Modernidade Religiosa e Sociedade

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MODERNIDADE RELIGIOSA E SOCIEDADE DO CONHECIMENTO NA ERA PÓS-CAPITALISTA

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MODERNIDADE

RELIGIOSA E

SOCIEDADE DO

CONHECIMENTO

NA ERA

PÓS-CAPITALISTA

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MODERNIDADE RELIGIOSA E SOCIEDADE DO

CONHECIMENTO NA ERA PÓS-CAPITALISTA.

Jean BARTOLI – mestre em ciências d a religião – PUC-SP

RESUMO

A comparação dos pensamentos de Peter Drucker e de Danièle Hervieu-Léger pode

trazer a tona uma certa semelhança do discurso de Peter Drucker sobre a sociedade das

organizações e do conhecimento com o conceito de religião explicitado por Danièle

Hervieu-Léger. Após a exposição do pensamento de ambos e a constatação das

diferenças, serão analisados os pontos que permitam perceber algumas conotações

religiosas no discurso de Drucker.

ABSTRACT

The comparison between concepts developed by Peter Drucker and Danièle Hervieu-

Léger allows the perception of some similarities of the discourse of Peter Drucker about

the society of o rganizations and knowledge with the Hervieu- Léger„s concept of

religion. After studying each author, we analyze whether it is possible to see any

religious issues in the Drucker‟s discourse.

Segundo Danièle Hervieu-Léger, O religioso é uma dimensão transversal do

fenômeno humano que trabalha de um modo ativo ou latente, explícito ou implícito,

toda a espessura da realidade social, cultural e psicológica, segundo modalidades

próprias para cada uma das civilizações. Uma "religião " é, nesta perspectiva, um

dispositivo ideológico, prático e simbólico pelo qual é constituído, mantido,

desenvolvido e controlado o sentido individual e coletivo da pertença a uma linhagem

crente particular (Hervieu-Léger , 1999, p.19).

Segundo Peter Drucker, a cada dois ou três séculos ocorre na história

ocidental uma grande transformação (Drucker, 1994, p.XIXs). Em poucas décadas, a

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sociedade reorganiza sua visão do mundo, seus valores básicos, sua estrutura social e

política, suas artes, suas instituições mais importantes. Atravessamos, atualmente,

atravessando uma dessas transformações: a emergência da sociedade pós-capitalista. O

colapso do marxismo e do comunismo encerraram duzentos e cinqüenta anos de

domínio de uma religião secular, a da crença na salvação pela sociedade. O centro de

gravidade da sociedade p ós-capitalista – sua estrutura, sua dinâmica social e econômica,

suas classes sociais e seus problemas sociais – é diferente daquele que dominou os

últimos duzentos e cinqüenta anos e definiu as questões ao redor das quais se

cristalizaram partidos políticos, grupos e sistemas de valores sociais e compromissos

pessoais e políticos. O recurso econômico básico - os meios de produção – não é mais o

capital nem os recursos naturais, nem a mão de obra: é o conhecimento.

Existe alguma relação entre as afirmações destes dois pensadores? Na

análise feita por Dru cker sobre a mudança da sociedade capitalista para uma sociedade

pós-capitalista, estariam presentes algumas características da dimensão do "r eligioso "

tal qual analisada por Hervieu-Léger?

Primeiro, analisaremos o pensamento de cada autor. Em seguida,

lembraremos brevemente a partir de qual ponto de vista cada um escreve. Finalmente,

veremos se Danièle Hervieu-Léger pode trazer algumas pistas interessantes para

entender melhor alguns aspectos do pensamento de Peter Drucker.

1. AS ANÁLISES DE HERVIEU-L ÉGER E DRUCKER

Os dois pensadores foram escolhidos por causa de sua representatividade

nos respectivos campos de reflexão: estudo da modernidad e religiosa no caso da

primeira e estudo da modernidade empresarial no caso do segundo. Para este trabalho,

analisaremos o pensamento de cada autor considerando Le pélerin et le converti de

Danièle Hervieu-Léger e A sociedade pós-capitalista de Peter Drucker.

