MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA...Hl14 Mudança estrutural da Esfera Pública:...

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ESTUDOS ALEMÃES Série coordenada por EDUARDO PORTELLA, EMMANUEL CARNEIRO LEÃO, e VAMIREH CHACON Ficha catalográfica elaborada pela Equipe de Pesquisa da ORDECC Habermas, Jürgen. Hl14 Mudança estrutural da Esfera Pública: investigações gações quanto a uma categoria da sociedade burguesa / Jürgen Habermas; tradução de Flávio R. Kothe. - Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. 398 p. (Biblioteca Tempo Universitário n° 76: Série Estudos Alemães) Tradução de: "Strukturwandel der õftentlichkeit" 1. Publicidade. 2. Comunicação de massa. 3. Comunicação - aspectos sócio-culturais. I. Título. 11. Série. CDD 659.111 CDU 659.1:008 'j (I 11 JÜRGEN HABERMAS MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA Investigações quanto a '-uma categoria da sociedade burguesa 2 a edição SBD-FFLCH-USP II"glll tempo brasileiro Rio de Janeiro - 2003

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ESTUDOS ALEMÃES

Série coordenada porEDUARDO PORTELLA, EMMANUEL CARNEIRO LEÃO,

e VAMIREH CHACON

Ficha catalográfica elaborada pela Equipe dePesquisa da ORDECC

Habermas, Jürgen.Hl14 Mudança estrutural da Esfera Pública: investigações

gações quanto a uma categoria da sociedade burguesa/ Jürgen Habermas; tradução de Flávio R. Kothe. -Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

398 p. (Biblioteca Tempo Universitário n° 76: SérieEstudos Alemães)

Tradução de: "Strukturwandel der õftentlichkeit"

1. Publicidade. 2. Comunicação de massa. 3. Comunicação- aspectos sócio-culturais. I. Título. 11. Série.

CDD 659.111CDU 659.1:008

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(I

11

JÜRGEN HABERMAS

MUDANÇA ESTRUTURALDA

ESFERA PÚBLICA

Investigações quanto a'-uma categoria da

sociedade burguesa

2a edição

SBD-FFLCH-USP

II"glll

tempo brasileiro

Rio de Janeiro - 2003

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por cima das cabeças de um público não-organiZado deorganizações quanto mais estas escapam ao mandamentodemocrático da "publicidade". As mais recentes pesquisassobre eleições mostram "como é vantajoso para um partidonão ter membros, mas apenas ressuscitar em épocas deeleições, com a capacidade centralizada de manobrar que temuma firma de publicidade só existente para um único fim:fazer a campanha publicitária" /81/. Um processo de comu-nicação pública que se desenvolve no seio dos partidos e dasorganizações está, evidentemente, numa relação inversaquanto à eficácia demonstrativa e manipuladora de umapublicidade que procure mobilizar o explosivo potencial acla,mativo de amplas camadas da população e, principalmente,atingir sua parte politicamente mais indiferente.

~ 22 - "Publicidade" pré-iabricaâa e opinião não-pública:o comportamento eleitoral da população

A relação do usuário com o Estado não é, em primeiralinha, a participação política, mas um posicionamento =,né-rico de demanda que espera atendimento sem querer pro-priamente, impor decisões /82/. O contato com o Estadotranscorre essencialmente nos quadres administrativos e desua periferia: ele é apolítico e de uma "indiferença replenade pretensões". Na social-democracia - onde o Estado prc-cipuamente administra, distribui e exerce a prevldêncía -,os interesses "políticos" dos cidadãos subsumidos permanentea atos administrativos se reduzem essencialmente a reivin-dícações ligadas a tal ou qual setor profissional. A sua repre-sentação efetiva precisa ser, por certo, transferida para asgrandes organizações. O que, além disso, fica para a iniciati-va, ao que parece, do próprio voto, é assumido pelos partidose controlado como uma eleição organizada enquanto escrutí-nio. Até que ponto se esfacelou a esfera pública política en-quanto uma esfera de participação contínua na discussão eno pensamento relativos ao poder público mede-se pelo grauem que se torna uma tarefa genuinamente jornalístico-publicitária dos partidos estabelecer inclusive até mesWo

