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    A MOTIVAO DAS DECISES PENAIS E A GARANTIADO ARTIGO 93, IX, DA CONSTITUIO DAREPBLICA

    rica de Oliveira Hartmann

    Mestranda em Direito Processual Penal na UFPR.

    SUMRIO: Introduo; 1 Estrutura da Motivao das Decises; 2 A Motivao:Instrumento Retrico de Convencimento e Persuaso; 3 A Motivao e o Alcancedas Decises: o Juiz Penal e seu Auditrio; Concluso: o Problema da Efetividade daGarantia Constitucional; Referncias Bibliogrficas.

    INTRODUO

    Estudar a atividade judicial desenvolvida no processo, seja ele civil ou penal, ,desde o comeo, uma rdua tarefa. No s por se tratar de atividade humana, complexa,individual de julgar e, portanto, extremamente varivel de pessoa para pessoa, mastambm, e talvez principalmente, pela falta de conscincia e conhecimento que namaioria das vezes falta aos juzes no que diz respeito funo que tm a desempenhardurante suas vidas, pela profisso que escolheram.

    Analisar a atividade judicial de valorao das provas igualmente difcil, poisse trata de matria eminentemente subjetiva; e a que o perigo se mostra! Ainda hoje,por incrvel que possa parecer, muitos defendem que no processo penal vigora, comtoda a sua fora, o princpio da verdade material, ou seja, h que se buscar a verdadeiraverdade, e no aquela verdade aceita no processo civil, a chamada verdade formal,dicotomia esta, apenas a ttulo de exemplo, j por FRANCESCO CARNELUTTIdestruda, desde a polmica com EUGNIO FLORIAN, em meados dos anos 20 dosculo passado.

    Ora, a verdade no , segundo FRANCESCO CARNELUTTI, e nem podeser, seno uma s: aquela que eu, como outros, chamava de verdade formal no averdade. Nem eu sabia, naquele tempo, que coisa fosse e porque, sobretudo, nem como processo, nem atravs de algum outro modo, a verdade jamais pode ser alcanadapelo homem.1

    Assim, a partir do momento em que se convenceram que a verdade, ela mesma,jamais conseguiria ser alcanada, os doutrinadores passaram, ento, a trabalhar comoutros conceitos, os quais ajudariam na aproximao da verdade dos fatos, a qual,

    1 CARNELUTTI, Francesco. Verdade, dvida e certeza. Trad. Eduardo Cambi. Gnesis Revista deDireito Processual Civil. Curitiba: Gnesis, n. 9, p. 606-609, jul./set. 1998.

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    enfim, deve estar presente de alguma forma para que se possa julgar a lide e o casopenal, especialmente. So eles os conceitos de verossimilhana (brilhantementeapresentado por PIERO CALAMANDREI), probabilidade, dvida e certeza.

    A partir da, passa-se a um outro grande problema: a hermenutica jurdica.

    Como se d a efetiva interpretao das leis pelos magistrados? sabido que existemvrios tipos e tambm vrios mtodos de interpretao. Mas qual a funo de cada um?Como agem cada um deles? A escolha por um determinado mtodo importante? Ataqui, at onde j se estudou, pode-se concluir que a opo pelo mtodo de interpretaoe aplicao da lei de grande importncia para o desfecho do processo. As conseqnciaspodem ser as mais inesperadas possveis e se refletem especialmente no momento damotivao das decises quanto ao direito.

    NILO BAIRROS DE BRUM, ao falar sobre os mtodos de interpretao, afirmaque esses mtodos podem ser vistos como instncias retricas que tm a funo de

    canalizar, de forma aparentemente neutra e cientfica, determinados valores que sequer preservar. Conforme o mtodo ou conjunto de mtodos que se use, pode-se trocara linha de deciso, extraindo-se da mesma norma legal diferentes conseqncias jurdicas.Assim, a fungibilidade dos mtodos transforma a interpretao jurdica num jogo decartas marcadas....; e continua: ocorre que imprprio falar-se em infiltrao dasideologias no direito atravs da interpretao, pois o direito justamente a interaodas ideologias. Se podemos definir a norma jurdica como ideologia coagulada, ainterpretao pode aparecer como a ao discursiva que ou procura reforar a fixaodas ideologias concorrentes que tendem a coagular-se....2

    E o problema no pra por a. As provas tambm precisam ser analisadas evaloradas e tal atividade, nos atuais sistemas processuais (civil e penal), tem comofundamento, de regra, o livre convencimento que, em ltima anlise, trata-se de ummal necessrio.

    Destarte, diante de toda a realidade exposta, como agem os juzes ao valoraremas provas colhidas no processo e como deveriam agir? De regra, o que se percebe dasdecises que no s h uma certa tendncia em se aceitar a ideologia dominantenaquele momento (seja ela correta ou incorreta, absurda ou no no se questiona),bem como, alis, procura-se exatamente manter-se um determinado padro nas decises

    judiciais. Os juzes procuram, de fato, manter-se dentro de um standardgeral devalorao dos juristas, da comunidade jurdica.3 Resta descobrir at que ponto isso bom e se efetivamente bom.

    Finalmente, tendo o juiz tomado a sua deciso, dever, ao exar-la, motiv-lacorretamente, conforme institui a garantia constitucional, expressando devidamente asrazes de sua deciso. Para isso, dever atentar para o fato de que sua deciso dever

    2 BRUM, Nilo Bairros de.Requisitos retricos da sentena penal. So Paulo: Revista dos Tribunais,1980, p. 40.

    3 Sobre o tema dispe NILO BAIRROS DE BRUM, emRequisitos retricos da sentena penal, p. 69 ess.

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    ganhar, perante a comunidade, legitimidade e no s legalidade. Ter o juiz, assim, queprocurar tornar sua sentena verossmil, recorrendo, sem dvidas, a determinadosprocessos com vistas a convencer, no s o destinatrio da deciso, mas toda acomunidade.

    Examinar, ento, a atividade judicial de fundamentao de suas decises aindamuito mais difcil, pois abrange, dentre outros, todos os elementos antes considerados,isto , a concepo de processo e verdade que tem o juiz (se ele ainda acredita na buscada verdade real como um dos princpios do processo penal), a interpretao dada leipelo juiz, a forma de aplicao da lei ao caso concreto, os mtodos de produo eavaliao da prova e, principalmente, a tarefa obrigatria que tem o juiz de explicaras suas decises, de fundament-las.

    A motivao das decises, no Estado de Direito democrtico, no s se trata degarantia poltica, de controle do povo sobre as decises judiciais, mas tambm de uma

    garantia processual (endoprocessual), que assegura a ampla transparncia no exercciodo poder jurisdicional e garante s partes o acesso s razes da deciso, permitindo-lhes a sua plena impugnao. Mas de que forma ela est sendo exercida pelos juzes?

    O modelo idealizado para a soluo no s da lide mas tambm do caso penal,conforme se sabe, aquele em que o juiz, procurando ser imparcial, na medida dopossvel, conduz e instrui todo o processo da melhor forma para, ao final deste, tendoento tomado a sua deciso, a partir de uma sria valorao das provas, dever, aoexar-la, motiv-la devidamente, conforme institui a garantia constitucional, expressando

    de forma clara as razes de sua deciso, apontando explicitamente os motivos que olevaram a decidir daquela maneira.

