Monografia - Barroso, Leticia Silva. o Congo Capixaba (Em)Cantos de Identidade

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o Congo capixaba por Leticia silva barroso

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  • LETCIA SILVA BARROSO

    O CONGO CAPIXABA: (EM)CANTOS DE IDENTIDADE

    Monografia apresentada ao curso de Histria

    do Departamento de Histria do Centro de

    Cincias Humanas e Naturais da Universidade

    Federal do Esprito Santo, como requisito

    parcial para obteno do ttulo de Licenciatura

    e Bacharelado em Histria.

    Orientador: Prof. Dr. Luiz Cludio Moiss

    Ribeiro.

    Vitria

    2014

  • AGRADECIMENTOS

    (s) minha(s) famlia(s) que sempre me apoiaram e me incentivaram em meus estudos,

    entendendo minhas ausncias nos momentos familiares, me auxiliando nas dificuldades, e

    sempre me impulsionando a continuar o curso.

    Luciane Freitas, amiga de todas as horas, o maior dos bens que adquiri na UFES.

    Todos os fichamentos divididos e compartilhados, todas as apresentaes de trabalhos

    juntas, todos os resumos e estudos partilhados para as provas. Sem ela, no teria

    conseguido.

    todos aqueles que de alguma forma me auxiliaram na realizao desta pesquisa, em

    especial aos amigos e congueiros.

    Aos meus professores, especialmente aqueles que marcaram a minha graduao com

    exemplos de postura docente e como referncia em conhecimento. Em especial ao meu

    orientador Luiz Cludio M. Ribeiro, Priscila Oliveira Silva e Arnaldo Pinto Junior.

    D. Darci (in memorian), mulher de fibra, dedicada ao congo e que tive o privilgio de

    conhecer em seus ltimos dias.

  • Para estudar o passado de um povo, de uma

    instituio, de uma classe, no basta aceitar ao p da

    letra tudo quanto nos deixou a simples tradio

    escrita. preciso fazer falar a multido imensa dos

    figurantes mudos que enchem o panorama da

    Histria e so muitas vezes mais interessantes e mais

    importantes do que os outros, os que apenas

    escrevem a Histria.

    Srgio Buarque de Holanda

  • RESUMO

    Nesta pesquisa objetivou-se descrever, diferenciar e analisar o congo enquanto

    identidade cultural presente no Esprito Santo, aprofundando o entendimento de suas

    prticas atuais e os espaos por ele ocupados. Para tal, foram realizadas entrevistas com

    congueiros pautadas pela metodologia de Histria Oral, utilizando como objeto e meio

    de anlise os relatos obtidos, bem como apreciaes e registros escritos sobre o congo.

    Considera-se que o Esprito Santo no possui uma nica Identida78de, devido seu

    processo histrico de formao populacional, possui ento, vrias identidades sendo

    uma delas expressa atravs do congo. Identifica-se que este sofreu adaptaes

    modernidade, recebeu outros significados e ocupou espaos diferentes dos tradicionais

    religiosos, ocupando na atualidade espaos culturais, educacionais e miditicos, tendo

    se tornado um aspecto legitimador da identidade capixaba.

    Palavras chaves: Cultura, Congo, Identidade, Lugares de Memria.

  • ABSTRACT

    This research aimed to describe, differentiate and analyze the Congo Capixaba while it

    is present in the Esprito Santo cultural identity, deepening the understanding of their

    current practices and spaces it is occupied by. To this end, it was done interviews with

    congueiros guided by the methodology of oral history, using as objects and means of

    analysis reports obtained, as well as testimonials and written records were held about

    the congo. It is considered that the Esprito Santo does not have an identity, due to its

    history of population training, then it has several identities, one of them being expressed

    through the Congo. We identify that this one was adapted to modernity, given other

    meanings and occupied different spaces of traditional religious, occupying at present

    cultural, educational and media spaces, having become a legitimizing aspect of capixaba

    identity.

    Key-words: Culture, Congo, Identity, Place of Memory.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - Tambor de congo da Banda de congo Tambor de Jacarenema .................. 33

    Figura 2 - Casaca da Banda de congo Tambor de Jacarenema .................................. 34

    Figura 3 - Desenho de casaca sc. XIX........................................................................ 35

    Figura 4 - Bandas de Congo em Homenagem Nossa Senhora da Penha .................... 37

    Figura 5 - Joo Bananeira no Carnaval de Congo ........................................................ 39

    LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 - Grupos folclricos de origem dos imigrantes ............................................. 18

    Quadro 2 - Bandas de congo registradas no Esprito Santo .......................................... 32

  • LISTAS DE SIGLAS

    CDFB - Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro

    CNFL - Comisso Nacional do Folclore

    EMEF - Escola Municipal de Ensino Fundamental

    IPHAN - Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    MEC - Ministrio da Educao e Cultura

    PMC - Prefeitura Municipal de Cariacica

    PMVV - Prefeitura Municipal de Vila Velha

    PNMJ - Parque Natural Municipal de Jacarenema

    UMEF - Unidade Municipal de Ensino Fundamental

    UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura

  • SUMRIO

    INTRODUO ......................................................................................................... 11

    A CULTURA NO ESPRITO SANTO .................................................................... 14

    A CULTURA POPULAR E O TRABALHO DOS FOLCLORISTAS ..................... 14

    OS CAPIXABAS E SUA FORMAO ................................................................. 19

    MEMRIA E TRADIO: A QUESTO DAS IDENTIDADES NA

    SOCIEDADE ATUAL .............................................................................................. 22

    A PROBLEMTICA DAS MEMRIAS ................................................................ 22

    IDENTIDADE FRAGMENTADA E O CAPIXABA .............................................. 24

    AO SOM DE TAMBORES....................................................................................... 29

    NO CONFUNDA CONGO COM CONGADA..................................................... 29

    O CONGO CAPIXABA: TAMBORES E CASACAS (EM)CANTOS DE

    DEVOO ............................................................................................................. 30

    FESTAS DE DEVOO, LUGAR DE TAMBORES ............................................. 36

    NOVOS OLHARES SOBRE O CONGO ................................................................ 41

    TRADIO, IDENTIDADE E TRADUO: O CONGO E SEUS AGENTES ..... 42

    OS LUGARES DE MEMRIA - O CONGO E SUAS AES DE IDENTIDADE 47

    O Congo Educao .............................................................................................. 47

    O Congopop ........................................................................................................ 50

    CONSIDERAES PARCIAIS .............................................................................. 53

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................................... 55

    ANEXO A TERMOS DE CONCENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

    (TCLE) ...................................................................................................................... 59

  • 11

    INTRODUO

    Esta pesquisa est inserida no campo de Histria1 Cultural cujos estudos tm ocupado

    espaos acadmicos gradativamente maiores no Brasil, justamente por possuir inmeras

    brechas a serem preenchidas quanto ao conhecimento histrico cultural do pas.

    Segundo Nascimento e Menandro (2002), desde as primeiras pesquisas do final de sc.

    XIX, as temticas culturais no Brasil se configuram como um vasto campo de pesquisa

    que tm evoludo quanto metodologia e ao aporte terico. Vale ressaltar que a mesma

    tambm dialoga com o campo da Histria Regional, uma vez que pretende abordar

    questes especficas da cultura prpria do estado do Esprito Santo.

    O Esprito Santo possui cultura bem diversifica devido formao tnica de sua

    populao. O forte hibridismo de costumes marca o cidado capixaba pela miscigenao

    da cultura, tanto a de elite quanto a popular (RIBEIRO, 2002). O estado possui marcas

    das trs etnias de formao inicial do Brasil, a saber - portuguesa, indgena e africana

    e tambm possui caractersticas de outros imigrantes que desde o sculo XIX fazem

    parte do povo capixaba (BITTENCOURT, 2002), e como tal tambm contribuem para a

    cultura dos habitantes esprito-santenses. Considera-se que o Esprito Santo possui uma

    grande variedade cultural, e que a cultura popular capixaba se caracteriza justamente

    pelos costumes de seu povo (MAZOCO, 2002). Da miscigenao de costumes de

    algumas dessas etnias surgiu o congo capixaba, uma importante manifestao popular

    apreciada em vrios municpios do Esprito Santo.

    Essa manifestao cultural consiste em conjuntos de pessoas que cantam e danam de

    forma bem peculiar, sendo que participam homens e mulheres nas conhecidas Bandas

    de congo. Os principais instrumentos utilizados so tambores e casacas, acrescentando

    caixas-claras, cucas, bombos, pandeiros, chocalhos e apitos (LINS, 2009), que formam

    uma melodia animada, ritmada pelos tambores com repiques das casacas. As msicas a

    serem cantadas em cada apresentao so definidas pelo Mestre da Banda de congo que

    tambm ir marcar o ritmo da msica; as melodias vo tratar de devoes a santos, de

    assuntos do mar, como sereias e jangadas, de mulheres, de questes cotidianas, e de

    outros temas diversos. As mulheres, com saias ou vestidos rodados danam ao redor do

    1 Utilizou-se Histria quando referida disciplina acadmica e escolar e histria quando designada

    conhecimento.

  • 12

    grupo de msicos que se dispem em crculo, com as mos na cintura e girando de um

    lado para outro. Em cada grupo, h geralmente uma bandeira e um estandarte que sero

    usados durante as apresentaes, sendo que ambas possuem o nome da banda e na

    maioria delas h a imagem do Santo de devoo do grupo.

    O congo capixaba enquanto expresso cultural diversificada, com aspectos religiosos,

    histricos e culturais, se configura como uma fonte de pesquisa de ampla importncia,

    j que segundo Neves (1968) as Bandas de congo e as Festas do Mastro representam o

    folclore do Esprito Santo, uma vez que no possuem referncia em nenhuma outra

    regio do Brasil. Ainda que tal manifestao seja expressiva e prpria da cultura

    capixaba, verificou-se a escassez de trabalhos cientficos que abordem o tema

    (SANTOS, 2001). Para alm da escassez identifica-se a necessidade de construir

    estudos que considerem os participantes do congo, uma vez que eles podem falar sobre

    o assunto com maior propriedade que os estudiosos, pois dedicam as suas vidas para a

    permanncia dessa tradio.

    Entende-se que a comunidade acadmica est carente de pesquisas sobre a cultura

    esprito-santense, e que tais temas so importantes para a construo de uma Histria

    Local, to relevante quanto qualquer outra abordagem histrica. Desta forma, o presente

    trabalho configura-se como uma contribuio para aumentar os conhecimentos sobre a

    cultura capixaba e sobre as manifestaes populares nela presente. Conhecer melhor as

    tradies e histrias de onde se vive um meio de valorizar os saberes locais e de

    identificar-se enquanto capixaba, por isso a pesquisa tambm importante para a

    sociedade civil.

