MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria...

40

Transcript of MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria...

Page 1: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,
Page 2: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

MORADIA POPULAR NA CIDADE DE SÃO PAULO

(1930-1940) – PROJETOS E AMBIÇÕES

SIMONE LUCENA CORDEIRO

Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Andando pela cidade de São Paulo, em vários de seus espaços torna-se perceptível que partesignificativa da população vivencia hoje uma situação de falta ou de péssimas condições de moradia.Apesar dos discursos e “iniciativas” do poder público relativos à chamada “problemática da habita-ção”, os problemas da moradia popular são visíveis e inquietantes. Várias ações realizadas nessa dire-ção permaneceram quase sempre ocasionais e não respeitaram as experiências socioculturalmentevivenciadas pelas diferentes parcelas da população paulistana. Algumas soluções apresentadas foraminsuficientes, ou ainda, bastante questionáveis do ponto de vista da salubridade e melhoria da convivên-cia social. O projeto CINGAPURA, as COHABS, a CDHU, os albergues e até os barracos são exem-plos de tentativas frustradas de solução para esse problema.1

Em nossos dias, as pessoas constroem diferentes formas de habitar na cidade, o que nem sem-pre é aceito pelas autoridades e pelos interesses imobiliários particulares, gerando constantes conflitos.São mutirões independentes, favelas, cortiços e ocupações de prédios, terrenos e construções precáriasou provisórias nos mais diversos espaços públicos (viadutos, praças, ruas, etc.) e privados, que resul-tam, por vezes, na ação de desocupação, feita pela polícia.2

Assim, a cidade de São Paulo forma um quadro social e cultural diversificado no qual há diferentesmaneiras de conceber a moradia, bem como a “política habitacional” municipal. Vários trabalhos inspiramnossos questionamentos. Por exemplo, Bernard Lepetit propõe uma “hermenêutica urbana” ao acentuar que“as casas e os espaços de trabalho, os edifícios públicos e a rede viária, as maneiras de viver e de morar, aorganização técnica da produção e da troca, as formas de divertimentos e a geografia dos espaços de lazersempre provêm, em sua maior parte, do passado e resultam, em sua evolução, de ritmos diferentes”. Emoutras palavras, “os elementos de uma cidade, em sua contemporaneidade, têm idades diferentes”.3

A leitura da historiografia e das fontes – anais, revistas, jornais, memórias, fotografias, proces-sos administrativos, etc. – acerca da moradia popular em São Paulo assinala diferentes momentosrelevantes para o estudo da construção da chamada “política habitacional”. No entanto, destacou-se operíodo compreendido entre 1930-1940, caracterizado por discussões, projetos e iniciativas sobre ahabitação social e outras dimensões urbanísticas na cidade. Período também correspondente às gestõesmunicipais de Anhaia Mello (1930-1931) e Francisco Prestes Maia. (1938-1945), que, segundo a bibli-ografia e a leitura da documentação sobre o tema, marcou a história da habitação social em São Paulo

1 Segundo dados apresentados pelo jornal Folha de São Paulo, 5,5 milhões de paulistanos vivem em habitações conside-radas “irregulares”. De acordo com o mesmo jornal, irregular é a habitação vista como “ilegal”. Enquadram-se nessacategoria: “loteamentos clandestinos (17% do território da cidade, com 3 milhões de pessoas), favelas (1,9 milhão depessoas, segundo a Fipe – Secretaria Municipal da Habitação em 1994) e cortiços (600 mil pessoas, segundo o CDHU)”.Deste total, 2,8 milhões “não possui infra-estrutura urbana adequada” (Folha de São Paulo, 04/06/2000 e 06/06/2000.Disponível em: http://www.folha.uol.com.br/fsp/). Ao mesmo tempo, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística, há, em São Paulo, 300 mil imóveis desocupados (O Estado de São Paulo, 23/07/2003. Disponível em: http://www.estado.estadao.com.br/).2 No dia 23/07/2003, cerca de 3.100 “sem-tetos”, organizados pelo MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro), ocuparamquatro prédios particulares na área central da cidade de São Paulo. Em 19/07/2003, cerca de 300 famílias, organizadaspelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), ocuparam, em São Bernardo do Campo, um terreno da Volkswagen.Depois de quatro dias, já somavam cerca de 7 mil pessoas. Em Guarulhos, há dois anos, 1.800 famílias organizam aocupação denominada Anita Garibaldi, também organizada pelo MTST.3 LEPETIT, 2001, pp. 137-138.

Page 3: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

e cujos sinais, ainda hoje, podem ser percebidos.Ganharam expressão os debates presentes no I Congresso de Habitação, promovido pelo Insti-

tuto de Engenharia de São Paulo em maio de 1931, com vinte e uma teses e quatro conferênciasapresentadas, sendo seis trabalhos sobre habitação. Destacaram-se também os textos publicados dezanos depois nos anais da Jornada de Habitação Econômica, evento promovido pelo Idort (Instituto deOrganização Racional do Trabalho de São Paulo) em 1941, que contou com a participação de 35técnicos (engenheiros, arquitetos, médicos, juristas e sociólogos) e personalidades do meio político eempresarial.

Durante o período dos dois eventos, sobressaíram ainda as análises e investigações publicadasnas Revistas do Arquivo Municipal de São Paulo (como as de Donald Pierson, um dos professoresconvidados para criar a Escola Livre de Sociologia e Política e membro da Escola de Chicago, institui-ção baseada na ecologia urbana) e nos Boletins de Engenharia, Arquitetura e da Polytecnica (como osdo ex-prefeito, professor e engenheiro-arquiteto Luiz Ignácio de Anhaia Mello).

Soma-se a essa documentação, conforme levantamento realizado nos dados populacionais so-bre São Paulo, apresentados a seguir, o rápido e constante crescimento demográfico paulistano noperíodo. Apreende-se, pelos números expostos no gráfico a seguir, um ritmo de evolução acelerada dapopulação de São Paulo no período, aumentando constantemente a cada década e atingindo, entre asdécadas de 1930, 1940 e 1950, seus maiores percentuais.

Por meio do gráfico, percebe-se que já às vésperas do I Congresso de Habitação, a populaçãopaulistana crescia de maneira expressiva, mais do que dobrando no período entre 1930 e 1950. De579.033 habitantes em 1920, a população aumentou em 308.777 pessoas em 1930, atingindo o núme-ro de 887.810. Da mesma maneira, na Jornada de Habitação Econômica de 1941, a população alcan-çou a marca de 1.326.261 moradores, com uma evolução de 438.451 pessoas em relação ao ano de1930. Em 1950, o número de residentes cresce novamente para 2.198.096 habitantes, com um índicede 871.835 pessoas, em comparação aos números de 1940.

Ainda pelos indicadores demográficos do período é possível verificar uma clara tendência aocrescimento populacional de algumas das localidades mais distantes da área central, tais como: Capelado Socorro, Casa Verde, Ipiranga, Lapa, Nossa Senhora do Ó, Osasco, Penha de França, Pirituba,Santana, Santo Amaro, Saúde, Tatuapé, Tucuruvi, Vila Maria, Vila Matilde, Vila Prudente, Distrito de

GRÁFICO: EVOLUÇÃO POPULACIONAL PAULISTANA POR DÉCADA(1900-1950)

O gráfico foi elaborado por nós a partir das informações obtidas junto à Emplasa, ao IBGE e aosAnuários Demográficos de São Paulo.

Page 4: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

Guaianazes, Distrito de Itaquera e Distrito de São Miguel Paulista. Contudo, segundo os números, osbairros ainda com maior adensamento até a década de 1940 eram aqueles tipicamente habitados poroperários, onde estavam os pavilhões industriais, e/ou aqueles mais próximos da região central dacidade: Alto da Mooca, Barra Funda, Bela Vista, Belenzinho, Brás, Cambuci, Consolação, Liberdade,Mooca, Pari, Perdizes, Santa Cecília, Santa Ifigênia, Tatuapé, Tucuruvi.

Nesse quadro de crescimento populacional, os relatórios e relatos sobre a habitação popularinformam que, entre as moradias populares típicas dos espaços mais centrais e dos bairros industriali-zados na época, ganhavam destaque as “vilas operárias”.4 Esses “conjuntos residenciais horizontais”5

constituíram-se como uma das principais formas de moradia popular para a população de menor recur-so, prevista mesmo nos modelos urbanístico expresso no próprio Código de Obras Arthur Saboya emsuas diretrizes sobre “abertura de passagens para a construção de casas populares”.6 A arquiteta MartaDora Grostein explica que, apesar do “Código” regulamentar as passagens utilizando o termo “casaspopulares”, o modelo de casas populares era o das “vilas operárias” ou “residências horizontais”, comoo apresentado na foto a seguir. A imagem retrata a “Vila Cia. Vidraria Santa Marina”, aproximadamen-te entre as décadas 1930-1940.

A foto da “Vila Cia. Vidraria Santa Marina”. Aproximadamente décadas de 1930 e 1940 (Folha deSão Paulo. REIS, 2001, p. 23). Tipo de moradia popular, com casas horizontais e bastante similares,dirigidas aos trabalhadores daquela empresa.

4 Os relatórios estudados foram: Relatório da Comissão de Exame e Inspeção de Santa Ephigenia, 1893; Relatório sobreo Padrão de Vida dos Operários da Cidade de São Paulo (DAVIS, 1935); Relatório sobre Habitações de São Paulo:Estudo Comparativo (PIERSON, 1941-1942) e Relatório sobre Lares e casas (CASTRO, 1944).5 GROSTEIN, 1987.6 Código de Obras Arthur Saboya, de 1929. Lei n.º 3.427. Revisado e Consolidado pelo Ato n.º 663, de 10 de agosto de1934.