    O exerccio da argumentao, assim, est (e deve estar) sempre presente. atravs de argumentos que o magistrado justificar a sua deciso. Todavia, essaargumentao comumente manipulada pelos juzes. Principalmente no processo penal,parece que o verdadeiro julgamento de um determinado ru quase nunca se baseianeste modelo idealizado acima mencionado: por uma razo ou outra, de ordem pessoalou no, quase sempre, o juiz j no inqurito acha que aquele indivduo deve sercondenado e assim o far l no final do processo judicial, ainda que no tenha provassuficientes para faz-lo. E a que entra a retrica, a argumentao jurdica, o discurso

    jurdico diabolicamente destinado a justificar uma condenao supostamente injusta(supostamente porque no h, no processo, provas suficientes para a condenao).

    Mas de que forma a argumentao jurdica, ou melhor, em que medida estaargumentao jurdica (que tem por base a Teoria da Argumentao) influencia de fatoas decises judiciais? O que se procura mostrar, ainda, at que ponto essa justificaodo discurso judicial utilizada para o bem, para o que correto. E, por fim, uma ltimaquesto h de ser levantada: se efetivamente a fundamentao das decises judiciais

    nada mais for, muitas vezes, do que mera aplicao da Teoria da Argumentao, do quemero exerccio de retrica, como fica, ento, a efetivao da garantia constitucional damotivao das decises judiciais, do livre convencimento motivado, base do Estado deDireito democrtico? E, como fica, afinal, a efetivao do to almejado processo penalconstitucional?

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    1 ESTRUTURA DA MOTIVAO DAS DECISES

    Conhecidas as funes de garantia da motivao das decises (extraprocessuale endoprocessual), cabe analisar a sua estrutura, isto , como deve ser realizada afundamentao de modo a traar um verdadeiro modelo de motivao que seja

    compatvel com a exigncia constitucional.

    Num primeiro momento, interessante se fazer algumas distines. Motivaono pode ser confundida com motivo, embora muitas vezes a prpria lei faa talconfuso. bem verdade que tais expresses contam com inmeros significados nalinguagem comum e na linguagem jurdica. Entretanto, para efeitos desta anlise,motivo (ou fundamento) todo elemento de carter objetivo (de fato ou de direito)capaz de ser considerado pelo magistrado na formao de suas decises. Por outrolado,fundamentao (ou motivao) a expresso ou explicitao dos motivos de

    um negcio jurdico ou de um provimento.4 Tambm no se deve confundir decisoe motivao.5 A deciso, em sntese, consiste na primeira etapa do raciocnio judicial,em que se escolhe (com base em elementos jurdicos de fato e de direito , mastambm em elementos extrajurdicos morais, polticos e ideolgicos etc.) uma sadapara o caso, entendendo ser ela a melhor. J a motivao configura-se como umasegunda etapa do raciocnio judicial, na qual se procura legitimar, validar, a escolhafeita anteriormente (referem-se, assim, ao contexto de descoberta e contexto de

    justificao, respectivamente, conforme apresentado, por exemplo, por MANUELATIENZA).6

    A motivao, ento, est relacionada com a justificao da deciso: ela umdiscurso justificativo da deciso judicial. Ela no s compreende a indicao dos motivosque levaram a tal deciso, mas tambm, e sobretudo, a explicitao das razes que

    4 GOMES FILHO, Antnio Magalhes. A motivao das decises penais. So Paulo: Revista dosTribunais, 2001, p. 110.

    5 Il problema del contenuto della dichiarazione decisoria si riferisce alla distinzione tra deliberazionee ragionamento ossia, secondo il linguaggio consueto, tra disposizione e motivazione (...) Che ildecidente debba ragionare prima di deliberare un conto; che debba comunicare il ragionamentooltre la deliberazione un altro; tuttavia, di regola, opportuno che comunichi anche il suoragionamento, perch, in prima linea, ci lo obbliga a ragionare; invero, sia pure violando le regoledella prudenza e della legge, egli potrebbe decidere anche senza ragionare; tale possibilit gli toltase deve comunicare come ha ragionato. CARNELUTTI, Francesco. Principi del processo penale.

    Napoli: Morano, 1960, p. 256. Trad. da autora:o problema do contedo da declarao decisria serefere distino entre deliberao e raciocnio, ou seja, segundo a linguagem comum, entre disposioe motivao (...) Que o julgador deve raciocinar antes de deliberar uma coisa; que deve comunicar oraciocnio depois de deliberar outra coisa; todavia, de regra, bom que comunique tambm o seu

    raciocnio, porque isto o obriga a raciocinar; em verdade, seja apenas violando as regras de prudnciae da lei, ele poderia decidir at sem raciocinar; tal possibilidade lhe tolhida se deve comunicar comoraciocinou.

    6 Para maiores detalhes, ver ATIENZA, Manuel.As razes do direito: teorias da argumentao jurdica.So Paulo: Landy, 2000, p. 50 e ss.

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    justificam a escolha realizada. A motivao, enquanto justificao, presta-se ademonstrar a justia e a racionalidade da deciso.

    Nesta perspectiva, pode-se afirmar que h diferentes modelos de racionalidadeque podem ser utilizados para justificar uma deciso, dependendo do sistema jurdico-

    poltico em que se desenvolve a atividade jurisdicional. Trs so os modelos maisconhecidos: o dedutivo, o indutivo e o retrico.7

    O modelo dedutivo, como se sabe, de longe o mais difundido. Ele se baseia naaplicao do chamado silogismo judicial. Originado da postura iluminista de que o juiz apenas a boca que pronuncia as palavras da lei, o silogismo parece ser a forma maisperfeita de se demonstrar logicamente a deduo da deciso a partir das premissas, vezque constitui verdadeira garantia contra o arbtrio do juiz.

    Assim como na lgica formal, o silogismo judicial conta com uma premissa

    maior, uma premissa menor e uma sntese. A premissa maior representada pela normaa ser aplicada no caso concreto. A premissa menor, pelos fatos apurados atravs daprova produzida no processo. A sntese a deciso do caso. Entretanto, os prpriosidealizadores desse modelo admitiram ser demasiado simples para dar conta de todo oprocedimento decisrio. Isso porque o julgamento, em verdade, realiza-se por viasdistintas desta da lgica formal, a comear pela escolha das premissas.

    Ento, pode-se dizer que a argumentao judicial est muito mais voltada acomprovar o acerto da escolha das premissas do que extrair delas uma concluso lgica.

