Mudanças nos cálculos da temperatura média diária do ar...

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Mudanças nos cálculos da temperatura média diária do ar: repercussões nas temperaturas mensais e anuais Marcos José de Oliveira 1* , Francisco Vecchia 1 1 Centro de Recursos Hídricos e Ecologia Aplicada, Departamento de Hidráulica e Saneamento, Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo Caixa Postal 292, São Carlos, SP, Brasil, CEP 13.560-970. * e-mail: [email protected] ABSTRACT: The air mean temperatures obtained by three different methods were compared. The mean temperatures obtained by the maximum and minimum (T M-m ) have less correlation with the true temperatures (T automática ) than those obtained with the mean temperatures obtained with additional readings at 9AM and 21PM, local time (T 9-21-Mm ). Analyzing the average values for five years, the value of T M-m appears closer to the true temperature. On 5-years average, T M-m and T 9-21-Mm are, respectively, 0.17 and 0.54 º C smaller than the T automática . These differences can lead to non-climatic changes in the temperature series, especially when conventional instruments are replaced by automatic instruments. This aspect requires careful attention regarding the occurrence of heterogeneity, which, once identified and removed, could provide a reliable and homogeneous series. Palavras-chave: temperatura do ar, heterogeneidades climáticas, mudanças de observação 1 - INTRODUÇÃO A Organização Meteorológica Mundial (OMM) define a temperatura média diária como a “média da temperatura observada 24 vezes em intervalos de tempo equidistantes ao longo de um intervalo contínuo de 24 horas, ou uma combinação de temperaturas observadas em quantidade de vezes menos numerosas, organizada de modo a diferir o menos possível da média acima definida” (WMO, 2009). A expressão matemática das 24 leituras diárias é: 24 1 2 3 24 1 1 1 24 24 i i T T T T T T ð= ð= ð= ð+ ð+ ðå em que i é a hora do dia (variando de 1 a 24) e T i é o valor da temperatura na hora i. Indo um pouco mais além, a temperatura média diária verdadeira é definida por Trewin (2004) como a integral da temperatura durante 24 horas, dividida pela unidade de tempo utilizado. Em termos matemáticos, segundo Dallamico e Hornsteiner (2006), a temperatura média diária verdadeira (T V ) é dada pela seguinte equação: 24h 1 d 24h V T Tt ð= ðò onde T é a temperatura e 24h indica o tempo total de um dia. Esta é melhor aproximação estatística de uma média, baseada na integração das observações contínuas durante um dia. Entretanto, não é possível definir com precisão a curva da temperatura por meio de observações em intervalos finitos de tempo. A utilização de sistemas automáticos de medição permite que sejam efetuadas medições em intervalos muito pequenos, que muito se aproxima da curva exata da variação da temperatura, mas esses sistemas são relativamente recentes e não é de uso universal. Logo, a aproximação do valor da temperatura média diária ainda é embasada em observações em horários específicos ou nos valores máximos e mínimos diários. A OMM (WMO, 2009) estabelece que metodologia para o cálculo da temperatura média diária é tomar a média das temperaturas máximas e mínimas. Mesmo que esse método não seja a melhor aproximação estatística, a sua utilização consistente satisfaz os efeitos comparativos das normais. Diferentes fórmulas têm sido utilizadas ao longo do tempo, havendo alta diversidade

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Mudanças nos cálculos da temperatura média diária do ar:repercussões nas temperaturas mensais e anuais

Marcos José de Oliveira1*, Francisco Vecchia1

1 Centro de Recursos Hídricos e Ecologia Aplicada, Departamento de Hidráulica eSaneamento, Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo – Caixa Postal

292, São Carlos, SP, Brasil, CEP 13.560-970. *e-mail: [email protected]

ABSTRACT: The air mean temperatures obtained by three different methods were compared. Themean temperatures obtained by the maximum and minimum (TM-m) have less correlation with the truetemperatures (Tautomática) than those obtained with the mean temperatures obtained with additionalreadings at 9AM and 21PM, local time (T9-21-Mm). Analyzing the average values for five years, thevalue of TM-m appears closer to the true temperature. On 5-years average, TM-m and T9-21-Mm are,respectively, 0.17 and 0.54 º C smaller than the Tautomática. These differences can lead to non-climaticchanges in the temperature series, especially when conventional instruments are replaced by automaticinstruments. This aspect requires careful attention regarding the occurrence of heterogeneity, which,once identified and removed, could provide a reliable and homogeneous series.