Page 5: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

Vendo essa imagem da “Vila Cia. Vidraria Santa Marina” somada à próxima foto, da “Vila daFábrica Maria Zélia” e aos trechos que seguem do Código de Obras Arthur Saboya, de 1929 (Lei n.º3.427 – revisado e consolidado pelo Ato n.º 663, de 10 de agosto de 1934), percebe-se que as dimen-sões e a quantidade desse tipo de moradia, apesar de abrigar vários trabalhadores, não solucionava oprovável déficit habitacional paulistano que crescia, conforme os dados do gráfico demográfico anteri-or. Segundo a caracterização feita pelo Código Arthur Saboya, teríamos as seguintes dimensões paraas habitações das parcelas populares da população:

casa operária – [construção] que contiver, no máximo, três peças, entre aposentos e salas, além da cozinha eprivada (...).habitações populares – toda aquela que dispõe, no mínimo, de um aposento, de uma cozinha e de compartimen-to para latrina e banheiro e, no máximo, de duas salas, três aposentos, cozinha, copa, despensa e de comparti-mento para latrina e banheiro, sem contar a garagem e quarto de criadas (...).7

Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de1930 ou 1940. Novamente, o destaque é para o tipo de moradia popular com casas horizontais ebastante similares, também dirigida aos trabalhadores daquela fábrica.

De acordo com as dimensões arquitetônicas apresentadas pelo Código Arthur Saboya visíveisnas fotos, é possível aventar que a quantidade desse tipo de habitação social, proporcionalmente, eralimitada em relação ao crescimento populacional vivenciado pela cidade. Além disso, conforme ex-pressava o próprio nome das vilas, estas eram construções dirigidas às famílias dos trabalhadores dealgumas das fábricas e empresas paulistanas, deixando à margem boa parte das camadas populares dapopulação.

Na realização do I Congresso de Habitação (1931) essa solução habitacional popular,aparentemente, já demonstrava seus limites. A situação durante a Jornada de Habitação Econômica enos anos posteriores tendeu a agravar-se ainda mais. É conveniente ressaltar novamente que, de 1930a 1940, a população cresceu em cerca de 438.451 pessoas e que de 1940 a 1950 o crescimento foi de871.835 habitantes.

Para muitos paulistanos o caminho foi morar em outro tipo de habitação também comum e,pelos relatórios apresentados a seguir, freqüente entre as preocupações daqueles que pesquisavam eatuavam na cidade: os cortiços. Em sua intervenção durante a Jornada de Habitação Econômica (1941),

7 Código de Obras Arthur Saboya, 1935. Artigos 2-4 e 58. In: SEGAWA, 2000, pp. 160-161.

Page 6: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

Jacy Coutinho Vianna, ao citar o Código de Obras da Prefeitura Municipal (1934) para definir o termocortiço, demonstra que essa forma de moradia coletiva era um tipo de habitação cuja presença tambémmarcava a própria legislação urbanística do município. Segundo Vianna:

De acordo com o Código de Obras da Prefeitura Municipal, é o conjunto de 2 ou mais habitações que secomunicam com as vias públicas por uma ou mais entradas comuns, para servir de residência a mais de umafamília. Adotam-se também variações (...).8

As três imagens na seqüência, em combinação com a descrição de Jacy Coutinho Vianna,dimensionam esse tipo de habitação. Pela quantidade de crianças vistas nas fotos e a constância em quesão citados, os chamados cortiços deveriam constituir uma das formas de habitação freqüentes deparcelas significativas da população paulistana, pelo menos nos arredores das áreas centrais.

Casarão transformado em cortiço no bairro de Santa Ifigênia, em São Paulo. Aproximadamentedécada de 1930 (Folha de São Paulo. REIS, 2001, p. 11).

Nessa imagem e nas próximas, as precárias condições físicas ficam evidentes. No entanto,pensamos que a escolha por fotografar esses prédios − algo “raro em se tratando de moradia popular”,como assinalou Horace Davis, autor de um dos relatórios sobre esse tipo de habitação em 1935,discutido logo a seguir − pode ter resultado da necessidade de apontar esse tipo de moradia comosocial e urbanisticamente degradante, o que justificaria as intervenções.

Outra dimensão importante sobre as fotos relativas às habitações consideradas irregulares équanto à qualidade das imagens. Em especial, as tomadas com maior distância possuem baixa defini-

8 VIANNA, 1941, p. 134.

Page 7: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

ção, como a anterior, diminuindo a possibilidade de visualizar detalhes.

Contudo, a presença desse tipo de moradia já não era nova na cidade, conforme o Relatório de1893:

O poder municipal principalmente deve, no caso [ilegível], para salvar a cidade ameaçada em sua prosperidadee futuro, adotar as medidas mais enérgicas com vistas a coibir o abuso que se generaliza na parte mais nova emais densamente povoada da região urbana. Os cortiços ou estalagens, as casas de dormida, os prédios transfor-mados em hospedarias, as vendas ou trocas, quase todas com aposentos no fundo para aluguel, os hotéis de 3a e4a ordem, transformados em cortiços, eis o que se vê a miúdo no bairro onde a epidemia mais alastrou e ondetudo nos faz crer que a tendência para tal abuso aumenta em vez de diminuir (...).O poder municipal, auxiliado pelo governo do Estado, cumpre intervir energicamente para fazer cessar esse

Cortiço na Rua da Abolição, em São Paulo. Aproximadamente década de 1930 (Folha de SãoPaulo. REIS, 2001, p. 29).

9 Relatório da Comissão de Habitação Operária de 1893.

Page 8: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

abuso.9

A planta ao lado, do mesmo Relatório de 1893, possibilita apreendermos que uma das formasde cortiço também foi a de um conjunto de habitações horizontais. Na planta, a denominação oferecidaé “Tipo de Cortiço Usando Casinhas”.

Após quarenta e dois anos do Relatório de 1893 e quatro anos depois do I Congresso deHabitação de 1931, em 1935, a Escola de Sociologia e Política publica na Revista do Arquivo Munici-pal outro relatório, denominado “Padrão de Vida dos Operários da Cidade de São Paulo”. Contandocom a colaboração do Instituto de Educação da Universidade de São Paulo e do Instituto de Higiene,a pesquisa abordou temas como alimentação, vestuário, orçamento familiar e habitação.

Sem esclarecer a localização dos bairros onde a investigação ocorreu, a pesquisa abordou 221 famí-lias. Na parte referente à habitação, o estudo, relatado por Horace Davis, apresentou a seguinte situação:

Em nenhuma parte sentimos mais da falta de fotografias ou de dados estatísticos que ao discutir as condições dehabitação. Ao imaginar os nossos termos “casa” e “habitação”, não deve o leitor trazer à mente as residênciasespaçosas de Higienópolis ou Vila Mariana, mas as construções de teto baixo, pequenas e modestas, muitasvezes longe das vistas da rua, no meio dos extensos quarteirões que abrigam a classe proletária de São Paulo.10

No mesmo relatório, que vale ser lido observando-se as fotografias expostas, ao assinalar que91 das famílias pesquisadas moravam em casas individuais, fica indicado que a maioria (130 famílias)

Relatório da Comissão de Habitação Operária de 1893. Arquivo do Estado.

10 DAVIS, 1935, p. 155.

Page 9: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

dos entrevistados vivia em habitações coletivas descritas da seguinte maneira:

As habitações coletivas dividem-se em três grupos principais: 10 – o porão; 20 – a vila, que pode ser definidacomo um conjunto de várias habitações contínuas, que dão para um mesmo beco; 30 – o cortiço, assim denomi-nado, para indicar que as famílias vivem em uma habitação ou moradia coletiva, muitas vezes de mais de umandar. As habitações individuais e as vilas têm em geral cozinha e instalações sanitárias independentes, aopasso que tanto o cortiço como o porão possuem instalações higiênicas em comum e quando têm cozinha, étambém em comum.11

A próxima foto, acompanhada do Relatório de 1935, dimensiona bem as variações das habi-tações coletivas descritas e consideradas irregulares pelos Códigos de Obras e Posturas da cidade. Aimagem visualiza o complexo de cortiços composto pelo Navio Parado, Vaticano, Geladeira e Pom-bal, localizado entre as ruas Japurá, Santo Amaro e Jacareí, na região do Bexiga.

Esses cortiços são representantes do tipo de moradia popular desejada e indesejada. No lugardeles (como tipo de moradia indesejada), nos anos 1940, será construída uma outra edificação peloInstituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI), denominada Edifício Japurá – exem-plo das soluções para a habitação popular aplicadas em São Paulo após os eventos de 1931 e 1941(tipo de moradia desejada). O Edifício Japurá, que substituiu o cortiço, foi projetado por EduardoKneese de Mello e é considerado uma das construções pioneiras “na aplicação do conceito de ‘unitéd’habitation’ de Le Corbusier no Brasil”.12

Complexo de cortiços formado pelo Navio Parado, Vaticano, Geladeira e Pombal, entre as ruasJapurá, Santo Amaro e Jacareí, na região do Bexiga. A foto, provavelmente, é anterior à 1940,quando foi construído o Edifício Japurá, projetado por Eduardo Kneese de Mello. Pela imagem,percebe-se a grande dimensão arquitetônica dessa habitação que, possivelmente, abrigava umagrande quantidade de moradores (BONDUKI, 1998, p. 55).

