Mulheres de água

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De Gabriel Chalita

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Tímidas ou lascivas. Rejeitadas ou asse-diadas. Fiéis ou volúveis. Avarentas ou perdulárias. Prudentes, perversas, esqui-sitas, amorosas. Ao percorrer esta cole-tânea de contos de Gabriel Chalita, o leitor tem a impressão de se ver diante de todas as mulheres e de todos os sen-timentos do mundo. A complexidade das situações vividas pelas personagens é mostrada de modo sutil, e os recursos de narrativa vão do lírico ao satírico, pas-sando pelo drama, com a habilidade de quem se apoia no olhar atento e na sen-sibilidade. Gabriel Chalita visita o uni-verso feminino e penetra na alma dessas mulheres impressionantes. O leitor não deve esperar pelo deslumbramento, mas sim pela sinceridade. É a vida, como em um palco, escancarada para a avidez do leitor. Temos a solteirona que faz do pro-jeto de encontrar um marido um com-promisso em todos os lugares, dos bailes da terceira idade às missas dominicais. Temos a mãe, desesperada com o silên-cio do filho supostamente desaparecido, escandalosa e patética. Temos a velhota cheia de manias, que se confessa com a amiga surda-muda. Temos a precavida professora que não põe o pé nem na fím-bria do mar, por medo do tubarão. De-notando grande percepção, e com um estilo ao mesmo tempo claro e requinta-do, Gabriel Chalita descobre na mente de suas personagens medos, ambições, fragilidades, expectativas, frustrações. Sentimentos, afinal. Vida em estado bruto. O autor diz esperar que ninguém passe incólume por estas páginas. Não, não passará, como dizia o poeta. Cada um destes contos, como um afago ou um beliscão, deixará sua marca indelé-vel no coração dos leitores.

Nascido em 30 de abril de 1969, em Cachoeira Paulista (SP), Gabriel Chalita é educador, escritor, palestrante e apresentador de rádio e TV. Professor e doutor em Direito e em Comunicação e Semiótica, mestre em Sociologia e em Filosofia do Direito, assina uma obra que soma 46 títulos publicados e cerca de 9 milhões de exemplares vendidos. Ex-secretário Estadual de Educação e ex-presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed), é membro da Academia Brasileira de Educação e da Academia Paulista de Letras. É vereador da cidade de São Paulo, tendo sido o mais votado no Brasil, em 2008.

www.contosgabrielchalita.com.br

As mulheres são as estrelas desta coletânea de contos. São relatos singelos e verdadeiros, em que até as tin-tas do drama ganham nuanças de humor e lirismo. Todas as histórias são resultado da aguda observação e da imensa sensibilidade de Gabriel Chalita. Nesta incursão pelo terreno da narrativa curta, o autor re-vela o espectro multicor dos sentimentos femininos e os desvenda com sutileza e perspicácia. Estão to-dos aqui: a inveja, o ciúme, a paixão, a esperança, a descrença, o desamor. Mulheres de Água é um livro que encanta, comove, alegra, mas que também faz pensar. Em resumo, é um livro sobre as mulheres em pleno diálogo com a vida.

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Gabriel Chalita

Contos sobre o universo feminino

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© 2007, 2009 by Gabriel ChalitaDireitos reservados à Ediouro Publicações Ltda.

Diretor: Edaury CruzAssistente editorial: Fernanda Cardoso

Coordenação de produção: Adriane Gozzo | AAG Serviços EditoriaisRevisão: Carmen Valle e Eliel Silveira Cunha

Projeto grá%co, editoração eletrônica e capa: Ana Dobón | AT StudioIlustração de capa: Luiz Carlos FernandesProdução grá%ca: Jaqueline Lavor Ronca

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C426m

Chalita, Gabriel Benedito Isaac, 1969- Mulheres de água: contos sobre o universo feminino Gabriel Chalita. - Rio de Janeiro: Ediouro, 2009.

ISBN 978-85-00-33003-2

1. Conto brasileiro. I. Título.

09-4079 CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

Ediouro Publicações Ltda. R. Nova Jerusalém, 345 – Bonsucesso Rio de Janeiro – RJ – CEP: 21042-235

Tel.: (21) 3882-8200 – Fax: (21) 3882-8212/8313 www.ediouro.com.br / [email protected]

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Às mulheres de água. Famosas e anônimas.