    Durante o desenvolvimento da pesquisa almejou-se, de forma primordial, descrever e

    identificar as caractersticas do congo que contribuem para a formao da identidade

    capixaba, buscando refletir sobre as memrias dos congueiros2 relacionadas tradio

    do congo. Considerando que h indcios de que o congo existe desde o perodo colonial,

    permanecendo at hoje, em vrios municpios do Esprito Santo, inclusive sobre forma

    de releitura artstica e musical, acredita-se pertinente avaliar o congo como integrante

    prprio da identidade capixaba. Para tal, propem-se verificar as experincias de alguns

    2 Ou conguistas - termos utilizados para identificar participantes das Bandas de congo.

  • 13

    participantes da Banda de congo Tambor de Jacarenema3 buscando identificar

    aspectos da tradio do congo, e as transformaes ocorridas nessa tradio at os dias

    atuais, bem como entender a forma como os congueiros interpretam a manifestao do

    congo e como eles analisam as suas participaes na tradio. No se deu foco a histria

    da Banda de condo Tambor de Jacarenema ou as Banda da Barra do Jucu, pois tal

    perspectiva no o foco da discusso pretendida.

    Para fazer tal anlise, discutiram-se brevemente questes sobre a cultura popular e sobre

    o folclore brasileiro e capixaba para situar a discusso em um plano geral. Tambm foi

    feito um sucinto levantamento historiogrfico acerca da formao populacional do

    Esprito Santo relacionando tal processo com as manifestaes culturais presentes no

    estado. Para o entendimento do congo foram descritas as caractersticas principais dessa

    manifestao cultural, apresentando as tradicionais festas que envolvem a participao

    das Bandas de Congo na grande Vitria. Discutiram-se teorias acerca da memria

    utilizando conceitos de lugares de memria de Nora (1993) e memria coletiva

    Halbwachs (2006), pois identificou-se aplicveis s prticas do congo. Tambm faz

    parte da anlise os conceitos de identidade Hall (2006) e identidades capixabas criada

    por Ribeiro (2012) para fundamentar a relao entre identidade e a cultura do congo.

    Por fim abordaram-se questes referente s tradies na modernidade discutidas por

    Hobsbawns e Ranger (1984) no sentido de contribuir para o entendimento da lgica

    tradicional na atualidade. Isso posto, a presente pesquisa pretende investigar os aspectos

    da tradio do congo que colaboram para a formao da identidade cultural capixaba.

    3 Banda de Congo fundada em 1990 na Barra do Jucu, Vila Velha.

  • 14

    A CULTURA NO ESPRITO SANTO

    A Histria busca compreender os caminhos da humanidade em diferentes lugares e

    pocas, sendo passvel de pesquisas em diferentes dimenses histricas, ou seja, vrios

    modos de olhar para o passado e analis-lo, que resultar em pesquisas de histria

    poltica, econmica, cultural, antropolgica, dentre outras. A Histria Cultural trata-se

    [...] de uma dimenso mltipla, plural, complexa, e que pode gerar diversas

    aproximaes diferenciadas (BARROS, 2009, p.59) sobre padres, sujeitos, modos de

    pensar e sentir, questes antropolgicas, e objetos como a Histria Cultural. Percebe-se

    que por meio da cultura possvel estudar e compreender o passado de determinado

    povo, seus costumes e tradies, sua produo cultural escrita, sua religio, podendo

    revelar modos de vida de uma poca que no existe mais. Considerando as pesquisas de

    Peter Burker (2005, p. 39) identifica-se que a ideia de cultura implica a ideia de

    tradio de certos tipos de conhecimentos e habilidades legados por uma gerao para a

    seguinte. A cultura de um povo pode ser representada por uma festa peculiar, por um

    prato tpico, uma lenda dos antepassados, pela forma de se vestir, cozinhar ou construir

    uma casa; pode ser expressa por uma histria contida em um livro, por um campeonato

    esportivo ou mesmo por seu artesanato. A cultura perpassa todas as aes humanas,

    sejam elas educacionais, polticas, econmicas, cotidianas, religiosas, referentes sade

    e recreao; cada povo constri e sustenta a cultura e os costumes estabelecendo

    expresses diferentes para cada local e tempo histrico. Observa-se que antigamente o

    conceito de cultura era utilizado apenas para designar expresses do grupo dominante,

    principalmente para s artes e s cincias,tendo sido usado, posteriormente, para as

    mostras populares como a medicina popular e a musica folclrica (BURKE, 2005). Em

    um terceiro momento, as duas vias passam a ser identificadas separadamente, cultura

    erudita e cultura popular, sendo que o foco da presente pesquisa est inserido na cultura

    popular, a qual merece esclarecimentos.

    A CULTURA POPULAR E O TRABALHO DOS FOLCLORISTAS

    Existem vrias formas de definir e entender o termo cultura popular. A esse respeito

    Roger Chartier (1995) sintetiza os conceitos, geralmente utilizados pelos estudiosos do

    tema, em dois principais modelos:

  • 15

    O primeiro [...] concebe a cultura popular como sistema simblico coerente e

    autnomo, que funciona segundo uma lgica absolutista alheia e irredutvel

    cultura letrada. O segundo, preocupado em lembrar a existncia das relaes

    de dominao que organizam o mundo social, percebe a cultura popular em

    suas dependncias e carncias em relao cultura dominante (CHARTIER,

    1995, p.171).

    Assim, h duas formas predominantes, no meio historiogrfico, de analisar a cultura

    popular: uma sendo o oposto da cultura das elites e outra sendo a imposio da cultura

    dominante sob as massas populares. Montenegro (1994) ensina que o popular se

    expressa com diferentes significados em tempos diversos cujas relaes produzem seus

    significados prprios daquela poca, desta forma, um dos aspectos do popular estar

    implicado na questo da elite o no popular e, consequentemente, o primeiro se

    transforma, enquanto contraponto, em legitimador do segundo (MONTEBEGRO,

    1994, p. 11). A cultura popular possui uma srie de prticas, representaes e formas

    de conscincia que possuem uma lgica prpria [...] distinguindo-se da cultura

    dominante exatamente por essa lgica de prticas, representaes e formas de

    conscincias (ARANTES, apud MONTENEGRO, 1994, p. 12). Nesta pesquisa,

    entende-se cultura popular como aquela que no de elite, que est em oposio

    cultura de elite; considera-se essencial localizar o congo inserido na cultura popular,

    uma vez que traz em suas origens as marcas singelas dos primeiros povos e traos

    alegres prprios dos festejos do povo, mesmo que atualmente tambm ocupe espaos

    considerados das elites, como a prpria mdia, por exemplo.

    No Brasil a discusso em torno da cultura popular d-se em duas vias tradicionais, a

    primeira est relacionada aos estudos e preocupaes folclricas tomadas enquanto

    manifestaes culturais das classes populares (OLIVEIRA, 1988, p. 310) as quais

    sero utilizadas para fundamentar a questo da identidade nacional; e a segunda liga a

    cultura popular questo poltica [...] procurando criar, atravs da cultura popular, uma

    conscincia crtica dos problemas sociais, visando a constituio do povo (OLIVEIRA,

    1988, p. 310). Esse ltimo grupo movimenta-se a partir de meados dos anos cinquenta

    por uma vertente que percebia a cultura popular como vis para ao poltica,

    diferenciando dos folcloristas. A cultura popular para eles deveria:

    Levar s classes populares uma conscincia crtica dos problemas sociais.

    Movimento que caminhava ao lado da questo nacional, pois, de acordo com

  • 16

    o pensamento dominante, a autntica cultura brasileira se exprime na sua relao com povo-nao (ORTIZ, 2001, p.162).

    Enquanto que a discusso da cultura popular para o primeiro grupo, dos folcloristas, tem

    como foco o que seria legtimo do povo, sendo esta expresso da identidade do pas,

    como ocorre nos textos do importante folclorista Slvio Romero que buscou em suas

    pesquisas determinar a base da nacionalidade brasileira, estudando a relao entre

    ndios, negros e portugueses no inicio da colonizao. Os folcloristas concentraram seus

    estudos em regies perifricas, conforme estudos de Renato Ortiz:

    [...] O estudo da cultura popular a forma de manifestao da conscincia

    regional quando ela se ope ao estado centralizador. No casual que os

    folcloristas predominantemente se concentram nas regies perifricas como o

    Nordeste, e que o folclore se institucionaliza no Brasil na dcada de 30

    (ORTIZ, 2001, p.162).

    Os pesquisadores de cultura popular chamados folcloristas entendiam as manifestaes

    folclricas como prprias da cultura popular, como atividade de natureza

    exclusivamente popular, por ela condicionada e dela dependente, vistas com

    indiferenas, coisa do povo ou da roa e deixada margem [...] (NEVES, 2009, p.

    31). Justamente tentando reverter o quadro de abnegao dos pesquisadores e dos

    rgos pblicos que buscava entender e valorizar as manifestaes culturais do povo -

    os festejos, as maneiras de fazer, o uso de ervas medicinal, as prticas das benzedeiras,

    os ditos populares, as origens tradicionais da cultura do povo e tantas outras coisas.

    Essa busca pela cultura folclrica no era inspirada em funo de um interesse

    meramente especulativo. [...] A maioria dos folcloristas buscavam no povo as razes

    autnticas e genunas que permitiriam definir sua cultura nacional (VILHENA, 1997,

    p. 25). A preocupao com a questo nacional gerou a criao da Comisso Nacional do

    Folclore (CNFL), em 1947, e esta se dedicou a organizar uma srie de eventos que

    incentivasse e divulgasse pesquisas da cultura popular em todo o Brasil, com o objetivo

    de ter o folclore reconhecido como cincias. Para tal, em 1958 criou-se a Campanha de

    Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB), rgo gerenciado pelo Ministrio da Educao e

    Cultura (MEC) que era responsvel pela defesa do patrimnio cultural do pas. A sua

    existncia confirma a expanso do movimento folclorista em importncia e em espao

    de discusso cientfica. Entre os folcloristas pode-se identificar a caracterstica de

    exaltao do popular como autntico da cultura nacional brasileira, justamente pelo

  • 17

    objetivo de seus estudos; destacam-se entre eles os nomes de Silvio Romero, Luis da

    Cmara Cascudo, Mrio de Andrade e Renato Almeida. Estes, assim como os demais

    do movimento nunca alcanaram o objetivo de ter seu conhecimento reconhecido como

    saber cientfico vlido, sendo severamente criticados pela comunidade acadmica por

    no possuir mtodos cientificamente reconhecidos. Vilhena (1997) identifica o declnio

    do movimento folclorista brasileiro no final da dcada de 70, e reconhece a importncia

    do movimento que permanece expresso pelas Comisses estaduais, como a Comisso

    Esprito-santense de Folclore (fundada em 1948). O movimento tambm elencou uma

    expressiva documentao primria, como tambm vrias pesquisas e congressos que

    possibilitaram um levantamento das tradies populares no Brasil, atuando naquelas em

    situaes de risco de se extinguir. Ainda que o meio acadmico pouco reconhea o

    trabalho dos folcloristas, no h como negar a respeitabilidade destes eruditos, se avaliar

    as atuaes individuais, estabelecendo processos de valorizao e conscientizao das

    prticas culturais populares; considera-se perfeitamente possvel, que sem o trabalho

    deles, haveriam se perdido no tempo expresses culturais de determinados lugares, ou

    mesmo se perdido os registros de saberes que no mais contemplam a

    contemporaneidade.

