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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X MULHER E DEMOCRACIA NO BRASIL: SOBRE OS TRAJETOS DE COLONIALIDADE, GÊNERO E PATRIARCADO Fernando da Silva Cardoso 1 Resumo: O presente estudo discute o processo de redemocratização brasileiro a partir de uma perspectiva pós-colonial e de gênero. Articula-se, a partir da análise crítica do discurso, as dimensões da colonialidade, das violências de gênero e do patriarcalismo que perfazem a institucionalidade de violências contra a mulher durante o civil-militarismo brasileiro. Propõe-se, também, algumas notas teóricas justransicionais ligadas a descolonização das lentes de leitura de processos de violência de gênero ocorridos nesses contextos. Os resultados obtidos nesta pesquisa assinalam para o processo de despersonalização do gênero feminino no período da ditadura civil-militar no Brasil. A análise dos discursos também aponta para a presença de marcadores patriarcais, coloniais e de diferenciação enquanto elementos presentes na construção da categoria “gênero”, nas práticas de tortura e opressões direcionadas a figura feminina nesse período. Conclui-se que a reconstrução do quadro democrático no Brasil tem invisibilizado a participação política e os processos de resistência protagonizados por mulheres, e que as lentes da interseccionalidade podem contribuir com o desvelar da articulação de diferentes eixos de opressão presentes nesse processo de violência. Palavras-chave: Mulher. Democracia. Discurso. Colonialismo. Patriarcado. 1 INTRODUÇÃO As discussões em torno da formação da democracia brasileira têm convivido com a necessidade de se pensar a participação de minorias nesse processo, e, assim, desvelar os matizes coloniais que perpassaram e ainda perpassam os contornos de redemocratização nacional. Assim, o presente estudo se propõe a compreender como a história de violência civil-militar, em relação à mulher militante, reproduz uma matriz masculina e euro-colonial de dominação, perpetuada, inclusive na redemocratização nacional. Parte-se da premissa de que existe um margeamento histórico que subalterniza a participação, resistência e protagonismo da mulher frente ao civil-militarismo no Brasil, o qual é reproduzido na formação democrática nacional por meio da invisibilidade dada às violências patriarcais e de gênero que marcam a formação política do país. Questiona-se as lacunas da formação democrática brasileira partindo da ideia de que os quadros político-institucionais instituídos partem de processos de verdade, memória e justiça que dão eco sistemático às questões de participação e violação urbana de direitos, de homens em sua maioria, brancos , grandes figuras políticas, líderes e militantes no masculino , grupos 1 Doutorando em Direito - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2016). Mestre em Direitos Humanos - Universidade Federal de Pernambuco (2015). Professor Assistente e Subcoordenador de Pesquisa e Extensão do Curso de Direito da Universidade de Pernambuco - Campus Arcoverde, Pernambuco, Brasil.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

MULHER E DEMOCRACIA NO BRASIL: SOBRE OS TRAJETOS DE COLONIALIDADE,

GÊNERO E PATRIARCADO

Fernando da Silva Cardoso1

Resumo: O presente estudo discute o processo de redemocratização brasileiro a partir de uma

perspectiva pós-colonial e de gênero. Articula-se, a partir da análise crítica do discurso, as dimensões

da colonialidade, das violências de gênero e do patriarcalismo que perfazem a institucionalidade de

violências contra a mulher durante o civil-militarismo brasileiro. Propõe-se, também, algumas notas

teóricas justransicionais ligadas a descolonização das lentes de leitura de processos de violência de

gênero ocorridos nesses contextos. Os resultados obtidos nesta pesquisa assinalam para o processo de

despersonalização do gênero feminino no período da ditadura civil-militar no Brasil. A análise dos

discursos também aponta para a presença de marcadores patriarcais, coloniais e de diferenciação

enquanto elementos presentes na construção da categoria “gênero”, nas práticas de tortura e

opressões direcionadas a figura feminina nesse período. Conclui-se que a reconstrução do quadro

democrático no Brasil tem invisibilizado a participação política e os processos de resistência

protagonizados por mulheres, e que as lentes da interseccionalidade podem contribuir com o desvelar

da articulação de diferentes eixos de opressão presentes nesse processo de violência.

Palavras-chave: Mulher. Democracia. Discurso. Colonialismo. Patriarcado.