    Neste passo, embora no se possa desprezar o valor de garantia em princpio atribudoa esse modelo, concebido em um momento histrico caracterizado pela preocupaode subordinar a atividade judiciria vontade popular expressa nos textos legais, naverdade a sua funo basicamente ideolgica, voltada a transmitir uma imagem de

    juiz neutro e s submetido lei, com o que se ocultam, sob uma aparente lgica formal,as reais motivaes subjacentes s diversas escolhas valorativas realizadas no curso doprocedimento decisrio.8

    Exatamente no lado oposto do modelo dedutivo, encontra-se o modelo indutivo.Neste caso, como tambm no modelo retrico, que se ver adiante, o que se defende

    propriamente a negao do valor do silogismo como modelo de racionalidade decisria.O modelo indutivo procura destacar a importncia da considerao particular de cadacaso concreto, cuja anlise levar ao estabelecimento de uma norma geral, isto , anorma que ser aplicada ao caso no aquela j disposta previamente pelo legislador,seno que a adequadamente estabelecida pelo prprio julgador a partir daquele casoexaminado. A vontade do legislador, destarte, substituda pela criatividade domagistrado.

    Segundo ressalta ANTNIO MAGALHES GOMES FILHO, esse modelo

    encontrou guarida na Europa continental com a doutrina da libre recherche scientifique,

    7 Esta sistematizao dos modelos foi retirada dos ensinamentos de ANTNIO MAGALHES GOMESFILHO, de acordo com o exposto na obraA motivao das decises penais.

    8 GOMES FILHO, Antnio Magalhes.A motivao..., p. 119.

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    de FRANOIS GENY, no final do sculo XIX e tambm no common law, levandoPOUND a conceber a atividade judicial como uma forma de social engineering.Recentemente, para o professor paulista, a expresso maior da utilizao do modeloindutivo o Direito Alternativo, cujos representantes defendem, segundo alega, ainverso da relao entre norma e fato instituda pela subsuno.9

    Por fim, o terceiro e ltimo modelo o retrico. Aqui tambm h a negao dosilogismo como modelo de racionalidade da deciso, na medida em que o que realmenteimporta no o esquema lgico seguido pelo juiz, mas sim a justificao da opo feitapor ele. Verifica-se tambm que no tem lugar neste modelo a inferncia indutiva. Oque vai importar, como referido, que em qualquer situao, em qualquer hiptese, asescolhas realizadas devem, necessariamente, estar justificadas, uma vez que s destaforma ser possvel o controle da atividade decisria. Da o papel essencialdesempenhado pela retrica entendida antes como tcnica de argumentao racional

    do que como mera tcnica de manipulao no discurso judicial. Atravs da retrica,o juiz convence no de qualquer maneira, mas sim justifica sua deciso por meio deargumentos racionalmente vlidos e controlveis.

    MICHEL MIAILLE, ao analisar a lgica jurdica dentro do sistema do direito(a dos prticos), admite que, em verdade, no se trata efetivamente de um raciocnio

    jurdico, mas de argumentao: no sentido restrito da palavra, no h raciocnio jurdico:h argumentao. Que quer isto dizer? Os juristas apoiam-se no em provasdemonstrativas, no sentido cientfico do termo, mas em argumentos mais ou menosconvincentes. Ora, como j acima mostrei, os argumentos dependem no seu valor, e,portanto, na sua eficcia, da sua situao de momento, do lugar, muito mais que da suadefinio abstracta. Os princpios invocados, as noes utilizadas, as teorias propostasno tm por si mesmo fora suficiente: tudo depende do contexto. Torna-seabsolutamente claro que, se dado argumento no foi seguido em dado momento e selhe preferiu a um outro, isso no ocorreu em conseqncia de um erro metodolgico amaior parte das vezes, e em particular em conseqncia de uma incorreo na lgica doraciocnio, mas produto de uma poca. Reconduzida a propores mais correctas algica jurdica como argumentao revela ser a traduo de projectos, de interesses,de prticas contraditrias. Neste sentido, no poderia ser comparada com a doscientistas.10

    Este sim o modelo, parece, que deve prevalecer. o modelo que maiscorresponde realidade atual da atividade judicial. Ele sugere esquemas lgicos de

    justificao distintos e muito mais completos, conforme as particularidades doprocedimento decisrio e das suas diferentes fases. Segundo aduz JOO MAURCIOADEODATO, todo o desenvolvimento histrico e ideolgico do direito marcadopela mentalidade silogstica, como a maneira de pensar e aplicar o direito que parecemais adequada ao direito dogmtico, que decide sempre fazendo referncia a uma norma

    9 GOMES FILHO, Antnio Magalhes.A motivao..., p. 121-122.

    10 MIAILLE, Michel.Introduo crtica ao direito. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1989, p. 196.

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    fixada anteriormente de acordo com as regras auto-referentes do prprio sistema.Todavia, a adoo do silogismo demonstrativo equivocada. Mais correta se apresentaa adoo do silogismo retrico, pois a estrutura argumentativa expressa pela teoria doentimema11 parece assim mais apta a compreender o direito contemporneo, revelando,por exemplo, que pilares cientficos como a unidade do ordenamento jurdico, a

    neutralidade do juiz ou a objetividade da lei constituem, no fundo, meras estratgiasdiscursivas.12

    2 A MOTIVAO: INSTRUMENTO RETRICO DE CONVENCIMENTOE PERSUASO

    Ao se falar, outrora, da motivao e da argumentao, fez-se referncia correspondncia inafastvel entre estes dois elementos. De fato, h que se admitir quea fundamentao das decises no se resume apenas ao silogismo retrico, pois no sepode negar que existem momentos em que o julgador vai sim se utilizar de raciocnioslgico dedutivos e indutivos, de comparaes, enfim, de outras formas de raciocnio.Entretanto, tampouco se pode negar que a racionalidade que prevalece no momento dafundamentao da deciso a argumentativa, tanto quanto aos fatos, como no que serefere ao direito.

    Por se tratar de um ambiente argumentativo, comumente se utilizam comosinnimos, como se viu, motivao e justificao. Ora, na esteira dos ensinamentos deCHAM PERELMAN, a justificao s tem lugar no ambiente onde nada evidente;

    pelo contrrio, a justificao sempre se relaciona a um determinado contexto, o qualno inabalvel. Neste passo, afirma com propriedade o professor de Bruxelas: toda

    justificao pressupe a existncia, ou a eventualidade, de uma apreciao desfavorvelreferente ao que a pessoa se empenha em justificar. Por isso, a justificao se relacionaintimamente com a idia de valorizao ou de desvalorizao. No se trata de justificaro que poderia ser objeto de uma condenao ou de uma crtica, o que poderia ser

    julgado, ou seja, uma ao ou um agente. A justificao pode concernir legalidade, moralidade, regularidade (no sentido mais lato), utilidade, oportunidade. No hpor que justificar o que no se deve adequar a normas ou a critrios, ou o que no deve

    realizar certa finalidade; tampouco h por que justificar o que, incontestavelmente, seajusta s normas, aos critrios ou s finalidades considerados. A justificao s dizrespeito ao que a um s tempo discutvel e discutido. Da resulta que o que absolutamente vlido no deve ser submetido a um processo de justificao e,

    11 Etimologicamente, a palavra entimema vem deenthymesthai, que significa considerar, ponderar, refletir.O entimema o que se chama de silogismo retrico. JOO MAURCIO ADEODATO define entimemacomo silogismo retrico por ser formal ou logicamente imperfeito, isto , suas concluses no decorremnecessariamente de suas premissas (ao contrrio do silogismo apodtico), mas pragmaticamente tilse o objetivo persuadir sem as exigncias de rgida coerncia lgica, quando esta no possvel oudesejvel. ADEODATO, Joo Maurcio. O silogismo retrico (entimema) na argumentao judicial.