Palavras-chave: temperatura do ar, heterogeneidades climáticas, mudanças de observação

1 - INTRODUÇÃOA Organização Meteorológica Mundial (OMM) define a temperatura média diária

como a “média da temperatura observada 24 vezes em intervalos de tempo equidistantes aolongo de um intervalo contínuo de 24 horas, ou uma combinação de temperaturas observadasem quantidade de vezes menos numerosas, organizada de modo a diferir o menos possível damédia acima definida” (WMO, 2009). A expressão matemática das 24 leituras diárias é:

24

1 2 3 241

1 1

24 24ii

T T T T T T

em que i é a hora do dia (variando de 1 a 24) e Ti é o valor da temperatura na hora i.Indo um pouco mais além, a temperatura média diária verdadeira é definida por

Trewin (2004) como a integral da temperatura durante 24 horas, dividida pela unidade detempo utilizado. Em termos matemáticos, segundo Dall’amico e Hornsteiner (2006), atemperatura média diária verdadeira (TV) é dada pela seguinte equação:

24h

1d

24hVT T t onde T é a temperatura e 24h indica o tempo total de um dia. Esta é melhor aproximação

estatística de uma média, baseada na integração das observações contínuas durante um dia.Entretanto, não é possível definir com precisão a curva da temperatura por meio deobservações em intervalos finitos de tempo. A utilização de sistemas automáticos de mediçãopermite que sejam efetuadas medições em intervalos muito pequenos, que muito se aproximada curva exata da variação da temperatura, mas esses sistemas são relativamente recentes enão é de uso universal. Logo, a aproximação do valor da temperatura média diária ainda éembasada em observações em horários específicos ou nos valores máximos e mínimosdiários. A OMM (WMO, 2009) estabelece que metodologia para o cálculo da temperaturamédia diária é tomar a média das temperaturas máximas e mínimas. Mesmo que esse métodonão seja a melhor aproximação estatística, a sua utilização consistente satisfaz os efeitoscomparativos das normais.

Diferentes fórmulas têm sido utilizadas ao longo do tempo, havendo alta diversidade

nos procedimentos observacionais em vários países. De acordo com Peterson e Vose (1997),mais de cem diferentes fórmulas de cálculos de temperaturas médias diárias têm sidoutilizadas mundialmente. Os métodos para estimar a temperatura média diária variam de paíspara país, dependendo de fatores como a frequência das observações disponíveis, o tempo deobservações e, mais recentemente, à disponibilidade de estações automáticas.

O uso de diferentes métodos de cálculos da temperatura média diária é um dosprincipais fatores indutores de heterogeneidades nas séries. A quantificação das incertezas nosregistros climáticos é um pré-requisito para a interpretação das tendências e valores extremos.Considerando, portanto, a variedade significativa de fórmulas, a quantificação das diferençasexistentes entre valores obtidos pelas várias fórmulas utilizadas se torna essencial. Nestecontexto, o presente estudo tem como objetivo identificar e quantificar as diferenças diárias,mensais e anuais do uso de diferentes métodos de cálculo da temperatura média diária.

2 - MATERIAL E MÉTODOSUtilizou-se dados diários da temperatura da Estação Climatológica do Centro de

Recursos Hídricos e Ecologia Aplicada (CRHEA), Escola de Engenharia de São Carlos(EESC), Universidade de São Paulo (USP), localizada no município de Itirapina, São Paulo,Brasil (Lat.: 22º10' S, Long.: 47º50' W, Altitude: 753m), a 25 km do município de São Carlos.

Para o período de 2001 a 2005, três séries de temperatura foram examinadas: (1) sériecom dados provenientes da estação convencional, equipada com termômetros de máximas emínimas; (2) série com leituras da temperatura às 9, 15 e 21h (horário local), obtidas emtermogramas oriundos de termógrafo bi-metálico; e (3) série de dados coletados e registradosem intervalos regulares de 30 minutos (48 registros diários) por uma estação automática daCampbell Scientific, com sistema de aquisição e armazenamento de dados modelo 21X.

Os dados foram organizados em planilha eletrônica no programa aplicativo MicrosoftOffice Excel©, onde se procedeu com o controle de qualidade, com os cálculos das médiasdiárias, mensais e anuais, e com a confecção dos respectivos gráficos. No diagnósticocomparativo, as seguintes fórmulas foram utilizadas no cálculo das médias diárias:

-12M m M mT T T Segundo a OMM (WMO, 2009); dados da

estação conv. (term. de máximas e mínimas)

9-21- - 9 21

12

5M m M mT T T T T Segundo normais climatológicas brasileiras(BRASIL, 1992) a partir de 1938; dados est.conv. (term. de máx. e mín. e termógrafo)

00:30 01:00 23:30 24:00

1

48V automáticaT T T T T T Temperatura verdadeira segundo OMM(WMO, 2009); dados da estação automática

As médias das fórmulas com base em instrumentos convencionais foram comparadascom os valores médios dos instrumentos automáticos, supondo que as médias obtidas porvalores registrados em intervalos regulares de 30 minutos representam a temperatura médiadiária verdadeira do ar. A diferença do valor da temperatura de interesse (TM-m ou T9-21-M-m)pela temperatura de referência (Tautomática) produz resultados em termos de desvio.

