Palavras-chave: Filosofia. Modernidade. Angústia. Charles Baudelaire. As Flores do Mal.

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Modernidade e angústia na obra de Charles Baudelaire: uma análise filosófica dos poemas de “As Flores do Mal”1

Vinícius França de Sene 1

1 Orientadora: Semíramis Corsi Silva. Doutoranda em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Docente do Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). E-mail: <[email protected]>.2 Acadêmico do Curso de Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). E-mail: <[email protected]>.

Resumo: O objetivo deste artigo é compreender a ideia de angústia relacionada à questão da modernidade na obra de Charles Baudelaire. Assim, pretendemos fazer uma análise filosófica dos poemas As Flores do Mal. Em tais poemas, percebemos a insatisfação do poeta em relação ao progresso da modernidade e à substituição do homem pelas máquinas, o que levava o homem moderno a pensar estar perdendo sua própria identidade. Para compreendermos filosoficamente o que causa angústia em um homem como Baudelaire, utilizaremos dois filósofos da corrente filosófica existencialista: Kierkegaard e Nietzsche, já que eles são contemporâneos de Baudelaire e críticos desta mesma modernidade. Além disso, percebemos que estes filósofos fazem a mesma afirmação de Baudelaire ao se referirem ao homem moderno perdido em meio à sua época, valendo-se de várias identidades pra sobreviver. Por fim, temos como objetivo estudar estes pensadores do período oitocentista para refletirmos também sobre a fragmentação do sujeito pós-moderno.

Palavras-chave: Filosofia. Modernidade. Angústia. Charles Baudelaire. As Flores do Mal.

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1. INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo analisar a ideia de modernidade e an-gústia, em uma visão filosófica na obra de Charles Baudelaire, mais espe-cificamente em seus poemas Les Fleurs du Mal (As Flores do Mal). Para compreendermos melhor os conceitos fundamentais deste trabalho, ana-lisaremos alguns escritores que falam sobre a modernidade oitocentista, e o conceito de angústia na obra de dois grandes filósofos existencialistas, Kierkegaard e Nietzsche. Assim, visamos identificar os principais motivos causadores da angústia na modernidade de Baudelaire.

Para Baudelaire, a modernidade é a reconstrução e a afobação da hu-manidade na grande metrópole de Paris. Ele ainda afirma que não há nada mais moderno que a vida nas grandes cidades. O poeta também esclarece que a modernidade está intimamente ligada à noção de conflito, já que por outro lado provoca angústia pela perda de controle e pela aceleração, e isto se configura como o centro da vida cotidiana moderna, ou seja, da vida nas grandes cidades. Contudo para ele: “A modernidade é o transitó-rio, o efêmero, o contingente.” (BAUDELAIRE, 1996).

Sobre Baudelaire, sabemos que ele nasceu da união matrimonial en-tre François Baudelaire e Caroline Archinbaut-Dufays, no nono dia do quarto mês de 1821, na capital francesa. Recebeu o nome de Charles Pier-re Baudelaire. Desde pequeno Baudelaire levou uma vida bem atribulada. Com a morte de seu pai aos seis anos, não aceitava o segundo companhei-ro de sua mãe, o general Aupick. Tempos depois interrompeu seus estudos em Lyon partindo para Índia. Baudelaire foi amante da boêmia parisiense, perdeu suas economias com mulheres e bebidas, chegando a ser enviado a um conselho judiciário iniciado por seus familiares.

Criador de belíssimas obras, entre as quais a mais conhecida é o livro de poemas As Flores do Mal. Sobre este livro sabemos que: “[...] trata-se de um livro de poemas que tem no título o Mal associado ao Belo (Flores), arruinando, a um só tempo, a tradicional adequação entre o Belo e o Bem como ainda a metafísica de sua separação” (MATOS, 2005, p. 313).

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Sendo assim, explica-nos Barroso (2002, p. 24):

Em Baudelaire entrevemos uma complexidade desconcertante, uma cabala de contradições bizarras, de antagonismos quase absurdos e que poderia passar por fingidos com toda facilidade porquanto ele próprio se dava também ao fingimento. Essa vida e essa obra cheia de contrastes, de poses, de simulações, de lancinantes verdades, de ignominiosos sofrimentos, de luminescentes criticismos ao lado de inadmissíveis idiossincrasias resulta no amálgama cuja decomposição elemental nos permite atestar que o gênio é uma concentração de antíteses e que da explosão antitética que surge o esplendor do Novo. Do Novo, não no sentido banal de novidade gratuita ou passageira, mas Novo na acepção do agora que se transformará em Eterno.

Baudelaire não vivia nos salões nobres de Paris, mas sim na boêmia francesa, foi o ser protético, com atitudes extravagantes e conflituais que marcou sua existência em sua época. Contudo, Baudelaire é considerado um dos grandes pensadores franceses de todos os tempos. Alguns o con-sideram um ensaísta do parnasianismo, outros um romântico exacerbado. De desempenho ousado, tornou-se um modelo no século XX, influen-ciando a poesia mundial de tendências simbolistas. Baudelaire foi precur-sor de uma linguagem moderna no romantismo, que denominamos hoje como simbolismo, concedendo a realidade uma submissão lírica.

No entanto, suas obras e sua capacidade intelectual só foram reco-nhecidas após sua morte, que se deu aos trinta e um dia do oitavo mês de 1867, nos braços de sua mãe, após grande acúmulo de doenças de origens nervosas.