    A primeira obra de peso acerca do folclore capixaba intitulada Atlas do Folclore do

    Brasil, datada de 1982, a qual reuniu pesquisas que j vinham sendo realizadas pela

    Comisso Esprito-santense de Folclore, buscava identificar as danas, artesanatos e

    folguedos populares do estado, destacando as figuras de Hermgenes Lima Fonseca,

    Renato Pacheco e Guilherme dos Santos Neves como os mais reconhecidos

    representantes do grupo. Sobre os estudos acerca do folclore capixaba, Mazoco (2002)

    demonstra que tais manifestaes sero estudadas e esquematizadas a partir da dcada

    de 1940, com a iniciativa do mestre Guilherme dos Santos Neves, em 1947, de criar a

    Academia de Estudos Folclrico no Instituto Histrico e Geogrfico (MAZOCO, 2002,

    p. 150). Um ano depois fundada a Comisso Esprito-santense do Folclore, sendo uma

    pioneira entre as comisses estaduais se filiar CNFL e Organizao das Naes

    Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO), ela gerenciou as polticas

    relacionadas ao folclore no estado e passou a orientar estudiosos que desenvolviam

    pesquisas na rea da cultura popular (MAZOCO, 2002).

  • 18

    Quadro 1 - Grupos folclricos de origem dos imigrantes

    GRUPOS FOLCLRICOS DE ORIGEM DOS IMIGRANTES

    Imigrantes Grupo

    folclrico

    Quantidade

    de grupos

    no Esprito

    Santo

    Municpios

    Quantidade

    mdia de

    pessoas

    envolvidas

    Festa

    Aorianos de dana

    aoriana 1 Viana 27

    Festa do

    Divino

    Esprito

    Santo

    Alemes

    de dana

    13

    Cariacica, Domingos

    Martins, Lajinha, St

    Maria do Jetib, St

    Teresa e Afonso

    Cludio

    180 - de

    tradio

    Alems

    Holandeses de dana

    Holandesa 1 St Maria de Jetib 20 -

    Italianos de dana

    Italiana 16

    Alfredo Chaves,

    Anchieta, Aracruz,

    Cariacica, Castelo,

    Ibirau, Marechal

    Floriano, Marilndia,

    Mimoso do Sul, Nova

    Vencia, St Teresa,

    Venda Nova do

    Imigrante, Vila Pavo

    320

    Encontro da

    Colnia

    Italiana de

    Castelo,

    Festa da

    Polenta,

    Polentino e

    Minestrina,

    Pomitafro.

    Poloneses de dana

    polonesa 1 guia Branca 24

    Pomeranos

    de dana

    4 Itarana, St Maria de

    Jetib, Vila Pavo 88

    Festa

    Pomerana,

    Pomitafro

    de

    tradio

    pomerana

    Portugueses de dana 3 Anchieta, Ibatiba, Vila

    Velha 60 -

    Fonte: Capai (2009)

    No Esprito Santo as manifestaes culturais possuem diversidades mltiplas: negros,

    indgenas, portugueses e imigrantes (italianos, alemes, pomeranos, holandeses)

    contribuem para a formao dos festejos populares do estado. Conforme nos aponta

    Mazoco (2002, p.141) a nossa cultura popular, evidentemente, est fortemente

    vinculada pelas etnias que nos conformaram ao longo do processo de formao histrica

    do Esprito Santo. Dos imigrantes que aportaram em terras capixabas ainda hoje h

  • 19

    festejos e danas tradicionais preservadas por seus descendentes que movimentam o

    turismo nas regies por eles habitadas. Esses festejos tpicos j fazem parte da cultura

    capixaba, da identidade dos esprito-santenses essencialmente marcada por uma cultura

    dos pases europeus mantida pelos imigrantes. Para melhor entender a influncia dos

    imigrantes na cultura capixaba apresenta-se o Quadro 1.

    Por meio do quadro consegue-se visualizar a forte influncia cultural europeia trazida

    pelos imigrantes e mantida por seus descendentes, como a tradio italiana da Festa da

    Polenta que acontece em Venda Nova do Imigrante, o Encontro da Colnia Italiana de

    Castelo no municpio de Castelo, a Festa do Divino Esprito Santo em Viana, a Festa

    Pomerana Pomesrischfest em Santa Maria de Jetib e o Pomitafro, em Vila Pavo. Os

    dados apresentados referem-se a trinta e nove grupos, que almejam manter as tradies

    folclricas de seus descendentes somando a participao direta de setecentos e vinte

    pessoas. um nmero expressivo de grupos considerando-se as dificuldades de

    manuteno da cultura num pas diferente, bem como a dificuldade de permanncia de

    culturas desse tipo num mundo orientado pela globalizao.

    OS CAPIXABAS E SUA FORMAO

    No processo de formao histrica do estado, ocorre a mistura de alguns dos costumes

    desses povos, como tambm a permanncia de outras culturas que ao longo da

    modernidade conseguiram conservar suas caractersticas. Como tal, verificou-se a

    necessidade de explicitar brevemente questes referentes formao da populao

    capixaba por considerar fundamental para o entendimento da cultura que se expressa

    entre os capixabas, sendo este um tema transversal do assunto aqui discutido. Acerca

    desse processo de mudanas e permanncias, Neves (2009, p. 32) nos informa: o

    folclore capixaba teria capacidade de sobreviver aos novos tempos, muito embora

    cedendo s adaptaes, em razo da presso das transformaes emergentes e tambm

    de fatores inerentes dinmica do processo cultural.

    A cultura capixaba essencialmente marcada pela formao de seu povo, o que implica

    numa cultura completamente hbrida, seja dos africanos ou imigrantes, seja dos

    portugueses ou indgenas, o ser capixaba se define em caminhos cruzados e paralelos

  • 20

    desses povos, sem perder com isso a particularidade da cultura de seus habitantes. Os

    primeiros povos que aqui viveram, segundo pesquisas realizadas pelo antroplogo Celso

    Perota, foram os ndios das tribos Tupi-guarani, Patoxo, G (botocudo) e Puri-coroado

    (BITTENCOURT, 2006), sendo que alguns deles viviam dos recursos dos manguezais,

    pois ali se fixaram e constituram suas culturas. Tais refletem-se ainda hoje se

    observamos os hbitos das populao que habitam o entorno dos manguezais, como nos

    informa Ribeiro (2002, p.39): ser capixaba tem muito mais a ver com a cultura que se

    alimenta e prolifera nos manguezais [...] do que com a cultura superficial das elites.

    Com a chegada dos portugueses iniciou-se o processo de colonizao com a construo

    de Vila Velha em 1535 que posteriormente abranger a antiga Ilha de Santo Antnio,

    atual Vitria. No fim deste sculo aconteceu a primeira entrada de africanos nas terras

    capixabas servindo de mo de obra escrava para as lavouras aucareiras

    (BITTENCOURT, 2006). Assim como em todo o Brasil, a base da populao se

    estabeleceu a partir dessas trs etnias que mesclaram seus costumes (no

    desconsiderando a imposio das tradies e crenas portuguesas sob as outras etnias),

    destacando a presena dos Jesutas, que chegaram no estado em 1551

    (BITTENCOURT, 2006) e deixaram a herana de seus costumes e estilos

    arquitetnicos. O prprio nome Capixaba expressa a mistura dos povos, uma vez que

    sendo de origem indgena (os Tupis utilizavam o termo para referir-se as plantaes) foi

    apropriado pelos portugueses: a populao de Vitria passou a chamar de capixabas os

    ndios que habitavam a regio e depois o nome passou a denominar todos os moradores

    do Esprito Santo (NEVES; PACHECO, p.53). Outra questo que expressa a mescla de

    costumes desses povos o sincretismo religioso que aconteceu principalmente entre

    africanos e portugueses. Por imposio dos senhores de escravos os negros foram

    obrigados ao culto segundo os costumes cristos e resistiram mesclando as crenas

    religiosas africanas com o catolicismo. Ainda hoje pode-se destacar tal sincretismo na

    cultura esprito-santense, conforme comprova as pesquisas de Ribeiro (2002, p. 38) ser

    capixaba ir missa no Convento e fazer cultos ou oferendas Iemanj na praia [...]

    festejar So Benedito com Bandas de congo e So Sebastio com procisso.

    Analisando a constituio da populao do Esprito Santo percebe-se o porqu deste

    hibridismo cultural, um territrio que alm de portugueses, africanos e indgenas tenha

    recebido [...] os povos europeus, principalmente italianos e alemes, que traro seus

  • 21

    elementos e valores culturais, contribuindo para o contorno diferenciado da identidade

    capixaba (MAZOCO, 2002, p.148). justamente essa miscigenao de costumes

    diversos que marca o estado do Esprito Santo, no sendo possvel caracterizar uma

    homogeneidade nos hbitos culturais entre italianos, alemes, pomeranos, aorianos,

    holandeses e suos. Para melhor entender essa formao do territrio utilizou-se os

    ensinamentos de Bittencourt (2006) que apontam que a chegada dos imigrantes no

    Esprito Santo aconteceu logo aps os tratados de 1810, com a fundao da colnia de

    Viana, formada por aorianos em 1813. Depois comearam os incentivos do governo

    para imigrantes no sentido de formao de mo de obra para as lavouras a proposta era

    fornecer mo de obra para as lavouras, que se encontravam sem braos para o trabalho

    com o fim da escravido (DADALTO, 2011, p. 61). Os alemes e suos vieram

    alguns anos depois, conforme nos descreve Bittencourt:

    [...] Entre as colnias de imigrantes do sculo XIX no Esprito Santo alm de

    Santa Isabel (1846), destacam-se: Santa Leopoldina, fundada quase dez anos

    depois, em 27 de fevereiro de 1856 e Rio Novo (esta de carter particular),

    em maio do mesmo ano nas quais foram assentados alemes e suos e, em menor escala, holandeses e franceses, muitos removidos de ncleos coloniais

    de outras regies (BITTENCOURT, 2006, p. 228).

    Alm desses povos tambm vieram os italianos, em 1974, para a ocupao do territrio

    que hoje corresponde Santa Cruz, sendo esta a primeira leva de colonos italianos que

    vieram para as terras capixabas. Essas informaes so expostas para elucidao da

    formao da populao no estado, uma vez que vrias outras colnias4 foram formadas

    por imigrantes no estado.