1 INTRODUÇÃO

As discussões em torno da formação da democracia brasileira têm convivido com a

necessidade de se pensar a participação de minorias nesse processo, e, assim, desvelar os matizes

coloniais que perpassaram – e ainda perpassam – os contornos de redemocratização nacional.

Assim, o presente estudo se propõe a compreender como a história de violência civil-militar,

em relação à mulher militante, reproduz uma matriz masculina e euro-colonial de dominação,

perpetuada, inclusive na redemocratização nacional. Parte-se da premissa de que existe um

margeamento histórico que subalterniza a participação, resistência e protagonismo da mulher frente

ao civil-militarismo no Brasil, o qual é reproduzido na formação democrática nacional por meio da

invisibilidade dada às violências patriarcais e de gênero que marcam a formação política do país.

Questiona-se as lacunas da formação democrática brasileira partindo da ideia de que os

quadros político-institucionais instituídos partem de processos de verdade, memória e justiça que dão

eco sistemático às questões de participação e violação urbana de direitos, de homens – em sua

maioria, brancos –, grandes figuras políticas, líderes e militantes – no masculino –, grupos

1 Doutorando em Direito - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2016). Mestre em Direitos Humanos - Universidade

Federal de Pernambuco (2015). Professor Assistente e Subcoordenador de Pesquisa e Extensão do Curso de Direito da Universidade

de Pernambuco - Campus Arcoverde, Pernambuco, Brasil.

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historicamente visíveis na consolidação democrática do país. Questiona-se a necessidade de se

repensar a consolidação do quadro de democracia brasileiro a partir de uma perspectiva de gênero.

Nesse sentido, entendemos ser bem menor o espaço reservado aos casos de participação feminina e

de violência civil-militar contra mulheres2.

A figura feminina, aparece assimilada, de forma genérica, ora ligada a não contribuição com

a formação de quadros de democracia, ora a um cenário geral de violação de direitos, sem

individualização e (re)conhecimento histórico das vítimas e das condições concretas de suas lutas na

construção da democracia brasileira. Assim, inspiramo-nos na proposição dos “subaltern studies”,

“desde baixo” (MCEVOY; MCGREGOR, 2008) e da noção de colonialidade do poder (QUIJANO,

2005) como forma de tencionar a discussão sobre os contornos da democracia brasileira, a partir de

uma perspectiva de gênero, tendo como pano de fundo as graves violações de direitos humanos a

mulheres durante o regime militar-totalitário no Brasil, que denunciam, em tese, a formação

patriarcal da noção democracia nesse contexto.

É com base nas discussões oriundas do pensamento pós-colonial que passaremos a

desenvolver uma “perspectiva subalterna” dos trajetos da redemocratização no Brasil, assim como,

no que diz respeito ao – permanente – processo histórico-político de violência e de negação da

imagem feminina nesse quadro. Nesse sentido, enunciar as conotações das violações de direitos

humanos envolvendo a mulher brasileira e o modus pelo qual essa foi vista e tratada durante o regime

militar no Brasil, caminha para o desvelar de outras facetas de uma história da democracia,

hegemonicamente masculina e violenta em relação ao outro.

E, por fim, como forma de tratar epistêmica e metodologicamente a categoria “gênero” (e as

intersecções com a condição “mulher”), lançaremos mão da Análise Crítica do Discurso

(FAIRCLOUGH, 2003) de mulheres vítimas de tortura no período ditatorial brasileiro.

A análise crítica do discurso dos depoimentos mapeados, é tida como possibilidade de serem

discutidas as questões principais desse estudo, a saber, sobre como a ideia de colonialidade exercida

sobre a mulher a partir de práticas violentas se reflete na invisibilidade feminina na redemocratização

brasileira. Assim, a identificação e a organização destes depoimentos em categorias analíticas –

passíveis de apreciação – decorreram enquanto condições fundantes para que pudéssemos estabelecer

um quadro teórico-analítico capaz de desvelar algumas designações nas intersecções entre processos

2 Como também em face de povos do campo, indígenas, homossexuais, negros, povos tradicionais, etc.

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de luta por democracia e questões de gênero3, implicitamente presentes nos discursos que descrevem

práticas de violência contra mulheres.

Assim, a partir do objetivo geral deste estudo, buscou-se analisar as interdiscursividades, as

representações e as enunciações acerca das conotações de gênero na história de luta por democracia

no Brasil.