1.1. ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA MODERNIDADE RELIGIOSA

SEGUNDO HERVIEU-LÉGER

Por muito tempo incerta quanto ao seu objeto dentro de uma modernidade

definitivamente a-religiosa, a sociologia das religiões d escobre que a modernidade

secular, governada em princípio pela razão científica e técnica, é também uma nebulosa

de crenças (Hervieu-Léger , 1999, p.12). O “religioso” é uma dimensão transversal do

fenômeno humano que trabalha de um modo ativo ou latente, explícito ou implícito,

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toda a espessura da realidade social, cultural e psicológica, segundo modalidades

próprias para cada uma das civilizações. Contrariamente ao ponto de vista mais

freqüente que identifica as crenças religiosas pelo fato que fazem referência a um poder

sobrenatural, a uma transcendência ou a uma experiência que ultrapassa as fronteiras do

entendimento humano, esta aprox imação da religião parte da hipótese que qualquer

crença pode ser objeto de uma formalização religiosa desde que encontre sua

legitimidade na invocação da autoridade de uma tradição. Mais precisamente, seria esta

formalização do crer que constituiria, de modo próprio, a religião. Uma "religião" é,

nesta perspectiva, um dispositivo ideológico, prático e simbólico pelo qual é

constituído, mantido, desenvolvido e controlado o sentido individual e coletivo da

pertença a uma linhagem crente particular. Nenhuma sociedade, mesmo inscrita na

imediatismo que caracteriza a modernidade a mais avançada, pode, para ex istir como

tal, renunciar totalmente a preservar um fio mínimo da continuidade, inscrito, de um

modo ou de outro, na referência à "memória autorizada" constituída por uma tradição

(Hervieu-Léger , 1999, p.23-24).

Numa sociedade moderna e laicizada, a vida social é cada vez menos

submetida a regras ditadas por uma instituição religiosa. A pretensão da religião em

reger a sociedad e inteir a e a govern ar a vida de todo indivíduo tornou-se ilegítima.

Contudo, eis o grande paradoxo das sociedades ocidentais: tiraram parte das suas

representações do mundo e dos seus princípios de ação das suas raízes religiosas. Vários

pensadores mostram a contribuição do judaísmo e do cristianismo à emergência da

noção de autonomia que caracteriza a modernidade (Hervieu-Léger , 1999, p.32-36). O

judaísmo, estabelecendo a noção de Aliança no centro da relação de Deus para com seu

povo, elege o princípio da autonomia como fundamento da história humana: o povo, fiel

ou não à Aliança, faz a escolha do seu futuro e demonstra sua capacidade de orientar de

modo autônomo sua própria história. O cristianismo desenvolve todas as implicações

desta visão ao ampliar a Aliança para a humanidade inteira: a fidelidade e a recusa são

submetidas à consciência de cada indivíduo.

A secularização das sociedades modernas não se resume ao processo de

exclusão social e cultur al da religião: combina, de um modo complex o, a perda d e poder

dos grandes sistemas religiosos sobre uma sociedade, que reivindica sua plena

capacidade de orientar seu próprio destino, com a recomposição, sob uma nova forma,

das representações religiosas que permitiram que esta sociedade pensasse a si mesma

como autônoma. A partir dessa constatação, a autora enuncia quatro proposições:

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Proclamando que a história humana é de quem a constrói e que o mundo dos

homens deve ser feito por eles, a modernidade rompeu radicalmente com todas

as representações de um desígnio divino que se realiza inelutavelmente na

história.

C ontudo, o modo com o qual a modernidade religiosa pensa a história

permanece dependente da visão religiosa da qual se separou. Nas sociedades

modernas, por muito tempo, pensou-se a história "secular" segundo o modelo da

chegada do Reino; a recapitulação total da história e a realização das

potencialidades humanas, no campo material, no do conhecimento e, mesmo, no

campo moral se colocou foram consideradas frutos do progresso científico e

técnico.

Os valores que fundam a modernidade, a razão, o conhecimento e o progresso

tiram sua capacidade de mobilização do fato que não se pode lhes atribuir limites

e a realização aparece como um horizonte nunca alcançado. As sociedades

modernas vivem num estado permanente de antecipação tanto no campo da

ciência onde toda nova descoberta leva a um novo esfor ço de conhecimento

quanto no campo d a economia onde o aumento na quantidade e na diversidade

de bens oferecidos faz continuamente surgir novas necessidades. A dinâmica

"utópica" da modernidade situa-se inteira nesta valorização da inovação, ela

mesma ligada a um estado permanente de não-saciedade. É o "imperativo da

mudança1". A modernidade retoma o sonho da realização, próprio da utopia

religiosa, projetando e prometendo um mundo de abundância e de paz,

finalmente realizadas sob diversas formas seculares.