    4 Acrescentam-se, quanto diversidade de etnias que se instalaram no Esprito Santo, os Ingleses em

    Pima (1856), norte-americanos em Japaran (1867) e poloneses em guia Branca (1928). Tais

    informaes so encontradas em BITTENCOURT, 2006, p. 233.

  • 22

    MEMRIA E TRADIO: A QUESTO DAS IDENTIDADES NA

    SOCIEDADE ATUAL

    Os saberes e prticas que envolvem o congo so preservados numa cultura

    tradicionalmente oral, passados de pais para filhos, como o cargo e os saberes de

    mestres das bandas que em muitos grupos so herana familiar, mas tal movimento no

    to rgido, por que nem sempre a nova gerao se prope a continuar com a tradio.

    Nesses casos, para que a tradio do congo tenha continuidade os saberes so passados

    para novos participantes que no possuem grau de parentesco com os antigos

    conguistas. Na modernidade, percebe-se um movimento de enfraquecimento das

    prticas culturais tradicionais devido no permanncia dos jovens na tradio que

    anteriormente era passada de gerao em gerao.

    Reconhece que a discusso em torno da cultura e sua relao identitria pretende

    fundamentar sentimentos de identidade de um povo, e tm intencionalidade poltica e

    econmica, contudo contribui para a valorizao das prticas culturais propriamente

    ditas. Justamente por isso surge a necessidade de discutir sobre os conceitos de memria

    e de identidade, para que se possa entender melhor os participantes dos congos e a

    relao da memria com a identidade capixaba.

    A PROBLEMTICA DAS MEMRIAS

    Pierre Nora (1993) faz anlises sobre a memria e a Histria avaliando negativamente o

    esfacelamento do que ele chama de sociedade-memria, causado pela acelerao da

    Histria. O autor distingue histria e memria, afirmando que a contemporaneidade

    marcada pelos lugares de memria, que so lugares nos quais a histria ainda possui

    traos de memria, como os conjuntos arquitetnicos e as prticas culturais populares,

    tendo a funo de parar o tempo, bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado

    de coisas (NORA, 1993, p.22). Os historiadores so os responsveis por esses lugares

    de memrias, pois o historiador aquele que impede a histria de ser somente

    Histria (NORA, 1993, p.21). Pierre Nora critica ainda a exacerbao de registros que

    geram o esquecimento da memria em prol da atualizao da histria acelerada, sendo

    que o excesso de arquivo acarreta na perda da capacidade de guardar na memria aquilo

  • 23

    que se visto e vivido, gerando uma distoro na identidade do povo. Desta forma o

    autor assinala: a passagem da memria para a histria obrigou cada grupo a redefinir

    sua identidade pela revitalizao de sua prpria Histria (NORA, 1993, p.17),

    acontecendo nesse processo o esfacelamento da memria caracterizado pela reduo da

    capacidade de identificar-se em um grupo.

    A discusso em torno da memria abrange a existncia de uma relao muito forte entre

    a identidade de um povo e sua memria, assim como entre os campos da histria est

    certamente investigao da memria de uma determinada comunidade ou grupo

    social, e que a memria de uma comunidade est profundamente ligada sua

    identidade (LE GOFF, 2003, p. 469). S se relata e busca guardar aquilo que

    relevante, que se expressa como importante para uma comunidade ou grupo, e por isso

    mesmo h o cuidado de passar para as novas geraes; desta forma vai se formando

    uma memria coletiva daquele local. Muitos perpetuam prticas culturais que no tm

    funcionalidade prtica atualmente, mas preservado para manter na memria atual a

    forma como seus antepassados viviam.

    Nesse sentido, a memria construda e compartilhada em um grupo tem o papel de

    preservao daquilo que as comunidades definem como importante para no deixarem

    morrer. Sobre o assunto Halbwachs (2006) teoriza questes referentes memria e

    ensina que h dois tipos de memria, uma individual e outra coletiva. Para melhor

    entender tal perspectiva acerca da memria, recorre-se s palavras do prprio autor:

    Portanto existiriam memrias individuais e, por assim dizer, memrias

    coletivas. Em outras palavras, o indivduo participaria de dois tipos de

    memrias. No obstante, conforme participa de uma ou de outra, ele adotaria

    duas atitudes muito diferentes e at opostas. Por um lado, suas lembranas

    teriam lugar no contexto de sua personalidade ou de sua vida pessoal as mesmas que lhes so comuns com outras s seriam vistas por ele apenas no

    aspecto que o interessa enquanto se distingue dos outros. Por outro lado, em certos momentos, ele seria capaz de se comportar simplesmente como

    membro de um grupo que contribui para evocar e manter lembranas

    impessoais, na medida em que estas interessam ao grupo (HALBWACHS,

    2006, p. 71).

    Na teoria de memria coletiva proposta por Halbwachs (2006) existe a memria

    individual (tambm chamada pelo autor como interna, pessoal ou autobiogrfica)

    constituda a partir das relaes de cada indivduo com o mundo e com os

    acontecimentos; e a memria coletiva, (identificada tambm como exterior, social ou

  • 24

    histrica) que se constri na interao dos indivduos entre si e da relao do grupo com

    o mundo. Por vezes ela pode ser estabelecida com lembranas e relatos dos mais antigos

    que os jovens se apropriam, e o fazem de tal maneira que acreditam mesmo ter

    vivenciado aquilo que contam como se fossem as memrias individuais deles prprios,

    enquanto que so apenas memrias relatadas; o processo de apropriao revela a

    construo de uma memria que deixa de ser das pessoas mais velhas e passa a ser do

    grupo, ou seja, se torna uma memria coletiva daquele grupo. Ressalta-se que nestes

    casos cada memria individual um ponto de vista sobre a memria coletiva, [...] este

    ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e [...] este lugar mesmo muda

    segundo as relaes que mantenho com outros meios" (HALBWACHS, 2006, p. 72).

    Ou seja, cada indivduo mantm suas lembranas individuais dentro de um corpus

    maior que constri uma memria coletiva que corrobora para que os indivduos tenham

    certas atitudes e vises de mundo condizentes com a memria do grupo no qual esto

    inseridos, estando a memria coletiva intrinsecamente ligada identidade de um povo.

    IDENTIDADE FRAGMENTADA E O CAPIXABA

    Sobre a questo da identidade de um povo, o autor Stuart Hall (2006), referncia em

    estudos sobre o assunto, aponta que tal temtica comumente relacionada com a crena

    na identidade nacional, que remete a acreditar que todas as pessoas de uma nao

    possuam um ou mais elementos que permitam que elas se considerem integrantes de

    uma nica famlia nacional. Hall assinala pertinentemente que uma cultura nacional

    nunca foi um simples ponto de lealdade, unio e identificao simblica. Ela tambm

    uma estrutura de poder cultural (HALL, 2006, p. 59). Alm de poder cultural a

    formao da cultura nacional de um povo, nem sempre espontnea, se configurando

    por razes diversas: pelo processo de formao da nao (por vezes violento e de

    subordinao de uma cultura outra); pela presena de grandes diversidades sociais e

    econmicas presente no grupo nacional e tambm pela forte hegemonia cultural de

    alguns pases sobre outros.

    Entretanto, so perceptveis as diferenas presentes entre os membros de um pas quanto

    etnia, crena ou a qualquer outro fator. Como defende Hall, em vez de pensar as

    culturas nacionais como unificadas, deveramos pens-las como constituindo um

  • 25

    dispositivo discursivo que representa a diferena como unidade ou identidade (HALL,

    2006, p. 61). Para o autor, o carter de rpidas transformaes presentes nas sociedades

    modernas gerou um sujeito fragmentado em relao identidade cultural, j que

    participa de uma cultura mundial proporcionada pela globalizao. Em suas anlises

    Hall (2006) afirma que as sociedades modernas so, portanto, por definio,

    sociedades de mudana constante, rpida e permanente. Esta a principal distino

    entre as sociedades tradicionais e as modernas (HALL, 2006, p. 14). Tal sociedade

    foi modificada no processo de globalizao que inegavelmente mudou a percepo de

    identidade cultural das pessoas. Concomitantemente, h um processo inverso de repulsa

    cultura global que fortalece a identidade local, sendo a globalizao responsvel por

    reforar as identidades locais e as tradies, estabelecendo um paradoxo quanto a

    identidades nacionais.

    Acerca das discusses explicitadas, pode-se entender que as sociedades modernas com o

    excesso de arquivamentos para a construo da Histria enquadra-se num processo de

    esfacelamento da memria que interfere diretamente na sua concepo de Identidade de

    um povo. Hall (2006) desenvolve sua pesquisa na mesma concepo de Nora (1993), no

    sentido de acreditar nesse processo de mudana quanto identidade de um povo, pois

    entende que h uma identidade mundial em ascenso que gerou, num movimento

    contrrio, um processo de fortificao das identidades locais. nesse ponto que

    pretende-se manter a discusso a respeito do congo. Como e em quais elementos o

    congo contribui para o processo de fortalecimento da identidade capixaba. vlido

    ressaltar que, em concordncia com Hall (2006) entende-se que a identidade de um

    povo pode ser verificada atravs de certos elementos que podem caracterizar uma

    comunidade, um estado ou pas, ainda que seja tambm um mecanismo de poder

    cultural.

    A identidade capixaba se mescla entre as vrias culturas presentes no estado, a nossa

    cultura popular, evidentemente, est fortemente vincada pelas etnias que nos

    conformaram ao longo do processo de formao histrica do Esprito Santo

    (MAZOCO, 2002, p.148). E justamente pelo processo histrico, que o povo capixaba

    ficou marcado com traos fortemente europeus, de seus imigrantes italianos e alemes,

  • 26

    contudo conforme demonstra pesquisa de Moraes (2004), quando se fala em identidade

    capixaba relaciona a elementos negros e indgenas.

    Busca-se no negro e no ndio um passado que possa ser considerado a origem

    universalizante, para assim construir uma identidade capixaba. o que

    acontece com o culto s bandas de congo, de origem negra, ou com a Panela de Barro ou a moqueca, facilmente relacionada com o ndio

    (MORAES, 2004, [s. p.]).

    Obviamente no se pode desconsiderar a relevncia desses povos, ou supervalorizar a

    presena da cultura imigrante, o que est em questo a regio na qual o foco da

    pesquisa dado. Realmente muito complicado fazer generalizaes dizendo que o

    congo um elemento que represente a regio serrana, por exemplo, contudo, no se

    pode fazer generalizaes contrrias, como dizer que a cultura imigrante representa

    todos os capixabas.