Para tratarmos da temática da angústia nas obras de Baudelaire, or-ganizamos este artigo em três partes. Na primeira parte, trataremos so-bre a contextualização histórica de Baudelaire e sobre a sua modernidade, utilizando diversos autores para nos esclarecer sobre a modernidade de Baudelaire. Já na segunda parte, temos como objetivo mostrar a definição filosófica de angústia na ótica de dois filósofos existencialistas, Kierkega-ard e Nietzsche, uma vez que esta corrente filosófica é contemporânea a

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Baudelaire e o principal motivo de angústia no homem; para estes filó-sofos, é a fragmentação com a qual ele está se deparando por consequên-cia do avanço da modernidade. No entanto, após termos apresentado os conceitos de modernidade e angústia, temos como objetivo, na terceira parte do artigo, fazer uma análise dos poemas de Baudelaire encontrados na obra As Flores do Mal. Intentamos com isto, retirar destas análises a crítica de Baudelaire ao progresso da modernidade e a angústia ressaltada por ele nestes poemas, que mostram as transformações nos sentimentos e sofrimentos humanos que a sociedade oitocentista passou.

Portanto, no decorrer da apresentação deste artigo iremos perceber muitas preocupações e inquietações no mundo moderno oitocentista de Baudelaire que são semelhantes as do mundo de agora, o mundo pós-mo-derno3. Tal característica torna, assim, nosso trabalho fundamental para a compreensão de aspectos sobre o sentimento do homem na atualidade.

3 É possível encontrar várias definições quando nos referimos a um conceito para contextualizar determi-nado período histórico, e por este motivo, optamos por escolher a definição que Terry Eagleton para definir o que seria a Pós-Modernidade, que também é um conceito polissêmico. “A palavra Pós-modernismo refere-se em geral a uma forma de cultura contemporânea. Pós-modernismo é um estilo de cultura que reflete um pouco essa mudança memorável por meio de uma arte superficial, descentrada, infundada, auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista, que obscurece as fronteiras entre a cultura elitista e a cultura popular, bem como a arte e a experiência cotidiana” (EAGLETON, 1998, p.70). Pode ser essa uma das hipóteses, que a nossa sociedade Pós-Moderna está enfrentando suas mais derivadas crises ou mudanças. Com essas mudanças acontecendo em todos os lugares e em todos os momentos, a identidade também está se deparando com a fragmentação humana, uma vez que ela não tem mais referências, até mesmo sentido. Assim, o sujeito Pós-Moderno se depara com tais situações porque anterior a este período chamado “Pós-Modernidade”, historicamente tivemos outros dois períodos históricos, o Iluminismo, e posterior a este a Modernidade. Sabemos que o principal resultado do Iluminismo foi transformar o sujeito em um ser individualista, dizia Kant, que o objetivo deste período era com que o sujeito saísse do seu estado de minoridade alcançando a razão por si só, com isso ele dispensa a dependência das pessoas, mas este estado tradicional garantia certa estabilidade para a sociedade, que ao contrario a essa afirmação, a modernidade com a Revolução Industrial, o avanço tecnológico, afirmava que as pessoas precisavam uma das outras, pregando, no entanto, o sentido da coletividade, mas já pregava que tudo era muito passageiro, já não garantia tanta certeza para a humanidade. Como vemos, tivemos na história anterior a Pós-Modernidade, dois períodos completamente opostos que influenciaram substancialmente nossa atualidade em relação à fragmentação humana. Isso, entretanto, já ocorria na modernidade de Baudelaire, por isso a sua crítica à mesma. Concluindo, atualmente o sujeito assume identidades em diferentes momentos e a incerteza das coisas fica cada vez maior, a contemporaneidade proporciona várias possibilidades, causando no homem a fragmentação de identidade e a angústia diante das possibilidades de escolhas.

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Desta forma, acreditamos que por meio da análise sobre o cenário moderno da cidade de Paris oitocentista possamos começar a compreen-der a angústia em Baudelaire.

2. A MODERNIDADE DE CHARLES BAUDELAIRE

Para melhor entendermos o contexto histórico que Baudelaire vi-venciou, é necessário nos reportarmos aos meados do século XIX, perí-odo em que o mundo passou por grandes modificações, tantos sociais, como econômicas, culturais, poéticas, filosóficas e existenciais.

É, portanto, dentro desta era de transformações, principalmente nas grandes metrópoles, que viveu Baudelaire. Como afirma Gomes (1994, p. 07), “[...] é nesse cenário que surge tanto a obra de Baudelaire, quanto o simbolismo”.

No fim do século XVIII, iniciou-se a “Revolução Industrial”, mas o seu auge só foi atingido no começo do século XIX, com a produção de massa de mercadorias e com a automatização das indústrias. Por es-tes motivos, as cidades começam a crescer cada vez mais, e, com isso, os camponeses passam a abandonar o campo em busca de melhores salários nos centros urbanos das grandes metrópoles. Sendo assim, afirma Gomes (1994, p. 07):

A era moderna parece nascer aí: crescem a produção e o consumo dos bens manufaturados, e o homem cria a ilusão de que o mundo se tor-nou menor, graças à velocidade dos meios de locomoção. O resultado dessa obsessão com o progresso é a intensa euforia, somada a crença na onipotência do homem, que se deixa guiar quase que exclusiva-mente pela razão.

Contudo, sabemos que a Revolução Industrial está intrinsecamente ligada ao avanço extraordinário das ciências e da tecnologia, que possi-bilitou novas invenções para o melhoramento e o aperfeiçoamento das indústrias, mas esta relação não só restringiu a esse aperfeiçoamento da

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tecnologia, mas também “[...] o progresso industrial, que trouxe inegáveis benefícios à humanidade tem seu paralelo numa concepção científica e materialista das coisas que procurava explicar o sentido do universo quase que exclusivamente pela razão” (GOMES, 1994, p. 08).

Gomes (1994, p. 08) ainda afirma que:

A euforia provocada pela crença no progresso, pelas grandes desco-bertas científicas, paradoxalmente acabaria por levar a séria crise. A revolução industrial, ao criar a fantasia do paraíso material do con-sumismo, da produção em massa de objetos, em determinado instante, mostra o outro lado da moeda. Os centros urbanos tornam-se mais agitados, mais ricos, contudo expõem, ao mesmo tempo a miséria dos aglomerados humanos dos bairros de lata. A automatização, que leva à produção de manufaturados em série, transforma o operário numa engrenagem da máquina. A obsessão pelo consumo, pela produção desenfreada pelas novidades, leva ao modismo, ao princípio de que tudo é transitório, nada é duradouro, inclusive os critérios de gosto e de arte. Os objetivos artísticos, com suas mercadorias, passam a ser consumidos vorazmente e, por causa disso, têm curta duração. Em consequência disso, o homem passa a ter sensação de que vive num mundo fragmentário e de valores efêmeros.