11 Id., ibid.12 GALESI & CAMPOS, 2002.

Page 10: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

Passados seis anos do Relatório de 1935 e durante a própria Jornada de Habitação Econômi-ca, em 1941, o professor e sociólogo Donald Pierson, também da Escola de Sociologia e Política,relata seu estudo comparando 100 moradias dos bairros considerados de “nível superior − ricos” (25em Higienópolis, 50 no Jardim América e 25 no Pacaembu) com 100 habitações dos bairros vistoscomo de “nível inferior − pobres” (50 na Mooca, 25 no Bexiga e 25 no Canindé). Segundo os dadosapresentados por Pierson, também publicados nos Anais da Jornada de Habitação Econômica de1941 e expostos na Revista do Arquivo Municipal, do número total de 100 moradias consideradaspobres, 91 eram alugadas, 07 próprias e 02 emprestadas. Ainda de acordo com o relatório, a média decômodos era de 2,5 por moradia.13

Na seqüência, após três anos do relato de Pierson e da Jornada de Habitação Econômica de1941, no ano de 1944, outro relatório revela a situação da habitação de parte da população paulistana.Realizado pelo Serviço de Saúde no Distrito de Santa Ifigênia e do mesmo modo que os outros relató-rios, publicado pela Revista do Arquivo Municipal, o estudo focalizou 116 cortiços, somando 706quartos. As conclusões foram as seguintes:

a área de cada quarto era inferior a 10 m2; 654 quartos não tinham janelas; cada quarto abrigava em médiaquatro a dez pessoas; em 225 moradias havia apenas seis leitos; em outras 370 dessas moradias as cozinhaslocalizavam-se nos dormitórios. Nestes 116 cortiços havia 2.129 pessoas dividindo “fraternalmente” nove ba-nheiros, o que perfazia uma média de 236,5 pessoas para cada banheiro.14

Por meio desses quatro relatórios e das imagens entende-se que, antes, durante e depois doseventos sobre a habitação em São Paulo, uma grande parte da população paulistana das áreas analisa-das pelos estudos do período − núcleo central da cidade, adjacências e os bairros descritos comooperários − ainda morava em condições consideradas “irregulares” e/ou “impróprias” pelos própriospesquisadores. Caio Prado Jr., no livro Evolução Política do Brasil (primeira edição, de 1933) analisaesse quadro assinalando uma situação de “paradoxos” entre uma cidade considerada “grande e moder-na” e as “precárias” condições urbanísticas e de vida de parcelas significativas de sua população, parti-cularmente na área central.15

O poder público e os envolvidos no I Congresso de Habitação (1931) e na Jornada de Habita-ção Econômica (1941), pelos projetos apresentados e discutidos em nosso trabalho, priorizavam suasações nessas áreas onde estavam localizadas as habitações descritas pelos relatórios como “irregula-res”. Ou seja, os projetos e iniciativas “racionais, científicos e modernizadores”, palavras típicas doperíodo, priorizavam os bairros mais centrais, próximos às indústrias e os de moradia operária, de-monstrando o objetivo de estabelecer nessa parte da cidade um controle sobre seu desenvolvimentourbanístico e populacional em nome do embelezamento, da modernização e da racionalização do espa-ço.

Por meio dos estudos apresentados, os organizadores dos eventos e das pesquisas sobre mora-dia tendiam a perceber a cidade e a concebê-la numa visão “limpa” de suas singularidades e sua história.Cidade “moderna e racional”, se reduzia, assim, a uma cidade harmoniosa, quantitativamente, nasplantas e cifras.

Lendo os artigos das Revistas do Arquivo Municipal, dos Boletins de Engenharia, do Plano deAvenidas e dos Anais dos dois eventos do período, as localidades mais distantes (Penha de França, São

13 PIERSON, 1941, pp. 241-254.14 CASTRO, 1944.15 PRADO JR., 1979, p. 111.

Page 11: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

Miguel Paulista, Itaquera, Guaianazes, Santo Amaro, Parelheiros, Jaraguá, Santana, Nossa Senhora doÓ, entre outras) ainda não faziam parte da lista de preocupações prioritárias e das pesquisas daquelesque investigavam e atuavam sobre a situação da moradia no município, apesar do crescimentopopulacional dessas localidades na época em estudo, conforme expressam os dados populacionaislevantados.

Isso demonstra também que, no período dos dois encontros, o poder público não priorizava ossubúrbios e a periferia da cidade, deixando as áreas mais distantes entregues ao loteamento clandestinoou irregular. A título de exemplo, durante os sete anos da gestão de Prestes Maia (1938-1945) as obraspúblicas foram prioritariamente nas áreas centrais e arredores. Além de concluir as obras do prefeitoanterior (Fábio Prado), colocou em prática, mas parcialmente, o Plano de Avenidas; terminou o Viadu-to do Chá; a Avenida Nove de Julho, com seus viadutos e túneis; o Estádio do Pacaembu; prolongou aAvenida São João; transformou em avenidas as ruas Ipiranga e São Luís; abriu as avenidas Duque deCaxias, Anhangabaú (atual Prestes Maia), Liberdade, Vieira de Carvalho, Senador Queirós e o primei-ro trecho da Itororó; construiu os viadutos Jacareí, Dona Paulina, Nove de Julho e a Ponte Grande(atual das Bandeiras) sobre o Rio Tietê.

A imagem a seguir, retirada do Plano de Avenidas de Prestes Maia,16 demonstra bem o lugarprioritário dos projetos e ambições do período em estudo.

Conhecida como “esquema teórico de São Paulo”, a figura demonstra a proposta da “estruturaviária radial-perimetral” para a cidade, num formato que tem a área central e suas adjacências comoeixo. O desenho possibilita também apreender, em suas extremidades, os limites das intervenções doperíodo.

Apesar da prioridade oferecida às áreas mais centrais e industrializadas, caracterizamos a SãoPaulo do período como possuidora de núcleos populacionais múltiplos, alguns de origens mais recen-tes e outros tão antigos como o pólo central da cidade (sede político-administrativa e jurídica domunicípio). O bairro de São Miguel Paulista, por exemplo, surgiu a partir do aldeamento de mesmonome, tendo como referência uma capela, construída em 1622.

Porém, para os administradores públicos, pesquisadores e grupos vinculados aos institutos, oadensamento das áreas próximas ao centro, dos bairros industriais e das habitações operárias era oobjeto principal das preocupações. Isso decorria das prováveis repercussões socioespaciais do cresci-mento demográfico e das necessidades racionais e científicas da ordem do trabalho que se procuravaconsolidar na ordem urbana da cidade, que se desejava moderna, pelo menos nessas áreas. Com basenos discursos, nos projetos e nas iniciativas, era também essa região o espaço de atuação da moradiapopular, bem como o local onde moravam as pessoas que seriam os objetivos da legislação. As habita-ções indesejadas (cortiços, porões, etc.) eram combatidas sem apresentar uma solução alternativa paraseus moradores, em grande parte considerados “desqualificados” para habitarem as vilas operárias.

Essa posição oferece pistas sobre os limites dos discursos, dos projetos e das iniciativas, bemcomo sobre as concepções de cidade e de cidadão presentes entre os participantes dos eventos, osestudiosos e administradores de São Paulo no período. Do mesmo modo, a continuidade dos cortiçosdurante todo o período, como demonstram os relatórios, realça a existência das diferentes formas dehabitar a cidade a partir dos expedientes de vidas constituídos cotidianamente por parcelas das cama-das populares paulistana. Como discute Michel de Certeau, “a linguagem do poder ‘se urbaniza’, masa cidade se vê entregue a movimentos contraditórios que se compensam e se combinam fora do poderpanóptico”.17 Pensamos, como Certeau, no caso da habitação social em São Paulo, que parte significa-tiva da população construiu formas de morar diversas das propostas pelo governo, por construtoras

16 MAIA, 1930.17 CERTEAU, 1996, p. 174.18 BONDUKI; GROSTEIN; ROLNIK.

Page 12: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

privadas e por institutos. Formas de morar que, por vezes, foram classificadas como “clandestinas ouirregulares”, distantes dos chamados benefícios (ou equipamentos) urbanos e com “padrões suburba-nos e/ou periféricos de urbanização”.18

A própria terminologia, por vezes empregada atualmente pelo poder público e por parte daimprensa para classificar as habitações fora dos padrões considerados técnicos, estéticos e juridicamen-te legais (ou sob o controle da lei), conforme é possível compreender na documentação que estudamos,não é nova. Essa terminologia, aliás, é discutida aqui em seus vínculos com projetos de intervençãosocial e espacial.

Acreditamos, inclusive, que esses termos precisam passar pelo seguinte questionamento: a ha-bitação é “irregular”, “ilegal”, “clandestina”, para quem? Não desejamos com isso negar as precarieda-des de infra-estrutura (falta de rede de esgoto, água encanada, luz, pavimentação, saneamento, segu-rança, saúde, educação) de uma grande parcela da população, mas ressaltar a relação entre a maneiracomo era descrita a moradia de parte das camadas populares paulistanas com o tipo de cidade e cida-dão desejado pelos que estiveram à frente da prefeitura municipal e discutiram habitação no período.19

Segundo o engenheiro e prefeito Prestes Maia (1938-1945), a cidade vivenciava “um momentodecisivo da nossa existência urbana”,20 precisando de intervenções para adaptá-la, de modo a torná-lamoderna e racional, no sentido estético de embelezamento proposto no Plano de Avenidas e expostonos desenhos como o seguinte.

19 Como discute Raquel Rolnik, após chegar ao dado de que em 1990 70% da cidade estava numa situação “irregular”.Segundo a autora, “uma lei que tem uma história, são cem anos de regulação, e uma cidade 70% irregular tem algumproblema, alguma questão, na lei ou na cidade, ou na relação entre esses dois (...) essas duas coisas”. Ainda mais se forlevado em conta que tais atributos considerados negativos referem-se aos territórios populares: “a maior parte da cidadee a quase totalidade da cidade dos pobres” (ROLNIK, mai./1999, p. 138).20 MAIA, 1930, p. 7.