3 - RESULTADOS E DISCUSSÃOO resultado da análise estatística dos valores calculados pelas médias das diferentes

fórmulas, no período de 2001 a 2005, é apresentado na Tabela 1. Nota-se a ocorrência devalores de desvios com magnitude significativa, na ordem de grandeza de 101. Pelasinformações dadas pelo desvio padrão e pelo intervalo de confiança de 95%, contata-se que osvalores bastante discrepantes são pouco frequentes.

Tabela 1 – Análise estatística comparativa de temperaturasÍndice estatístico TM-m - Tautomática (ºC) T9-21-M-m - Tautomática (ºC)

Máximo 6,5 11,7Mínimo -5,0 -8,4Desvio padrão 1,3 1,0Média dos desvios -0,1 -0,5Intervalo de confiança - 95% -2,6 – 2,4 -2,5 – 1,3

A correlação dos dados é fornecida pelos histogramas dos dados diários na Figura 1 epelos gráficos de dispersão na Figura 2. Nos histogramas, os dados estão concentrados, quaseem sua totalidade, nos intervalos de -3,0 a +3,0 ºC. Verifica-se que os dados obtidos pelafórmula T9-21-M-m apresenta maior correlação em relação às médias obtidas pela fórmula TM-m.Numericamente, a inferência por análise visual é confirmada pelo coeficiente de correlação,que da T9-21-M-m é maior (R2 = 0,905) do que a da TM-m (R2 = 0,8576). As diferenças diárias detemperatura são apresentadas graficamente na Figura 3. Os poucos pontos que apresentamerros acima de 4 ºC são decorrentes de erros aleatórios de digitação. Para calcular os valoresmensais e anuais, os erros foram identificados e removidos.

Sob a perspectiva da escala mensal, uma análise gráfica é apresentada na Figura 4.Para período de 2001 a 2005, nota-se que existe uma predominância dos valores obtidos naestação automática serem maiores que os obtidos convencionalmente. Estas diferenças nãosão lineares, conforme revela a Figura 5. Por um lado, apesar das tendências geraisobservadas nos valores mensais, existe uma variação não-linear considerável em que asoscilações são mais acentuadas no comportamento da TM-m do que da T9-21-M-m.

0,0

2,0

4,0

6,0

8,0

10,0

Fre

quên

cia

(%)

(A) (B)

TM-m - T automática (ºC) T9-21-M-m - T automática (ºC)

-5 -4 -3 -2 -1 0 1 2 3 4 5 -5 -4 -3 -2 -1 0 1 2 3 4 5

Figura 1 – Histogramas de desvios da temperatura média diária.

R2 = 0,8576

TM-m (ºC)

R2 = 0,905

T9-21-M-m (ºC)

Tau

tom

átic

a(º

C)

8

12

16

20

24

28

32

36

8 12 16 20 24 28 32 36 8 12 16 20 24 28 32 36

(A) (B)

Figura 2 – Dispersão dos desvios da temperatura média diária.

2001

Ano

2002 2003 2004 2005

(ºC

)T

M-m

-Tau

tom

átic

a(º

C)

T9-

21-M

-m-T

auto

mát

ica

-16,0

-12,0

-8,0

-4,0

0,0

4,0

8,0

12,0

Valores diáriosRegressão LinearMédia Móvel (30 dias)

y = -0,1095x + 0,1345 (A)

(B)y = 0,0365x - 0,5506

-16,0

-12,0

-8,0

-4,0

0,0

4,0

8,0

12,0

Valores diáriosRegressão LinearMédia Móvel (30 dias)

Figura 3 – Variações diárias dos desvios da temperatura.

14,0

18,0

22,0

26,0

Ano

Tem

pera

tura

(ºC

)

2001 2002 2003 2004 2005

TM-mTautomáticaT9-21-M-m

Figura 4 – Variações mensais das temperaturas.