Portanto, é nesse sentido que Baudelaire critica a modernidade; para ele o avanço trouxe certa ruína para o mundo moderno. Até mesmo nas relações humanas este progresso teve interferência. Segundo nosso poe-ta, não existe mais confiança nas relações intra-pessoais, tudo ficou muito passageiro, artificial, os homens têm medo de se relacionarem com os ou-tros, porque com estas transformações não se pode confiar nas afinidades, e isso causa angústia no homem, porque ele se sente fragmentado diante das multidões das grandes cidades.

Conforme Hyde (apud KIRCHOFF, 2004, p. 01), “[...] a literatura modernista nasceu na cidade e com Baudelaire, principalmente na desco-berta deste poeta de que as multidões significam solidão e que os termos

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multitude e solitude são intercambiáveis para um poeta de imaginação fértil e ativa”.

Para Koch (apud KIRCHOFF, 2004, p. 01), “[...] o modernismo de Baudelaire, consiste na radicalização do foco estilístico da linguagem em detrimento do foco informacional”.

Já Coli (2005) afirma que a modernidade trouxe com seu avanço tecnológico as poderosas máquinas, que jamais as pessoas das pequenas cidades e de outras épocas haviam visto. Tais mudanças foram também observadas de maneira surpreendente na música, na pintura, na filosofia, na poesia, enfim, na construção das belas produções da modernidade. Desta perspectiva, sua crítica em relação a essa transformação foi: “A arte entusiasmou-se por um mundo que se transformava tecnicamente de ma-neira rápida, acreditando nas utopias futuras do progresso” (COLI, 2005, p. 264).

A partir dessas considerações, sobre o progresso da modernidade, vista pela ótica dos autores citados, podemos observar como Baudelaire sentia o progresso e a transformação do homem de sua época.

O que é mais absurdo do que o progresso, já que o homem, como é provado pelos fatos cotidianos, é semelhante e igual ao homem, quer dizer, sempre no estado selvagem! O que são os perigos da floresta e da planície diante dos choques e dos conflitos cotidianos da civiliza-ção? Que o homem enlace sua enganada no boulevar, ou transpasse sua presa em florestas desconhecidas, não é ele o homem eterno, quer dizer, o mais perfeito animal de rapina? (BAUDELAIRE, 1947).

Desse modo, Benjamin (apud COLI, 2005, p. 294). comenta: “É sobretudo a fé no progresso que Baudelaire persegue com seu ódio, como uma heresia, uma doutrina errada, e não como um erro comum”.

Para Habermas (apud KIRCHOFF, 2004, p. 2), é com Baudelaire que a alusão à modernidade passa a ser observada por uma atualidade que se “autoconsome”. Esta, no entanto, não pode ser aguardada com a pers-pectiva de que um dia irá acabar, desde então, essa atualidade passa a ser o centro da vida moderna, não podendo mais buscar refúgio nos tempos

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passados. Assim, a atualidade passa a ser observada com o entrelace de tempo e o desconhecido.

Como percebemos, Kirchoff (2004) esclarece-nos que é na grande metrópole que Baudelaire encontra o elemento poético imaginário para construir a principal metáfora deste novo tempo oitocentista. A cidade é o lugar que simula fisicamente as novas formas de construção e organi-zação social que foram afetados pelos tempos anteriores, operando como forma de reorganização das novas relações em um novo mundo, não mais organizado e dirigido por ordens positivistas. Do ponto de vista objetivo do poeta, ele utiliza do termo flaneire para resgatar no homem o sentido imaginário e a relação com o passado, que esta modernidade interrompeu. Utilizando-se deste termo, Baudelaire trata do homem que é capaz de des-pertar o imaginário, indo aonde jamais fisicamente ele irá: no mundo da poesia, e do filosofar. A flaneire pode ser mais bem compreendida se opos-ta ao simples passeio, seguindo a sugestão de Ferrara, (apud KIRCHOFF, 2004). Na turnê do flâneur as imagens da cidade se depararam estáticas, seguras e publicamente compiladas, garantindo a certeza da própria exis-tência urbana por meio de experiências passadas. A flaneire, contudo, não decorre apenas da simples observação, é de suma importância que ela esteja fundamentada na reflexão, conquanto as figuras nos sirvam como atalhos, para que nos brotem estes sentimentos que nos leva às profundas reflexões.

Assim o flâneur:

É um observador que caminha tranquilamente pelas ruas, apreen-dendo cada detalhe, sem ser notado, sem se inserir na paisagem, que busca uma nova percepção da cidade. E para situar a curiosa figura do flâneur no tempo, é preciso entendê-lo, antes de tudo, como uma figura nascida na modernidade. Ele apareceu como o contraponto do aspecto que trata das relações entre os fenômenos urbanos das mul-tidões e a experiência vivida e transmitida pelo escritor através de sua forte expressão poética. (PASSOS et al, 2003, p. 06-07).

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Ainda segundo Coli (2005, p. 295):

Flanar é encontrar a poesia, captando as aparições casuais nas ruas, e delas extrair impressões misteriosas. Diante da cidade moderna, o olhar do poeta não é o do hábito, que caleja a percepção. É, ao con-trário, o de uma sensibilidade muito aguçada: aguçada por estados “anormais”, febris, que o jejum e as drogas (os paraísos artificiais) podem trazer. Nessa percepção o flâneur encontra-se a substância da poesia. Não existem verdades últimas, mas existem seguranças de qualquer sorte. Há, ao contrário, um processo contínuo que busca se nutrir do efêmero.