    Anurio dos Cursos de Ps-Graduao em Direito, Recife, n. 9, 1998, p. 139.

    12 ADEODATO, Joo Maurcio. O silogismo retrico (entimema)..., p. 154.

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    inversamente, o que se tende a justificar no pode ser considerado incondicional eabsolutamente vlido.13

    Alm disso, vale ressaltar que a justificao, na prtica, s encontra razo de serexatamente quando se est a tratar de uma deciso, de uma ao, de uma escolha, forada experincia e que suprime toda possibilidade de deciso e de escolha. Vale dizer, a

    justificao s tem sentido quando referente a atos passveis de crticas, que tm algumafalha que os tornam inferiores queles que no podem ser criticados (os que se referema valores absolutos, evidncia).

    Freqentemente, ainda, tem-se a idia de que a justificao no refutao deuma crtica, seno que apresenta apenas a apresentao de razes positivas em favor deuma determinada escolha ou deciso. Para CHAM PERELMAN, porm, tal noo equivocada: a justificao consiste quer na refutao de uma determinada crtica, querna indicao de que uma proposio lhe escapa inteiramente.14

    Muitas vezes, no entanto, e aqui est o problema, a argumentao e a retricaso utilizadas em seu sentido mau,15 qual seja, para esconder decises tomadas deforma arbitrria pelos juzes. No raro a motivao , nas palavras de ANTNIOMAGALHES GOMES FILHO, uma racionalizao ex postde uma deciso muitasvezes determinada por razes inconfessveis,16 atitude at mesmo compreensvel vezque o juiz , antes de tudo, um ser humano. Como muito bem ressalta NILO BAIRROSDE BRUM, geralmente, chegado o momento de prolatar a sentena penal, o juiz jdecidiu se condenar ou absolver o ru. Chegou a essa deciso (ou tendncia a decidir)por vrios motivos, nem sempre lgicos ou derivados da lei. Muitas vezes, a tendncia

    de condenar est fortemente influenciada pela extenso da folha de antecedentes doru ou, ainda, pela repugnncia que determinado delito (em si) provoca no esprito do

    juiz. Por outro lado, o fiel da balana pode ter pendido para a absolvio em razo dagrande prole do ru ou em virtude do fato de estar ele perfeitamente integrado nacomunidade ou, ainda, pelo fato de que o delito cometido nenhuma repugnncia causaao juiz, o que o faz visualizar tal figura penal como excrescncia legislativa ou umanacronismo jurdico. Sabe o julgador, entretanto, que essas motivaes no seriamaceitas pela comunidade jurdica sem uma roupagem racional e tecnicamente legtima.Se declarar francamente que condena o ru em razo de seus pssimos antecedentes ou

    que o absolve porque trabalhador e tem muitos filhos, sua sentena fatalmente serreformada por falta de base jurdica.17

    13 PERELMAN, Cham.Retricas. Trad. Maria Ermantina Galvo. So Paulo: Martins Fontes, 1999, p.169.

    14 PERELMAN, Cham. tica e direito. Trad. Maria Ermantina Galvo. So Paulo: Martins Fontes,2000, p. 187.

    15 Alis, segundo relata JOO MAURCIO ADEODATO, ARISTTELES entendia como exemplo dem retrica exatamente a retrica judicial, destinada a mover as emoes do espectador e baseada emprovas de fatos, notoriamente frgeis. ADEODATO, Joo Maurcio. O silogismo retrico (entimema)...,p. 140.

    16 GOMES FILHO, Antnio Magalhes.A motivao..., p. 113.

    17 BRUM, Nilo Bairros de.Requisitos retricos..., p. 72-73.

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    O juiz, ento, para escamotear a sua deciso, vai procurar motiv-la atravs damanipulao de seu discurso, que poder ser feita tanto quanto ao direito a ser aplicado,bem assim com relao prova produzida no processo. E para manipular o seu discurso,o julgador no s ter que se utilizar de uma linguagem dirigida ao seu objetivo deconvencer,18 mas tambm organizar quais os argumentos que ir apresentar e de que

    maneira os apresentar ao seu auditrio.Como sabido, a interpretao do direito pode ser forjada de acordo com os

    interesses do magistrado e da comunidade jurdica em geral. LUIZ ALBERTO WARAT,de forma contundente, afirma que, em verdade, as prticas interpretativas do Direitono passam de uma discursividade enganosamente cristalina que escamoteia, em nomeda verdade, da segurana e da justia, a presena subterrnea de uma tecnologia daopresso e de uma microfsica conflitiva de ocultamento que vo configurando asrelaes de poder inscritas no discurso da lei. Mais do que ambguo ou impreciso, odiscurso da lei enigmtico, ele joga, estrategicamente, com os ocultamentos para

    justificar decises, disfarar a partilha do poder social e propagar, dissimuladamente,padres culpabilizantes.19

    Da mesma forma ocorrer com relao prova produzida no processo. Quandoencontrar-se o juiz diante de uma situao de pr-julgamento e a necessidade demotivao, buscar, ento, o julgador outro caminho que pode ser atravs da avaliaoda prova ou por meio da interpretao da norma. Geralmente, pelo menos entre ns, os

    juzes preferem o primeiro caminho, j que a prova produzida longe dos tribunais e apossibilidade de controle mais difcil. Alm do mais, a interpretao do direito penal

    bastante rgida. Aqueles que freqentam as varas criminais sabem que o maior nmerode absolvies, por exemplo, d-se com base no inciso VI do art. 386 do Cdigo deProcesso Penal vigente. Este , realmente, o caminho mais fcil para justificar umaabsolvio discutvel, j que a valorao da prova como vimos encerra operaesmuito subjetivas e dificilmente haver um processo judicial que no contenha, pelomenos, duas verses verossmeis. Na determinao da verdade processual haver quasesempre opes ao livre convencimento do juiz.20

    Ento, assim como a interpretao, a prova tambm pode ser e usada comoargumento. Para NICOLA FRAMARINO DEI MALATESTA, sabe-se como a cultura

    superior e a flexibilidade do engenho de um homem, como o magistrado, habituado contnua ginstica intelectual, tornam possvel, narrando fatos e provas, dar, a uns eoutros, uma natureza e um valor no correspondentes sua realidade.21

    18 A linguagem exerce funo fundamental no discurso jurdico e, por isso, o estudo deste tema deessencial importncia para uma exata compreenso das dimenses do ato jurisdicional. Todavia, aproposta deste trabalho se resume em abordar a Teoria da Argumentao apenas como o estudo daretrica dos conflitos.

    19 WARAT, Luiz Alberto.Introduo geral ao direito: interpretao da lei temas para uma reformulao.Porto Alegre: SAFE, v. I, 1994, p. 19-20.

    20 BRUM, Nilo Bairros de.Requisitos retricos...,p. 73.

    21 MALATESTA, Nicola Framarino Dei.A lgica das provas em matria criminal. Trad. Paolo Capitanio.2. ed. Campinas: Bookseller, 2001, p. 105.