Esquema de São Paulo. (MAIA, 1930, p. 52).

Page 13: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

A imagem possibilita a percepção da maneira pela qual Prestes Maia procurava combinar esté-tica com a racionalização dos espaços no sentido de consolidar a modernização da cidade em seuPlano de Avenidas. As discussões sobre a moradia popular, reveladoras de projetos e ambições, esta-vam inclusas nesse quadro.

Outra informação importante na gravura é a verticalização de algumas das edificações. Duran-te os eventos, foram apresentadas propostas para a construção da moradia popular no sentido vertical.Assim, tanto Maia como os eventos já assinalavam para aquela que, na nossa compreensão, foi asolução adotada para resolver a produção da moradia popular, pelo menos para parte da população: aconstrução de conjuntos habitacionais verticalizados para os “trabalhadores supostamente qualifica-dos” e que possuíssem renda.

Nessa perspectiva, ganhou importância em nosso estudo um outro conjunto documental – osprocessos administrativos municipais – pertencente ao acervo do Arquivo Geral de Processos do Mu-nicípio de São Paulo. Esses documentos resultaram das solicitações para a construção de moradias econjuntos residenciais realizadas a partir da década de 1940 pelas seguintes instituições: Instituto dePrevidência do Estado de São Paulo; Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários; Institutode Aposentadoria e Pensões dos Comerciários; Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Emprega-dos em Transportes e Cargas; Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários; Caixa de Aposen-tadoria e Pensões dos Ferroviários e Empregados em Serviços Públicos.

A princípio, o intuito sociocultural e econômico dos projetos e das iniciativas sobre as habita-ções populares está expresso nos próprios nomes dos Institutos e Caixas de Aposentadorias e Pensões(dos Bancários, Industriários, Comerciários, Empregados em Serviços Públicos, Ferroviários, Empre-gados em Transportes e Cargas). De acordo com a documentação, nas iniciativas privadas e governa-mentais, o objetivo era continuar a tentativa de proporcionar moradia para os paulistanos que seriam os“trabalhadores supostamente qualificados”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONDUKI, Nabil G. Origens da habitação social no Brasil – Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinatoe Difusão da Casa Própria. São Paulo: Estação Liberdade/FAPESP, 1998, 2ª ed.

CASTRO, M. Antonia de. Revista do Arquivo Municipal. São Paulo: Departamento de Cultura daPrefeitura Municipal de São Paulo, 1944.CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1996.DAVIS, Horace. Revista do Arquivo Municipal. São Paulo: Departamento de Cultura da PrefeituraMunicipal de São Paulo, 1935, n.º 13.GALESI, René & CAMPOS, Cândido Malta. Edifício Japurá: Pioneiro na aplicação do conceito de

“unité d’habitation” de Le Corbusier no Brasil. São Paulo: [s.n.], [s.d.]. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arquitextos.asp. Acesso em dez./2002.

GROSTEIN, Marta Dora. A cidade clandestina; os ritos e os mitos. O papel da irregularidade naestruturação do espaço no município de São Paulo, 1900-1987. São Paulo, 1987. Tese (Doutoradoem Arquitetura) – FAU-USP.

LEPETIT, Berard. Por uma Nova História Urbana. São Paulo: EDUSP, 2001.LEFBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Editora Moraes, 1991.MAIA, Francisco Prestes. Estudo de um Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo. São Paulo:

Cia. Melhoramentos, 1930.PIERSON, Donald. Revista do Arquivo Municipal. São Paulo: Departamento de Cultura da PrefeituraMunicipal de São Paulo, 1941-1942.

Page 14: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

PRADO JÚNIOR, Caio. Evolução Política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979.REIS, Nestor Goulart. Habitação Popular no Brasil: 1880-1920. In: Cadernos de Pesquisa do LAP –

Revista de Estudos sobre Urbanismo, Arquitetura e Preservação. São Paulo: LAP/FAU-USP, 2001.ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei – Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São

Paulo. São Paulo: Studio Nobel/FAPESP, 1997._____. Lei e Política: A construção dos territórios urbanos. In: Espaço e Cultura – Projeto História –

18 – Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e Departamento de História daPUC-SP. São Paulo: EDUC/FAPESP, mai./1999.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi. Corpos de Passagem. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.SEGAWA, Hugo. Prelúdio da Metrópole. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.VIANNA, Jacy Coutinho. Anais da Jornada de Habitação Econômica – 1941. In: Revista do Arquivo

Municipal. São Paulo: Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, ano VII,vol. LXXXII, mar./abr. de 1942.

Page 15: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

1

A organização e conservação de coleções fotográficas emmuseus, arquivos, centros de documentação, bibliotecas e demaisespaços destinados à memória é ainda uma prática restrita a grandesinstituições brasileiras, embora seja desejo de toda sociedade queesse tipo de material dure eternamente.

A força da fotografia vem do fato dela conter traços doreferente, ou seja, a luz que dele emana é impressa na película.Adquire, portanto, o estatuto de ruína, de marca de algo ou alguémque ali esteve para ser fotografado. O instante é único, e por isso afotografia é singular.

O uso da imagem fotográfica propicia ainda o desencadeamentode lembranças de fatos passados, já adormecidos, e lhe conferempapel fundamental na reconstrução histórica. �Somos, de nossasrecordações, apenas uma testemunha, que às vezes não crê emseus próprios olhos e faz apelo constante ao outro para que confirmea nossa visão.�2

A fotografia também traz informações sobre determinadasépocas por meio do vestuário, da conformação do espaço urbano,

CONSERVAÇÃOE PRESERVAÇÃO DE COLEÇÕES

FOTOGRÁFICAS

Marli Marcondes 1

1 Graduada em Ciências Sociais pela Unesp de Araraquara; mestra em Multimeiospelo Instituto de Artes da Unicamp; doutoranda em Multimeios pelo IA- Unicampe responsável pela conservação e preservação de documentos do setor deIconografia do Centro de Memória da Unicamp.2 BOSI, 1979, p. .331.

Page 16: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

2

da tecnologia, etc., permitindo assim a compreensão e a análise demomentos históricos. Mas convém ressaltar que a imagemfotográfica atesta apenas aquilo que é mostrado, ou seja, nãopermite conotações por tratar-se de uma mensagem sem código,segundo afirma Roland Barthes. Logo, o seu valor comodocumento e a importância de sua presença nos arquivos éatualmente inquestionável.

Mas o desejo em perpetuar as imagens fotográficas esbarrano desconhecimento sobre a constituição desse tipo de material.Em outras palavras, trata-se de um tipo de documento ainda bastantedesconhecido, do ponto de vista de sua constituição material, namaioria das instituições. Portanto, o desejo em perpetuar as imagensfotográficas nem sempre resulta em preservação do documento,sobretudo se não houver uma política voltada à preservação comrecursos destinados especificamente a esse fim.

A fotografia

O uso da imagem como forma de registro remonta à épocado homem das cavernas. Cenas de lutas, de guerras e do cotidianoeram pintadas em cavernas e paredes, tornando possível,atualmente, a compreensão de culturas passadas.

Foi o desejo de registrar com maior realismo que levou aoaparecimento nos séculos XVI e XVII de máquinas de desenhar eretratar. Essas máquinas, tal como a câmera lúcida, utilizavam oprincípio da câmera escura, já conhecida desde o século XVI.

A câmera escura consistia em uma caixa com apenas um orifíciopor onde os raios luminosos penetravam e projetavam a imagem nointerior da caixa sobre uma superfície branca e oposta a esse orifício. Aimagem resultante era escura e circular e sua nitidez dependia dadistância entre o orifício e a superfície branca, da iluminação exterior e,posteriormente, do uso de lentes mais luminosas.

A câmera escura foi, portanto, a origem da câmera fotográfica,que ao longo dos anos foi acrescida de dispositivos que visavamtornar a imagem mais nítida e diminuir o tempo de exposição.

A efemeridade dessas imagens levou muitos pesquisadoresao desafio de tentar fixá-las, e foi associando o conhecimento sobre

Page 17: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

3

a câmera escura às experiências de Wedwood, relativas ao cloretode prata, que o francês Joseph Nicéphore Nièpce (1765-1833)conseguiu fixar sua primeira imagem.

Da correspondência de Nièpce com seu irmão, pode-sedepreender que ele já havia obtido uma imagem negativa em 1816,utilizando o mesmo cloreto de prata.

Todavia, a imagem que ficou consagrada como a origem dafotografia só foi obtida por Nièpce em 1826, com a utilização doBetume da Judéia, diluído em óleo mineral. Esse processo recebeuo nome de heliografia, ou seja, escrita pelo sol. O termo fotografiaapareceria anos mais tarde com Hércules Florence.3

A partir dessa experiência, Nièpce foi procurado pelo cenógrafo,pintor e inventor do diorama, Louis-Jacques Mandè Daguerre (1787-1851), e então passaram a pesquisar novas formas de obtençãoda imagem, sobretudo coloridas. O resultado dessas experiênciaslevou ao daguerreótipo, anunciado em 1839 pela Academia deCiências da França. Nièpce morrera em 1833.

O invento de Daguerre consistia em uma imagem fixada sobreuma placa de cobre, cuja nitidez dependia da incidência da luz. Aobtenção dessa imagem prescindia de um longo tempo de exposição,além de um complexo procedimento de revelação, o que a encareciademasiadamente. Mas, segundo Gisele Froend, parece que naqueleperíodo muitas forças convergiam em um mesmo sentido, daí outraspessoas em outros países terem chegado à descoberta isolada dafotografia ao mesmo tempo que Daguerre, como Hercule Florence(Brasil, 1833), Hippolyte Bayard (França, maio de 1839), Henri Fox-Talbot (Inglaterra, janeiro de 1839), entre outros.