O homem moderno, com seus conceitos de angústia e destroços, perceberá o aspecto disforme, que se configura como este novo jeito de ser e de se relacionar na era moderna. Baudelaire, flâneur da Paris oito-centista, é o observador das dessemelhanças humanas que tomam os gran-des centros urbanos, onde o camponês divide o mesmo território com o burguês, onde as grifes se misturam, onde as relações são abaladas, onde as disputas acontecem por motivos distintos, onde o “ter” ganha lugar do “ser”. É, contudo, nesta nova geração “social” que a observação acentu-ada e crítica do poeta encontra algo, até então desconhecido, do que o simples amadorismo voyeurista do flâneur, pois “[...] os seres perdem o seu aspecto familiar, há uma completa subversão da ordem ontológica. A desproporção no miúdo sugere uma desarmonia universal” (ANATOL, apud MEDEIROS, 2004).

Baudelaire, percebendo este abismo que as pessoas estavam se depa-rando devido à interferência que o avanço dos grandes centros vinha cau-sando na vida das mesmas, cria, através de suas observações, uma alegoria determinada com o conceito de grotesco a fim de demonstrar o ridículo da modernidade. Assim, mostra-nos Kayser (apud MEDEIROS, 2004, p. 05):

Na palavra grottesco, como designação de uma determinada arte orna-mental, estimulada pela Antiguidade, havia para Renascença não ap-enas algo lúdico e alegre, leve e fantasioso, mas, concomitantemente,

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algo angustiante e sinistro em face de um mundo em que as ordena-ções de nossa realidade estavam suspensas [...].

A identificação do grotesco, no tempo moderno, configura na poesia de Baudelaire um aspecto importante. Em “O Vinho dos Trapeiros”, perce-bemos a cidade e seus moribundos sob esta ótica.

Estes, que a vida em casa enche de desenganos,Roídos pelo trabalho e as tormentas dos anos,Derreados sob montões de detritos hostis,Confuso material que vomita Paris. (BAUDELAIRE, 1985, p. 379).

Medeiros (2004, p. 05) mostra-nos que o termo grotesco, utilizado por Baudelaire em suas poesias para representar a modernidade, enfatiza com muita clareza o sentimento de “desarmonia universal”, é esta paralisa-ção da arrumação da realidade. O assustador, assombroso, para Baudelaire é, contudo, a aglomeração de pessoas nas ruas, causando no poeta uma confu-sa percepção do belo mesclado com o ridículo. Sendo assim, percebemos o deslumbramento e a indignação de Baudelaire pela vida moderna.

Destas acepções, nos lembra Coli (2005, p. 296.): “Em verdade, o poeta é um vampiro da cidade moderna. Ele suga dali a força criadora. Essa, força, porém, não traz benefício ao poeta: o beneficio vem para a poesia”.

No entanto, notamos que Baudelaire, ao ter percebido as grandes transformações que estavam acontecendo à sua volta, viu que as poesias clássicas e as românticas não estavam encontrando espaço. Neste sentido, o poeta percebeu que precisaria fazer algo para a poesia não perder seu lu-gar, é assim que Baudelaire moderniza as alegorias, introduzindo um novo modo de escrever a poesia que chamamos de “Simbolismo”. Foi com esta maneira de escrever que ele introduziu nos seus poemas as divergências que a cidade luz oitocentista passava, com as diferentes classes sócias divi-dindo o mesmo lugar, o belo e o feio com as mesmas antinomias. Assim, com isso, nos vocábulos de Baudelaire originou o grotesco, que possibili-

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tou a ele misturar na mesma poesia “o bom cheiro e o mau cheiro”. Isto causou um grande mal estar aos seus contemporâneos, e foi, neste sentido, que se fez preciso que ele eliminasse alguns poemas da sua obra célebre, As flores do Mal, a fim de poder publicá-la a mesma, pois alguns termos novos que ele utilizava eram considerados vulgares, já que até então nin-guém havia tido a mesma ousadia de Baudelaire. Por esta inovação é que ele é considerado, por muitos pensadores, o “pai” do Simbolismo. Deste modo, Baudelaire introduziu com o novo vocábulo termos de novidade moderna. “Para melancolia, em vez de mélancolie, ele preferiu spleen, ex-pressão inserida na modernidade graças ao anglicismo4 da época” (COLI, 2005, p. 295).

Assim sendo, Benjamin (apud COLI 2005, p. 295) demonstra que:

Spleen que significa baço, órgão no qual os antigos imaginavam que os humores negros se juntavam para tornar melancólico um caráter, diverge de mélancolie pela modernidade do estrangeirismo, mélanco-lie transfigurada em spleen soa mais moderno. E spleen recobre esses termos baudelairianos: angústia, azar, tédio, melancolia.

Deste modo, Coli (2005, p. 296) aponta:

Há uma dualidade em Baudelaire. Por um lado, a recusa violenta do progresso, do mundo moderno banalizador, corruptor do espírito, daí seu horror pela fotografia, vista por ele apenas como um modo mecânico de reproduzir a imagem do mundo. Mas, por outro, ele cultiva a idéia de que o artista moderno está ancorado no presente, aprisionado pelo presente, e não pode escapar dele. O presente é uma prisão, e o poeta, o rei de um país chuvoso, do qual não pode fugir.

Vejamos isso claramente no trecho do poema “O convite à Viagem”:

4 Segundo Biderman (1992, p.79), “palavra ou locução de origem inglesa adotada por outra língua”.

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Minha doce irmãPensa na manhã

Em que iremos, numa viagem,Amar a valer,Amar e morrerNo país que é a tua imagem!Os sóis orvalhados Desses céus nubladosPara mim guardem o encantoMisterioso e cruelDesse olhar infielBrilhando através do pranto.Lá, tudo é paz e rigor,Luxo, beleza e langor [...]. (BAUDELAIRE, 1985, p. 235)

Neste trecho percebemos que estas viagens são utópicas, que se tor-nam impossíveis na vida real, só podendo ser vivenciadas utilizando a ideia do flâneur. Neste sentido, a crítica de Baudelaire é pertinente a nossa contemporaneidade, uma vez que não temos mais possibilidades de ob-servarmos com facilidade todas as transformações que ocorrem ao nosso redor, que não cultivamos de nossas reflexões, mas sim dos nossos bens materiais, para não sermos expulsos destas transformações ocorrentes em nossos dias, não almejamos mais a busca do flâneur de Baudelaire, que é perambular pelas cidades com o objetivo de refletir sobre as transfor-mações, mas buscamos sim o flâneur de nosso tempo, que é andar pelas vitrines das lojas de grifes, para ver se estamos atualizados nas modas. As-sim, percebemos que nosso flanar está invertido, não queremos refletir, queremos possuir.