Esta lógica de antecipação cria, no coração da cultura moderna dominada pela

racionalidade científica e técnica, um espaço sempre renovado para as produções

imaginárias que esta racionalidade decompõe em permanência. Esta tensão

"crente" de uma modernidade prisioneira entre a ambição de uma racionalização

do mundo e a aspiração a um futuro sempre novo pode ser dita na linguagem

secular do progresso e d o desenvolvimento. Contudo a dinâmica de seu avanço

implica que ela suscite constantemente sua própria crise, que é a sensação de um

1 A autora tira esta expressão d e GAUCHET, Marcel, Le Désanchantement du monde. Une histoire

politique de la religion, Paris, Gallimard, 1 985. Não cita a página.

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vazio social e cultural produzido pela mudança, vivida como uma ameaça pelos

indivíduos e pelos grupos.

Partindo destas proposições, a autora formula a hipótese de que os processos

de identificação religiosa, nas sociedades modernas, articulam livremente quatro

dimensões:

A dimensão comunitária concerne a definição formal e prática da pertença e o

conjunto de marcas sociais e simbólicas que definem as fronteiras do grupo

religioso, distinguindo os que pertencem dos que não pertencem. Aceitar de

submeter-se a estas regras constitui um traço discriminador da identificação.

A dimensão ética diz respeito à aceitação p elo indivíduo dos valores ligados à

mensagem religiosa carregada por uma tradição particular e está cad a vez mais

desligada da anterior: os valores da mensagem podem ser apropriados sem

necessariamente implicar a pertença a uma comunidade de fiéis claramente

identificados.

A dimensão cultural representa o conjunto de elementos cognitivos, simbólicos e

práticos, patrimônio de uma tradição particular (a doutrina, os livros, os saberes

e sua interpretação, as pr áticas e os códigos rituais, a história – erudita e lendária

– do grupo, as representações e modos de pensar sedimentados nas práticas das

comunidades, os hábitos alimentares, de v estir, sexuais, terapêuticos, a arte e os

conhecimentos científicos desenvolvidos ligados a estas cren ças). Sua riqueza e

sua variedade marcam o enraizar de uma tradição na duração e podem ser

apropriadas como "bem comum cultural", sem implicar a adesão ao sistema de

crenças que produziu este patrimônio.

A dimensão emocional refere-se à experiência afetiva associada à identificação:

o fato novo, nas socied ades modernas, é que esta experiência que produz o

sentimento coletivo do "nos" resulta cada vez menos da pertença comunitária:

pode ser uma experiência momentânea de comunhão coletiva, que pode

estabilizar-se numa identificação comunitária.

Hervieu-Léger analisa, a seguir, duas possíveis tensões oriundas dessas

lógicas contraditórias. A primeira, entre as dimensões comunitária e ética, pode ser vista

na relação dialética entre a universalidade e a singularidade presente nas grandes

religiões universais que se gabam da posse de uma mensagem dirigida à humanidade

inteira e a cada homem em particular. Ao mesmo tempo, reúnem seus fiéis em

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comunidades e fazem da posse presente da mensagem o sin al de uma eleição e de uma

separação. A segunda está entre a dimensão emocional – que corresponde à experiência

imediata, sensível e afetiva da identificação – e a dimensão cultural – que permite que

esta experiência instantânea se ancore na continuidade legitimadora de uma tradição

como memória autorizada (Hervieu-Léger , 1999, p.72-78).

1.2. ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA SOC IEDADE PÓS-CAPITALISTA,

SEGUNDO PETER DRUCKER

Na introdução de sua análise da sociedad e do conhecimento, o autor

constata que, a cada dois ou três séculos, ocorre uma grande transformação na história

ocidental. Em poucas décadas, a so ciedade reavalia sua visão do mundo, seus valores

básicos, sua estrutura social e política, suas artes e suas instituições. No nosso século, o

colapso do marxismo e do comunismo significa o fim de uma espécie de história e do

domínio de uma religião secular, a crença na salvação pela sociedade. A tese de

Drucker é de que o centro de gravidade da sociedade pós-capitalista mudou. O recu rso

econômico básico n ão é mais o capital nem os recursos naturais, nem a mão de obra: o

valor é criado pela p rodutividade e pela inovação que resultam da aplicação do

conhecimento ao trabalho2. Os pilares da sociedade do conhecimento serão os

executivos, chamados por Drucker de “trabalhadores do conhecimento”, que sabem

alocar o conhecimento para usos produtivos, assim como os capitalistas sabiam alocar

capital.