Mulheres que preenchem. E que, como a água,

movimentam, puri%cam, renovam, saciam.

Mulheres das metrópoles e dos lugarejos.

Mulheres da seda e do brim. Mulheres da casa

e da empresa, das duplas jornadas.

Mulheres que ensinam, que aprendem, ensinam

a aprender e aprendem a ensinar. Mulheres sábias.

Todas. Cada uma à sua maneira.

Minha homenagem.

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Sumário

Introdução à nova edição

Duas palavras sobre estas águas

Primeira história: Quatro..............................................................15

Segunda história: Alívio................................................................23

Terceira história: Anésia ainda solteira......................................27

Quarta história: Ensaio.................................................................31

Quinta história: Ê, homem bobo!..................................................37

Sexta história: Maria das Dores..................................................41

Sétima história: Sim e não...............................................................45

Oitava história: A sabedoria de Joaninha...................................49

Nona história: Atende!.................................................................55

Décima história: Amor-próprio...................................................61

Décima primeira história: Um dia com Goretti.........................65

Décima segunda história: Judith, a impaciente.............................81

Décima terceira história: Loreta, a disponível............................89

Décima quarta história: Amanhã eu voltarei...............................93

Décima quinta história: Estela e suas irmãs................................97

Décima sexta história: Saudade da amiga...................................103

Décima sétima história: Medo de ontem......................................109

Décima oitava história: Virgínia, a escolhida.............................115

Décima nona história: Dona Geisa .............................................119

Vigésima história: Silêncio..........................................................125

Vigésima primeira história: O preço do pensamento.................131

Vigésima segunda história: Hortance, a velha.........................137

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Dedicatória

À Micarla de Souza,

por fazer da política uma

arte do servir, e da vida,

uma arte de amar.

Homenagem

Marília Pêra

Pelo dom e talento de ser

muitas sem deixar de ser única.

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INTRODUÇÃO À NOVA EDIÇÃO

Em 1997, escrevi Mulheres de Água, utilizando alguns contos que %z especialmente para Bibi Ferrei-ra entremear em um espetáculo com poemas meus, dirigido por Jorge Takla. A grande dama do teatro brasileiro leu divinamente em um cenário cuidadoso, com a música e a iluminação delicadamente prepara-das por Takla.

Empolguei-me com a leitura dramática. Escrevi outras histórias e publiquei o livro.

Fui sempre admirador dos contos. Quase roman-ces. A mesma trama de personagens: sempre há come-ço, meio e %m. Fui muitas vezes abrupto, talvez tenha usado de %na ironia, ora provocadora. A in/uência de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Guimarães Rosa, Machado de Assis, e de tantos outros ícones da literatura, explica.

Mas quando terminava um conto, eu lamentava o %m da leitura. Exigia que as personagens continuassem.

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Discutia com escritores mais experientes por que não exploravam ao máximo a personagem em vez do des-fecho antecipado. Com o tempo, convenci-me de que era esse o papel do conto. As personagens vão embora sem despedidas para que os leitores continuem a convi-ver com elas. Como não mais estão, cada um decide o seu destino. E a vida continua na imaginação, ilusão.

Essas Mulheres de Água são assim. Histórias fas-cinantes ou estranhas. Reli todas elas para esta reedi-ção. Alterei alguma coisa, leve. Comparei com o que escrevi agora: Homens de Cinza. Há, claro, homens neste como há mulheres no outro, mas em cada um deles as personagens em foco se alternam. Acrescentei um único conto nesta edição, que %cou fora da edição de 1997. Trata-se de Hortance, a velha. Mulher sabi-da que viveu a humanidade inteira. Ou não.

Agradeço à Ediouro este lançamento simultâneo. Esta é uma obra de %cção. Como tenho muitos livros sobre educação e %loso%a que tratam de devir, de éti-ca, de um mundo que com amor será mais bonito, só tenho a advertir que essas mulheres não são diferen-tes. Mesmo nos seus erros e desatinos. Aliás, o que é o erro? Todas elas, à sua maneira, sonham com a felicidade.

Boa leitura.