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19o como urna esfera pública. Disputas eleitorais já não~ranscorrern mais no âmbito de uma esfera pública instítu-ionalmente garantida a partir de uma disputa de qualquer

~odo ininter~.pta das opiniões.De um jeíto ou de outro, o arranjo democrático das

eleições parlamentares continua a contar com as ficções libe-rais da esfera pública burguesa. As espectativasde comporta-mento que ainda hoje determinam normativamente o papelcivil do eleitor são um retrato sócio-psicológico daquelasrelações em que um público de pessoas privadas pensantespassou, outrora, a assumir funções críticas e legislativas. Aoleitor se atribui que, com um certo grau de capacitação judi-cativa e de conhecimentos, ele participe interessadamente emdiscussões públicas para, de forma racional e orientado pelointeresse geral, ele ajude a encontrar o certo e o correto comouma escala obrigatória para toda a ação política. Num en-saio sobre Democraiic Theory anã Public Opinion 1

0), Berel-

son enumera os aspectos da "estrutura de personalidade" doeleitor: interest in public aiiair; possession oi iniormation:and knowledge; ot stable political principles or moral stan-dards; ability ot accurate observation; engagement in com-munications and discussion; raiiotuü betuunor; considera-tion. oi community interest ~O) /83/. Os constituintes socio-lógicos da esfera pública politicamente ativa se condensaramaí em caracteres psicológicos. Se, no entanto, a massa dapopulação com direito a voto, mesmo que isto seja mensu-rado tão somente por critérios tão externos quanto o graude seu interesse político, o seu grau de informação, a suainiciativa política e atividade, preenche tão pouco hoje opadrão de comportamento democrático como tem sido com-provado por tantas pesquisas empíricas /84/, então um talpadrão só pode ser entendido sociologicamente no contextoda própria mudança estrutural e funcional da esfera pública.

~:) Teoria Democrática e Opinião Pública.) Interesses nas questões públicas; posse de informações e co-

nhecimentos; ter princípios políticos estáveis e padrões morais;capacidade de observação acurada: engajamento em comuní-~ações e discussão; comportamento racional; consideração porinteresses comunitários.

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A primeira vista, uma relação longínqua parece ter-semantido entre, por um lado, o público de eleitores nos Esta-dos sociais-democráticos de massas e, por outro lado, o pú-blico das pesosas privadas nos Estados de Direito burguesesdo século XIX. Tinha-se a concepção de que o voto eraapenas o ato conclusivo de uma disputa contínua, feita pu-blicamente, entre argumentos e contra-argumentos; tinhadireito de participar dela todo aquele que de algum modotinha acesso à esfera pública: as pessoas privadas e principal-mente OS chefes de tamlia originários das camadas burguesascitadinas que dispunham de propriedades e nível educacionalmais elevado. Essa composição social do único público que,à época, tinha direito a voto em geral encontra, hoje, umeco na composição daquela parte mais ativa de uma popu-lação com generalizado direito ao voto e que usa do seu di-reito ao voto: homens votam em regra com maior freqüên-cia do que mulheres, casados com maior freqüência doque solteiros, membros dos grupos de status mais ele-vado com maior freqüência do que os membros das camadassociais mais baixas. Nisso vale a pena observar, além disso,que comerciantes, membros da classe média que trabalhamem empresas, votam numa proporção relativamente maior;o fato de que a participação eleitoral é maior nos gruposetários entre 35 e 55 anos de idade faz com que de modogeral se suspeite que haja uma forte influência não só daespécie de atividade profissional (como no caso da estratifi-ceção social das pessoas privadas burguesas), mas fundamen-talmente das ligações profissionais em relação ao trabalhosocial. Também a participação no pensamento público, que,à sua época, era o pressuposto informal para uma participa-ção nas eleições, parece encontrar ainda hoje uma corres-pondência no fato de que membros de associações privadasfazem uso do seu direito de votar num volume bem maiordo que os cidadãos não-organizados /85/. - Tais traços deuma esfera pública liberal conservados no comportamentoeleitoral da população podem ser demonstrados também n?fluxo da comunicação política, que Katze Lazarsfeld exam~-naram. Diferenciando-se de uma difusão basicamente bon-zontal, peculiar a certas camadas sociais, de modas, de báb