2 AS BASES COLONIAIS DAS TRANSIÇÕES NO CONE SUL E NO BRASIL

O pós-totalitarismo tem significado, na história, a abertura a perspectivas democráticas. Não

se trata de uma coincidência, por exemplo, o fato de o conceito de justiça de transição ter sido

sedimentado no século XX, após a Segunda Guerra Mundial. É também nesse período que a

decadência dos regimes militares e os massacres aos direitos humanos deram lugar, no Brasil, na

América Latina e no mundo, a possibilidade de reconciliação com passado, com a responsabilização

dos agentes violadores e consolidação de quadros democráticos.

O quadro de redemocratização brasileiro encontra, em seu caminho, a notória re-produção da

diferenciação, etnocentrismo, sexismo, da heteronormatividade e da branquitude, reproduzidos por e

reprodutores de graves violações de direitos humanos no país. Deve-se acrescentar a essa premissa a

ideia de que, em períodos transicionais, o Direito reveste-se de elementos extraordinários, seja no

sentido de ser prospectivo e/ou retrospectivo, ou sucessivo e/ou interruptivo, como possibilidade de

se “descolinizar” a história e perfazer os caminhos que sustentarão as bases democráticas.

Re-tratar acerca das bases coloniais4 dos processos que perfazem a consolidação da

democracia significa, a nosso ver, apresentar a ideia de que nesses quadros – de superação de graves

violações aos direitos humanos e reafirmação da institucionalidade política –, quando o Direito não

vai além de suas funções habituais, interligando-se à gênese dos direitos humanos, da história e da

política não consegue romper, na/a partir de mecanismos justransicionais, com a violência totalitária.

É preciso incluir/tratar acerca das narrativas que estão “fora da história”. A memória oficial –

masculina, eugênica e colonial – precisa ser re-visitada e discutida. Existem fronteiras, que margeiam

a noção de justiça de transição. Indubitavelmente, quando se fala em “margens”, “fronteiras”

relaciona-se com o outro, seja para negá-lo, para exclui-lo, para explora-lo, e, dificilmente, para

reconhecê-lo ou reivindica-lo. Esse movimento acentua-se quando se trata da figura feminina.

3 O procedimento metodológico e as análises construídas neste estudo consideram a análise da categoria gênero num plano

sociocultural e que aponta para a necessidade em serem compreendidos os marcadores históricos do patriarcado, ambos articulados no

sentido de discutir sobre democracia numa perspectiva de gênero. 4 As discussões apresentadas por Mignolo (2005; 2006), Escobar (2005), Quijano (2005), dentre outros, são fundamento a essa ideia de

“bases”. O movimento da colonialidade eurocêntrica construiu, não apenas, a ideia de Sul-Norte, branco-negro, homem-mulher, como

também, feriu, violou, fez desaparecer e matou pessoas, tendo enquanto fundamento e matriz hegemônica a subalternização da

dignidade humana, no Brasil e na América Latina, durante períodos de repressão.

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É preciso pontuar que o legado jus transicional, que perfaz a redemocratização na América

Latina e no Brasil, convive, até os dias de hoje e, antes de tudo, com sua própria herança – histórico-

hegemônica – estruturalista, colonial e eugênica. Tomando como exemplo a reconstrução de quadros

e instituições democráticas no Brasil, as margens do eurocentrismo têm impedido de se ver, na

América Latina, um continente sem-nome próprio, um não-lugar (ESCOBAR, 2005).

O Direito precisa desconstruir o não-lugar (não reconhecimento) ocupado pela mulher,

indígenas, camponeses, povos do campo, etc., à não reparação de graves violações de direitos

humanos no Cone Sul. Especialmente no Brasil, está presente no percurso de redemocratização o

matriciamente da diferença, a preservação da verdade e justiça para poucos – a memória é,

anteriormente, negada – a partir de um imaginário colonial e colonizado5.

É preciso que a discussão acerca da consolidação da democracia em sociedades pós-conflito

no Cone Sul e, de modo especial, no Brasil, seja pensada a partir das linhas complexas que formam

suas margens. A re-tomada do debate sobre a violência exercida durante os regimes totalitários em

relação a grupos subalternos e de como o Direito se situa nesse cenário e após sua superação, pode

re-construir a imagem colonizada e eurocêntrica dos direitos humanos. A justiça de transição precisa

ser instrumentalizada para além da caracterização asséptica e homogênea de “sujeito de direitos”.