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    Ademais, h, na atividade judicial de motivao das decises, hipteses em quese verifica a ausncia de motivao e insuficincia de motivao, que no se confundem,no entanto, com motivao concisa. De qualquer forma, todos os vcios de motivaoconfiguram, em ltima anlise, uma falta de justificao. E a justificao, a argumentao,pressupem, de regra, uma atitude positiva do julgador em falar ou escrever as razes

    de seu convencimento. Porm, nestes casos de desobedincia da exigncia de motivar,o que se tem exatamente uma atitude negativa por parte do magistrado, pois silenciaquanto ao seu dever de fundamentar suas decises. Isto, no entanto, no descaracterizao discurso retrico de motivao, pois o silncio, para CHAM PERELMAN, nopassa de uma forma de acordo referente s premissas e para BOAVENTURA DESOUSA SANTOS muitas vezes mais expressivo do que a prpria fala.22

    Na verdade, em um sistema processual baseado no livre convencimento seno em todos os sistemas processuais , praticamente impossvel (se no impossvel)

    se demonstrar quais as razes que levaram o juiz a decidir de determinada forma.Especialmente no que diz ao exame do material probatrio, uma vez que os cdigosso lacnicos, a doutrina extremamente flexvel e a jurisprudncia muitas vezes deixama desejar. A partir disso, os juzes tm a possibilidade real de manipular os fatos segundoseus interesses, suas opinies pessoais, sua ideologia, ainda que de forma inconsciente.Aqui tambm h a prevalncia dos juzos de valor sobre os juzos descritivos.23 Porisso que se tem a exigncia da motivao como importante garantia para as partes, namedida em que tende a exigir do magistrado a formao de um convencimento baseadoem razes confessveis, constituindo-se como um verdadeiro meio de presso sobre a

    conscincia do juiz.24

    A partir de todas essas consideraes, resta evidente a relao sempre presente entre a motivao das decises e a argumentao, ainda que tal relao venha quasesempre dotada, infelizmente, de uma conotao negativa. De fato, o juiz, atravs damotivao, procura legitimar a sua deciso e por isso argumenta. E tanto a referidamotivao pode ser verificada como instrumento retrico de convencimento e persuaso,que NILO BAIRROS DE BRUM, de forma nica, estabelece quatro requisitos retricosda sentena penal (alm dos requisitos formais exigidos pela lei processual penal, emseu art. 381): 1. verossimilhana ftica atravs do qual o juiz procura convencer queelegeu a melhor prova para formar o seu convencimento, inclusive desqualificando asprovas que do respaldo a verses diversas daquela por ele escolhida; 2. efeito delegalidade o juiz deve convencer de que a soluo do caso encontra-se amparada noordenamento jurdico; 3. adequao axiolgica ou seja, o juiz deve demonstrar que

    22 Para maiores detalhes sobre o silncio no direito, ver: PERELMAN, Cham; OLBRECHTS-TYTECA,Lucie. Trait de largumentation: la nouvelle rhtorique. Paris: Presses Universitaires de France, v. I,

    1958, p. 145-146 [Traduo brasileira:Tratado da argumentao: nova retrica. Trad. Maria ErmantinaGalvo. So Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 122-123] e SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso eo poder: ensaio sobre a sociologia da retrica jurdica. Porto Alegre: SAFE, 1988, p. 37 e ss.

    23 BRUM, Nilo Bairros de.Requisitos retricos..., p. 70-71.

    24 GOMES FILHO, Antnio Magalhes.A motivao..., p. 113.

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    os valores da comunidade esto adequados lei ou que a lei est devidamente adequadaaos valores da sociedade; 4. neutralidade judicial o magistrado deve sustentar umaimagem de neutralidade (que no existe, certamente) como meio de preservar, em sntese,a segurana jurdica.25

    3 A MOTIVAO E O ALCANCE DAS DECISES: O JUIZ PENAL E SEUAUDITRIO

    A este ponto, admitindo-se, ento, que a atividade de motivao da deciso denatureza justificativa, isto , argumentativa, a partir de um exame da Teoria daArgumentao de CHAM PERELMAN, supe-se que tal motivao sernecessariamente dirigida a um auditrio, que dever a ela aderir quanto maior for afora dos argumentos por ela apresentados. Aqui tambm o juiz dever escolher os

    argumentos a serem utilizados, decidir em que ordem e de que forma ir apresent-los,enfim, dever organizar racionalmente a maneira com a qual pretende convencer (oupersuadir) o seu auditrio h que existir o contato entre os espritos.

    Sabe-se que CHAM PERELMAN, pela Nova Retrica, defende a existncia,na verdade, de quatro tipos de auditrio: o auditrio universal, o auditrio particular, oauditrio formado por um nico ouvinte e a deliberao ntima. Tambm segundo oreferido professor o objetivo da argumentao justamente provocar ou aumentar aadeso dos espritos s teses que lhes so apresentadas, o que permite concluir que o

    ponto de partida assim como o desenvolvimento da argumentao pressupem o acordodo auditrio (por acordo, entenda-se a adeso ou propenso adeso por parte doauditrio ao discurso do orador). Deste modo, a eficcia da argumentao vai serdeterminada a partir da adaptao do orador ao auditrio em ltima anlise, quantomais se conhece os destinatrios do discurso, maior a probabilidade da adeso.

    E na argumentao jurdica, especialmente a realizada pelos juzes ao justificaremas suas decises? Desde um ponto de vista perelmaniano, a eficcia da argumentao,no caso, da motivao, depende diretamente do conhecimento, pelo magistrado, de seu

    auditrio. E quem esse auditrio? Trata-se de um auditrio universal, de um auditrioparticular, de um auditrio de um nico ouvinte ou de uma deliberao ntima?

    MANUEL ATIENZA afirma que CHAM PERELMAN, em seus escritos, nodeixa claro se o conceito de auditrio universal se aplica tambm ao discurso jurdico,seja o do juiz, seja o do legislador. Em alguns momentos parece entender que o discurso

    jurdico destina-se apenas quelas pessoas que instituram o legislador e o magistrado;em outros momentos parece admitir que se destina ao auditrio universal.26

    25 BRUM, Nilo Bairros de.Requisitos retricos..., p. 72-84. Ver tambm: FAYET, Ney.A sentena criminale suas nulidades. 5. ed. Rio de Janeiro: Aide, 1987, p. 30-38.

    26 ATIENZA, Manuel.As razes do direito...,p. 125-126.

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    De fato, parece que a admisso de que o discurso jurdico (e no s do discursojurdico, mas todo tipo de discurso) se dirige ao auditrio universal bastanteproblemtica por vrios motivos.

    Em primeiro lugar, CHAM PERELMAN define o auditrio universal como

    sendo aquele formado por toda a humanidade, ou pelo menos por todos os homensadultos e normais. Desta forma, admitir-se que o discurso jurdico destina-se ao auditriouniversal significa dizer que se destina a toda humanidade, o que absolutamenteimpossvel, pois uma determinada lei dirige-se apenas (e no mximo) a um determinadoterritrio e uma deciso judicial s partes do processo, aos tribunais superiores e comunidade mais prxima. Em que pese o prprio professor de Bruxelas ter admitidoque o auditrio universal uma questo muito mais de direito do que de fato, pareceque nem mesmo assim vivel dizer que o auditrio ao qual se consagra a argumentao

    jurdica seja universal.