Fazendo uma alusão à filosofia hegeliana sobre o aspecto que Bau-delaire afirma ser o poeta capaz de viajar, sem mesmo sair do seu próprio lugar, mas sim fazer uma viagem metafísica, percebemos o mesmo em He-gel, quando este afirma que não se pode fazer uma separação entre pensar filosoficamente e pensar os conteúdos filosóficos, os quais dão condições

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para o filosofar: Filosofar é filosofar com conteúdos. Segundo Hegel (apud GELAMO, 2008, p. 160):

Em geral se distingue um sistema filosófico com suas ciências par-ticulares do filosofar mesmo. Segundo a obsessão moderna, espe-cialmente da Pedagogia, não se tem de instruir tanto em relação ao conteúdo da filosofia, quando se tem de procurar aprender a filosofar sem conteúdo: isto significa mais o menos o seguinte: deve-se viajar e sempre viajar, sem chegar a conhecer as cidades, os rios, os países, os homens etc.

Com isso, Gelamo (2008, p. 161) nos esclarece:

A metáfora utilizada por Hegel no fragmento acima esclarece melhor seu pensamento acerca do vínculo entre método e conteúdo. Para que o viajar realmente concretize-se, não basta apenas o deslocamento de um lugar para outro (e nem sempre esse deslocamento precisa acon-tecer, assim como percebemos com o poeta, ele viaja sem mesmo se locomover). Ao contrário, é necessário conhecer os lugares, que se percorre, as cidades, os rios, os vilarejos, as ruas, os caminhos, enfim as pessoas com as quais se encontra. Sem conhecer-se esses elementos (os conteúdos) que compõem o viajar, além de não se aprender o que é viajar não se viaja verdadeiramente.

Desta forma, percebemos a grande sintonia e a ligação entre filosofia e poesia. É também este mesmo sentido que o poeta utiliza para produzir suas poesias: conhecer o conteúdo para entrar no mundo (fantasioso) em que a poesia é capaz de nos levar.

No entanto, uma das principais críticas de Baudelaire à modernida-de é em relação ao progresso da sociedade, crítica à desarmonia social e, talvez, seja justamente essa crítica que o leve ao tema das viagens fanta-siosas e imaginárias, à busca de lugares e sentimentos utópicos e por isso perfeitos. Para ele, estes fatores são uns dos principais responsáveis de toda causa de angústia na vida moderna. Com as constantes mudanças nada se torna seguro para o homem, e é por isso que ele se desespera, tudo está em

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contínua transformação, tudo é muito passageiro, até mesmo as relações humanas. Em nada mais as pessoas para Baudelaire encontram bases sóli-das, assim como escreveram os filósofos Karl Marx e Fredrich Engels no manifesto do Partido Comunista de 1848: “Tudo que é sólido desmancha no ar”, para Baudelaire é isso que destrói toda modernidade, esta fragmen-tação que o mundo está se tornando e essa falta de solidez e segurança.

A desestruturação da modernidade e, como tratamos anteriormente, o fascínio por ela, pode-se ser facilmente percebidos por nós nos poemas de Baudelaire. O sentimento ambíguo que a Modernidade apresenta gera nos poemas de Baudelaire o sentimento de angústia: a angústia da moder-nidade.

Para compreendermos melhor a angústia enquanto tema filosófico e tratá-la na obra de Baudelaire, faz-se necessário recorrermos ao conceito filosófico de angústia. Assim, nos reportaremos agora às visões de Kierke-gaard e Nietzsche.

3. A DEFINIÇÃO FILOSÓFICA DE ANGÚSTIA NA ÓTICA DE DOIS FILÓSOFOS EXISTENCIALISTAS Nesta parte do artigo, temos como objetivo apresentar como a filo-

sofia discorre sobre a angústia. Para isso, nos utilizaremos do pensamento da filosofia existencialista, tendo como base dois grandes filósofos desta corrente que são vistos como grandes pensadores da angústia existencial: Sõren Kierkegaard (1813-1855) e Friedrich Nietzsche (1844-1900).

Como é de praxe dos filósofos darem conceitos divergentes sobre a mesma questão, na maneira como eles percebem as coisas; no decorrer deste tópico veremos algumas divergências no conceito de angústia para Kierkegaard e Nietzsche, mas ao mesmo tempo também notaremos algu-mas semelhanças já que os dois filósofos seguem a mesma linha de filosofia e pensamento.

Sendo assim, buscaremos, primeiramente, antes de diferenciar a an-gústia para cada um deles, apresentar a analogia que rege ambos os pensa-

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mentos: “A angústia para ambos, é vista como essa consciência do nosso destino pessoal que nos tira a cada instante do nada abrindo diante de nós um futuro no qual a nossa existência se decide” (LALANDE, 1999, p. 68).

No entanto, para Kierkegaard, o que causa angústia no homem é a “liberdade de escolha” que ele tem para decidir no decorrer de sua vida. É com o sentimento de angústia que o homem experimenta a possibilidade da liberdade, como sua essência fundamental. Pois, a cada dia somos desti-nados a realizarmos escolhas, e sabemos que, se escolhermos um caminho teremos que renunciar outro, e são estas possibilidades atormentadoras, diante das quais devemos nos decidir. E, nesta difícil decisão de escolha percebemos que não estamos destinados, que não existe algo predeter-minado para nossa existência, somos nós que escolhemos o que quere-mos ser, quando decidimos qual caminho devemos tomar. Sendo assim, Kierkegaard (2004, p. 261) chega à seguinte conclusão: “A coisa mais ter-rível concedida ao homem é a escolha, a liberdade”.