3 MULHER, PÓS-CONFLITO E DEMOCRACIA: TRAJETOS DE COLONIALIDADE?

A perspectiva colonial da história e do direito – reafirmada pela no pós-conflito – silencia

duplamente a mulher, seja no reconhecimento do sexo feminino no processo de lutas por democracia

no Brasil e no Cone Sul ou na (não)consideração de sua condição humana enquanto sujeito histórico.

O totalitarismo, repressão, torturas e mortes durante os regimes civil-militares no Cone Sul

gestaram e direcionaram inúmeras violações de direitos humanos a partir da lógica de “dominação

colonial”. A classificação social a partir da ideia de raça (QUIJANO, 2005), a construção da ideia de

espaço/tempo a partir das relações imperiais de poder (MIGNOLO, 2007), a naturalização da

subalternidade do outro (ESCOBAR, 2005), o patriarcado (LUGONES, 2007), foram alguns dos

símbolos da barbárie exercidos durante os regimes militares no Cone Sul e ainda são marcas

presentes na reconstrução dos quadros da democracia brasileira e latino-americana, em especial, em

relação ao lugar ocupado pela mulher.

Há nas linhas globais do desenho feminino, no contexto de transição e de redemocratização

brasileiro, os traços da colonialidade do ser (MIGNOLO, 2006), ou seja, um subjetivismo vigiado, o

5 O Sul epistêmico coincide parcialmente com o sul geográfico. O Sul global refere-se às regiões do mundo que foram submetidos ao

colonialismo europeu e que não atingiram níveis de desenvolvimento econômico semelhantes ao do Norte global (Europa e América

do Norte) (SANTOS, 2009).

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controle da sexualidade e, principalmente, dos papeis exercidos e atribuídos aos gêneros na história e

na contemporaneidade, pouco desmistificados pelo atual Estado de direito. A colonialidade da

história de lutas por democracia na realidade brasileira e latino-americana, desempenhadas pela

mulher, precisa ir além da condição de mãe, esposa, companheira e re-tratar os papeis femininos na

resistência à violência. Afinal, os papéis exercidos pela mulher nesses contextos estavam ora

definidos pelo patriarcado da época, ora insurgindo em relação aos mesmos.

É certo que o direito foi feito para homens, para heróis, políticos, grandes baluartes, machos.

Acreditamos ser preciso questionar-se: Como o Brasil conviveu e ainda convive, em seu quadro

redemocratização, com os legados estruturais e culturais de diferenciação? As instituições

democráticas e políticas têm privilegiado a desconstrução da lógica colonial e de subalternização de

grupos historicamente invisibilizados? Como as críticas de gênero têm repercutido nesses quadros?

Esses questionamentos podem nos levar a reflexões sobre a necessidade de o Direito incluir

em sua dimensão transicional práticas democráticas de reconhecimento de sujeitos invisibilizados

pela história, notadamente, colonial e masculina. Esse cenário abre espaços a epistemologias e

semânticas inter/multiculturais, contra-hegemônicas, sobre os direitos humanos e as diferenças.

Para que possamos alcançar uma dimensão de gênero nos quadros de redemocratização,

políticas de memória e verdade – apreciação de crimes por Tribunais Internacionais, Tribunais

Especiais, criação de Comissões de Memória e Verdade e fomento as reparações – no Brasil – e no

Cone Sul – em relação à mulher, precisam ser democratizadas, visibilizadas. O Direito precisa

reconstruir os seus limites, a partir de um panorama prospectivo e humanista, como forma de garantir

a superação de quadros de totalitarismo e, principalmente, promover o reconhecimento de sujeitos

histórico-políticos, dentre eles, a mulher.

Certamente, o principal capítulo das interfaces entre a história, a mulher, a ditadura e a

redemocratização no Brasil precisa ser redesenhado por um fator que é visível nesse processo, mais

que, muitas vezes, escapa à hermenêutica das Comissões da Verdade, a questão ou o direito –

humano – à insurgência. A maneira pela qual a sociedade brasileira se organizou frente às violações

de direitos humanos e à repressão se instituiu enquanto elemento de reinvindicação política e

constitutivo da vida pública e da possibilidade de redemocratização brasileira.

4 GÊNERO, TORTURA E COLONIALIDADE: EM BUSCA DE ENUNCIAÇÕES

Fairclough (2003) aponta para um posicionamento discursivo no qual se compreenda a

relação entre sociedade e campo discursivo. Possibilita pensar as relações de dominação não

totalmente definidas política e economicamente, mais também, considera a ordem discursiva

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construída pela história, pela medicina, pela religião, etc., que levam a significações relacionadas à

identidade, representação e outros aspectos que perfazem a imagem de determinados grupos sociais.