    Em segundo lugar, a prpria aceitao da existncia de um auditrio universal complicada para o professor de Bruxelas. Tanto o que em determinado momentoCHAM PERELMAN admite claramente que no existe um auditrio universal, senoque tantos quantos constitudos pelas diferentes culturas existentes, isto , cadacomunidade, cada pessoa, tem sua prpria concepo de auditrio universal.

    Em terceiro lugar, e aqui est o maior problema, encontra-se o fato de que anoo de auditrio universal est ligada ao imperativo categrico de IMMANUELKANT, ao defender que o juiz dever, atravs de seu discurso, obter a adeso universal,

    utilizando-se de princpios vlidos para todos os homens. Este o principal elementocriticado na teoria de CHAM PERELMAN em suma, a equiparao do auditriouniversal ao consenso de JRGEN HABERMAS. Assim, os argumentos utilizadosperante o referido auditrio teriam maior valor frente aos utilizados perante um auditrioparticular at ser atingido um limite mximo, qual seja, o acordo do auditrio universal,baseado no senso comum.

    Como o objetivo da argumentao jurdica no somente o acordo sobre alegalidade, mas sobretudo sobre a sua legitimidade, acreditar na adeso universal,equiparada teoria do consenso da verdade,27 significa aceitar que, de fato, na prtica,existem verdades e valores que so aceitos igualmente por toda a humanidade, porcada um dos indivduos que a compem (concordncia potencial de todos), pressupondo,na esteira da teoria habermasiana, a situao ideal de fala, realidade esta, parece,absolutamente impossvel. Nem mesmo dentro de uma nica cultura, de um nico pas,de uma nica famlia, encontram-se pessoas que pensam da mesma forma e possuem amesma escala de valores cada um pensa de uma forma e nada pode mudar isso. Porisso deveras complicado afirmar que existem certos valores mnimos que so aceitospor todos como corretos.

    27 Para uma leitura didtica da teoria do consenso da verdade, ver: ALEXY, Robert.Teoria da argumentaojurdica: a teoria do discurso racional como teoria da justificao jurdica. Trad. Zilda HutchinsonSchild Silva. So Paulo: Landy, 2001, p. 91-117.

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    Da resta clara, segundo alguns autores, a relao da adeso universal com oque CHAM PERELMAN chama de senso comum que, na sua concepo, significa oconjunto de crenas admitidas pela sociedade cujos membros presumem serempartilhadas por todo ser racional.

    Entretanto, parece igualmente possvel afirmar que o conceito que CHAMPERELMAN tem por senso comum relaciona-se muito mais com o conceito daquiloque razovel, isto , aquilo que admissvel em uma comunidade em um dadomomento28 e, portanto, mutvel, do que com o verdadeiro conceito de senso comum,ligado idia de faculdade comum a todos os homens de discernir as verdades evidentes.

    FERNANDO ESTRADA GALLEGO, de forma bastante interessante, explicaque a distino entre senso comum e razovel consiste exatamente em uma questo degrau, de intensidade: enquanto o senso comum dotado de evidncia indiscutvel, fazparte das prprias crenas naturais do homem, originrias, anteriores razo e

    experincia, o razovel no necessariamente tido como certo e verdadeiro, ou seja, apenas um ponto de partida aceito provisoriamente, que precisa ser justificado e no nem imutvel nem incontestvel.29

    No obstante, ainda que CHAM PERELMAN entenda por senso comum apenasaquilo que razovel (o que, por si s, no pacfico entre os estudiosos de sua obra),de qualquer forma a noo de auditrio universal no se sustenta, pois, da mesmamaneira, no se pode aceitar que determinados valores e verdades sejam tidos comorazoveis por toda a humanidade.

    Ademais, segundo MICHELE TARUFFO, os mitos das sociedades homognease estveis e das culturas simples, claras e comum a todos, se em algum tempo tiveramum sentido uma correspondncia realidade, j foram subvertidos pelas transformaespolticas, econmicas, sociais e culturais da poca moderna, especialmente da pocaque agora se costuma chamar ps-moderna. Por muitas razes, est hoje em crise oarqutipo do Estado-nacional, que por muito tempo representou a moldura tradicional(geralmente no-conscientizada) das usuais idias de sociedade e de cultura, e a mltiplafragmentao social e cultural tomou o lugar das velhas imagens totalizantes e coerentesda sociedade e da cultura (...) Alm disso, neste mundo globalizado inevitvel que o

    juiz se veja ao centro de muitos problemas novos e no ponto de encontro de tendnciasdiferentes e conflitantes: cabe por isso s cortes a tarefa de resolver os conflitos entrevalores universais e regras cada vez mais gerais, de um lado, e, de outro, situaes cadavez mais particulares e culturalmente individualizadas. Assim como o juiz no mais(admitindo-se que em algum tempo ele o haja realmente sido) a boca inanimada da lei,teorizada por MONTESQUIEU, nem um passivo aplicador de norma simples mediantededues formais, ele no mais (admitindo-se que em algum tempo ele o haja realmente

    28 PERELMAN, Cham. Le raisonnable et le draisonnable en droit.Archives de philosophie du droit.Paris: Sirey, v. 23, 1978, p. 39.

    29 GALLEGO, Fernando Estrada. Teora de la argumentacin y sentido comn. Revista UIS Humanidades, Bucaramanga, v. 26, n. 2, p. 133-140, julio/diciembre 1997.

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    sido) um passivo usurio de noes metajurdicas fornecidas ready made pelaexperincia coletiva, ou um elementar consumidor de regras e critrios dispostos demodo claro, completo e coerente no depsito constitudo pelo senso comum.30

    De fato, o tradicional conceito de senso comum considerado pela cincia

    moderna, segundo afirma BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS,31

    superficial, ilusrioe falso.32 Por esta razo, defende o que chama de senso comum emancipatrio, isto ,um senso comum discriminatrio (ou desigualmente comum, se preferirmos), construdopara ser apropriado privilegiadamente pelos grupos sociais oprimidos, marginalizadosou excludos e, de facto, alimentado pela prtica emancipatria destes.33

    Destarte, a partir destas consideraes, parece invivel falar-se em auditriouniversal no s para a argumentao jurdica, mas para todo o tipo de argumentao.Por outro lado, h que se reconhecer que a argumentao pressupe sempre a adesode um auditrio e tambm na argumentao jurdica no se pode negar a existncia de

    um auditrio que ser convencido ou persuadido pelo orador (juiz ou legislador).

    Assim, mais especificamente nas hipteses de argumentao judicial, nafundamentao das decises penais, parece correto, ento, reconhecer que ela se destinaa auditrios particulares (por exemplo, a comunidade jurdica e a comunidade local,em cujo seio o crime foi cometido), a um auditrio de um nico ouvinte (o ru, emboraeste no possa interagir, em absoluto, com o julgador) e, por que no, deliberaontima, vez que o prprio juiz deve se convencer da deciso que tomou.