Para Kierkegaard, um outro aspecto que intriga a liberdade humana e que faz com que o homem muitas vezes escolha um determinado cami-nho e não outro é baseado na questão religiosa, sendo perceptível nas suas obras a ligação que ele estabelece com o divino ao perceber que sua vida estava fundamentada pela melancolia. Então, ele agarrou o eterno, seguro de que Deus é amor, e isto trouxe mais conforto para o seu estado melan-cólico porque ele acreditou que nós somos “[...] sujeitos à absoluta jurisdi-ção divina”, ou seja, isto aplica de forma fundamental em nossas escolhas diante de Deus. Assim, escreveu Kierkegaard (2004, p. 262): “Trata-se de ousar se totalmente o que se é, um homem singular, este determinado ho-mem individual; só diante de Deus, só nesse imenso esforço e com essa imensa responsabilidade.”

Mas é contraditória a questão religiosa no pensamento de Kierkega-ard, ora ele fala que é necessária a influência divina na infelicidade huma-na, porque isto faz com que o homem tenha certo alívio em sua existência. Sendo assim, Kierkegaard (apud WEISCHEDEL, 2004, p. 262) afirma:

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Minha vida começou com uma melancolia medonha, sendo, já na primeira infância, transtornada do modo mais profundo. Não podia acreditar que essa miséria fundamental de minha natureza pudesse ser remediada. Assim, agarrei o eterno, ditosamente assegurado de que Deus é amor. Ainda que por toda minha vida devesse sofrer tanto.

Com esta declaração percebemos a condição do eterno sobre a exis-tência humana. Mas, ora ele afirma que essa influência do eterno é o prin-cipal pretexto de angústia no homem, porque ocorre “[...] com o desejo do que se teme e temor do que se deseja”. Desta maneira, fica notável o medo que o ser humano tem de tomar devidas escolhas, o medo de ser conde-nado por Deus por não fazer as escolhas corretas. Contudo, é necessário reafirmar que Kierkegaard não acredita em um destino predeterminado, e sim em boas ou más escolhas. Portanto, na visão de Kierkegaard, a liber-dade de escolha é a pior condenação.

Outro aspecto que é pertinente à filosofia de Kierkegaard é a crítica que ele faz ao homem moderno. O filósofo afirma que este não tem mais “[...] paixão autêntica e o entusiasmo pelas coisas se perdeu”, sendo assim, para ele, as coisas não ocorrem mais naturalmente, tudo está baseado em grandes reflexões, “ninguém se decide por si mesmo”. (KIERKEGAARD apud WEISCHEDEL, 2004, p. 263).

Contudo, mostrando essa dualidade sobre a questão religiosa para Kierkegaard, é notório que para ele é de suma importância relação com Deus, porque esta minimiza o sofrimento humano. Assim, o indivíduo se toma infinitamente de sua mais própria existência e que esteja, como indivíduo, diante de Deus.

Agora, trataremos do conceito de angústia no pensamento de Niet-zsche. No decorrer de sua vida, Nietzsche irá, em dois momentos, diferen-ciar o conceito de angústia. Em um primeiro momento, a angústia para ele é o “[...] paradoxo da existência individual”, ou seja, o real é constitu-ído, antes de tudo, pelos poderes tenebrosos que se manifestam na vida biológica e nos instintos. Com isto, o indivíduo não é um ser que viven-cia sua individualidade, porque ele sai de si para fazer parte do mundo.

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Desse modo, para Nietzsche, no primeiro momento a “[...] angústia é o sentimento desse conflito absoluto e insolúvel, no qual o existente se sente como que esquartejado” ( JOLIVET, 1957, p. 74). Tendo que sair de si, para viver com os outros.

Em um outro momento de sua vida, Nietzsche depara-se com outro motivo que é causador de angústia no homem “o eterno retorno”, pelo qual o homem é condenado ao presente e não pode fugir deste, girando eter-namente diante de si mesmo, sem razão nem justificação. Sendo assim, o homem sente-se impelido para um adiante que é um voltar atrás, para uma liberdade que é fatalidade. Desta forma, a tendência do homem é se tornar um ser solitário e desesperado, fazendo com que ele, ao mesmo tempo em que acredita nega, não tem decisões, ele não é estável, está fragilizado com sua própria condição de contradição, aceita tudo que o mundo oferece porque sabe que é presa do mundo e não poderá encontrar salvação se não na loucura. Portanto, com estas duas demonstrações diferentes sobre a angústia, Nietzsche chega à seguinte conclusão: “A angústia é, portanto, a forma de sua vida e o sinal permanente de que o homem se mantém ao nível do seu destino, isto é, tendendo para além de si mesmo no sentido do impossível” ( JOLIVET, 1957, p. 75), neste sentido, aqui aparece sua semelhança com flâneur de Baudelaire, como vimos anteriormente.

Notamos que Nietzsche é conduzido por seu grande pessimismo. Em todo momento, ele afirma que a única salvação do homem é a loucura. Ao contrário desta afirmação de Nietzsche, percebemos em Kierkegaard que a única salvação do homem é o encontro com o consolo em Deus. Sendo assim, podemos afirmar que Nietzsche é pessimista em relação à sua existência e Kierkegaard, é otimista. Ademais, percebemos uma ou-tra divergência no pensamento de ambos os filósofos, Nietzsche pauta a superação da angústia no ateísmo e na loucura, já Kierkegaard encontra superação da angústia no cristianismo e no abraço eterno.