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tos de consumo em geral, a corrente de opinião pública correantes verticalmente, dos grupos mais elevados para os emcada caso inferiores - os "opinioti leaders in public aiiaire"costumam ser mais ricos e cultos, dispõem de urna posiçãosocial melhor do que os grupos influenciados por eles /86/.por outro lado, pôde-se observar que .essas camadas medula-res politicamente interessadas, informadas e ativas do própriopúblico são as que menos se inclinam a colocar seriamenteem discussão as suas concepções. Exatamente no caso dosportadores do processo de comunicação em dois níveis, exata-mente íntermedíados por esse opinioti leader é que uma opi-nião, uma vez aceita, se firma até tornar-se com freqüênciauma rigidez habitual /87/. Também as opiniões capazes deserem públicas não crescem sem que haja o fluxo de comu-nicação de um público pensante até se tornarem uma opiniãopública.

Também o fato, já bem documentado, de que aquelesque estão relativamente melhor informados entram em dis-cussão relativamente com maior freqüência tendem a, dequalquer modo, apenas reforçarem mutuamente as suas con-cepções e, em todo caso, influenciar apenas os vacilantes emenos partícípatívos - mostra quão pouco eles contribuempara um processo de opinião pública. Além disso, as discus-sões políticas limitam-se, em geral a ingroups: família,círculo de amigos e vizinhança, que, de qualquer modo ten-dem a gerar um clima homogêneo de opinião. Por outro lado,os eleitores que flutuam de um partido para outro se recru-tam a partir do largo reservatório dos cidadãos menos inte-ressados, menos informados e mais apáticos, à medida queeles não se comportam de modo apenas índírerente, ignoran-do as eleições /88/. Com isso, exatamente aqueles que, emregra, se afastam mais decididamente de uma opinião pú-blica formada à base da discussão de sua predisposição é quetendem a se influenciar em sua concepção - agora, no en-tanto, através da esfera pública dos organizadores de eleições,estatu'd .'1 a de modo demonstrativo ou manípulador.to A. destruição do contexto do público dos eleitores enquan-

um Público revela-se na peculiar imobilidade da maior

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parte do eleitorado. Ao e~eitorado de um ou de outro partidopertencem, por certo, dois grupos muito diferentes. De umlado, está a pequena minoria dos cidadãos que, com um certoacerto, podem ser chamados de "ativos", sejam eles membrosde partidos ou de outras organizações sociais, sejam eles osnão-organizados, mas bem informados e fortemente partici-pantes, na maioria dos casos eleitores muito influentes tam-bém como opinion ieaâers. Por outro lado, confrontando-secom eles, encontram-se uma maioria de cidadãos, por certotambém firme em suas convicções, em relação aos quais, aoque parece, a poeira das controvérsias polticas diárias passasem deixar nenhum sinal. Essa fixação deriva em parte dapercepção _ até certo ponto justificada, mas marcadamenteestereotipada _ de interesses de grupos, em parte de umacamada de obviedades culturais, oriundas de posicionamentose preconceitos profundamente enraigados, intermediando ex-periências historicamente em geral oriundas do passado re-moto e transmitidas através de gerações /89/. Diferentesgrupos etários deixam-se conduzir por grupos específicos degerações, de diferentes religiões e etnias, cujas experiênciassão equivalentes, de tal modo que, nas decisões eleitorais for-malmente iguais, entram materialmente impulsos volitivosbem heterogêneos e, com bastante freqüência, concorrentesentre si, somando-se tanto mais depressa num consenso fic-tício quanto mais seus indubitáveis pressupostos continuamlonge da comunicação pública. - Entre os blocos Imobilí-zados estão ou oscilam grupos de eleitores indecisos, que secompõem, de acordo com uma classificação de Janowitz, emparte de ajeitadores de compromissos, em parte de neutrali-zados, ambivalentes ou apáticos; conforme a rigidez com quese .formulam os critérios, esse grupo tem uma ordem de gran-deza entre um quarto e quase a metade dos eleitores. A elepertencem 0<; não-eleitores e os assim chamados eleitoresmarginais, que podem ser mobilizados ora para um ?artjd~,ora para o outro, e às vezes nem sequer podem ser mobilI-zados: non-úoiers 1') e changers 2'). A característica doS não-