    Dialogando com Stuart Hall, Francisco Aurlio Ribeiro (2012) desenvolve estudos

    sobre a identidade capixaba. Ele identifica que o sujeito ps-moderno no tem uma

    identidade fixa, essencial e permanente (RIBEIRO, 2012, p.109) e o capixaba no se

    distingue de tal. O autor afirma que a identidade capixaba se define pela diferena de

    outras identidades de grupos sociais como a mineira, baiana, carioca, paulista ou

    gaucha (RIBEIRO, 2012, p.109). Isso se deve formao social do estado que se

    constitui de um caldeiro tnico gerando no apenas uma identidade, mas vrias

    identidades capixabas. Pensar em identidades, no plural, significa reconhecer as

    diferenas culturais do povo do Esprito Santo que mesmo diferentes conseguem

    manifestar-se em um mesmo estado, sem que a valorizao de uma interfira na outra.

    tambm reconhecer que a cultura de um povo no necessariamente precisa ser

    homognea e de apenas uma raiz, sendo uma identidade nacional e/ou local um

    conjunto de elementos que podem distinguir-se, em certa medida, os costumes e

    tradies de um povo em especfico.

    Verificou-se a necessidade de tecer algumas consideraes acerca daquilo que se

    identifica como tradio, geralmente relacionado algo que prprio de um povo, que

    passado de gerao em gerao, que sobreviveu a vrias pocas mantendo as

    caractersticas essenciais, e justamente por sobreviver no tempo considerado parte da

    identidade de um povo, algo tradicionalmente institudo e mantido por aqueles que esto

  • 27

    envolvidos. No meio das tradies o passado utilizado como elemento legitimador, a

    resistncia ao tempo se torna algo imprescindvel para que uma manifestao seja

    considerada uma tradio. Sobre o assunto o pesquisador Michael Pollack ressalta que a

    referncia ao passado serve para manter a coeso dos grupos e das instituies que

    compem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade,

    mas tambm as oposies irredutveis (POLLACK, 1989, p.10), sendo que o tempo de

    existncia de um costume vai autenticar tal elemento como tradicional. Para autores

    como Hobsbawn e Ranger as tradies so na verdade criaes das sociedades, eles

    afirmam que muitas vezes, tradies que parece ou so consideradas antigas so

    bastante recentes, quando no so inventadas (HOBSBAWN; RANGER, 1984, p.11).

    Quando ocorrem mudanas rpidas que reestruturam padres sociais antigos h a

    necessidade de que novos padres sejam erguidos inventam-se novas tradies quando

    ocorrem transformaes suficientemente amplas e rpidas tanto do lado da demanda

    quanto da oferta (HOBSBAWN; RANGER, 1984, p. 13). Nesse entendimento, na

    maioria dos casos existem tradies inventadas, ritos sedimentados pela repetio e

    com apelo ao passado, que na verdade foram criadas recentemente, assim tradies

    inventadas so definidas como:

    [...] um conjunto de prticas, normalmente reguladas por regras tcita ou

    abertamente aceitas; tais prticas, de natureza ritual ou simblica, visam

    inculcar certos valores e normas de comportamento atravs da repetio, o

    que implica, automaticamente; uma continuidade em relao ao passado

    (HOBSBAWN; RANGER, 1984, p. 9).

    Entende-se que inventadas ou no, as tradies no so fixas e imutveis, elas atuam

    conforme a poca em que se expressa, pois so aqui entendidas como flexveis,

    passveis de mudanas, que correspondem ao momento vivido; elas se adquam cada

    poca em que se expressam. A histria utilizada para fundamentar as tradies como

    muito antigo, e as tradies so usadas para fundamentar prticas polticas. O

    movimento de fortalecimento de identidades locais usado por meio de aes

    governamentais e por meio da mdia para movimentar o comrcio turstico de uma

    cidade ou local. Desta forma, a tradio [...] um processo, causado por necessidades

    materiais e imateriais, que se constri no tempo, que muda de acordo com o perodo

    histrico (HOBSBAWN; RANGER, 1984). E se expressa do acordo com intenes

    econmicas e polticas, bem institudas que se diluem e se escondem em meios aos

  • 28

    elementos e prticas culturais, sendo que estas envolvem particularidades distantes

    destas intencionalidades, como a devoo e a credibilidade numa prtica dos

    antepassados.

  • 29

    AO SOM DE TAMBORES

    O congo do Esprito Santo possui marcas prprias da cultura capixaba, seja na presena

    das casacas seja no ritmo dos tambores, e claramente difere-se das manifestaes

    culturais intituladas congadas e/ou congado; estas so encontradas na regio norte

    e centro-sul do Brasil, como tambm em vrios estados do nordeste (CASCUDO,

    2002). Acredita-se que o congo e a congada possuam algumas caractersticas

    semelhantes, mas so em seus fundamentos e prticas diferentes.

    NO CONFUNDA CONGO COM CONGADA

    Sabe-se que elas consistem em um teatro mesclado com dana possuindo caractersticas

    religiosas catlicas e expressando uma mistura de tradies ibrica e africana. Para

    melhor entender essas diferenas utilizou-se o Dicionrio do Folclore Brasileiro que as

    define da seguinte maneira:

    Folguedo de formao afro-brasileira, em que se destacam as tradies

    histricas, os usos e costumes tribais de Angola e do Congo, com influncia

    ibrica no que diz respeito religiosidade. [...] Trata-se de um auto que rene

    elementos temticos africanos e ibricos [...] As congadas com representao

    teatral focalizam sempre a luta entre mouros e cristos (CASCUDO, 2002, p.

    149).

    As congadas possuem uma srie de ritos, como a coroao dos reis de congo e as

    simulaes de guerras atravs da dana, caractersticas ausentes no congo esprito-

    santense. Observa-se em ambas manifestaes culturais a religiosidade muito forte,

    porm os padroeiros das congadas Nossa Senhora do Rosrio, So Benedito e Santa

    Efignia. Nesse sentido pode-se destacar a semelhana entre elas devoo a So

    Benedito, que foi considerada por Lins (2009) como o elo entre o congo capixaba e a

    religiosidade. Ainda sobre as congadas destaca-se que as melodias so executadas por

    viola, cavaquinho, violo, reco-reco, pandeiro, bumbos, tringulo, sanfona,

    instrumentos que do ritmo a cada passagem (CASCUDO, 2002, p. 150). evidente

    que a msica desta dana no possui sonoridade parecida com a expressa pelo congo

    capixaba marcada pelos tambores e casacas. Isto posto, pode-se concluir que no existe

    relao direta do congo capixaba e das congadas, embora no interior do Esprito Santo

    tenha sido registrado trs grupos, conforme demonstra Atlas do Folclore do Brasil

    (1982, p. 74): no Esprito Santo, entre os grupos registrados, apenas trs grupos (um de

  • 30

    Conceio da Barra e dois de Ibiruu) se classificam como folguedos. J na Grande

    Vitria h relatos que indicam a existncia das congadas na regio de Roda Dgua

    Cariacica (Mazoco, 1993). Mesmo que tenha sido constatada a existncia dessas

    manifestaes no estado no foi possvel saber se atualmente elas existem, uma vez que

    os dados supracitados esto desatualizados. Considera-se que ainda que permaneam

    so de menor expressividade que o congo, e que possui particularidades bem distintas

    daquelas existentes no congo capixaba.

    Tambm se diferencia dos jongos que se manifestam na regio sudeste do Brasil, sendo

    que no Esprito Santo se expressam na regio do litoral sul. Com forte presena da

    cultura africana, o jongo uma dana cujos componentes se organizam em crculos

    reunindo-se em geral em terreiros, os mesmo utilizados em religies de matrizes

    africanas5. De carter religioso, Ribeiro assim o descreve:

    O jongo se realiza nas grandes festas, via de regra dos oragos religiosos,

    Festas Juninas, Festa do Divino, Festa De Santa Cruz, [...] e principalmente,

    para pagamento de promessa de determinada pessoa ao santo de sua devoo (RIBEIRO, 1984, p. 13).

    Participam homens e mulheres que cantam e danam a noite inteira, ao som de tambores

    (chamados tambu - tambor maior e candongueiro tambor menor), putas (cuca) e

    guai (chocalho), principais instrumentos utilizados. Para entender melhor, utiliza-se

    das palavras de Renato Almeida (1942) quando afirma ser o jongo uma variedade do

    samba, cujos participantes em roda danam individualmente em coreografia complexa

    sob o som de tambores e instrumentos de percusso. No Esprito Santo h oito grupos

    de jongos, entre os municpios de Presidente Kennedy, Itapemirim, So Mateus e

    Conceio da Barra. (CAPAI, 2009, p.106). Desta forma se configura como uma dana

    folclrica diferente daquela em questo nessa pesquisa.

    O CONGO CAPIXABA: TAMBORES E CASACAS (EM)CANTOS DE DEVOO

    O congo uma importante expresso cultural presente em vrias regies do estado,

    possuindo caractersticas indgena, africana e portuguesa. Como ensina Lins (2009), as

    Bandas de congo so

    5 Como o Candombl, por exemplo.

  • 31

    Originadas dos ndios e mescladas posteriormente de elementos europeus e

    africanos, as outrora bandas de ndios depois bandas de tambor, passaram a ser denominadas bandas de congos, expresso que, na atualidade, foi simplificada para bandas de congo (LINS, 2009, p.29).

    Desta forma h fortes indcios que a origem do congo seja indgena, porm vale

    ressaltar que o Congo conforme se expressa na atualidade tem fortes influncias

    portuguesas e africanas, sem as quais no seria reconhecido como congo, mas como

    alguma dana diferente desta. Sobre a influncia africana destaca-se o ritmo com que os

    principais instrumentos so tocados e tambm pela dana. Lins identifica no negro o

    diferenciador quanto ao ritmo presente no congo:

    Pelas antigas descries de bandas de ndios, que tocavam toadas montonas e lgubres, e pelo feitio geral das msicas indgenas brasileiras, que se

    aliceram na repetio obstinada de ritmos-base, no ser favor nenhum

    atribuir contribuio africana a presena do repique nas Bandas de congo

    [...] (LINS, 2009, p.64).

    Enquanto que a marca portuguesa d-se pela relao religiosa existente nessa tradio,

    explicitamente catlica, anexada cultura brasileira pelo colonizador europeu, cuja

    poltica de dominao dos povos indgenas e africanos sufocou a religiosidade dos

    povos dominados, e sobreps a tradio religiosa europeia. Desta forma:

    [...] As bandas de congo do Esprito Santo refletem, em sua maioria, a

    influncia religiosa do colonizador. Basta observar no mbito da devoo as

    denominaes dos grupos: muitas bandas de congo homenageiam um ou

    mais oragos, a exemplo da banda de congo So Benedito e Santo Antnio de Pdua Mirim (...) (LINS, 2009, p.85).