Prosseguindo, Drucker aponta algumas analogias entre o nascimento da

sociedade pós-capitalista e algumas transformações sociais anteriores: p odemos notar

que o tema religioso não está ausente de sua análise:

"O último daqueles que poderiam ser chamados de filósofos "pré-mod ernos",

Leibniz, gastou grande parte de sua vida na fútil tentativa de restaurar a

unidade da cristandade. Sua motivação não era o temor de gu erras religiosas

entre católicos e protestantes, ou entre as diferentes seitas protestantes. Ele

temia que, sem uma crença comum em um Deus sobrenatural, surgissem

religiões seculares. E estava conven cido de que uma religião secular teria que

ser, quase por definição, uma tirania que iria tirar a liberdade das pessoas. Um

século depois, Rousseau confirmou os temores de Leibniz, afirmando que a

sociedade podia e devia controlar os indivíduos. Ela podia e devia criar um

"Novo Adão". Podia e devia criar a perfeição humana universal. Mas ela podia

e devia subordinar os indivíduos à volonté générale, impessoal e supra-pessoal

2 ele a retomará e a detalhará de um modo mais pragmático num livro posterior: DRUCKER, Peter,

Desafios gerenciais para o século XXI, São Paulo, Editora Pioneira, 1999

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– aquilo que mais tarde foi chamado "leis objetivas da história" pelos

marxistas. Desde a Revolução Francesa, a salvação pela sociedad e evoluiu até

se tornar o credo dominante – primeiro no ocidente, depois (desde o início da

Segunda Guerra Mundial) no mundo inteiro. Entretanto, por mais que pretenda

ser "anti-religiosa", esta é uma fé religiosa. É claro que os meios são não-

espirituais: proibir as bebidas alcoólicas; matar todos os judeus; psicanálise

para todos; abolição da propriedade privada. A meta, porém, é religiosa:

estabelecer o Reino de Deus na terra, através d a criação do "Novo Homem"".

(Drucker, 1994, p.XIX)

Continuando, Drucker faz uma digressão rápida sobre o marxismo que ele

considera o cr edo secular mais poderoso porque prometia a salvação através da

sociedade. E sustenta que, como credo, o marxismo fracassou porque n ão conseguiu

criar o "Novo Homem". E ele conclui assim:

"O ser humano pode não ter redenção. O poeta latino talvez tivesse razão: a

natureza humana sempre se esgueira para dentro pela porta dos fundos, por

mais que seja expulsa pela da fr ente. Talvez os cínicos estejam com a razão

quando afirmam que não existe virtude, nem bondade, nem altruísmo; somente

egoísmo e hipocrisia. Mas certamente o fracasso do marxismo como credo

significa o fim da crença na salvação pela sociedade. Não sabemos o que virá a

seguir; podemos apenas esperar e rezar. Talvez nada além da resignação

estóica? Talvez um renascimento da religião tradicional, voltada para as

necessidades e os desafios das pessoas na sociedade do conhecimento?

Contudo, é mais provável que redenção, auto-renovação, crescimento

espiritual, bondade e virtude – o "Novo Homem", p ara usar a expressão

tradicional – voltem a existir, do que metas sociais ou prescrições políticas. O

fim da crença na salvação pela sociedade certamente marca uma volta para o

íntimo. Ele torna possível uma ênfase renovada no indivíduo, na pessoa e pode

até mesmo levar – ao menos esperamos – a um retorno da responsabilidade

individual."( Drucker, 19 94, p.XX-XXI)

Mais adiante, Drucker explicita o que entende por conhecimento e qual é

seu papel na nova sociedade em gestação. O conhecimento tradicional era genérico.