1") Não-eleitores.2') mutantes, vacilantes.

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eleitores como o grupo relativamente mais mal informado edemocraticamente menos confiável /90/ é válida Com certaseXCeções,também para os representantes do floating vote 3')

/91/: "ituiepetuietit voters tetui to be those who know anâcare the least" .') /92/. De qualquer modo, esses eleitoresmenos qualificados para uma participação no processo daopinião pública são o grupo-alvo dos gerentes eleitorais: cadapartido procura esgotar, tanto quanto possível, o reservatóriodos "indecisos", não através do esclarecimento, mas atravésda adequação à posição de consumidor apolitico, muito di-fundida especialmente nessa camada. - Com razão Janowitzcoloca a questão: "iohether these eiiorts which rely heavilyon massmeâia and other prcmoiional âeoices, do not repre-sent a misuse oi limited resources' 5') /93/. De qualquermodo, a propaganda eleitoral tem efeitos retroativos sobre osdemais grupos de eleitores. Assim, a conexão entre partici-pação eleitoral e uma orientação segundo metas programáti-cas é muito mais fraca do que a que se instaura entre eleitorese a imagem, publicitariamente eficaz, que é apresentada dosprincipais candidatos /94/.

Feita periodicamente com as eleições, a nova encenaçãode uma esfera pública política submete-se à configuração emque se encontra enquanto forma decadente da esfera públicaburguesa. Em primeiro lugar, a cultura integracionista pre-parada e difundida pelos meios de comunicação de massa,embora pretenda ser apolítica, representa ela mesma umaideologia política; os programas dos partidos políticos e qual-quer tomada de posição demonstrativa em geral não poderãoentrar de algum modo com ela em concorrência, mas terãode procurar. um acordo e uma concordância. A decadênciadas ideologias políticas, já diagnosticada há decênios porMannheim, aparenta colocar apenas um lado daquele pro-cesso, em função do qual Raymond Aron fala diretamente do

~')4* Voto flutuante.

) Eleitores independentes tendem a ser aqueles que sabem menosr.. e tem os menores cuidados.) Se esses esforços, que repousam basicamente nos mídias e em

outros recursos promocionais, não representam por acaso ummau-uso de recursos limitados.

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Fin de l'Age Idé'Jlogique )*) /95/; por outro lado, no âmbitoda assim chamada cultura do consumo é que a ideologia seajeita e preenche, ao mesmo tempo, nos níveis mais profun-dos de consciência, a sua antiga função, ou seja, a coerçãoao conformismo com as relações vigentes. Essa falsa cons-ciência não consiste mais, como as ideologias políticas doséculo XIX, num sistema em si coerente de concepções, masnum sistema de modos de comportamento; enquanto um sis-tema de hábitos de consumo fomentados de fora, assume urnaconfiguração prática. O que aí permanece como consciênciaé a reprodução pseudo-realista do existente a seu nível desuperfície: "caso se quisesse resumir numa só frase para ondepropriamente aponta a ideologia da cultura de massas, ter-se-ia de colocá-Ia como paródia da frase "torna-te o que tués": a duplicação e legitimação do status quo, de qualquermodo já existente, retira de circulação toda transcendênciae toda crítica. À medida que o espírito socialmente efetivose limita a pôr ante os olhos dos homens tão somente aquiloque constitui a condição de sua existência, mas ao mesmoproclama essa existência como a sua própria norma, elespassam a ficar amarrados à descrente crença na pura exis-tência" /96/.