    O grupo de congo se apresenta em festas religiosas, em eventos culturais, e por vezes,

    em espaos abertos ou em ruas contando com grande participao do povo. Todo

    capixaba, ainda que no aprecie o estilo musical, sabe cantar um trecho de alguma

    msica do congo. Essa manifestao da cultura popular envolve diretamente 2.135

    pessoas, que so os legtimos portadores dessa tradio autenticamente capixaba

    (CAPAI, 2009, p. 70). Facilmente encontra-se uma Banda de congo pronto para alegrar

    o pblico em ritmos de tambores, como comprova os do que indica a presena 61

    Bandas de congo registradas6 no Esprito Santo.

    6 Importante observar que possivelmente existem mais Bandas de congo no Esprito santo, uma vez que

    h grupos sem registros, e que o Atlas do Folclore Capixaba, fonte da informao, foi lanado em 2009.

  • 32

    Quadro 2 - Bandas de congo registradas no Esprito Santo

    Bandas de congo no Esprito Santo

    Municpio Qnt. de

    Bandas

    Banda de Congo

    Alfredo

    Chaves

    1 So Benedito Macrina

    Anchieta 3 So Benedito, Sol e Lua e Mt. Pedro Camilo

    Aracruz 4 So Benedito do Rosrio, Tupiniquim de So Benedito,

    Tupiniquim e de So Benedito de Biriricas

    Cariacia 9 Mirim projeto Semente, Mt. Tajibe, So Benedito de

    Piranema, St Isabel Mirim da Roda Dagua, So

    Sebastio de Taquaruu, de St Isabel, da APAE de

    Cariacica, de So Benedito de Boa Vista e Unidos de Boa

    Vista

    Colatina 2 de So Benedito de Paul de Graa Aranha e Tambor de

    So Benedito de Colatina Velha

    Fundo 4 Mirim de So Benedito e So Sebastio, Cultural Com-

    fogo, de So Benedito e So Sebastio, So Sebastio e

    So Benedito de Irundi e Piabas

    Guarapari 3 de Rio Claro, de Alto Rio Calado e de Poroco

    Ibirau 2 de So Benedito e de Alto Piabas

    Joo Neiva 2 de Joo Neiva e So Benedito

    Linhares 3 de So Benedito de Regncia, de So Benedito de

    Povoao e Mirim de Regncia

    Santa

    Leopoldina

    1 Unidos do Retiro

    Serra 18 Folclrico So Benedito, Konschaa, So Benedito de

    Santiago, So Benedito de Campinho de Serra II, Nossa

    Senhora do Rosrio e So Benedito de Pitanga, Nossa

    Senhora da Conceio, So Benedito e So Sebastio,

    Santo Expedito, Cultura Congo, Mirim So Benedito e

    Santo Antnio de Pdua, Mirim Nossa Senhora da

    Conceio e So Benedito, Mirim Nossa Senhora do

    Rosrio, Mirim Santo Antnio de Pdua, Mirim Sant'Ana,

    Jovens de Manguinhos, Mirim So Pedro, Mirim So

    Benedito e Mirim Unio de Jovens Reis Magos

    Viana 2 Me Petronlia e de So Sebastio de Piapitangui

    Vila Velha 4 Tambores de Jacarenema, Mestre Honrio, Mestre

    Alcides e So Benedito da Glria

    Vitria 3 Amores de Lua, Panela de Barro e Viramundo

    Fonte : Capai (2009)

    importante salientar que existem particularidades entre as bandas, como os

    instrumentos utilizados para a marcao das msicas ou o prprio ritmo com que as

    msicas so cantadas. O uso frequente de repique, definido por Lins (2009, p. 62) como

  • 33

    curta cadncia instrumental (confiada geralmente a tambores, casacas ou bombo)

    caracteriza as bandas do municpio de Vila Velha. Quanto aos instrumentos utilizados

    pelos grupos pode-se elencar os seguintes: tambores e reco-recos aos quais se somam

    chocalho, cuca, pandeiro, tringulo, caixa-clara, bombo, e em vrias delas, apito. No

    entanto, os tambores e ao menos um reco-reco so imprescindveis na caracterizao do

    conjunto (LINS, 2009, p.35).

    Vale resaltar que na maioria das Bandas o tambor de congo (Figura 1) fabricado

    artesanalmente pelos prprios congueiros com antigos barris ou com madeira oca -

    geralmente da rvore popularmente conhecida como pau de tambor7- tampados com

    uma pele de couro de boi (CAPAI, 2009). So essenciais para uma apresentao, sendo

    que numa roda de congo so necessrios no mnimo oito tambores, distribudos entre

    tambores de repique e de conduo GERVSIO (2011). Eles so responsveis pela

    base sonora do congo, como um acorde, porm de destaque por ser o instrumento de

    som forte e por ser o instrumento de marcao do congo que orientar os demais

    instrumentistas componentes do grupo.

    Figura 1 - Tambor de congo da Banda de congo Tambor de Jacarenema

    Fonte arquivo do autor.

    A casaca (Figura 2) nada mais que uma espcie de reco-reco sendo este um dos

    principais instrumentos do congo. Sobre a casaca, Capai (2009, p.75) ensina: um

    instrumento de percusso, feito de madeira, muito conhecido no Esprito Santo. Trata-se

    de um reco-reco de cabea e pescoo, simulando o corpo de uma pessoa, com cabea

    7 rvore tpica da Mata Atlntica do Esprito Santo. (CAPAI, 2009, p. 36)

  • 34

    grotesca. Para se tocar casaca usa-se uma vareta raspando, com ritmos alternados, no

    comprimento do instrumento, aps o uso essa vareta guardada colocando-a no orifcio

    da casaca. Para a tradio popular o formato da casaca representa os senhores de

    escravos, nos quais durante a dana os escravos poderiam bater para descontar as

    mazelas que sofriam do senhor. Justamente pelo formato diferenciado deste reco-reco

    que Capai (2009, p.75) afirma: a casaca reflete a influncia africana na msica e no

    ritmo das Bandas de congo do Esprito Santo. O mesmo autor vai identificar o ritmo do

    congo como na atualidade como atribuio negra, ressaltando a semelhana de outros

    ritmos musicais de mesma influncia, cujo ciclo rtmico manifesta-se tambm no frevo

    e no maracatu do Recife, no tango argentino, no rag-time norte-americano e na habanera

    cubana (CAPAI, 2009, p.30).

    Figura 2 - Casaca da Banda de congo Tambor de Jacarenema

    Fonte arquivo do autor.

    Ainda sobre as casacas Lins (2009, p.46) refora a importncia rtmica produzida pelas

    casacas e afirma que assim como nos tambores, o repique das casacas repousa em

    ritmos-base recorrentes, dando feio forma musical tpica do Esprito Santo.

    Presente desde a poca dos ndios e destacada em relatos de viajantes do sc. XIX no

    Esprito Santo (Figura 3) a casaca determina tons de particularidades prprios do congo,

    pode-se concluir que a ela marca o congo como prprio do povo capixaba.

  • 35

    Figura 3 - Desenho de casaca sc. XIX

    Fonte: Pedro Bragana

    O nmero de participantes em cada banda varia de acordo com o grupo e a histria do

    mesmo, sendo que participam homens, mulheres e s vezes, crianas. Segundo Lins

    (2009, p.35): h ocasies em que as bandas de congo da Barra do Jucu, no municpio

    de Vila Velha, se apresentam com um contingente instrumental excedendo 20 msicos.

    As mulheres se vestem com vestidos e saias rodadas, cantam e danam, e s vezes

    tocam alguns instrumentos como os chocalhos, enquanto que os homens comandam os

    instrumentos mais pesados como os tambores; todos usam em suas roupas as cores

    prprias de sua banda, que aparecem tambm nas bandeiras, nos instrumentos e

    estandartes. Conforme as pesquisas de Santos (2011, p.5) acerca da composio de uma

    Banda de congo pode-se abranger que normalmente constituda por um pequeno

    agrupamento de pessoas [...], entre instrumentistas (geralmente homens), as cantoras (na

    sua grande maioria mulheres), o mestre, a guardi da bandeira, a porta estandarte e as

    crianas.

    O membro que comanda o grupo o mestre da Banda de congo. Ele determina as

    msicas que sero cantadas e conduz os ritmos das msicas, por meio de apitos,

    chocalhos e buzina. Santos nos fornecem alguns esclarecimentos sobre o assunto:

    O apito ajuda a marcar o ritmo de forma empolgante e avisa o incio e o fim das toadas. O chocalho feito com um cilindro em metal oco, recheado com

    contas ou sementes. A buzina semelhante a uma corneta - tambm confeccionada em metal e ajuda a ampliar a voz marcante do mestre

    (SANTOS, 2011, p.6).

  • 36

    A Porta estandarte e a Guardi da Bandeira so funes de destaque na banda. A

    primeira carrega o estandarte com o nome da banda que por vezes possui a sua data de

    origem. J a outra responsvel pela conduo da bandeira nas festas e a sua guarda.

    Sendo a bandeira caracterizada com uma imagem do santo de devoo ou um objeto.

    Essas funes so exercidas por pessoas especficas no podendo ser feitas por outras

    mulheres, o que remete ao entendimento de funes de destaque no grupo.

    As letras das msicas abordam homenagens a santos, a alegria, as baianas, a festa, a

    beleza da mulher, a indignao popular, os pescadores e o mar. Neves afirma que as

    cantigas que entoam no foram ainda contaminadas pelo rdio, nem pelo carnaval. Por

    isso trazem at agora o sinete caracterstico da alma popular, singela e triste. (Neves,

    1949). O mesmo autor ressalta informaes complementares sobre o tema:

    Ao som desses instrumentos, as vozes, finas e grossas, claras e fanhosas,

    vozes de homem e de mulher cantam velhas e tradicionais toadas, em que h

    referncias a coisas e fatos da escravido, guerra do Paraguai, aos santos de

    devoo popular, s sereias do mar, ao amor e morte (NEVES, 1978, p. 58).

    A religiosidade um trao fortemente presente nas Bandas de congo sendo expressa

    atravs dos nomes das Bandas, das msicas e dos estandartes expostos durante as

    apresentaes, sendo possvel conhecer um pouco das histrias capixabas por meios das

    msicas. Nelas podem-se perceber lugares e crenas, como aponta Lins (2009, p.90):

    sejam quais forem os objetos de homenagens (santos, localidades, heris ou antigos

    mestres), o fato mais evidente na relao Bandas de congo-religiosidade a devoo a

    So Benedito. Algumas msicas prestam homenagens a antigos mestres de Bandas, ou

    a lugares conhecidos como o Convento da Penha, porm a maioria delas possui traos

    de devoo a santos. comum que as Bandas de congo se apresentem em festas

    tipicamente religiosas como as tradicionais festas de Nossa Senhora da Penha e a festa

    de So Benedito que mobilizam milhares de pessoas todos os anos, atraindo devotos de

    todo o estado para os festejos religiosos.