    ANTNIO MAGALHES GOMES FILHO manifesta-se neste sentido aoafirmar que a motivao das decises trata-se de um discurso justificativo que, pornatureza, deve se dirigir a um auditrio: num sistema em que esta realiza apenas umafuno endoprocessual, permitindo to-s um controle de tipo burocrtico sobre as

    30 TARUFFO, Michele. Senso comum, experincia e cincia no raciocnio do juiz. Aula inaugural proferidana Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paran aos 05 de maro de 2001. Trad. CndidoRangel Dinamarco. Curitiba: Edio do IBEJ, 2001, p. 39.

    31 SANTOS, Boaventura de Sousa.A crtica da razo indolente: contra o desperdcio da experincia.So Paulo: Cortez, 2000, p. 107.

    32 Essa feio utpica e libertadora est patente em muitas das caractersticas do conhecimento do sensocomum. Assim, o senso comum faz coincidir causa e inteno; subjaz-lhe uma viso do mundo assentena aco e no princpio da criatividade e da responsabilidade individuais. O senso comum prtico epragmtico; reproduz-se colado s trajectrias e s experincias de vida de um dado grupo social e,nessa correspondncia, inspira confiana e confere segurana. O senso comum transparente e evidente;desconfia da opacidade dos objectivos tecnolgicos e do esoterismo do conhecimento em nome doprincpio da igualdade do acesso ao discurso, competncia cognitiva e competncia lingstica. Osenso comum superficial porque desdenha das estruturas que esto para alm da conscincia, mas,por isso mesmo, exmio em captar a complexidade horizontal das relaes conscientes entre pessoas

    e entre pessoas e coisas. O senso comum indisciplinar e no-metdico; no resulta de uma prticaespecificamente orientada para o produzir; reproduz-se espontaneamente no suceder quotidiano davida. O senso comum privilegia a aco que no produza rupturas significativas no real. O sensocomum retrico e metafrico; no ensina, persuade ou convence. SANTOS, Boaventura de Sousa. Acrtica..., p. 108.

    33 SANTOS, Boaventura de Sousa.A crtica..., p. 109.

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    decises, esse auditrio limitado, formado basicamente pelos juzes das eventuaisimpugnaes; ao contrrio, quando se pensa na motivao como garantia poltica quepossibilita o controle democrtico sobre a atuao judicial o auditrio mais amplo,constitudo potencialmente por todos os membros da comunidade poltica, em nomeda qual a deciso pronunciada. Essa diferena de auditrios no se reflete apenas na

    linguagem ou na tcnica de redao, o chamado estilo da motivao, mas na prpriaestrutura do discurso justificativo, pois enquanto no primeiro caso os fundamentos deordem tcnica certamente tero prevalncia, no segundo ser privilegiada umaargumentao mais preocupada em explicitar os valores comunitrios que presidiramas escolhas adotadas.34

    CONCLUSO: O PROBLEMA DA EFETIVIDADE DA GARANTIACONSTITUCIONAL

    O art. 93 da Constituio da Repblica, em seu caput, dispe que leicomplementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, dispor sobre o Estatuto daMagistratura, observados os seguintes princpios: (...) IX todos os julgamentos dosrgos do Poder Judicirio sero pblicos, e fundamentadas todas as decises, sobpena de nulidade.

    Tecnicamente, ento, a exigncia de motivao das decises verdadeiroprincpio constitucional, e, como tal, por sua prpria natureza, evidencia mais do queum comando genrico estampado em uma norma ou uma norma constitucional. Ele

    expressa opo poltica fundamental, reflete a escolha de valores ticos e sociais comofundantes de uma noo de Estado e de Sociedade. Em verdade, todos os princpiosconstitucionais no expressam somente uma natureza jurdica, mas tambm poltica,ideolgica e social, como, de resto, o Direito e as demais normas de qualquer sistema

    jurdico. Porm, expressam uma natureza poltica, ideolgica e social, normativamentepredominante, cuja eficcia, no plano da prxis jurdica entendida como concretizaodo Direito no sentido mais amplo possvel , alcana, muito alm dos procedimentosestatais (judicialistas, legislativos e administrativos), at a organizao poltica dosmais diversos segmentos sociais, como os movimentos populares, sindicatos e partidos

    polticos, etc..35

    Mais do que isso, encerra o art. 93, IX, verdadeiroprincpio-garantia, que, naconcepo de JOS JOAQUIM GOMES CANOTILHO, trata-se de princpio que tempor objetivo instituir, direta e imediatamente,umagarantia aos cidados. Por contadisso, -lhe atribuda uma densidade de autntica norma jurdica e uma foradeterminante, positiva e negativa.36 E, segundo RUY SAMUEL ESPNDOLA,

    34 GOMES FILHO, Antnio Magalhes.A motivao..., p. 118.

    35 ESPNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princpios constitucionais. So Paulo: Revista dos Tribunais,1999, p. 75-76.

    36 CANOTILHO, J. J. Gomes.Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1997, p. 1041.

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    exemplos desses princpios-garantia, que guardam bastante proximidade com a teoriae dogmtica dos direitos fundamentais, so os princpios de nullum crimem nulla poenasine lege (art. 5, XXXIX), princpio do juiz natural (art. 5, LIII c/c XXXVII), princpioda motivao das decises judiciais (art. 93, IX), entre outros.37 Por isso o hbito dese referir sempre exigncia de motivao como verdadeira garantia constitucional.

    Assim, o dever de fundamentar, enquanto princpio, deve ser imediatamenteaplicado a todo o ordenamento jurdico, bem assim, enquanto garantia, sempre devecomportar uma interpretao extensiva e jamais restritiva, a no ser quando o prpriotexto constitucional prever restries. No caso da exigncia de motivao, ao contrrio,o texto constitucional bastante claro quando diz que todos os julgamentos serofundamentados.

    H que se ressaltar, aqui, que o texto constitucional refere-se a decises, isto ,a atos jurisdicionais que apresentam contedo decisrio, no abrangendo, portanto, os

    despachos de mero expediente, pois, como visto, no h que se falar em justificao seno h deciso. Por isso que se afirma que todas as decises devem ser fundamentadas.

    Na opinio de ROGRIO LAURIA TUCCI, os provimentos jurisdicionais, sejameles finais, sejam interlocutrios, devem ser devidamente fundamentados, representandoa falta de fundamentao afronta garantia da motivao, e, portanto, causa de nulidadeinsanvel.38

    De qualquer forma, ao dizer que sero fundamentadas todas as decises, aConstituio no expressa apenas a extenso do dever de fundamentar; mais do que

    isso, prescreve um nico modelo de deciso judicial a deciso fundamentada , emque a exigncia de motivao deve condicionar o prprio raciocnio decisrio.39

    Porm, e infelizmente, a prtica judiciria demonstra uma realidade bem distinta.Durante este estudo, o que se procurou demonstrar foi a relao entre a argumentao,a retrica e o discurso judicial, desde os seus elementos at os seus resultados. E o que(espera-se) se pde concluir que o discurso judicial sempre manipulado, com vistasa obter presuno de legitimidade e legalidade perante toda a sociedade. Por vezes,raras vezes, essa manipulao destinada ao bem, isto , a argumentao realizadapara justificar uma deciso honesta, justa, de acordo com os parmetros legais e morais.Mas na maioria das vezes, sem dvida, essa manipulao utilizada para forjar, comovisto, decises judiciais no mnimo obscuras e questionveis.