A propaganda é a outra função que uma esfera públicadominada por mídias assumiu. Os partidos e as suas orga-nizações auxiliares vêem-se, por isso, obrigados a influenciaras decisões eleitorais de modo publicitário, de um modo bemanálogo à pres.são dos comerciais sobre as decisões de com-pra /97/:. surge o negócio do marketing político. Os agita-dores partidários e os propagandistas ao velho estilo dãolugar a especialistas em publicidade, neutros em matéria depolítica partidária e que são contratados para vender poU-tica apoliticamente. Essa tendência, embora já se desenhehá mais tempo, só se impôs depois da TI Guerra Mundial,paralelamente ao desenvolvimento científico das técnicasempíricas de pesquisa de mercado e de opinião. As resistên-cias, que, em alguns partidos, só foram quebradas após

1·) Término da Idade Ideológica.

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diversas de:rot~s eleitorais /98/, revelam que os regentesleitorais nao so tomam conhecimento da redução da autên-

~ica esfera pública política, mas eles mesmos precisam fazerisSOcom plena consciência. A esfera pública política tempo-rariamente estabelecída reproduz, só que para outras finali-dades, a esfera na qual vige a lei da referida cultura deintegração; também o setor político passa a ser integradosócio-psicologicamente ao setor do consumo.

Destinatário de uma tal esfera pública é o tipo do consu-midor político, ao qual Riesman deu o nome de "o novoindiferente": "ele não é mais nenhum eleitor independente ...ele não reconhece mais nenhuma conexão entre as suas opi-niões políticas e a sua função política. Suas opiniões servem-lhe, daí, como meios de pagamento sem dinheiro vivo, em seupapel como membro integrante de uma comunidade de con-sumidores das notícias políticas diárias. A sua tolerância fren-te às opiniões de outros não deriva apenas de uma disposiçãode caráter, mas também do fato de que ele pode vê-Ias como"meras" opiniões, que talvez sejam divertidas ou interessan-te.s, mas que não têm mais o peso de uma dedicação parcialou até mesmo completa a uma ação política" /99/.

A desintegração do eleitorado enquanto público toma-senítida no fato de que o rádio e o jornalismo, "mantidos damaneira habitual" /100/, praticamente ficam sem conseqüên-cias; no âmbito da esfera pública estabelecida, os meios decomunicação de massa surgem apenas como transmissores depropagandas. Os partidos voltam-se de modo imediato parao "povo", de fato para aquela minoria cujo estágio de cons-ciência os demóscopos equacionaram num vocabulário médiode 500 vocábulos /101/. Junto com a imprensa, também osegundo instrumento clás.sico de formação de opinião perdeo seu significado: a reunião do partido. Entrementes sabe-seque ela, "manipulada do modo habitual", pode servir em todocaso para emitir palavras de ordem a um pequeno séquitode adeptos, fiéis a qualquer preço. As próprias assembléiasservem basicamente só como manifestações publicitárias, nasqUais os presentes se é Que isso chega a importar, podemser Coadjuvantes, figurantes gratuitos, para as tranmissõesde televisão.