Mas o daguerreótipo foi por muito tempo citado nas bibliografiascomo o precursor da fotografia. O fato de sua patente ter sidoadquirida pelo governo francês possibilitou sua disseminação pelomundo, embora ainda permanecesse restrito às camadas maisabastadas da sociedade. A popularização efetiva da fotografia sóocorreria com a possibilidade da reprodução, da multiplicabilidade daimagem, pois o daguerreótipo e seus sucessores, o ambrótipo e oferrótipo, eram imagens únicas, apesar desse último ter conhecido

3 KOSSOY, 1982.

Page 18: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

4

alguma popularidade devido aos avanços tecnológicos, que permitirama redução do tempo de exposição, além do preço acessível.

Os negativos que permitiriam a reprodução da imagem surgiramtão logo se anunciava na França a descoberta do daguerreótipo.Foi a partir das experiências de Talbot que, em 1840, surgiu ocalótipo ou talbótipo, cuja imagem positiva sobre papel provinha deum negativo também em papel.

Talbot chegou à imagem negativa a partir de seusexperimentos, aos quais denominou �desenhos fotogênicos�. A partirda sensibilização de um papel com cloreto de prata, dispôs sobreesse papel objetos planos e os expôs à luz solar. Após algumashoras, o contorno desses objetos estava delineado no papel. Essaimagem nada mais era que um negativo, cujo positivo poderia serobtido com a utilização de outro papel sensibilizado, disposto emcontato direto com o negativo e exposto ao sol. A imagem resultanteera inversa à primeira.

Ao mesmo tempo em que essa descoberta possibilitou amultiplicação da imagem, sua fragilidade a tornava efêmera. Nocalótipo, a imagem encontra-se no próprio suporte e, à medida queesse se degrada, ocorre o mesmo com a imagem.

Esses materiais, encontrados atualmente em museus,arquivos, bibliotecas e centros de documentação, apresentam umaimagem bastante esmaecida. Há, todavia, muitas imagens em papelsalgado que são equivocadamente consideradas calótipos, mas quepodem ter tido sua procedência a partir de um negativo de vidro enão em papel.

Os negativos em papel foram logo substituídos por um suportemais rígido e transparente (vidro), e uma substância aquosa (colódio),sobre a qual era despejado o cloreto de prata.

O colódio é uma mistura de nitrato de celulose, éter e álcool,cujo uso foi anunciado na revista inglesa The Chemist por FrederickScott Archer (1813-1857) em março de 1851.

Para a prática da conservação fotográfica, o uso do colódiosignificou um avanço, uma vez que a imagem negativa já não seencontrava impregnada no suporte de papel, e sim sobre a películafina e transparente formada pelo colódio. Mas havia um fator deinconveniência no uso desse produto, o de ser utilizável apenasenquanto estivesse úmido.

Page 19: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

5

A prata só seria atingida pela luz, bem como pelos reveladores,enquanto os poros do colódio estivessem abertos, o que ocorriaapenas enquanto estivesse úmido. Portanto, tanto a tomada daimagem quanto a revelação deveriam ser realizadas em seqüênciae com certa rapidez.

O uso do negativo de vidro em colódio úmido e positivo empapel albuminado foi a dobradinha que predominou nas décadasde 50, 60, 70 e 80, nos formatos carte de visit e carte cabinet,até surgir a gelatina em 1871, descoberta por Richard LeachMaddox (1816-1902). Com a gelatina, surgiu o conceito deemulsão, ou seja, os sais de prata ficavam agora dispersosnessa substância, e essa descoberta levou ao desenvolvimentoda indústria de papéis fotográficos, buscando sempre torná-losmais resistentes e atraentes ao cliente.

Ainda no século XIX, surgiu a primeira película de suporteplástico, o nitrato de celulose, e, no ano de 1888, George Eastmanlançou no mercado sua primeira câmera fotográfica com suportepara negativo em rolo (papel), a Kodak N.º 1.

A partir daí essas tecnologias foram sendo aprimoradas,inclusive os processos coloridos, como o Autochrome (1907), oKodachrome (1935), o Ektachrome (1942), o Cibachrome (1963) ea fotografia instantânea Polaroid (1963), chegando nos dias atuaisà tecnologia digital.

Os processos aqui citados não são os únicos existentes, tendoocorrido inclusive processos localizados em determinadas regiões.Muitos desses processos são raramente citados e muitas vezesdesconhecidos pela maioria dos profissionais de arquivos, uma vezque não há ainda no Brasil formação específica na área deconservação e preservação de fotografias.

Da prática da conservação

Todos esses processos citados anteriormente, e ainda maisuma dezena de outros, apresentam características internas dedeterioração, de acordo com os materiais utilizados no seu fabrico.Mas, além da estrutura do próprio material, há de se considerartambém a maneira pela qual o fotógrafo manipulou os produtos

Page 20: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

6

químicos ao revelar a imagem, podendo com isso ter acelerado, ounão, o processo de deterioração.

Uma foto mal processada pode apresentar esmaecimento daimagem causado pela presença de resíduos do fixador, o hipossulfitode sódio, que, ao reagir com a umidade, libera gases sulfurososque irão agir sobre a prata, provocando um clareamento gradativo.

A análise das condições de conservação de uma coleção,bem como do seu estado de degradação, parte da elaboração deum diagnóstico.

Cabe, portanto, ao conservador uma análise do documentofotográfico e a elaboração de um diagnóstico. Nessa avaliação deve-se relacionar o processo fotográfico, o formato, as medidas dosdiferentes suportes, a coleção ou fundo ao qual pertence a unidadedocumental e o seu estado de conservação, bem como as formasde deterioração. Uma vez detectados os problemas, deve-se elaboraruma proposta de tratamento. Há de se analisar com cautela asmedidas propostas para o tratamento, visando jamais comprometera integridade do documento, tal como a retirada de cartões dasfotografias albuminadas, o desmanche de álbuns, entre outros.Muitos conservadores tomam medidas radicais julgando estaremcontribuindo para a longa permanência das imagens fotográficas,mas uma imagem retirada de um álbum perde seu sentido, umavez que seu valor está na organização espaço-tempo em que elase insere.

Os cartões, geralmente ácidos, trazem informações preciosas,como o nome do autor, a casa fotográfica, a data e até mesmocaracterísticas da tecnologia empregada na época. Portanto, medidascomo essas devem ser previamente analisadas, sob o risco de searmazenar documentos destituídos de seu contexto.

Mas a conservação e a preservação de fotografias colocamcomo condição para sua eficácia a obtenção de cópias de segurança.Em outras palavras, é fundamental que todo material sejareproduzido, preservando-se os originais. Até mesmo as coleçõesde negativos devem ter uma cópia de segurança, evitando-se utilizaro original a cada solicitação de cópia pelo usuário.

É esse procedimento, mas não somente ele, que vai garantiruma permanência maior dos originais fotográficos, e ele deve estarassociado ao armazenamento correto e à climatização ambiental.

Page 21: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

7

Verso do Carte Cabinet de autoria deCarneiro & Tavares, 1885, RJ, Col.Particular.

Retrato de Francisco Carvalhode Barros. Carte Cabinet de

autoria de Carneiro & Tavares,1885, RJ, Col. Particular.

Page 22: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

8

O acondicionamento do material fotográfico, sobretudo nospaíses em desenvolvimento, como o Brasil, é ainda um universocomplexo. Além da pouca oferta de produtos que atendam a essademanda, pois a maioria dos papéis utilizados em conservação é deprocedência estrangeira, há ainda o problema do alto custo dessesmateriais. Pequenas instituições, públicas principalmente, encontramdificuldade na aquisição de materiais para conservação, e muitasdelas são obrigadas a acondicionar seus acervos utilizando invólucrosinadequados. Esses invólucros (papéis), se associados à umidadeelevada podem danificar por completo os materiais fotográficos. Opróprio controle da umidade torna-se impraticável para muitasinstituições, pois há cidades brasileiras em que a umidade do arassume níveis tão elevados que seria necessário um conjunto deequipamentos altamente sofisticados.

É fundamental que os papéis a serem utilizados noacondicionamento de materiais fotográficos tenham um ph neutroe não contenham lignina, tampouco corantes. Alguns plásticostambém são indicados no acondicionamento de materiaisfotográficos, mas aqueles que exalam cheiro forte, tal como oPVC, devem ser evitados.

Plásticos como o poliéster transparente � que é inerte e porisso não oferece riscos � devem ser utilizados apenas quando houvercontrole de umidade e de temperatura, sob pena de a emulsãoaderir ao plástico, causando danos irreparáveis.

O acondicionamento, para ser totalmente eficaz, deve sercombinado a um controle ambiental. Todo material fotográfico,desde o momento em que é produzido, dá início a um processode deterioração impossível de ser interrompido, podendo-seapenas retardá-lo.

Sabe-se que as reações químicas são aceleradas pelo aumentode temperatura. Logo, se os materiais fotográficos forem submetidosa altas temperaturas, sua reação de degradação também seráacelerada. Alguns materiais mais instáveis, como as fotografiascoloridas, exigem temperaturas muito baixas, enquanto as fotografiasem preto e branco podem ser armazenadas em uma temperaturaem torno de 20 graus.

Um outro fator que acelera a degradação do material fotográficoé a umidade relativa do ar (UR). O excesso de umidade gera o

Page 23: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

9

processo de hidrólise, tornando os papéis ácidos e amarelados; aprata pode oxidar e a gelatina, amolecer e aderir ao plástico daembalagem. Muitos processos fotográficos se ressentem doexcesso de umidade e apresentam formas diferentes dedeterioração. Além desses fatores, a umidade excessiva favorecea proliferação de fungos.