    Esta construo falsa do discurso judicial pode se dar desde uma atitude positiva,de fala, do julgador a interpretao da lei a ser aplicada no caso concreto, o exame daprova colhida no processo (quando colhida), a referncia a fundamentaes anteriores(aliunde ouper relationem) at uma atitude negativa, de silncio, do magistrado

    37 ESPNDOLA, Ruy Samuel. Conceito..., p. 222.

    38 TUCCI, Rogrio Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. So Paulo:Saraiva, 1993, p. 269.

    39 GOMES FILHO, Antnio Magalhes.A motivao..., p. 115.

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    quando deixa, por completo, de apresentar as razes de seu convencimento ou asapresenta de forma insuficiente.

    Em assim sendo, se na maioria das vezes o juiz forma o seu convencimentobaseado em motivos escusos, sejam eles quais forem, e mesmo assim fundamenta a sua

    deciso de tal forma que consiga forjar um convencimento lcito, ento a garantiaconstitucional da motivao das decises no est, em absoluto, sendo respeitada. Ora,a garantia no est a para assegurar apenas a fundamentao formal das decises motivar s para motivar. Pelo contrrio, a proposta exatamente outra. A garantiasurgiu, verdade, com o objetivo nico de controlar a atividade dos magistrados desdeum ponto de vista poltico. Porm, com o passar do tempo, ela evoluiu para ser tambmsignificado de um processo penal (e civil), sobretudo, humano, ligado ideologia deum Estado Democrtico de Direito e tambm ao absoluto respeito s partes e sociedade.

    Vale ressaltar que a exigncia de motivao das decises no pretende evitar

    que o magistrado forme seu convencimento apenas com os elementos dos autos, o que impossvel, principalmente por ser o juiz, antes de tudo, um ser humano. Entretanto,a garantia procura amenizar os possveis arbtrios que podem ocorrer do livreconvencimento, atravs da exigncia de que o juiz demonstre objetivamente as razesque o levaram a decidir de uma determinada forma. Como bem diz ADAUTOSUANNES, claro que o Estado, enquanto julgador, se materializa em seres humanos.E evidente que esses seres humanos tm sua histria, com sua formao pessoal eprofissional sujeita a inmeros fatores, quer de ordem familiar, quer de ordem culturalou mesmo de ordem conjuntural. Justamente por isso, h que se dotar o processo de

    mecanismos que tornem, se no impossvel, pelo menos muito remoto que o juiz tragapara o processo apenas e to-somente seu enfoque pessoal, divorciado dos elementosobjetivos reunidos sob o rtulo de provas.40

    E de tudo isso o que mais espanta a conivncia dos tribunais ao manifestodesrespeito garantia constitucional. Vez ou outra, verdade, cumprem o seu dever eanulam as decises carentes de fundamentao. Outras, porm, firmam jurisprudnciano sentido de que a motivao, em alguns casos, dispensvel, em afronta gritante aoclarssimo mandamento constitucional.

    Como clssico exemplo dessa conduta equivocada, para no dizer absurda, tem-se a desnecessidade de fundamentao das decises que recebem a denncia ou a queixa-crime, mantendo-se a praxe existente antes da Constituio de 1988. Segundo ANTONIOSCARANCE FERNANDES, fundam-se os tribunais, inclusive o Supremo TribunalFederal, ironicamente a Corte Constitucional, entre outros, nos seguintes argumentos:primeiro, no h deciso, mas simples despacho; segundo, ainda que se veja a umadeciso, no tem carga decisria como tm as sentenas condenatrias ou absolutrias;e, por fim, a exigncia constitucional no atinge todas as decises.41

    40 SUANNES, Adauto. Os fundamentos ticos do devido processo penal. So Paulo: Revista dos Tribunais,1999, p. 219.

    41 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 2. ed. So Paulo: Revista dosTribunais, 2000, p. 121.

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    42 GOMES FILHO, Antnio Magalhes.A motivao..., p. 208.

    43 MARQUES, Jos Frederico. O recebimento da denncia. Estudos de direito processual penal. Rio deJaneiro: Forense, 1960, p. 147.

    Como se pode ver, os argumentos utilizados so, no mnimo, inaceitveis. Viu-se que a exigncia da motivao estende-se sim a todas as decises judiciais, semexcees. A polmica maior, no entanto, encontra-se na dvida sobre a natureza do ato

    jurisdicional que recebe a denncia ou a queixa-crime.

    H quem entenda que o provimento jurisdicional de recebimento da acusao mero despacho ou ainda deciso interlocutria simples que, alm de no ter a suafundamentao exigida pela lei processual, irrecorrvel e, inclusive, dispensvel, vezque se admite at mesmo o recebimento implcito da inicial acusatria.

    Tal assertiva, no entanto, no procede. Ao receber a denncia ou a queixa, ojuiz penal analisa (ou deveria analisar) os requisitos da inicial, as condies da ao(justa causa, tipicidade aparente, punibilidade concreta e legitimidade das partes), ascondies de procedibilidade quando exigidas, e, para a doutrina de vanguarda, at aqualificao jurdica do fato imputado, com vistas a evitar futuros prejuzos ao acusado

    (por exemplo, a qualificao jurdica equivocada pode impedir a suspenso condicionaldo processo ou a adoo de procedimento outro que no o correto). No h como negarento que, ao traar tais diretivas a serem observadas pelo magistrado, a lei processualest a determinar um verdadeiro modelo de deciso, em que so estabelecidos ostemas que devem ser objeto de cognio judicial nesse momento procedimental degraves repercusses para o acusado.42 H sim deciso judicial e, como tal, deve serfundamentada, em obedincia ao mandamento constitucional.

    Com efeito, o recebimento arbitrrio da pea acusatria configura verdadeiro

    desrespeito dignidade humana, muitas vezes com conseqncias irreparveis aoindivduo acusado. JOS FREDERICO MARQUES, com absoluta propriedade, afirmaque o processo penal atinge o statusdignitatis do acusado. Em vrios casos, estesacrifcio exigido, como acontece sempre que o ru absolvido, no interesse do bemcomum. Todavia, se nem o fumus boni iuris pode descobrir-se, para alicerar a peaacusatria, seria inquo que o juiz permanecesse impassvel e, como simples autmato,fosse recebendo a denncia ou queixa.43

    O recebimento de uma inicial acusatria grave demais para ser tratado comtanta impropriedade pelos tribunais, em evidente ofensa ao texto constitucional. E,para piorar a situao, de maneira inexplicvel, a praxe judiciria determina que o no-recebimento da denncia ou da queixa seja devidamente fundamentado. Em outraspalavras, gritante, e sem qualquer fundamento, a desigualdade de tratamento entre oEstado e o particular diante de um caso penal.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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  • 8/2/2019 motivao das decisoes judiciais

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