É a partir deste quadro que passamos a analisar as enunciações de gênero presentes em discursos de

mulheres brasileiras torturadas no período da ditadura civil-militar, buscando desvelar os implícitos

que perfazem a redemocratização brasileira.

Os depoimentos de Izabel Fávero, Maria do Socorro Diógenes e Lylia Guedes (torturadas,

respectivamente, nos anos 70, 71 e 72) – analisados com base na teoria apresentada a partir de três

noções: interdiscursividade, representação de atores sociais e nomeação –, estão presentes em

documento público organizado pelas Sec. Especiais de Direitos Humanos e de Políticas para as

Mulheres (MERLINO; OJEDA, 2010).

4.1 Interdiscursividade: a articulação da “diferença” no discurso “ser mulher” no período da

ditadura

Os três discursos analisados fazem menção a uma peculiar (re)produção de ideologias que

materializavam a dialética da violência masculina sobre a figura da mulher e criavam – ou instituíam

– o discurso militar acerca das questões de gênero. Destaquemos os seguintes trechos:

Lylia Guedes

[...] Durante o dia, eles me deixavam sentada numa cadeira dura, numa sala de expediente do Dops, no

caminho para a sala de tortura e para as celas. Eles passavam por ali o tempo todo, tinha muito assédio,

puxavam meu cabelo, falavam coisas (grifo nosso).

Izabel Fávero

[...] Levaram tudo o que tínhamos: as economias do meu sogro, a roupa de cama e até o meu enxoval. No

dia seguinte, fomos transferidos para o Batalhão de Fronteira de Foz do Iguaçu, onde eu e meu

companheiro fomos torturados pelo capitão Júlio Cerdá Mendes e pelo tenente Mário Expedito Ostrovski

(grifos nossos).

O primeiro trecho marca a construção da categoria “ser mulher” durante a ditadura, no qual a

figura feminina é traduzida enquanto objeto de suplício, espetáculo da violência, da hegemonia

militar – masculina – sobre o outro. O discurso de Lylia revela o feminino enquanto um símbolo sem

imagem, útil a institucionalização de um imaginário de repressão da época (Eles passavam por ali o

tempo todo, tinha muito assédio...) de permanente tortura (eles me deixavam sentada numa cadeira

dura, numa sala de expediente do Dops, no caminho para a sala de tortura e para as celas).

Quem fala no segundo trecho destacado, a partir do cenário de repressão da época, é a

“mulher militante” – uma espécie de imagem do feminino masculinizado pela noção de força e

resistência –, e a “mulher esposa” – frágil em relação à violência direcionada a sua família, que é a

“sombra do seu companheiro”. A categoria “ser mulher” no discurso de Fávero oscila entre o

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imaginário patriarcal e de dependência feminina e a representação da militante/comunista que

suporta a condição duplamente clandestina de ser mulher e de conviver com um “comunista”.

Por outro lado, as passagens “Levaram tudo o que tínhamos” e “eu e meu companheiro”

remontam a imagem de uma mulher que encontrava espaços de sociabilidade na luta e na resistência

à opressão, que podia ser, na sua “condição feminina”, junto aos grupos de resistência. Essas noções

implícitas levam a um “nós” ou um “a gente”, que conviviam com a condição de “ser mulher”.

Nos trechos selecionados, essas mulheres “falam” a partir de uma perspectiva marginal,

carregada de ideologias históricas e sociais da época, sob as quais “ser mulher” reproduzia-se na

masculinidade da família, da luta e da resistência. Os discursos tratam da questão de “gênero” ao

passo que elas justificam as suas participações na oposição ao regime, mas não se colocam ao lado

dos companheiros, a casa, a família ainda era seu lugar de sociabilidade (Levaram tudo o que

tínhamos: as economias do meu sogro, a roupa de cama e até o meu enxoval...).

Assim, os campos argumentativos observados nos discursos de Lylia e Izabel convergem

quanto às condições marginalizadas do gênero no período ditatorial, em casa – na condição ainda de

esposa, mãe –, na luta – ditada pelos padrões da masculinização da mulher e de “extensão” do seu

companheiro – e nas próprias práticas de tortura – ao lhe serem conferidas a imagem de força e na

resistência hiper-masculina a dor e ao sofrimento.