Desse modo, após termos apresentado o conceito de angústia na visão destes dois grandes filósofos, que como vimos são considerados os grandes pensadores da angústia na filosofia existencial, pretendemos no próximo tópico, com a interpretação e o olhar da angústia na filosofia,

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interpretar a angústia na modernidade de Baudelaire. Voltaremo-nos para a análise de seus poemas, em sua principal obra As Flores do Mal, que re-presentam, para nós, as mais grandiosas confissões da angústia no homem moderno.

4. A MODERNIDADE E A ANGÚSTIA DE BAUDELAIRE: UMA ANÁLISE DOS POEMAS

Temos como objetivo deste tópico fazer a análise filosófica de alguns poemas de Baudelaire da obra As Flores do Mal. Nesta perspectiva, toma-remos como base fundamental para está análise a filosofia existencialista, uma vez que, como já informamos, esta é contemporânea a Baudelaire. Nossa preocupação é retirar destas análises a crítica de Baudelaire ao pro-gresso da modernidade e a angústia que é ressaltada por ele nestes poemas, mostrando as transformações nos sentimentos e sofrimentos humanos que a sociedade oitocentista passou.

Assim, como percebemos no discorrer deste artigo, aquilo que fazia produzir nos artistas encantados pela modernidade, isto é, o princípio de progresso, a teologia da felicidade coletiva, está completamente elimina-do de Baudelaire, que demonstra, por sinal, raros entusiasmos positivos, já que para ele este avanço progressista da modernidade é o precursor de toda causa de angústia, medo e solidão no homem.

Segundo Baudelaire, é na multidão, nas grandes cidades que o ho-mem procura refúgio para se esconder de si mesmo e é por esse motivo que Baudelaire desenvolve suas poesias baseadas na grande metrópole que é Paris. Quando o poeta se depara com sua solidão, sem a multidão dos grandes centros, ele demonstra sua angústia, é o paradoxo do homem mo-derno.

Sendo assim, refletiremos sobre a angústia com o progresso da mo-dernidade em um trecho do poema “Spleen”:

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Sou como o rei sombrio de um país chuvoso,Rico, mais incapaz, moço e, no entanto idoso,[...] Não sabem mais que traje erótico vestirPara fazer este esqueleto enfim sorrirO sábio que ouro lhe fabrica desconheceComo extirpar-lhe ao ser a parte que apodrece, [...](BAUDELAIRE, 1985, p. 295).

Podemos notar a fragilidade do homem moderno ao perceber que ao mesmo tempo em que ele tem tudo, ele não tem nada, sendo jovem, percebe-se idoso, porque não pode atuar na modernidade, as máquinas tomaram conta dos trabalhos artesanais, são tantas as possibilidades que norteiam o homem, que ele é incapaz, por si só, escolher algo que o agrade e ao mesmo tempo não fique fora do que a modernidade prega; não tem mais referencias intelectuais, o mundo com seu progresso, não é mais ca-paz de considerar o que é ser intelectual, uma vez que as máquinas podem produzir tudo. O homem não é mais um ser em sua totalidade, ele é “um” despedaçado em “múltiplos”, ele pode ser uma coisa agora e logo mais ser outra, porque tem possibilidades que o façam ser assim.

O Homem da modernidade tem que confiar, mas também ser des-confiando das pessoas, porque a certeza não existe, a segurança é inter-rompida, o tempo se transformou em atraso, as possibilidades são inúme-ras como percebemos no poema “A uma passante”:

A rua entorno era um frenético alarido.Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,Uma mulher passou, com sua mão suntuosaErguendo e sacudindo a barra do vestido.Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,A doçura que envolve e o prazer que assassina.Que luz...e a noite após!- Efêmera beldadeCujos olhos me fazem nascer outra vez,Não mais hei de te ver senão na eternidade?

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Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez!Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste! (BAUDELAIRE, 1985, p. 345)

Baudelaire deixa explícita sua angústia ao perceber que nunca mais poderá rever esta mulher que foi causa de sua admiração e de seu amor. Assim, a angústia foi despertada com as grandes mudanças corriqueiras que o ser humano enfrenta no seu dia a dia, como podemos perceber não temos certeza de nada mais, tudo se torna causa de dúvida, com estes avan-ços cada vez maiores, e a vida nas grandes cidades as nossas certezas ficam cada vez menores.

Sendo assim, as mentiras, as máscaras, as invejas, as melancolias, to-maram conta do ser e por isso ele vive de aparências.

[...] Eu sei que a olhos cheios de melancolia,Que nada escondem por debaixo de seus véus;Belos escrínios, mas sem jóias de valia,Mais fundos e vazios do que vós, ó Céus!Mas basta seres está dádiva aparentePara alegrar quem vive apenas da incerteza.Que me importa se és tola ou se és indiferente?Máscaras, ornato, salve! Amo a tua beleza!5

(BAUDELAIRE, 1985, p. 359).

5 Fragmento do poema “O Amor à Mentira”.6 Thomas Hobbes foi um matemático, teórico político e filósofo. De origem inglesa, nasceu ao quinto dia do quarto mês de 1588 em Malmesbury e faleceu ao quarto dia do décimo segundo mês de 1679. Escritor e tradutor de várias obras, das quais a mais conhecida é a obra Leviatã, nesta obra ele aborda exterioridade sobre a natureza humana e a respeito de necessidade de governos e sociedade.

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O sarcasmo de Baudelaire é emocionante ao citar o vazio que norteia o homem no decorrer da modernidade, e para percebermos em Baude-laire este seu grande preconceito com a modernidade que se transforma, recorremos à comovente frase de Hobbes6: “O homem é o próprio lobo do homem”. No entanto, é assim que Baudelaire percebe a degradação da hu-manidade.

Com este poema, percebemos também a importância da fé e da ne-cessidade que os homens têm de viverem de aparências, isso é extrema-mente importante para fuga da sua real solidão e serve de consolo para sua miséria, ou seja, as pessoas não precisam saber das suas mais íntimas situações, e também serve de salvação para as pessoas que sentem esta pro-funda melancolia, e transpassam a alegria que não vivenciam, com isto diz Kierkegaard (apud WEISCHEDEL, 2004, p. 264):

Minha vida é grande sofrimento aos outros desconhecido e incom-preensível; tudo parecia orgulho e vaidade, mas não o era. Tinha a trave na carne; por isso não me casei, nem pude assumir nenhum en-cargo. Em vez disso, tronei-me a exceção. De dia ia-se ao trabalho e ao compromisso e, de noite, eu era posto de lado; essa era a exceção.