    FESTAS DE DEVOO, LUGAR DE TAMBORES

    A festa de Nossa Senhora da Penha o maior evento religioso do Esprito Santo,

    somando um pblico estimado de 30.000 pessoas (CAPAI, 2009). A programao da

  • 37

    festa conta com um oitavrio, com romarias, missas, shows de artistas catlicos e no

    catlicos, como tambm com apresentaes das Bandas de congo (Figura 4) que sobem

    a ladeira do Convento sem perder o ritmo dos tambores.

    Figura 4 - Bandas de Congo em Homenagem Nossa Senhora da Penha

    Fonte: Priscilla Pinheiro

    A Padroeira do Esprito Santo tambm homenageada em Roda Dgua, municpio de

    Cariacica, onde os fiis festejam o dia da santa com o Carnaval de congo8. Sobre o

    evento, que uma particularidade de municpio de Cariacica, Eliomar Mazoco nos

    ensina:

    A festa se d trs vezes ao ano, uma no Domingo de Ramos, outra no

    domingo seguinte e a ltima no dia de Nossa Senhora da Penha, todas com o

    cortejo de mscaras e a apresentao da Banda de congo (MAZOCO, 1993, p.23).

    Nesses dias vrias Bandas de congo renem-se para tocar e homenagear Nossa Senhora

    da Penha. H um ponto de encontro do qual, depois da abertura com fogos de artifcios,

    todos saem em caminhada rumo ao local do evento, geralmente um lugar aberto.

    Abrindo o cortejo vo os mascarados. Atrs, todo o povo. O cortejo vai num barulho

    alegre, anunciado pelos fogos, pelo som greve do tambor, pelo ronco da cuca, pelo

    trilar do apito, pela algazarra e pelo canto (MAZOCO, 1993, p.23).

    Os mascarados (Figura 5) se fantasiam com roupas de palhas, cobrindo os ps e as mos

    com meias grandes e no rosto colocam as Mscaras, confeccionadas pelos prprios

    congueiros com papel e cola.

    8 A festa tambm conhecida como Congo de Mscara e Carnaval de Mscara.

  • 38

    Conforme demonstram as pesquisas de Mazoco, as mscaras so feitas com uma

    camada de cola e outra de papel recortado, at a mscara obter forma consistente, com a

    espessura que lhe garanta a resistncia. A mscara j seca retirada da frma e pintada

    (MAZOCO, 1993, p.32). As consideraes contidas no Atlas do Folclore Capixaba

    explicam e complementam as informaes sobre a origem:

    Os mascarados tornaram-se o grande smbolo e referncia dessa manifestao

    em Cariacica. Contam os antigos que os negros escravos, querendo participar

    da festa, ocultavam-se atrs de mscaras para no serem reconhecidos. Com

    o passar do tempo virou brincadeira. As pessoas se mascaram para no serem

    identificadas pelos moradores da regio e s retiram as mscaras no final da

    festa, mostrando sua verdadeira identidade (CAPAI, 2009, p.80).

    As pessoas mascaradas, identificadas como Joo Bananeira, cantam, brincam e

    danam com os participantes do Carnaval de Mscaras. Em 2005 a Prefeitura Municipal

    de Cariacica (PMC) criou a Lei Municipal de incentivo cultura9, intitulada Joo

    Bananeira, homenageando o personagem tpico do festejo e prprio da tradio cultural

    do municpio. Destaca-se que o Congo de Mscara demonstra os legados dos negros

    capixabas uma vez que as origens do Carnaval de congo esto relacionadas com a

    existncia de escravizados na regio e as suas dificuldades de fazer a festa para Nossa

    Senhora da Penha (SANTOS, 2011, p.15). Atravs de estudos sobre tal festividade,

    Santos (2011) ressalta a caracterstica negra na cultura do congo, identificando o congo

    como um diferencial na cultura afro do capixaba, uma vez que ele explicita: o congo

    pode ser analisado como uma das diferenas culturais afro-brasileiras dos Quilombos no

    estado do Esprito Santo (SANTOS, 2001, p.12). O festejo do Carnaval de Mscaras

    permanece ativo na cultura popular capixaba mobilizando em torno de 20.000 pessoas

    durante a festa (CAPAI, 2009, p. 80).

    9 Lei 4.368 de 29 de dezembro de 2005. Fonte: site da Prefeitura Municipal de Cariacica.

  • 39

    Figura 5 - Joo Bananeira no Carnaval de Congo

    Fonte Prefeitura de Cariacica

    Outra festividade religiosa essencial para os congueiros a Festa de So Benedito que

    acontece em duas etapas: a fincada e a arrancada do mastro. Antes da festa acontece a

    cortada de um tronco o qual ser arrastado at a casa do festeiro: Conduzido

    festivamente, ao som das toadas da banda, casa do festeiro e a permanecer o tempo

    necessrio ao seu preparo lixamento e pintura at o dia da puxada (NEVES, 1968,

    p. 56). O mastro recebe pinturas diferentes de acordo com o festeiro, responsvel pelo

    preparo do mastro para a festa; ele tambm o responsvel pelo preparo do barco ou

    navio que utilizado no festejo. A primeira etapa da festa acontece no 27 de dezembro,

    dia de So Benedito, no qual as ruas da cidade so tomadas pelo cortejo, que atrs do

    tronco enfeitado, festeja o santo ao som das Bandas de congo. O tronco ancorado em

    um navio ou barco e carregado pelos devotos; isto relembra a histria na qual, escravos

    em um naufrgio conseguem se salvar rezando para So Benedito e agarrando-se no

    mastro do navio. Eis a descrio do evento;

    Posto o mastro sobre o barco ou navio, comea a puxada. [...] A barca

    armada sobre um carro de bois (sem os bois), toda enfeitada de bandeirolas

    de papel de seda, frente da barca, apinham-se seis, oito ou dez homens, a

    cumprir promessa. Estes que de fato, puxam e conduzem o barco. [...] Na

    esteia da embarcao, uma ou mais Bandas de congo entoam, sem descanso, suas velhas toadas, ao som das quais danam, durante o percurso, grupos de

    homens e mulheres (NEVES, 1968, p. 56).

    O cortejo acompanhado pelo povo at a igreja, onde o mastro retirado da barca e

    cravado ao lado ou na frente da igreja com efusivas vivas, foguetrio e bater de sinos e

    tambores, o ponto auge da festa, o momento da fincada do mastro.

  • 40

    A segunda fase da festa a arrancada do mastro que ocorre no dia do So Sebastio, a

    saber, 20 de janeiro. Numa procisso religiosa, o povo segue as Bandas de congo at a

    igreja onde feita a retirada do mastro. Aps a retirada, a procisso desfila pela cidade

    com a bandeira que foi retirado do topo do mastro, e retorna para a igreja. Segundo

    Capai (2009) a festa de So Benedito conta com a participao de 20.000 fieis.

    Neves e Pacheco (1996, p. 11) demonstra indcios de que a devoo ao santo est

    presente entre os capixabas desde a poca colonial, quando se realizava a Procisso de

    So Benedito. Esses dados partem dos relatos de Frei Apolinrio da Conceio -

    estimados do sculo XV. Ainda no mesmo livro, Neves e Pacheco (1996, p.12) expe

    versos de congo recolhidos em Campinho de Domingos Martins, na dcada de

    cinquenta, que expressa a relao entre So Benedito e o congo :

    So Binidito

    que vem de Lisboa,

    com sua bandra,

    com sua coroa.

    importante frisar que atualmente o congo continua a ocupar um vasto espao na

    cultura capixaba, no apenas por meio das Bandas de congos tradicional, mas tambm

    atravs de artistas que fazem uma espcie de releitura dessa tradio. Em relao isso,

    COIMBRA (2002) faz as seguintes consignaes: quanto msica popular, j

    distinta a presena do ritmo do congo em alguns grupos como o Manimal, Casaca,

    Kalangocongo, Jonatham, Danilo Diniz, Z Morcira, entre outros, criando, pela 1 vez,

    uma caracterstica nica em todo o Brasil (COIMBRA, 2002, p. 117). Acrescentando

    a os artistas que se expressam por meio do ritmo ou das letras do congo, criando

    verses mpares para algumas msicas, e auxiliando na divulgao e valorizao da

    cultura dos congueiros.

  • 41

    NOVOS OLHARES SOBRE O CONGO

    Para tal pesquisa utilizou-se a metodologia proposta pela Histria Oral que permitiu

    investigar particularidades da cultura do congo capixaba. A referncia metodolgica

    para tal foi a pesquisadora da abordagem de Histria Oral, Verena Alberti. A pesquisa

    apresentada por tal autora sistematiza os procedimentos adequados para elaborao e

    execuo de entrevistas cuja finalidade produzir fontes que possibilitem anlises

    histricas. Segundo Alberti (2004), o procedimento trata-se de estudar acontecimentos

    histricos, instituies, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos,

    conjunturas etc. luz de depoimentos de pessoas que dela participaram ou as

    testemunharam (ALBERTI, 2004, p. 18). Tal metodologia frequentemente utilizada

    em pesquisas da dimenso Histria Cultural, principalmente aquelas referentes cultura

    popular, por ter dificuldades de encontrar fontes escritas para o estudo. A dificuldade se

    expande quando a pesquisa no possui um amplo aporte terico que possibilite o

    aprofundamento de tal, sendo a abordagem oral uma boa maneira de produzir material

    de anlise.

    Para o estudo foram realizadas entrevistas que buscaram compreender os participantes

    do congo no que tange tradio e s memrias, como tambm aos mecanismos de

    transmisso dos conhecimentos dessa manifestao cultural. Foram entrevistadas trs

    mulheres de uma mesma famlia integrantes da Banda de congo Tambor de

    Jacarenema de geraes distintas, correspondendo av (entrevistada A), me

    (entrevistada B) e a filha (entrevistada C), com a autorizao das mesmas para

    utilizao dos dados para fins acadmicos10

    . Em concordncia com os apontamentos de

    Philippe Joutard (2000) se reconhece que o mtodo de Histria Oral possui limitaes,

    j que os relatos no podem ser considerados essencialmente verdadeiros, devido a uma

    srie de questes, como: [...] as fraquezas da prpria memria, sua formidvel

    capacidade de esquecer, que pode variar em funo do tempo presente, suas

    deformaes e equvocos (JOUTARD, 2000, p. 31). Porm o que se busca so

    documentos passveis de anlises, que sero tratadas como memrias que contribuem

    construo de verses de Histria.

    10 Os termos de consentimento livre e esclarecido (TCLE) constam no anexo A.

  • 42

    Pode-se ressaltar a importncia dos relatos daqueles que esto envolvidos nas

    manifestaes populares, retomando as concepes de JOULARD (2000, p. 34)

    apreende-se que atravs do oral [...] que se penetra no mundo do imaginrio e do

    simblico, que tanto motor e criador da histria quanto o universo racional. Ouvir os

    congueiros, participantes das Bandas de congo, abre possibilidades de apreender

    perspectivas cujas fontes escritas no obtm, sendo que [...] o oral nos revela o

    indescritvel toda uma srie de realidades que raramente aparecem nos documentos

    escritos [...] (JOULARD, 2000, p. 33). Desta forma, entende-se que a busca para

    entender o congo enquanto expresso cultural e prpria do capixaba deve passar, pelos

    agentes dessa manifestao, por isso considera-se os relatos dos congueiros para a

    pesquisa.