A “diferença” se materializa enquanto marcador de um duplo processo de violência, em

primeiro lugar a exercida pelos mecanismos de poder e violência do regime; em segundo plano a

praticada pelo próprio margeamento da luta, notadamente masculina, que descaracteriza a mulher.

Ambas convergem para um imaginário e práticas sociais de colonialidade e reprodução de

marcadores de subalternidade de gênero.

4.2 Pode a mulher falar? As representações de atores sociais: sobre sujeitos, tortura e gênero

Como forma de serem analisados os posicionamentos ideológicos dos atores sociais em

relação à categoria “gênero”, nas práticas de tortura – ou não –, investigamos quais atores são

incluídos e excluídos nos discursos analisados. No quadro a seguir, apresentamos uma distribuição

das ocorrências de escolhas linguísticas, a partir da personalização.

Quadro 01 - Representação dos atores sociais presentes nos depoimentos analisados

Atores

Sociais

Personalização

Nomeação Categorização Generalização Coletivização

Homens

12 vezes

03

03

pais, presos, sogro;

01

01

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dele; presos;

Militares

44 vezes

04

07

homens, caras do Dops do Rio, delegado, caras do

Dops, Exército, torturadores, chefão dos

torturadores;

11

eles, ele;

02

homens,

torturadores;

Família

03 vezes

02

sogros,

companheiro

Eu

(Mulher)

29 vezes

14

08

grávida, corpo, insultadíssima, torturada, magra,

mal, sequestrada, mulheres;

05

você, minha, meu,

me, mim;

01

mulheres;

Fonte: adaptado de Gomes (2013)6.

A recorrência dos atores sociais nos discursos analisados nomeia e define significados quanto

à categoria “gênero” no contexto da ditadura militar brasileira. Distinguem, ao passo que interligam,

representações da figura feminina, especialmente, nas práticas de tortura.

A ampla designação de termos relativos a “militares” está, em sua grande maioria,

relacionada com a prática de algum tipo de ação violadora não apenas da condição feminina, mas

principalmente humana (trabalharemos de modo mais aprofundado no subitem a seguir). A

disposição dos termos ao longo dos depoimentos denota a lógica de poder masculina, a diferenciação

biológica, os marcadores sociais e históricos do patriarcado, e principalmente, da violência civil-

masculino-militar na ampla e irrestrita (re)produção da subordinação feminina.

Importante observar que a recorrência de termos relacionados a “homens” (12 vezes)

desenha, nos discursos, o modo como às mulheres se colocam enquanto agentes políticos,

(não)participantes do processo de resistência e de luta contra a ditadura no Brasil, no sentido literal

do termo, sempre ao lado, enquanto sujeito secundário da história masculina de lutas. A

personalização destes atores sociais afirma um processo de inclusão e exclusão. A unidade das

relações sociais, na categorização de “homens” e “mulheres”, também existiu dentro do processo de

luta social contra a ditadura, o que invisibilizou as questões de gênero, contando, unicamente, os

acontecimentos que envolviam os sujeitos que, na perspectiva masculina da história, estiveram à

frente do processo de lutas sociais. Aquelas que fizeram parte desse momento da história não são

definidas nos discursos de modo pessoal, surgem ao lado, à margem da história de resistência.

Por outro lado, o número de ocorrências do ator social “família” (03 vezes), mesmo sendo

inexpressivo em relação aos demais, constrói um importante cenário de representações. Nas

passagens relativas a esta personalização, os discursos perfazem a ideia da mulher mãe, esposa,

6 GOMES, Jaciara J. Tudo junto e misturado: violência, sexualidade e muito mais nos significados do funk pernambucano - “É nós do

Recife para o mundo”. 2013, 218 fls. Tese (Doutorado - Linguística) Universidade Federal de Pernambuco, 2013.

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companheira, que milita, mas retorna para o lar, que convive com a clandestinidade da “esquerda”,

que circulou entre o público e o privado, na privação, que feminizou o contexto social da época a

partir de sua condição cidadã e humana de resistência, de mulher.

Com relação à ocorrência do “eu” – “mulher” –, o desenho deste termo, nos discursos, está

relacionado a uma dupla representação imagética da mulher. Por um lado, de um “eu”, objeto de

suplício e tortura, no qual a adjetivação (torturada, insultadíssima, sequestrada) proporciona-nos um

processo de conhecimento do campo social da época, categorizado a partir da violência do poder

masculino do regime militar, em se tratando das relações de gênero. Como também, compõe a

discursividade da ordem punitiva do regime em relação à “mulher militante/comunista”, um “eu”

construído na sofreguidão do corpo, nas/pelas marcas à resistência ao poder vigente. Essencialmente,

era sobre a condição física e psíquica do “eu”, “mulher”, que foram instrumentalizadas as violências

civil-militares em relação às questões de gênero.