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Ao invés de uma opinião pública, o que se configura naesfera pública manipulada é uma atmosfera pronta para aaclamação, é um clima de opinião. Manipulativo é sobretudoo cálculo sócio-psicológico de ofertas endereçadas a tendên-cias inconscientes e que provocam reações previsíveis, sem,por outro lado, poder de algum modo obrigar aqueles que,8ssim, se asseguram a concordância plebiscitária: apoiando-!Seem "parâmetros psicológicos" cuidadosamente elabOradose em apelos experimentalmente comprovados, quer-se que,quanto melhor eles devam atuar como símbolos da identifica-rão. tanto mais eles percam a sua correlação com princípiospolíticos programáticos ou até mesmo argumentos objetivos.O seu sentido se esgota no resgate daquela espécie de popu-laridade "que substitui na sociedade de massas, hoje, a liga-C;ãoimediata do indivíduo com a política" /102/. Por isso,desempenha um papel central a maneira do líder se apresen-tar ou a sua indumentária: também isso precisa de umaapresentaçã;:; e de um empacotamento adequados ao merca-do. Para um governo, o índice de popularidade é um padrãopara saber até que ponte ele tem sob o seu controle a opiniãonão-pública da população ou até que ponto precisa fazer comque a roupagem do chef'âo se traduza adicionalnlente empopularidade através da publiddade. Enquanto tal, a popula-ridade não é idêntica à publicidade, mas, a longo prazo, nãoé possível mantê-Ia sem esta: a Cl,ncordância que ela designaé uma variável dependente da esfera pública tempora-riamente estabelecida, embora de nenhum modo depen-dente apenas desta. Não sem razão é que os partidos desituação, para se afirmarem na disputa eleitoral, tratamde arranjar pretextos objetivos: out-doors para fins de publi-cidade sob a forma de concessões legítimas a expectativas dapopulação _ por exemplo, baixando os impostos de consumosobre meios de diversão de massa, uma medida publicitaria-mente com muito retorno. Ainda que manipulados, para pe-!letrar, os motivos dos eleitores, cientificamente analisadOS,necessitam às vezes, como ponto de cristalização da publici-dade pretendida, também medidas que atendam a necessida-des reais. Nessa medida, a própria manipulação tem, porassim dizer, os seus limites naturais mesmo para a mais ín-

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ventiva gerência eleitoral. Daí não se deveria tirar logo aconclusão contrária, de que "quanto melhor são conhecidosOS motivos dos eleitores, tanto mais eficazmente o "governo"será "manipulado" pelo "povo" /103/.

Certamente uma "exploração" publicitária dos motivosdados também ecoa neles; nisso, conforme as circunstâncias,pode ser necessário arranjar pretextos publicitários em formade obrigações que atendam a reais necessidades dos eleitores.Quanto mais estreitos os limites "naturais" da manipulação,tanto mais forte a coerção de não só usar motivos cientifica-mente analisados, mas também satísfazê-los. Não se podeainda dizer algo unívoco e claro sobre isso. Mesmo que, noentanto, suponhamos hipoteticamente o caso de que, sendomuito estreitos os limites deixados à manipulação, o processode aclamação no âmbito da esfera pública periodicamentemontada garantiria grandemente uma disposição de seguiro governo por parte da opinião não-pública /104/, mesmoentão não estariam preenchidas as condições da formaçãodemocrática da opinião e da vontade. As ofertas feitas parafins psicológicos promocíonaís, por mais adequados que elastambém possam ser objetivamente, não são então ínterme-diados pela vontade e pela consciência (mas pelo subcons-ciente) dos sujeitos. Esta espécie de formação da vontadesubmeter-se-ia antes ao absolutismo esclarecido de um regi-me autoritário estruturado como Estado-social do que a umEstado social-democrático de Direito: tudo para o povo, nãopelo povo - não por acaso uma frase do prussiano Frede-

. rico lI. A rigor, através desse procedimento não se garantiriasequer o "bem-estar". Pois a uma opinião não-pública indire-tamente determinada faltaria, além do marco da autonomia,o da racionalidade enquanto tal. Por melhor que sejam inter-mediados os motivos às camadas mais amplas, satísfazê-losnão oferece ainda nenhuma garantia de que correspondamaos interesses objetivos delas. De acordo com a sua própriaidéia, a "publicidade" era um princípio da democracia não sóPorque nela, em princípio, cada um tinha o direito de apre-~entar com igual chance as suas preferências, os seus dese-Jos e as suas concepções pesosais - opinions; ela só podia ser

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concretizada à medida que essas opiniões pessoais podiamevoluir para uma opinião pública no raciocínio de um público_ tornando-se opinioti publique. A garantia de acesso a todosera entendida apenas como o pressuposto da garantia daveracidade de réplicas e tréplicas de qualquer modo sujeitasàs leis da lógica.