Hoje, por necessidade, é altamente especializado: é a informação transformada em ação

e focada em resultados. Segundo ele, a passagem “do conhecimento para os

conhecimentos” (Drucker, 1994, p.24) permite a criação de uma nova sociedade que

precisa ser estruturada com base em conhecimentos especializados e em pessoas

especialistas. A função das organizações empresariais é tornar produtivos os

conhecimentos já que são instituições com fins especiais e são eficazes porque se

concentram em uma tarefa. Isso as diferencia em relação a outros grupos humanos: a

sociedade, a comunidade e a família precisam lidar com qualquer tipo de problema e

têm como meta a sobrevivência e não o desempenho. Para uma organização

empresarial, isso é diversificação e desvio de finalidade: quanto mais especializada for

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sua tarefa, maior será seu desempenho. A sociedade, a comunidade, a família são

independentes e auto-suficientes; elas existem para seu próprio fim; todas as

organizações empresariais ex istem para produzir resultados externos. C ada membro de

uma organização traz (ao menos em teoria) uma contribuição vital, sem a qual não

poderá haver resultados: ninguém, porém, produz esses resultados sozinho e eles devem

ser definidos e mensuráveis. Sendo a organização moderna formada e conduzida por

especialistas do conhecimento, ela precisa ser organizada como uma equipe de

associados prep arados para mudanças constantes. Sendo da própria natureza do

conhecimento o fato dele mudar depressa e das aptidões de mudar de forma lenta, a

inovação intencional – tanto técnica como social – transformou-se numa disciplina

organizada, ensinada e aprendida, e toda empresa precisa embutir em sua própria

estrutura a gerência da mudança e a capacidade para criar o novo.

Drucker vislumbra como serão as comunidades do futuro (Drucker, 1994,

cap. 9). As comunidades tradicionais não possuem mais o mesmo poder de integração e

não conseguem sobreviver à mobilidade que o conhecimento confere ao indivíduo. A

mobilidade geográfica e ocupacional significa que as pessoas não podem mais

permanecer no lugar, na classe ou na cultura em que nasceram, onde vivem seus pais,

irmãos e primos. A comunidade gerada pela sociedade pós-capitalista, em especial para

o trabalhador do conhecimento, precisa ser baseada em compromisso e compaixão, ao

invés de ser imposta pela proximidade e pelo isolamento. Historicamente, a comunidade

era obra do destino. Na sociedade pós-capitalista, a comunidade precisa tornar-se um

compromisso.

2. ESPECIFICIDADE DE CADA PENSADOR

Antes de verificar se Danièle Hervieu-Léger pode fornecer pistas de

compreensão para alguns aspectos do pensamento de Drucker, é preciso lembrar que o

intuito de cada autor é diferente e que suas reflexões desenvolvem-se em contextos

diferentes.

No livro citado, Danièle Hervieu-Léger quer mostrar que a religião, longe

de desaparecer, ocupa nas nossas sociedades um lugar particular, importante e diferente.

Pesquisando a vida religiosa na França a partir de eventos que reuniram multidões, em

particular as Jornadas Mundiais da Juventude em 1997 em Paris, ela constata a

intensificação do fenômeno das peregrinações e aponta uma mudança muito

significativa: a figura d o praticante foi substituída pela figuras do peregrino e do

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convertido. A autora tenta, então, responder a uma pergunta especificamente francesa:

qual é o papel da laïcité defendida p elo Estado neste novo contexto religioso?

Peter Drucker é o autor e consultor mais lido, consultado e citado no

ambiente empresarial cujos pontos de referência são a globalização e o american way de

fazer negócios. No livro citado, o objetivo do autor é descrever a passagem da era do

Capitalismo e da Nação-Estado para uma Sociedade do Conhecimento e uma Sociedade

das Organizações3. O objetivo é ajudar empresas e executivos a construir o futuro de

suas organizações e organizar suas carreiras para ter sucesso nos novos tempos. A

preocupação é essen cialmente pragmática o que leva a uma leitura reducionista e

funcional do passado.

Um outro ponto parece fundamental para distinguir os dois pensadores:

como vimos anteriormente, para Hervieu-Léger, um dos alicerces na definição da

crença como objeto de formação religiosa é o papel desempenhado pela memória e pela

autoridade de uma tradição. Não encontramos este tipo de preocupação em Peter

Drucker: toda sua reflexão está em antecipar uma nova visão e novos comportamentos

para construir uma sociedade secular e que prescinde do religioso tal como foi

conhecido na História que nos precede e não faz referência alguma à autoridade de uma

tradição. Pelo contrário, a harmonia da sociedade futura existirá na medida em que

consegue criar um novo modelo de convivência a partir do desenvolvimento de um

conhecimento totalmente voltada à sua função prática e instrumental.