A tortura assume uma dupla condição de marca colonizadora. Seja pela descaracterização da

mulher – enquanto imagem – a partir da dor, da imposição da figura masculina, ou, a partir da

manutenção de marcadores de gênero, desde as relações sociais até as práticas de tortura.

4.3 Nomeações e ideologias: a despersonalização do gênero na prática da tortura

Fizemos menção, anteriormente, ao processo que denominamos de “despersonalização do

gênero feminino” no período da ditadura civil-militar no Brasil. A nosso ver, este é representado na

dinâmica violenta e histórica que ganha realce nas sistemáticas violações da categoria “gênero”

durante o militarismo brasileiro, ou seja, representa, especialmente, neste momento histórico, a não

legitimação da condição humana da mulher enquanto detentora de direitos. Vejamos esta

proposição na análise dos discursos utilizados nesta pesquisa que nos ajudam a construir essa ideia.

[...] Eu ficava horas numa sala, entre perguntas e tortura física. Dia e noite. Eu estava

grávida de dois meses, e eles estavam sabendo (grifo nosso). No quinto dia, depois de muito choque,

pau de arara, ameaça de estupro e insultos, eu abortei (Izabel Fávero). Via discurso, o gênero é

“despersonalizado” na (re)produção da lógica e de práticas de dominação iminentemente masculinas.

A fala desta brasileira, outra vez, aponta para a ideia de que a ditadura tratou de “aniquilar” a

existência feminina, ou seja, tratou de consolidar no imaginário da época a hegemonia masculina em

suas mais possíveis formas e espaços. Predomina neste trecho a ideologia perversa do patriarcado,

elevada a potência da opressão e das torturas, civil-masculinizadas, instrumentos de uma história de

poder masculino, fincada no não reconhecimento do outro.

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O processo de nomeação, presente nos discursos analisados, traduz o corpo feminino, nas

práticas de opressão e de tortura, enquanto elemento sígnico da violência masculina (A primeira

coisa que fizeram foi arrancar toda a minha roupa e me jogar no chão molhado. Aí, começaram os

choques em tudo quanto é lado – seio, vagina, ouvido – e os chutes. [...] Eles abusavam muito da

parte sexual, com choques nos seios, na vagina... passavam a mão; Maria do Socorro Diógenes,

grifos nossos). Nesse discurso, a “corporificação” da violência categoriza o “gênero” da opressão;

assume o papel de (de)marcar os processos biológicos e socioculturais de diferenciação e de poder do

homem, reproduzidos na/pela ditadura civil-militar brasileira.

Percebe-se a presença de códigos e de estruturas ideológicas de sustentação do poder civil-

militar – e masculino –, perpassados, pelo reforço de ideias patriarcais que desnaturalizavam a figura

feminina. A tortura instrumentalizou, de forma explícita, a violência à identidade da mulher

brasileira que, propriamente, o combate ao “comunismo”, como se vê na fala de Lylia Guedes: “Eu

era uma desconhecida da repressão e muito menina, [...]. Mas quando passavam por mim, diziam:

Amanhã vai ser você, mas aí vai ser diferente” (grifo nosso). Os discursos evidenciam que há um

claro estruturalismo da noção de patriarcado, machismo, sexismo, racismo e de outras práticas

(re)afirmadoras da opressão e ligadas a categoria “gênero” ([...] diziam coisas nojentas sugerindo

que haveria violência sexual; Lylia Guedes), nas violações à condição feminina no período da

ditadura no Brasil (eu fui insultadíssima, a agressão moral era permanente; Izabel Fávero).

Nas falas, o processo de “despersonalização do gênero feminino” é traduzido sob a lógica da

perpetuação de estereótipos culturais, políticos, sociais e biológicos que marcam e possibilitam a

continuidade da violência. “Despersonalizar” passa a significar o controle da palavra, dos

argumentos para se exercer controle sobre determinado grupo – nesse caso, as mulheres.