    TRADIO, IDENTIDADE E TRADUO: O CONGO E SEUS AGENTES

    Durante as entrevistas podem-se destacar algumas falas11

    apresentadas pelas conguistas

    que apresentam alguns vestgios da teoria apresentada previamente. Caractersticas

    como a devoo e a novas prticas do congo foram identificadas.

    O relato da entrevistada B sobre a sua atuao na Banda de congo demonstra a forte

    caracterstica da devoo So Benedito, identificado principalmente entre as pessoas

    que participam a mais tempo do congo, as pessoas mais velhas que tiveram seus

    primeiros passos na Banda numa poca em que a devoo era o elemento chave do

    congo. Eis o relato:

    Quando eu saio com aquela bandeira na rua, nossa senhora, eu tenho tanta f em So Benedito que eu t em casa e eu t andando assim , mancando por

    causa do joelho, olha como t inchado, t vendo...12

    [...] mesmo doendo, mas no sinto nada, de tanta f que eu tenho de pegar nessa bandeira do santo. Tenho muita f em So Benedito, no tem esse

    negcio de choro no, tenho muita f em Deus. Eu pego aquilo com prazer,

    com gosto, e no tem coisa melhor do que fazer as coisas com gosto e fazer aquilo que a gente gosta, que se a gente for fazer aquilo que a gente no gosta

    no interessa.13

    11 Foram utilizadas aspas para diferenciar as falas das entrevistadas das citaes. 12 Relato da entrevistada B. 13 Ibid.

  • 43

    Voc precisa conhecer a nossa festa, aqui, no final do ano, sabe, pessoas que nunca tinham vindo aqui dando testemunhos que foram curadas de cncer

    [...]. Se no fosse devoo a gente no conseguia manter no. Porque a festa

    no final do ano requer alguns passos, e a gente ganha tudo da comunidade,

    dinheiro pra medalhinha, algum que alcanou uma graa, algum que doa as

    fitas pra... que fez promessa de doar as fitas pro mastro, os enfeites... gente

    que vem pra ajudar a arrumar o estandarte [...]14

    A caracterstica religiosa uma das marcas do congo, principalmente para os mais

    antigos, o que os pesquisadores geralmente no percebem ou simplesmente no

    destacam a relao dessas pessoas com o congo. Para eles o congo no apenas uma

    forma de expressar a sua devoo, ou apenas uma atividade na qual se dedicam, a

    forma de vida.

    O congo pra mim tudo. Tem muita coisa, me deu muita alegria, deu muita coisa pra mim.15

    Quando foram questionadas acerca da relao do povo da Barra com o congo

    antigamente, a entrevista A relatou que na dcada de trinta j existia o congo e que o

    povo gostava muito, conforme as palavras da congueira os moradores da Barra,

    Ave Maria, at pedia o congo, louco pelo congo!16

    Ah, era louco pelo congo. Chegava sbado e domingo, [...] seu Joo e seu Pedro, eles cortavam madeira, faziam aquela fogueira, cortava banana,

    cortava cana, cortava... banana, cana e batata. Pra assar na fogueira e batendo

    congo.17

    A mesma pergunta foi respondida de maneira semelhante pela entrevistada B:

    Todos os pescadores, todo o pessoal, eles gostavam, eles faziam as farras deles e gostavam... Isso coisa antiga mesmo...18

    Para a entrevistada C foi perguntado se o povo da Barra sempre gostou de congo, e a

    resposta foi imediata:

    No. Voc sabe por que?! [...] a grande parte dos antigos que brincava no congo eles tambm brincavam com os tambores no centro esprita, ento a

    igreja catlica, ela era maioria aqui, hoje no, infelizmente, mas era, ento o

    congo era proibido de entrar na igreja, entendeu. Eles eram conhecidos como

    14 Relato da entrevistada C. 15 Relato da entrevistada B. 16 Relato da entrevistada A. 17 Ibid. 18 Relato da entrevistada B.

  • 44

    os cachaceiros porque quando eles iam l fazer a brincadeira deles eles

    levavam cachaa e tomavam. Eram pescadores que acordavam, pescadores e

    pecadores, que acordavam de madrugada pra pegar o alto mar pra ir pescar,

    pra ficar o dia inteiro na pesca pra depois chegar, limpar e vender seu peixe...

    Ento assim, muito cansativo n, ento eles arrumavam como diverso um

    copo de cachaa ali no terreiro.19

    Sabe-se por meio da pesquisa de outros autores (NASCIMENTO. MENANDRO, 2002)

    e (MACEDO, 2008) que o congo da Barra antes dos anos noventa era muito criticado,

    pois o relacionavam com a religio esprita e de matriz africana, justamente pela

    presena dos tambores. O que se percebe na fala da entrevistada C e da entrevistada B

    que elas tem um discurso preparado que valoriza o congo e o coloca numa posio de

    algo muito antigo, nesse sentido pode-se pensar se elas, acostumadas a dar entrevistas

    pesquisadores, no tem a inteno de passar uma imagem antiga da dana para

    fundamentar e legitim-la como uma tradio, em um apelo ao passado. Alm disso, a

    entrevistada A relata que sempre participou do congo, desde jovem, isso corresponderia

    a meados da dcada de trinta, porm sabe-se que o congo chegou a Barra por volta da

    dcada de cinquenta. Isso condiz com a teoria de Hobsbawn e Ranger (1984) acerca da

    inveno das tradies, no que o congo no exista desde a poca dos ndios, conforme

    informado anteriormente, mas na Barra no existia as Bandas de Congo como foi

    relatado pelas entrevistadas, e no incio era criticado pelos habitantes da Barra tendo

    comeado o processo de valorizao por volta dos anos noventa (BRAVIN, 2005). A

    utilizao do passado para legitimar o congo como importante est presente nas falas

    das conguistas, apenas a entrevistada C apresentou um relato diferente inclusive com a

    justificativa.

    importante ressaltar que os congueiros entendem a importncia da manuteno da

    tradio, e acreditam que esta tradio no acabar. Quando foi perguntado se um dia o

    congo pode acabar a resposta foi imediata:

    Eu acho que no. [...] Tem a banda mirim, tem a banda de adulto n... No acaba no, nunca acabou! Desde criana que tinha banda de congo...20

    Vai no. Acaba no porque essas criancinhas, que esto agora na banda mirim, j continua.21

    19 Relato da entrevistada C. 20 Relato da entrevistada A.

  • 45

    Ambas identificaram nas crianas o futuro das Bandas de congo, alm de perceber os

    adultos mais jovens como a continuao tambm. Verifica-se que este fato pode ser

    beneficamente avaliado visto que em muitos lugares as manifestaes populares

    morreram ou foram esquecidas por falta de pessoas que continuassem a tradio. Para a

    manuteno delas preciso uma renovao, necessita-se a participao de pessoas mais

    jovens que daro continuidade ao trabalho dos antigos depois que estes se forem.

    Outra questo que deve ser destacada a presena de turistas na Barra do Jucu e a

    relao estipulada entre eles e as Bandas. Nessa pergunta a resposta foi instigante:

    O que chama [ateno] o ritmo n, que a gente toca e o modo de a gente tratar as pessoas que vem. Voc v, as pessoas procuram a gente e a gente se

    interessa, conversa com eles, explica as coisas. Tem gente que no faz isso

    mais aqui no. Aqui todo mundo, eles [turistas] so bem vindos aqui, vem

    gente de muito longe pra banda de congo. [trecho inaudvel ] esse quintal no

    d! No dia da retirada, a gente no traz mais o mastro pra c. O mastro vem

    na frente e ns vamos pra pracinha, que se for aqui no cabe o monte de

    gente. muita gente mesmo. Quer dizer, a gente acha que isso ... porque a gente faz as coisas com amor, no tem coisa to boa do que fazer as coisas

    com amor, porque como que voc vai fazer uma coisa pra uma pessoa e no

    ter amor no que t fazendo?! No tem graa nenhuma.22

    A outra entrevistada apresenta a questo de ser uma cultura que os turistas no

    conhecem:

    Eu acho que eles so muito ligados ao ritmo. Quando comea o tambor eles olham pro nosso brao, que eu arrepio toda, que se voc tem sangue nele no tem como. Porque um ritmo que eles no veem em lugar nenhum,

    entendeu?! Eles conhecem o samba, conhecem a msica baiana, que parece

    tanto, o forr e tudo o mais, mas esse ritmo eles nunca viram na vida deles,

    uma coisa nova. Ento isso que eu acho que chama muita ateno, n, o

    jeito de se danar, o que cantado...23

    Antigamente no dia da retirada do mastro, este era levado para a casa dos prprios

    participantes da Banda, porm devido a quantidade de participantes na festa o costume

    foi modificado, sendo levado atualmente, para a praa da Barra. Observa-se que h um

    cuidado em tratar bem os turistas, de interagi-los com o congo. Ora, no seria este um

    sinal da mudana de entendimento do congo, que passa tambm a ser algo que atrai o

    turista para a regio? Acredita-se que o povo barrense modificou seu entendimento

    21 Relato da entrevistada B. 22 Relato da entrevistada B. 23 Relato da entrevistada C.

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    sobre o congo devido visibilidade midiatizada que tem atualmente. Eles entendem que

    as pessoas os procuram para conhecer o congo, conhecer algo com ritmos diferentes e

    que devem ser recebidos bem para voltarem em outros momentos. O que antes da

    dcada de cinquenta era apenas uma diverso, depois se torna religiosidade, e muito

    forte por sinal, j que as Bandas de congo envolveram de tal maneira nas festas

    religiosas que se misturaram de forma intrnseca, mobilizando pessoas para o festejo,

    como consta no relato imediatamente abaixo:

    Na verdade, a Banda de congo da Barra, ela no era na verdade banda. Ela era uma diverso, que o povo se reunia e a todo mundo, eles no tinham um

    local pros tambores, cada um tinha seu tambor em casa. A foi assim Ah, vamos fazer uma quermesse l na Nossa Senhora da Glria, que a igreja,

    cada um levava seu tambor, l fazia a brincadeira, e a cantava sempre jongos relacionados a santos, Nossa Senhora da Penha, Nossa Senhora do Rosrio,

    So Benedito, Santo Antnio, So Joo, sempre assim. Ou eles se reuniam

    num boteco, uma quitanda que eles falavam, que tanto vendia po, vendia

    verdura e cachaa. A eles bebiam e cantavam, s homens no caso.24

    E na atualidade ele passa de religio para ser tambm cultura, e este caso h outros

    espaos de at