Porém, quando a umidade está baixa demais, pode tambémocorrer danos a alguns materiais fotográficos, como os negativosem colódio e os acetatos, causando encolhimento da emulsão, comconseqüente rachadura.

Diante desse quadro e das dificuldades em acondicionaradequadamente cada processo fotográfico, adotou-se uma medidapadrão para materiais fotográficos a fim de entender minimamentea todos os processos: UR a 40% e temperatura a 20 graus. Essasmedidas devem ser constantes, e a variação elevada dessespadrões pode causar um dano ainda maior aos materiais fotográficos.É fundamental, portanto, que os aparelhos da sala climatizadapermaneçam ligados ininterruptamente. Não se deve, ao final doexpediente, desligar os aparelhos para religá-los no dia seguinte.

Concluímos com isso que a existência de uma sala climatizadaé uma das condições fundamentais para a preservação dos acervos.Além da climatização que ela permite, também protege osdocumentos da poluição e, sobretudo, da luz, fatores influentes nadegradação das imagens.

Mas não basta a existência de uma sala climatizada eficientepara a garantia da preservação. A conservação deve ser maisque uma medida adotada isoladamente, deve ser uma atitude,da qual todos os funcionários do arquivo, e não apenas oconservador, devem ter consciência. A manipulação correta e orespeito pelo documento devem estar presentes nas atitudesde toda equipe, pois esse ato certamente irá garantir uma maiorlongevidade ao documento. Incluem-se nessas atitudes o usode luvas, ter cuidado ao se transportar materiais frágeis comoos negativos de vidro, jamais segurar um documento com apenasuma das mãos, trabalhar sobre uma mesa desobstruída, nãocomer ao trabalhar com os documentos, nem deixar resíduosde alimentos nos ambientes do arquivo, não deixar documentospróximos a recipientes com qualquer espécie de líquido, inclusive

Page 24: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

10

água. Acidentes sempre acontecem, porém é melhor evitá-los,pois remediá-los pode ser impossível.

Da Conservação

Ao longo da história da fotografia, pode-se perceber tentativasde se utilizar substâncias que garantissem a qualidade e a durabilidadedas fotografias, as quais alcançaram algum sucesso. A substituiçãodos sais de prata levou a processos bastante resistentes como aplatinotipia, o paládio e o carvão.

Anônimos. Cartão Vitória em Platinotipia. Cia. Photographica Brazileira, s.d.,RJ, Col. Particular.

Page 25: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

11

As fotografias em platinotipia, como no exemplo acima, traziama inscrição de processo inalterável.

O final do século XIX conheceu uma efervescência culturalmuito intensa, a sociedade se modernizou, as cidades conheceramo fenômeno da multidão, os prédios se multiplicaram. A modernidade,tão bem percebida por Baudelaire, estava imbuída de característicasque caminhavam na contra-mão da preservação fotográfica, ouseja, em direção ao efêmero. A velocidade imposta por essa novasociedade fez da fotografia um bem utilitário e descartável. Apreocupação com a preservação não era necessária, pois apossibilidade de reprodução garantia sua existência e eternidade.Havia, sim, uma preocupação estética com relação à imagem, oque levou muitos conservadores à prática da restauração utilizandoprodutos químicos, sem o conhecimento de que a longo prazo osdanos seriam irreparáveis. A estética não é, evidentemente, oobjetivo da conservação. A conscientização sobre a importância da�matéria fotográfica� e não apenas de seu valor iconológico fezsurgir no pós-II Guerra uma nova concepção de restauro:

o objetivo da restauração não é mais recuperar ou reformar objetospara adaptá-los ao gosto do dia ou restituir-lhes um valor de uso; aocontrário, se a matéria é indissociável da significação da obra, trata-sedaqui por diante de respeitar a sua integridade. O restauro crítico nãoobedece mais apenas a critérios técnicos, mas leva em conta aglobalidade do objeto: sua história, seu contexto cultural, sua estéticae sua evolução temporal.4

Mais recentemente, a idéia de restauro restringiu-se à menorintervenção possível, e com caráter de reversibilidade, visando comisso garantir a integridade dos documentos.

Foram inicialmente os americanos e os canadenses os primeirosa se preocuparem com essas questões. No Brasil, a tomada deconsciência sobre a fragilidade dos materiais fotográficos e aimportância da sua preservação só apareceram há cerca de vinteanos. A cada dia mais instituições preocupam-se em realizar um

4 CARTIE-BRESSON, 1997, p. .3.

Page 26: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

12

trabalho correto de conservação em seus acervos, acarretando umnível cada vez maior de qualidade e eficiência. Há, todavia, oinconveniente de não haver no Brasil uma formação institucionalizadana área de conservação e preservação de documentos. Mas algumasinstituições mais tradicionais, como o Centro de Preservação daFunarte, vêm ministrando cursos de curta duração, visando comisso formar novos profissionais para atuarem na área e aindaconscientizar os profissionais de arquivos e outras instituições quetratam da memória sobre a importância dessa nova disciplina.

Bibliografia

BARUKI, Sandra; SARAMAGO, Ana. Projeto de Conservação de AcervoFotográfico de Pierre Verger. Anais do IX Congresso ABRACOR, Bahia,1998.

BECK, Ingrid (org.). Manual de preservação de documentos. Colaboração deAntonio Gonçalves da Silva et al. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/ACAN,1971.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade � lembrança de velhos. São Paulo: T. A.Queiroz, 1979.

BURGI, Sérgio; BARUKI, Sandra. Introdução à preservação e conservação deacervos fotográficos: técnicas, métodos e materiais. Rio de Janeiro:Funarte, 1988.

CARTIER-BRESSON, Anne. Uma nova disciplina: a conservação-restauraçãode fotografias. Cadernos técnicos de conservação fotográfica, n. 3, Riode Janeiro, Funarte,1997.

COSTA, Francisco da. Reprodução fotográfica e preservação. Cadernos técnicosde conservação fotográfica, n. 2. Rio de Janeiro, Funarte, 1997.

_____. Projeto de Conservação do Acervo Fotográfico de Pierre Verger �Duplicação de Negativos. Anais do IX Congresso ABRACOR, Bahia, 1998.

CSILLAG, Ilonka P. Conservación � fotografía patrimonial. Biblioteca Nacionalde Chile, Dirección de Bibliotecas Archivos y Museos, 1997.

FISCHER, Monique C.; ROBB, Andrew. Indicação para o cuidado e a identificaçãoda base de filmes fotográficos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.(Projeto Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos).

GONÇALVES, Edmar Moraes. Restauração de álbuns fotográficos (umanecessidade). Anais do IX Congresso ABRACOR, Bahia, 1998.

Page 27: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

13

HENDRICKS, Klaus B. Armazenamento e manuseio de materiais fotográficos.Rio de Janeiro: MinC, FUNARTE, 1997. (Cadernos técnicos de conservaçãofotográfica, 1).

_____. Manual de orientação para a preservação de acervos fotográficos deépoca. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1984.

_____. Preservation and Restoration of Photographic Materials in Archivesand Libraries: a ramp study with guidelines. Paris: Records and ArchivesManagement Program, 1984.

KEEFE, Laurence E; INCH, Dennis. The Life of a Photograph. London: FocalPress, 1990.

KOSSOY, Boris. Origens e Expansão da Fotografia no Brasil � Século XIX. Riode Janeiro: Funarte, 1982.

LAVÉDRINE, Bertrand. La conservation des photographies. Paris: Presse duCNRS, 1990.

MELLO, Márcia. O daguerreótipo nas coleções brasileiras. Anais do IXCongresso ABRACOR, Bahia, 1998.

_____; PESSOA, Maristela. Manual de acondicionamento de materialfotográfico. Rio de Janeiro: Funarte/IBAC, 1994.

MUSTARDO, Peter; KENNEDY, Nora. Preservação de fotografias: métodosbásicos para salvaguardar suas coleções. Cadernos técnicos deconservação fotográfica, n. 2, Rio de Janeiro, Funarte, 1997.

_____. Preservação de fotografia na era eletrônica: métodos básicos parasalvaguardar suas coleções. Cadernos técnicos de conservaçãofotográfica, n. 2, Rio de Janeiro, Funarte, 1997.

NEWHALL, Beaumont. The history of photography. New York: The Museum ofModern Art, 1982.

OGDEN, Sherelyn. Caderno técnico - administração de emergências. Rio deJaneiro: Projeto conservação preventiva em bibliotecas e arquivos/ArquivoNacional, 1997.

OLIVEIRA, João Sócrates de. Manual prático de preservação fotográfica. SãoPaulo: Museu da Indústria, Comércio e Tecnologia, 1980. (Museu eTécnica, 5).

PAVÃO, Luís. Conservação de coleções de fotografia. Lisboa: Dinalivro, 1997.REILLY, James M. Care and Identification of 19th � Century Photographic Prints,

Kodak Books.SPINELLI JUNIOR, Jayme. A conservação de acervos bibliográficos &

documentais. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Departamentode Processos Técnicos, 1997.

Page 28: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

Do registro à sedução:os primeiros tempos da fotografia na publicidade

brasileira

Daniela Palma**mestre pela Escola de Comunicações e Artes da USP e professora da Universidade Paulista.

Fotografia e publicidade. Há algum tempo, essa dupla parece indissociável, já que a fotografiatransformou-se em elemento essencial aos anúncios publicitários que estampam jornais, revistas ecartazes. Afinal, que outra linguagem, que não a fotográfica, nos meios impressos, consegue conjugarcom tanta eficácia, do ponto de vista de uma recepção de massa, credibilidade e sedução?