-2,0

-1,0

0,0

1,0

2,0

Des

vio

(TM

-m-T

auto

mát

ica)

(ºC

)

Ano

2001 2002 2003 2004 2005

Des

vio

(T9-

21-M

-m-T

auto

mát

ica)

(ºC

)

(TM-my = -0,1116x + 0,1365

(T9-21-M-m

-2,0

-1,0

0,0

1,0

2,0

(B)

(A)

Figura 5 – Desvios mensais das temperaturas.

Na escala anual, a Figura 6 exibe a variação mensal média de 5 anos, nos moldes doperfil da representação de uma normal climatológica. A curva da média de 5 anos da Tautomática

está acima de todas, seguida pela TM-m, pela normal (calculada com 35 anos de dados da TM-m)e pela T9-21-M-m. As médias anuais da temperatura, considerando todos os meses são: 20,91 ºC(Tautomática) 20,74 ºC (TM-m) e 20,37 ºC (T9-21-M-m). Logo, as temperaturas obtidas pelos métodosconvencionais são, na média, 0,17 (TM-m) e 0,54 ºC (T9-21-M-m) menores que a Tautomática.

16,0

18,0

20,0

22,0

24,0

Tem

pera

tura

(ºC

)

JAN

Mês

FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ

Tautomática

Normal - 30 anos

TM-m

T9-21-M-m

5 anos

Figura 6 – Variações mensal das médias de 5 anos das temperaturas.

4 - CONCLUSÕESAs temperaturas médias obtidas pelas máximas e mínimas (TM-m) possuem menos

correlação com as temperaturas verdadeiras do que as obtidas com leituras adicionais as 9 e21h (T9-21-M-m). Entretanto, analisando os valores médios de 5 anos, o valor de TM-m seapresenta mais próximo da temperatura verdadeira (Tautomática).

De um modo geral, as temperaturas obtidas de modo convencional se apresentarammais baixas que a temperatura verdadeira. Este aspecto merece atenção. Os instrumentosconvencionais têm sido recentemente substituídos por instrumentos automáticos. Tomando asestações convencionais como referência histórica, as temperaturas das estações convencionaisnão estão “mais frias” (menores) do que as da estação automática, mas sim a estaçãoautomática que está medindo temperaturas “mais quentes” (maiores) que os instrumentosconvencionais. Sob essa perspectiva, levanta-se a discussão de quanto esta mudança podeincorporar uma heterogeneidade indesejável, que no caso produz um aquecimento artificial.

Com a recente utilização de instrumentos automáticos ainda é interessante manter emfuncionamento a estação convencional como um parâmetro de comparação, pois assim acoleta simultânea permite identificar heterogeneidades decorrentes de mudanças dosinstrumentos. O funcionamento paralelo das duas estações é imprescindível para comparaçõesno local de cada estação, sendo úteis em eventual homogeneização da série. Logo, quantomais extensas as séries sobrepostas, melhor a compreensão das heterogeneidades envolvidas.

No contexto da discussão de aquecimento global, em que o aumento da temperaturamédia global foi de cerca de 0,7 ºC no último século, o uso de diferentes fórmulas, nas sériesde 5 anos aqui analisadas, implicou em diferenças de 0,2 a 0,5 ºC em somente 5 anos. Estasérie, representativa por um período reduzido, é indicativa de que mudanças deinstrumentação e o uso diferentes cálculos da temperatura média diária induzem a tendênciasnão-climáticas significativas a médio e longo prazo. Portanto, a remoção apropriada destasalterações nos métodos de observação demanda cuidado especial. Estudos mais aprofundadosdevem ser realizados neste sentido, buscando avaliar diferentes localidades e condiçõesclimáticas, além de procurar utilizar dados de origens confiáveis e de séries mais extensas.

5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBRASIL. Ministério da Agricultura e Reforma Agrária. Secretaria Nacional de Irrigação.

Departamento Nacional de Meteorologia. Normais climatológicas (1961 1990). Brasília:Departamento Nacional de Meteorologia, 1992. 84 p.

DALL’AMICO, M., HORNSTEINER, M. A simple method for estimating daily and monthly meantemperatures from daily minima and maxima. Int. J. Climatol. n. 26, p. 1929–1936, 2006.

PETERSON, T. C., VOSE. R. S. An Overview of the Global Historical Climatology NetworkTemperature Database. Bull. Am. Met. Soc., n. 78, 2837–284, 1997.

TREWIN, B. Effects of changes in algorithms used for the calculation of Australian meantemperature. Aust. Met. Mag., n. 53, p. 1-11, 2004.

WMO (World Meteorological Organization). Guide to Climatological Practices, Third Edition(draft). WMO-No. 100, Geneva: WMO, 2009.