A relação entre uma esfera pública estabelecida e umaopinião não-pública pode ser Ilustrada no exemplo de algu,mas medidas que influeciaram a reeleição dos partidos situa.cionistas nas eleições para o congresso nacional (Bundes,tag) em 1957, na Alemanha Federal. (Nós nos fixamos nesteexemplo de uma utilização manipulativa de dados empíricosde uma pesquisa de campo através de um determinado par.tido por causa da documentação confiável, que falta quandose consideram os outros partidos /105/.) A grosso modo,quatro foram as medidas determinantes para o trabalho naesfera pública do partido mais exitoso na luta eleitoral. So-bretudo devido à avançada idade do líder do partido, nadisputa eleitoral para o Bundestag de 1953 era preciso modi-ficar a imagem dele, reestílizá-la, para se contrapor aos te-mores decorrentes da idade: ele foi apresentado bem no meio"de sua equipe". Depois, a propaganda se concentrou prepon-derantemente em sentimentos de medo e em necessidades desegurança à medida que, por um lado, o adversário foi efeti-vamente associado com o perigo bolchevique e, por outro lado,o partido que se encontrava de posse do aparelho do Estado- e por isso identificado ao máximo com o Estado - foiapresentado como a única garantia confíável para a segu-rança tanto militar quanto social: nenhum experimentalis-mo, tenhas o que tens, etc. Em terceiro lugar, o governo,para se contrapor ao temor ante aumentos de preços, algomuito desfavorável em termos político-eleitorais, fez, porassim dizer, um acordo secreto e tácito com a indústria, se-gundo o qual os empresários deixavam os aumentos de preçospara depois da data das eleições. Além disso, uma série defirmas garantiram a estabilidade do preço de mercado par8.seus artigos através de anúncios nos jornais; isto havia si~Oprecedido por uma campanha publicitária de uma coligaçãOde firmas individuais. Por fim, como medida mais efetiV'8.,256

foi feita a reforma no sistema de aposentadoria: a partir de:maio de 1957, cerca de 6 milhões de aposentados passaram areceber pensões e pagamentos retroativos mais elevados; na-turalmente, o efeito material e psicológico disso não ficourestrito à aposentadoria. Todas as quatro medidas foram pre-via:mente testadas com mil cuidados e traduzidas publíclta-riamente com calculadas técnicas de propaganda (a ondabranda) e também avaliadas (bem-estar para todos). As me-didas estratégicas índividuais não foram controladas em rela-ção ao êxito, ao grau de aclamação alcançado: é difícil avaliaro peso específico de cada uma e delas entre si. Mais clara.mente do que de acordo com o seu efeito propagandístico,elas devem ser ínterpretadas de acordo com o seu conteúdopolítico: a única obrigação permanente em que os partidosdo governo entraram (antes da disputa eleitoral) foi a con-cordância com a reforma da aposentadorià. Na formação dalei, também o partido oposicionista teve participação, mas(porque o Bundestag é identificado por muitos eleitores como próprio governo federal) isso foi mais explorado pelos par.tidos situacionistas como um pretexto publicitário efetivadona hora certa.

Portanto, por um lado, mesmo esse método de formaçãoda vontade política esconde em si uma espécie de pressão daopinião não-pública sobre o governo, atendendo a reais neces-sidades da população e evitando, assim, uma arriscada perdade popularidade; por outro lado, esse método impede a for.mação de uma opinião pública strictu sensu. Ou seja, à me-dida que importantes decisões políticas, sem que atravésdisso se influa em suas conseqüências fátic as , são tomadaspara fins manipulativos e passam a ser introduzi das comopretextos publicitários eficazes na esfera pública estabelecidaP~ra fins de demonstração, elas ficam fora, enquanto deci-soes POlíticas, tanto de um racícínío público quanto também~a Possibilidade de um voto plebiscitário de desconfiançadendo-se a consciência de alternativas precisamente defini.f as: ou seja, para continuar a ilustrar o exemplo, nem a re-a~nna da aposentadoria foi, durante a sua fase preparatória,lUd _ .