Embora estando em dois universos diferentes, parece-me que Dru cker

ilustra alguns aspectos da reflexão de Hervieu-Léger sobre a modernidade religiosa.

3. PONTOS DE CONTATO ENTRE AS DUAS REFLEXÕES

Uma das afirmações centrais do texto de Hervieu-Léger analisado supra é

que o religioso é uma dimensão transversal do fenômeno humano que trabalha de um

modo ativo ou latente, ex plícito ou implícito, toda a espessu ra d a realidade social,

cultural e psicológica, segundo modalidades próprias para cada civilização. Esta

aproximação da religião não privilegia algum conteúdo especial do crer (Hervieu-Léger

, 1999, p.19).

Para Drucker, o colapso do marxismo e do comunismo significou o fim de

uma espécie de história: encerr aram duzentos e cinqüenta anos de domínio de uma

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religião secular, a da crença na salvação pela sociedade. Imediatamente, porém, ele

substitui uma crença por outra que deve preencher o espaço deixado por ela. Segundo

ele, conforme vimos anteriormente, o centro de gravidade e o recurso econ ômico básico

da sociedade pós-capitalista são o conhecimento. O valor é criado pela produtividade e

pela inovação que são aplicações do conhecimento ao trabalho. A partir disto, o autor

define os principais grupos sociais responsáveis pela animação da sociedade do

conhecimento: os trabalhadores do conhecimento. Se, segundo Hervieu-Léger, uma

"religião " é um dispositivo ideológico, prático e simbólico pelo qual é constituído,

mantido, desenvolvido e controlado o sentido in dividual e coletivo da pertença a uma

linhagem crente particu lar, podemos presumir que a nova sociedad e proposta por

Drucker constituiria-se ao redor do conhecimento apresentado como o dispositivo

ideológico que desenvolve o sentido individual e coletivo de pertença à crença na

possibilidade de uma sociedade portadora de um ideal de realização pela produtividade

do conhecimento.

Encontramos um outro ponto de contato: segundo Hervieu-Léger, o

paradoxo das sociedades ocidentais é que tiraram parte das suas representações do

mundo e seus princípios de ação nas suas próprias raízes religiosas, principalmente em

relação à emergência da noção de autonomia que caracteriza a modernidade e à visão o

progresso científico e técnico como caminho para a recapitulação total da história

humana e a realização total das potencialidades humanas. Drucker faz também esta

leitura da modernidade, inclusive não poupando ironia para as tentativas de Leibniz e

Rousseau, concluindo, conforme vimos acima:

"Entretanto, por mais que pretenda ser "anti-religiosa", esta é uma fé religiosa.

É claro que os meios são não- espirituais: proibir as bebidas alcoólicas; matar

todos os judeus; psicanálise para todos; abolição da propriedade p rivada. A

meta, porém, é religiosa: estabelecer o R eino de Deus na terra, através da

criação do "Novo Homem"" (Drucker, 1994, p. XIX).

O interessante é que ele parece repetir o mesmo processo dentro de um

paradigma diferente. O conhecimento, na visão dele, embora tenha valor só para

contribuir para uma maior produtividade e para a produção de resultados econômicos

adquire uma dimensão holística4:

3 DRUCKER, Peter, Sociedade pós-ca pitalista, São Paulo , Ed. Pioneira Novos Umbrais 1994, contracapa

do livro .

4 uso esta palavra no sentido etimológico, sem nenhuma outra conotação.