No entanto, essa parceira não foi amor à primeira vista. A propaganda demorou a aceitar afotografia em sua seara. A impressão direta de fotografia era possível desde 1880, quando apareceu oprocesso de impressão por meio-tom (halftone). Mas, a utilização da fotografia pela publicidade nãoaconteceu na seqüência. No século XIX, o uso de fotografias na imprensa ainda era muito esporádico,evidenciando que a imagem fotográfica não havia sido assimilada pelas estruturas de funcionamentoe circulação jornalística e publicitária.

A recusa à fotografia pelos publicitários se dava nas duas pontas: se por um lado, ela eratécnica demais para alcançar a fruição artística do desenho, por outro, não tinha a precisão do traçopara a reprodução dos detalhes técnicos na impressão, já que as imagens ficavam ainda muito reticuladas.Assim, o uso da fotografia na propaganda do século XIX foi bastante irrisório, tanto na Europa eEstados Unidos, como também no Brasil. Basicamente, a imagem fotográfica continuava a servir, napublicidade e na cobertura jornalística, à mesma finalidade de antes do desenvolvimento do meio-tom, ou seja, como referência para a produção de gravuras.1

No caso brasileiro, aliás, nem podemos falar exatamente num trabalho publicitário maisespecializado, já que os primeiros escritórios dedicados a “distribuir anúncios para os jornais”,começaram a surgir a partir de, aproximadamente, 1914, com a casa paulistana Castaldi & Bennaton(que posteriormente se transformaria em A Eclética). Antes disso, as atividades publicitárias estavamligadas aos próprios jornais e revistas, funções que iam do agenciador de anúncios até escritores eartistas, que geralmente já faziam parte do quadro de colaboradores dos veículos2 .

Assim, as novidades técnicas e as soluções para o emprego de novas linguagens seguiam astransformações editoriais no campo jornalístico e, muitas vezes, a passos mais curtos. Por isso, até adécada de 1920, é fácil reconhecermos uma identidade gráfica entre os anúncios publicitários e aspáginas que traziam o conteúdo editorial. Notamos, assim, tipos de publicidade identificados com osveículos. Uma revista como a paulistana A Lua, de 1910, que tinha uma edição de arte criativa e fartouso de recursos gráficos, trazia uma publicidade idem, com a utilização freqüente de fotografias,composições variadas e ilustrações competentes. O mensário literário Panoplia (1917-1919), editadopor Cassiano Ricardo e Guilherme de Almeida entre outros, apresentava um elegante e equilibradadireção artística assinada por Di Cavalcanti, com o uso restrito de imagens e boa impressão. Nessecasso, os anúncios publicitários eram sóbrios e discretos, com eventuais ilustrações a traço, geralmente,desenhos das fachadas dos estabelecimentos comerciais. Se tomarmos, ainda os grandes jornais das

1 Era muito comum desde os primeiros tempos da fotografia a utilização de imagens fotográficas como base para otrabalho de gravuristas. Esse trabalho consistia em criar uma correspondência em traços às tonalidades da fotografia. Atécnica mais comum para isso era a litografia. A gravura pronta era utilizada para publicação.2 RAMOS, Ricardo. Do reclame à comunicação: pequena história da propaganda no Brasil. São Paulo: Atual, 1985;______. 1500-1930 – Vídeo-clipe das nossas raízes. In: BRANCO, Renato Castelo; MARTENSEN, Rodolfo Lima;REIS, Fernando (orgs.).História da propaganda no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1990. pp. 1-19.

Page 29: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

primeiras décadas do século XX, observamos uma publicidade pouco inventiva e que não se arriscavaa empregar recursos visuais que poderiam ser comprometidos pela baixa qualidade de impressão dosdiários.

Nas décadas de 1890 e 1900, o principal modelo estético da grande publicidade no mundoocidental era o Art Nouveau. Grandes artistas desse estilo, como o tcheco Alphonse Mucha, criaram oreferencial de maior sofisticação para a propaganda da Belle Époque. O Art Nouveau, definido porArgan como “um estilo ornamental que consiste no acréscimo de um elemento hedonista a um objetoútil” 3 , respondia ao anseio publicitário de uma época industrial preocupada em justificar a mais-valia,agregando o valor “criativo” através da ornamentação.

Assim, cartazes, embalagens de produtos, folhetos e os anúncios, publicados nas páginas dascada vez mais requintadas revistas ilustradas, apresentavam os produtos mergulhados entre sedutorasfiguras femininas envoltas por suas longas cabeleiras esvoaçantes, tecidos drapeados e ornamentos emforma de flores, mosaicos, pássaros, estrelas e uma infinidade de curvas. A imagem fotográfica, nessecontexto, parecia despojada demais, pouco “criativa” com seu automatismo e nada “artística” para sesobrepor a ilustração a traço. Os fotógrafos pictorialistas4 , que buscavam dar um verniz de arte acadêmicaà fotografia, mantiveram-se longe da publicidade com receio de vulgarizar o estilo. Os publicitáriostambém estavam naquele momento muito mais empolgados com as curvas da corrente modernista, doque com o classicismo das fotografias pictóricas.

Nesse período, quando os propagandistas recorriam à fotografia, eram muito comuns as colagensde imagens fotográficas recortadas em meio a cenários ou molduras ornamentais. Esses anúncios iamdos mais sofisticados que chegavam a utilizar impressão em cores, até os mais simples com singelasreferências visuais ao estilo modernista. Realizavam, assim, a união simbólica da modernidade técnicarepresentada pela fotografia com o refinamento artístico atualizado do Art Nouveau.

Aliás, vale a pena ressaltar, os serviços dos grandes artistas não estavam acessíveis a todo tipode anunciante. No Brasil, a situação era ainda um pouco mais drástica, pois havia muita desconfiançacom relação à publicidade. Alguns relatos dão conta de uma inscrição comum nas entradas dosestabelecimentos: “Essa firma não dá esmolas, nem anúncios”. E, se nem sequer existiam profissionaisespecializados em publicidade, como convencer capitalistas de primeira viagem a investirem quantiasmais altas em uma produção de apelo mais “artístico”. Com isso, havia o acúmulo de funções dosencarregados pelos anúncios: ilustrador, fotógrafo, litógrafo, pintor etc. Desta forma, a maior parte dapublicidade que circulava pela imprensa brasileira, trabalhava com composições muito simples, umailustração a nanquim acima ou ao lado do texto e, às vezes, uma moldura ou uma vinheta ornamentaldelimitando esse conjunto. Gradualmente, conforme se adentrava no século XX, as ilustrações foramsendo substituídas por fotografias.

Apesar da imagem fotográfica ter ganhado um pequeno espaço na publicidade, na virada doséculo, tinha um caráter meramente ilustrativo e um padrão de qualidade, muito desigual. O primeirogênero fotográfico a ser incorporado de maneira mais sistemática à propaganda foi o retrato. Nachamada publicidade testemunhal, que consistia na utilização da imagem de uma personalidade pararecomendar o uso do produto. Raúl Éguizabal ressalta que “os escassos exemplos fotográficos napublicidade norte-americana, durante os primeiros anos do século XX, continuavam a seguir as regrasda estética mais ortodoxa, quando não da vulgaridade” 5 .

No Brasil, também observamos o retrato como gênero mais recorrente de fotografia napublicidade das primeiras décadas do século XX. As imagens para os testemunhais seguiam o padrão

3 ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 202.4 O pictorialismo é uma tendência da fotografia da segunda metade do século XIX que respondia ao pouco caso que omundo artístico fazia da nova técnica. Os pictorialistas, fotógrafos amadores, organizavam-se em clubes - os fotoclubes- onde discutiam os padrões que julgavam os mais elevados para a fotografia. Esses padrões advinham principalmentedo campo das belas artes, da pintura acadêmica.5 ÉGUIZABAL, Raúl. Fotografía publicitaria . Madrid: Cátedra, 2001. p. 13.

Page 30: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

dos retratos particulares praticado desde meados do século XIX nos ateliês espalhados pelos grandescentros urbanos. As poses rígidas faziam parte de um repertório que vinha sendo constituído porretratistas desde os primeiros portraits na pintura a óleo. Assim, os retratos não eram pensados emtermos de uma linguagem publicitária mais articulada. Nos casos mais cuidados, esses retratos eramrealizados por retratistas experientes, com acuidade técnica, em estúdios modernos, mas funcionavamcomo os retratos avulsos, daqueles que eram realizados para circulação no âmbito privado. Existiamtambém os instantâneos6 realizados muitas vezes por um faz-tudo da redação para a área gráfica.Então, o que observamos nesse primeiro período de assimilação da fotografia pela publicidade foi ainserção do retrato, objeto de uso particular, num contexto de circulação de massa.

Há um exemplo que localizamos de um anúncio de uma marca inglesa de alimentos, Allenburys,num número da revista A Vida Moderna de 1914, com o retrato bem realizado de uma mulheralimentando um bebê (por se tratar de um produto importado é possível que a fotografia não tenhasido produzida no Brasil). Dez anos mais tarde, foi veiculado um anúncio do mesmo produto emalguns números da revista A Cigarra. Nesse caso, no lugar da foto, foi utilizada uma ilustração produzidaa partir da fotografia. Esse caso é curioso de substituição de uma fotografia por ilustração de qualidadeinferior. É provável que a explicação tenha a ver com algum problema operacional (perdeu-se ouficou-se sem acesso à cópia fotográfica e ao clichê do primeiro anúncio etc.), mas o que chama atençãoé que a prática de usar imagens fotográficas como referência para ilustrações a traço era ainda muitocomum e aceita nos meios gráficos brasileiros da década de 1920.