a que tenha sido amplamente tratada na grande ímpren-

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sa elevada sistematicamente a um processo de formação deopinião pública (pesquisas demoscópicas mostraram que amassa da população. não fazia associações corretas com aexpressão "aposentadoria dinâmica"), nem ela depois setornou, enquanto um problema sócio-político central, expres-samente um tema de disputa eleitoral (só os efeitos psícoló-gicoS indiretos é que puderam ser utilizados como base parauma propaganda que estava voltada para os estereótipos sim-plórios da elevação no nível de vida). Também neste caso aesfera pública desenvolvida demonstrativa e manipulativa-mente- que é organizada de modo imediato para aquela forteminoria dos, no caso normal, "indecisos" e que acabam deci-dindo as eleições, servia a um processo de comunicação cal-culado em termos sócio-psicológicos e arranjado em termos detécnica de propaganda entre símbolos estabelecidos e motivosdados. Os votos daí resultantes, mesmo somados, não acabamredundando numa opinião pública, pois nenhuma das duascondições está preenchida: as opiniões informais não se for-mam de modo racional, ou seja, através de um debate cons-ciente com questões eognoscíveís (pelo contrário, os símbolosapresentados publicamente correspondem a processos varia-damente inconscientes, cuja mecânica permanece oculta aoindivíduo), nem elas se formam mediante discussão, ou seja,no pró e contra de uma conversa conduzida publicamente(pelo contrário, as reações, apesar de intermediadas de váriosmodos através das opiniões de grupos, continuam a ser, nessesentido, privadas, já que não estão expostas à correção noâmbito de um público pensante). Deste modo, um público decidadãos, desintegrado enquanto público, é de tal maneiramediatizado por meios publicitários que, por um lado, podeser chamado a legitimar acordos políticos sem que, por outrolado, ele seja capaz de participar de decisões efetivas ou atémesmo de participar.

Também de uma outra perspectiva o exemplo da reformada aposentadoria é esclarecedor: ela pertence ao complexodas já referidas garantias sócio-estatais contra riscos pessoaisde vi~a e que, antigamente, eram deixadas por conta da auto-norma privada. A contradição é evidente: por um lado, cres-

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cem as condições sociais da existência privada, que são man-tidas e asseguradas através do poder público e que, por isso,também deveriam ser esclarecidas no processo de comunica-ção de um público de cidadãos politicamente autônomos,sendo elevadas a temário da opinião pública; por outro lado,essa instância, objetivamente cada vez mais procurada, pode-se colocar tanto menos como uma opinião públiica e raciona-lizar o exercício político e social do poder quanto mais ela écriada tão somente para aclamar a votação abstrata restritaao âmbito de uma esfera pública temporariamente estabele-cida de modo demonstrativo ou manípulatívo.

§ 23 - A esfera pública política no processo da transforma-ção sócio-estatal do Estado liberal de Direito

O característico desacerto entre aquelas funções que aesfera pública política efetivamente hoje exerce e aquelas quelhe são atribuídas na alterada constelação da esfera públicaem relação ao setor privado, conforme necessidades objetivasde uma sociedade democraticamente organizada, torna-sepalpável ali onde a transformação do Estado liberal de Direi-to /106/ para o assim chamado Estado da social-democraciaestá normativamente regulamentada de modo expresso e,com bastante freqüência, até antecipada tanto literalmentequanto no espírito de estatutos constitucionais.

Nas primeiras Constituições modernas, as seções do catá-logo dos Direitos Fundamentais são uma cópia do modeloliberal da esfera pública burguesa: garantem a so~iedadecomo esfera da autonomia privada; contraposta a ela, umpoder público limitado a umas poucas funções; e, ao mesmotempo, entre ambos, o setor das pessoas privadas reunidasnum público que, como cidadãos, intermedíam o Estado comnecessidades da sociedade burguesa, a fim de, conforme aidéia aí subjacente, no meio dessa esfera pública, fazer comque a autoridade política dessa espécie devesse ser mensura-da, parecendo então garantido, caso se partisse do pressupostode uma sociedade com livre intercâmbio de mercadorias (com

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