A fala dessas mulheres, torturadas e oprimidas pela ditadura, revela que o exercício do poder

e da opressão da masculina exercidos nesse período, em relação à categoria “gênero”, marcam a

existência de uma violência que vai além da mera manutenção de poder da época, constrói um

cenário autônomo de castigos e torturas, de apropriação violenta do corpo da mulher para satisfazer

desejos individuais, antes mesmo dos “fins político-ditatoriais” que sustentaram o regime.

A apresentação da ideia de “despersonalização do gênero feminino” abarca a proposta

principal desta discussão de que: a tortura é parte do imaginário de colonialidade que opera, ao longo

da história, como elemento de apagamento da mulher. Ainda, que os marcadores de gênero são

realçados por essa violência enquanto imagens do etnocentrismo e hegemonia – masculina – sob a

figura da mulher – tida como o “diferente”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa aponta para inquietações na busca por uma justiça histórica, no

reposicionamento teórico de alguns panoramas, quanto à necessidade de ser (re)pensado “o gênero

da história” de lutas, o modo pelo qual a mulher foi fortemente violada em sua condição humana e

acerca do construção da democracia no Brasil.

O quadro representacional, alcançado a partir da análise crítica do discurso das mulheres

vítimas de tortura, (re)dimensiona o modus – colonial – pelo qual o “gênero” foi/é situado na história

e no pós-conflito, desenha uma narrativa de suplícios praticados contra a mulher durante o período

totalitário que é permeada, negativamente, por marcadores de gênero, balizados por práticas

hegemônico-autoritárias, pelo patriarcado e pela diferenciação biológico-sexista.

Em nossa análise, observamos que as interdiscursividades que permeiam a categoria

“gênero” são ditadas pelos padrões e processos de masculinização da

mulher/militante/companheira/comunista, fortemente cercada pela invisibilidade proporcionada pelo

imaginário patriarcal da época, marginalizada pela repressão e colonialidade do regime militar e

negligenciadas pelo processo de reconstrução do quadro democrático nacional.

Como também, a compreensão acerca das representações, identidades e nomeações

relacionadas à categoria “gênero”, apreendidos via análise de discurso, convergem para um quadro

no qual as violações ocorridas durante o período ditatorial – especialmente a tortura – são precedidas

pela lógica do poder masculino, da colonialidade historicamente construída, a partir da qual o

“homem militar” apropriou-se do corpo da mulher, de sua alma feminina, para perpetuar novas

práticas violentas e degradadoras do humano, do feminil.

Ainda, acerca da ideologia apreendida na análise, vê-se que a lógica patriarcal se apoia nas

estruturas civis e militares do governo ditatorial, e vice-versa. É a partir dessa lógica de poder que

ora a mulher integrava o denominado “sexo frágil”, “mãe”, “esposa”, “cidadã”, como também era

associada à “carne”, a “promiscuidade”, ao “prazer”, ou seja, ao corpo.

Ousaríamos afirmar que as ideias lançadas neste estudo, quanto ao processo de

despersonalização do gênero feminino, transmutam-se aos dias de hoje e se fazem presentes na

manutenção de forças sociais que impõe relações desiguais entre homens e mulheres no Brasil, que

impedem a afirmação de políticas ligadas a memória e a verdade, que freiam a possibilidade de uma

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justiça histórica, que agravam a discriminação por questões de gênero, e, principalmente, que

aumentam a vulnerabilidade feminina frente à violência hiper-masculinizada que (re)xiste.

REFERÊNCIAS

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2009.

Women and democracy in Brazil: about the trajects of Coloniality, Gender and Patriarchy

Abstract: The present study discusses the Brazilian redemocratization process from a postcolonial

and gender perspective. From the critical analysis of the discourse, the dimensions of coloniality,

gender violence and patriarchalism that make up the institutionality of violence against women

during brazilian civilian militarism are articulated. It also proposes some justransional theoretical

notes based on the notion of intersectionality, as a way to decolonize the reading lenses of processes

of gender violence occurring in these contexts. The results obtained in this research point to the

process of depersonalization of the female gender in the period of the civil-military dictatorship in

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Brazil. The analysis of the discourses also points to the presence of patriarchal, colonial and

differentiation markers as elements present in the construction of the category "gender", in the

practices of torture and oppression directed at the female figure in this period. It is concluded that the

reconstruction of the democratic framework in Brazil has made invisible the political participation

and the processes of resistance carried out by women, and that the lenses of intersectionality can

contribute to the unveiling of the articulation of different axes of oppression present in this process of

violence.

Keywords: Woman. Democracy. Speech. Colonialism. Patriarchy.