Havia algumas tentativas de produzir retratos com mais movimento. O sabão Aristolino veiculouvários anúncios na revista A Cigarra entre, pelo menos, 1922 e 1924 usando fotos de coristas e moçasem trajes de praia, com composições que fugiam do esquema tradicional dos retratos. Há também umuso interessante da fotografia em anúncios do licor Vermutin veiculado em 1917, também na revista ACigarra. Nesse caso, os retratos de uma modelo interpretando personagens em poses que exploram anoção da força e vitalidade criam um identidade de proposta entre os anúncios, aproximando-se daidéia de uma campanha. Na mesma revista, um concerto de Josephina Robledo foi anunciado comcriatividade, usando um retrato da violonista espanhola tocando montado em uma moldura circularformada por imagens das mãos da moça. O curioso anúncio do xarope Mel Jatahy Doria, de 1917, fazreferência às sufragistas – “ Suffragistas... Todas estas moças não confundiram o xarope” – e utiliza umamontagem com diversos retratos de mulheres recortados compondo uma “multidão” feminina de fundo.

Além dos retratos, encontramos na publicidade veiculada nas revistas das primeiras décadasdo século XX, imagens de estabelecimentos comerciais e, mais esporadicamente, de produtos. Estasfotografias podem parecer, aos nossos olhares saturados pela publicidade moderna, bastante ingênuas.O que ocorre é que essas imagens mostram claramente uma preocupação em apenas mostrar o queestava sendo anunciado. Era a tentativa de empregar a fotografia como registro, como documento quecertifica ao público a aparência mais genérica, sem o intuito predefinido de destacar um ou maisaspectos dos produtos. Sem as técnicas e truques para embelezar objetos e espaços que viriam aconstituir futuramente uma sintaxe da imagem publicitária moderna.7

O domínio absoluto da ilustração a traço na publicidade brasileira de alta qualidade deu-se,pelo menos, até a década de 1930, época em que a agências estrangeiras começaram a chegar ao país,

6 São chamadas de instantâneos fotográficos as fotografias obtidas através das câmeras com filme em rolo, voltadas paraamadores e que começaram a ser produzidas por volta de 1900 pela Kodak.7 A partir dos anos 20, houve uma grande transformação na fotografia ocidental, no bojo das experiências das vanguardashistóricas. A publicidade tem papel fundamental nesta renovação da fotografia. O still-life fotográfico (composição comum ou mais objetos de uso cotidiano, de pequeno porte) foi valorizado. Fotógrafos modernos começaram a trabalhar afotogenia dos objetos cotidianos da sociedade industrial, em fotografias extremamente bem cuidadas do ponto de vistatécnico e de composição. Iluminação cuidada para cada tipo de objeto, fundos em geral neutros, pesquisa de materiais emuitas técnicas e expedientes eram preocupações essenciais desses fotógrafos. Instaurava-se o padrão que respondia àsnecessidades fundamentais da publicidade, na qual a fotografia de objetos tinha tido algum uso nos catálogos de venda,já desde o século XIX, e aparições esporádicas em anuários e anúncios publicitários.

Page 31: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

principalmente em São Paulo8 . Segundo Chico Albuquerque, até este momento, a fotografia publicitáriaera “limitada a fotos de objetos e produtos” 9 . Ainda assim, até a década de 1940, para se utilizarfotografias principalmente de objetos e de ambientes industriais, era imperativo o uso do retoqueamericano10. Os fotógrafos que recebiam as encomendas da área publicitária atuavam em várioscampos, não havia a especialização. As agências estrangeiras, a princípio, quando intencionavamutilizar fotografias, recorriam a imagens compradas nos Estados Unidos, com modelos norte-americanas.Ricardo Ramos narra, inclusive, um caso anedótico a esse respeito, acontecido nos anos 1930:

Em São Paulo, nos começos da Ayer, somente se usava desenho como ilustração de anúncio. Cansado de artea traço, Charles Dulley passou a comprar fotos em Nova York. Na maioria, os modelos das fotografias quevinham eram mulheres bonitas, sem dúvida, mas quase todas louras. E havia uma necessidade óbvia demorenas. Então foi posto um anúncio no Estado, em sua nascente página de classificados. “Jovens bonitas,morenas, para trabalho fácil e bem pago.” Dia seguinte, dois “secretas” visitaram a agência: queriam saberqual era aquele trabalho fácil.11

O incremento do uso da fotografia na propaganda brasileira é creditada à Thompson. SegundoFernando Reis, o primeiro fotógrafo que passou a prestar serviços à agência foi Henrique Becherini,que é apontado por Albuquerque, como também por Hans Gunter Flieg, como um dos primeiros arealmente se especializar no campo publicitário.12 Becherini produziu fotos para campanhas da Atlantic,da Goodrich, da Blue Star Lines e das Refinações de Milho Brasil. Um dos clientes mais importantesde Becherini foi a General Motors. Na primeira campanha para GM, o fotógrafo produziu uma sériede retratos de personalidades brasileiras para compor os anúncios testemunhais. Por esse trabalho,Becherini teria recebido como cachê um automóvel Chevrolet.13

Foi realmente na década de 1940 que começou a haver um espaço um pouco mais consolidadopara a fotografia no campo da propaganda, e fotógrafos como Chico Albuquerque, Peter Scheier eHans Gunter Flieg, além do próprio Becherini e talvez uns poucos mais, firmaram-se na área.14 Osanos 1940 marcaram uma mudança profunda no campo da fotografia brasileira. A implementação deestruturas mais complexas no campo da produção cultural exigiu novas posturas dos fotógrafos epropostas mais antenadas ao que já se produzia no exterior. Sem dúvida, influiu neste quadro a chegadade profissionais estrangeiros, já iniciados na modernidade européia, que vinham ao Brasil refugiadosdo nazismo e da Guerra.

8 A J. Walter Thompson foi instalada no Brasil em 1929; a N. W. Ayer-Son, em 1931; a McCann-Erickson, em 1935; aLintas, em 1937, e a Grant, em 1939. REIS, Fernando. São Paulo e Rio: a longa caminhada. In: BRANCO, RenatoCastelo; MARTENSEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando (orgs.). História da propaganda no Brasil. São Paulo: T. A.Queiroz, 1990. p. 308.9 ALBUQUERQUE, Francisco. A fotografia publicitária. In: BRANCO, Renato Castelo; MARTENSEN, Rodolfo Lima;REIS, Fernando (orgs.). Op. cit. 168.10 Para esse tipo de retoque, eram confeccionadas máscaras de celulóide para serem colocadas sobre a imagem e, então,se aplicava tinta através de uma pistola a combustão. Com isso, eliminava-se o fundo ou era utilizado para destacar oudefinir formas, criando o efeito de luzes e sombras. O resultado final assemelhava-se mais a uma ilustração que a umafotografia, por isso considerado muito “artificial”. Mesmo assim, foi uma técnica que viabilizou a impressão de detalhestécnicos principalmente nos jornais diários, que reproduziam as imagens muito reticuladas e com grande perda dossubtons.11 RAMOS, Ricardo. Op. cit. p. 43.12 ALBUQUERQUE, Chico. Op.cit; Hans Gunter Flieg em depoimento à autora (fev. 2002).13 REIS, Fernando. Op. cit. p. 311.14 ALBUQUERQUE, Chico. Op. cit. p. 168. Conforme depoimento de Hans Gunter Flieg, valeria a pena tambémdestacar os nomes de Ernst Mandowsky, Ernst Schauder e Frederico Kikóler.

Page 32: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

BIBLIOGRAFIA

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna . São Paulo: Companhia das Letras, 1992.BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.BRANCO, Renato Castelo; MARTENSEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando (orgs.). História dapropaganda no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1990.ÉGUIZABAL, Raúl. Fotografía publicitaria . Madrid: Cátedra, 2001.LEMAGNY, Jean-Claude; ROUILLÉ, André (orgs.). Histoire de la photographie. Paris: Larousse/Bordas, 1998.RAMOS, Ricardo. Do reclame à comunicação: pequena história da propaganda no Brasil. São Paulo:Atual, 1985.SOBIESZEK, Robert. The art of persuasion: a history of advertising photography. New York:Harry N. Abrams, 1988.

Page 33: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

Ilustração Art Nouveau em anúncio d’ASaúde da Mulher. Revista A Cigarra, 1ºjan. 1924.

A fotografia e o Art Nouveau emanúncio dos cigarros Fon-Fon. Revista

A Lua, jan. 1910.

Page 34: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

Testemunhal com o ator Ramon Navarro paraa brilhantina Stacomb. Revista A Cigarra, 15

out. 1929.

Page 35: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

Anúncios dos alimentos Allenburys: com foto, na revista A Vida Moderna, 14 mai. 1914

Anúncios dos alimentos Allenburys: com ilustração, na revista A Cigarra, 1º jan. 1924.

Page 36: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

Anúncio do sabão Aristolino. Revista A Cigarra, 15 fev. 1922.

Page 37: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

Anúncio do concerto da violinista Josephina Robledo. Revista A Cigarra, 26 jul. 1917.

Page 38: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

Anúncio do Mel Jatahy Doria. Revista A Cigarra, 10 ago. 1917.

Page 39: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

Fachadas de lojas: página de anúncios da revista A Lua, fev. 1910.

Page 40: MORADIA OPULAR A IDADE E ÃO AULO (1930-1940) – P · Vista panorâmica da Vila da Fábrica Maria Zélia (REIS, 2001, p. 18). Aproximadamente década de 1930 ou 1940. Novamente,

Produto: anúncio da “massa glutinada” Secchi. Revista A Lua, mar. 1910.