Desse modo, podemos perceber a ideia de angústia da filosofia exis-tencial intrinsecamente presente nos poemas de Baudelaire. Em ambas as citações percebemos, de maneira antagônica, a necessidade da fé, e da boa aparência, para não nos depararmos com nosso real sofrimento.

Podemos dizer também que uma das maiores decepções de Baude-laire com relação ao progresso é a forma que este avanço interferiu na es-tética parisiense, vejamos:

Vens tu do céu profundo ou sais do precipício,Beleza? Teu olhar, divino mais daninho,Confusamente verte o bem e o malefício,E pode-ser por isso comparar-te ao vinho.[...] provéns do negro abismo ou da esfera infinita?Como te acompanha a fortuna encantada;

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Semeias ao acaso a alegria e a desditaE altiva segues sem jamais responder nada.[...] De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou sereia,Que importa, se és quem fazes – fada de olhos suaves,Ó rainha de luz, perfume e ritmo cheia!Mais humano o universo e as horas menos graves?7 (BAUDELAIRE, 1985, p. 153)

Nesta perspectiva, notamos que Baudelaire se questiona: “De onde vem a beleza”? Observamos que a modernidade não é capaz de responder, uma vez que ela está totalmente modificada, onde tudo é permitido, não fazendo questão de indagar se é o homem, ou se é o mundo que conceitua o que é o belo ou não belo. Assim sendo, na modernidade o homem só pode afirmar que “[...] a beleza governa tudo e vais sem dar satisfação” (BAUDELAIRE, 1985), ou seja, em um determinado tempo admiramos algo, e logo mais este algo se torna insignificante aos nossos olhares, uma vez que tudo é passageiro, a beleza também é passageira. Sendo assim, podemos concluir que a antipatia do progresso se resume perfeitamente nesta frase. “Vais levar-me, avalanche, em tua queda abrupta”? (BAUDE-LAIRE, 1985, p. 153). Portanto, Baudelaire sem a certeza de qual será o fim deste progresso se desespera na sua mais íntima solidão, entre as inúmeras possibilidades e incerteza que a modernidade trouxe para a fra-gilidade humana.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como pudemos perceber ao longo deste artigo, para Baudelaire a avalanche de mudanças advindas dos tempos modernos trazia a inquie-tude para o ser humano e causava a angústia. Sendo assim, a filosofia exis-tencial de Kierkegaard e Nietzsche está ligada com a crítica de Baudelaire à modernidade.

7 Fragmento do poema “Hino à Beleza”.

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Na poesia de Baudelaire notamos que o homem moderno vive na es-cravidão do tempo, ele anda pelas ruas, mas não consegue admirar a beleza da natureza. São nestas mesmas ruas que o homem moderno corre atrás dos trabalhos que lhe trazem benefícios materiais. É neste sentido que Kierkegaard apresentou com sua filosofia a crítica ao sujeito moderno, de-fendendo que este não tem mais paixão e o encantamento do mundo, com o progresso da modernidade o homem não pôde realizar as admirações que Baudelaire conceituava com o ato do flâneur. Além disso, com o pro-gresso ninguém decide por si, o homem é sempre obrigado a fazer aquilo que o sistema o impulsiona, ou seja, o homem é sempre preso a alguma coisa, perdendo sua própria liberdade de escolha. Na filosofia de Niet-zsche é notório que o progresso causou um grande mal estar no sujeito, tendo que sair de si para viver com os outros, tendo que sair da sua própria habitação para enfrentar as novidades dos grandes centros.

Com as críticas que foram apresentadas neste artigo é possível notar que essas foram as principais causas de angústia na vida do homem mo-derno e podem ser também hoje motivos da crise de identidade no sujeito pós-moderno.

Vivemos em um período que, com o avanço tecnológico, o homem está cada vez mais sendo substituído pela máquina, e este não possui tem-po para quase nada, valores efêmeros, fragmentação, angústia existencial, são características que regem o sujeito contemporâneo. Deste modo, o homem moderno se vê tendo que assumir várias identidades em diversas situações, tendo diversas possibilidades e ou mesmo não tempo nenhu-ma.

Concluímos, portanto, que a angústia está ligada intrinsecamente às mudanças contínuas e rápidas que foram acontecendo no decorrer do tempo histórico a partir do século XIX. No entanto, concluímos aqui este artigo, mas não a pesquisa, pois é extremamente importante continuar-mos as reflexões sobre as mudanças históricas da modernidade até nossa contemporaneidade, para que sejamos capazes de compreender um pouco sobre o homem pós-moderno.

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Title: Modernity and anguish in Charles Baudelaire’s work: a philosophic analysis of “The Flowers of Evil” poems.Authour: Vinícius França de Sene.

ABSTRACT: The aim of this paper is to understand the idea of anguish related to the question of modernity in the work of Charles Baudelaire. We make a philosophical analysis of poems The Flowers of Evil. In this poems, we see the poet´s dissatisfaction about the progress of modernity and the replacement of man by machines, which led modern man to think to be losing its own identity. To understand philosophically what causes anguish in a man like Baudelaire, we use two current philosophical existentialist philosophers: Kierkegaard and Nietzsche, as they are Baudelaire´s contemporaneous critics of that modernity. Also, realize that these philosophers make the same claim of Baudelaire when referring to modern man lost in the midst of his time, using multiple identities to survive. Finally, we aim to study these nineteenth-century thinkers of the period to reflect also on the fragmentation of the postmodern subject. Keywords: Philosophy. Modernity. Anguish. Charles Baudelaire. The Flowers of Evil.