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"A passagem de conhecimento para conhecimentos deu ao conhecimento o

poder para criar uma nova sociedade. Mas esta sociedade precisa ser

estruturada com base em conhecimentos especializados e em pessoas

especialistas. É isso que dá poder a elas, mas também levanta questões básicas

– de valores, visão, crenças, de todas as coisas que mantêm unida a sociedade e

dão significada e visão às nossas vidas." (Drucker, 1994, p.25)

Porém,esta visão não é estática e, ao contrário das religiões tradicionais

enraizadas na tradição, ancora-se na corrida para o futuro, d e um modo metódico e

organizado transformando a inovação intencional – tanto técnica como social – numa

disciplina ensinada e aprendida. Segundo Hervieu-Léger a modernidade retoma o sonho

da realização, próprio da utopia religiosa, projetando e prometendo um mundo de

abundância e de paz finalmente realizadas sob diversas formas seculares. E Drucker,

apesar de sua ironia em relação a Rousseau e Leibniz, retoma a mesma veia: a confiança

na redenção pela sociedade foi transformada pela confiança na opulên cia, resultado do

conhecimento produtivo gerado e espalhado pela sociedade das organizações

empresariais que transcendem as fronteiras e os limites da comunidades e sociedades

tradicionais.

Os trabalhadores do conhecimento, como sustentáculos desta nova

sociedade são chamado s a entrar neste projeto com dedicação e abnegação. Como

vimos, a pertença à nova sociedade é mediada pela pertença a organizações

empresariais cada vez mais competitivas na busca do conhecimento e da inovação. A

mensagem das or ganizações empresariais, repercutida pela mídia especializada nesse

assunto, está muito clara. Quem não se converter a este novo estado de coisa está fora e

vai para o inferno do esquecimento e da exclusão. Por exemplo:

"É extremamente importante que o executivo faça, de tempos em tempos, uma

auto-avaliação realista do seu desempenho profissional para permanecer na

rota certa", diz Neszlinger, da Microsoft. Mas essa auto-avaliação tem que ser

realmente honesta, sobretudo para quem desconfia que pode estar deixando a

desejar. (...)"A obsolescência do conhecimento é muito rápida hoje em dia", diz

Mauro, da Booz-Allen. Ou seja, se a função do executivo o obriga a repetir-se

no trabalho, é bom que ele trate de aprender outras coisas, pois a qualquer

momento aquilo que faz pode cair em desuso. Da mesma forma, o cargo

exercido pelo ex ecutivo pode tornar-se obsoleto. Por isso é tão importante

adquirir novos conhecimentos. "Hoje o que o empregado tem para vender é a

sua capacidade intelectual", diz Mauro." (Bernardi, 1996, p.27).

CONCLUINDO

Peter Drucker, contrapondo um projeto técnico-social a uma visão religiosa,

oferece um discurso que tem algumas características dos dispositivos ideológicos aos

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quais Hervieu-Léger atribui a denominação de “religião ”. Será que esse pensamento

"religioso" levaria à humanidade para um caminho de felicidade e realização sem

precedente como Drucker parece acreditar? Segundo a autora, a dinâmica do avanço

científico e tecnológico suscita uma crise constante que se traduz numa sensação de

vazio social e cultural produzido pela mudança e vivida como uma ameaça pelos

indivíduos e pelos grupos (Hervieu- Léger, 1999, p. 40). É difícil deixar de concordar

com esta afirmação. Além dos aspectos subjetivos, intelectuais e emocionais desta

problemática, um fato deveria chamar a atenção de quem enxerga na sociedade das

organizações pós-capitalista a única alternativa p ossível: seu potencial d e exclusão, de

destruição e de "corrosão do caráter "5. Além de ser um ótimo assunto de reflexão,

monografia e análise, isto não deveria ser motivo de preocupação e de sofrimento?

BIBLIOGRAFIA

BERNARDI, Maria Amália, (1996) seu emprego está seguro? Bem-vindos, senhores

executivos, ao império da incerteza, Exame, ano 30, ed. 610, p.27

DRUCKER, Peter, Sociedade pós-capitalista, São Paulo, Ed. Pioneira Novos Umbrais

1994

DRUCKER, Peter, Desafios gerenciais para o século XXI, São Paulo, Editora Pioneira,

1999

GAUCHET, Marcel, Le Désanchantement du monde. Une histoire politique de la

religion, Paris, Gallimard, 1985

HERVIEU-LÉGER, Danièle, La religion en mouvement, le pélerin et le converti, Paris,

Flammarion, 1999

SENNETT, Richard, A corrosão do caráter, conseqüências pessoais do trabalho no

novo capitalismo, Rio de Janeiro, Editora Record, São Paulo, 1999

5 Esta expressão remete a SENNETT, Richard, A corrosão do caráter, conseqüências pessoais do

trabalho no novo capitalismo, Rio de Janeiro, Editora Reco rd, São Paulo, 1999