GABRIEL CHALITA, 2009

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DUAS PALAVRAS SOBRE ESTAS ÁGUAS

A água pode ser nítida, quando /uida. Pode ser opaca, quando gelo. Cristalina ou turva. Tranquila ou bravia. Molda-se ao ambiente, desliza, ocupa as gretas, os vazios e vãos. Mansa ou ligeiramente ondulada, ala-ga planos e baixios, espraia-se. Em desníveis, empurra, puxa, ergue-se em cristas. Água com mais água ganha força, ao mesmo tempo briga, encrespa-se e encapela-se, vaga sobre vaga, turbilhão, tormenta.

Mulheres são água. Fluidos, sangue, mênstruo, seiva.

Mulheres são pássaros.

Umas cantam tristemente as suas penas.

Outras exibem vistoso colorido.

Mas têm

o projeto de fazer ninho,

o sonho de voar,

o voo para o horizonte

e o peito cheio de amor.

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Este trabalho é um registro. Uma comédia de costumes. À parte o tratamento caricatural de algu-mas personagens, o fato é que todas elas existem. Em algum momento da minha vida eu as encontrei, todas. Com outros nomes, com outras urgências, mas todas assim mesmo, autênticas, verdadeiras, elas mesmas, desnudas de hipocrisias diante da vida.

Não há preconceitos nas histórias. As pequenas loucuras, manias, descompensações que sejam, todo mundo as tem. Mulheres ou homens. Todos nós nos comportamos com intolerância, atabalhoamento, so-freguidão, ingenuidade, ansiedade, inveja, estranha-mento, raiva, vingança, surpresa, saudade, paixão... diante de situações da vida. Quantas vezes nos damos conta de nós mesmos fazendo bobagens ou insistindo em pequenas insanidades – perdoáveis ou não. O que a gente nem sempre consegue fazer é admiti-las.

Este livro trata da alma feminina. Mas é mais do que isso: é uma modesta tentativa de tradução do re-sultado da convivência de almas humanas. Trata de mulheres, mas trata de homens também, porque uns e outros são vívidas manifestações comportamentais originadas de heranças culturais, talvez imposições da tradição. Trata de expectativas, frustrações, esperan-ças, realizações, demandas e renúncias. Trata de roti-na, experiências simples, caseiras, cotidianas. Trata de vida, em suma.

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Trago à luz estas histórias, ainda que sem compro-misso com a antropologia cultural. Meu compromisso é com a literatura, com a arte de contar histórias. Quem quiser, olhe para o espelho da água derramada e veja a si mesmo. Ou a outrem.

O que espero é que ninguém passe por estas pá-ginas sem se sentir tocado. Como eu fui tocado por essas mulheres de água.

Gabriel ChalitaJaneiro de 2007

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Primeira história

Quatro

Quatro horas. Quatro anos de sofrimento. No-tícia, não havia. A festa aconteceria em quatro horas. Um jantar simples, sem grandes pretensões. A data era especial. Quatro anos de casamento. Quatro anos da primeira noite de amor. Eu vivi, naquele tempo, a experiência sublime da entrega. Tinha vergonha de dizer que nada sabia. Namoro era emoção sentida por amigas mais sedutoras. Nunca tive muita sorte com os homens. Eu me apaixonava em silêncio. Não revelava a fundura da minha alma, dos meus desejos. Sabia que seria uma aventura vã. Quem me desejaria?

Tinha uma amiga, Milena, que me dava dicas. “Mudança no cabelo, maquiagem mais quente, rou-pas menos rústicas.” Não achava que minhas roupas fossem rústicas. Milena dizia que gordura não era

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problema; bastava ser provocante. Eu, decididamen-te, não era. Corava, enrubescia, avermelhava ao pri-meiro olhar e acumulava uma pergunta em cima da outra. Todas desnecessárias. Timidez.

Certa feita, perguntei a um dentista quem era o pai da odontologia, quando nasceu, em que ano começou essa ciência. Estupidez de quem não tem o que dizer. Outra, foi com um professor de geogra%a. Eu iniciava a minha en-quete angustiante, e o coitado tendo que relembrar rios e a/uentes, serras, países que mudaram de nome. E eu, para ser sincera, nem atenção prestava às explicações. Estava era ensaiando outra pergunta, e mais outra, e mais outra.

Milena me recriminava.– Tolice! Homem não tolera mulher assim. Seja femi-

nina. Peça a ele que abra a garrafa de água para você, se faça de frágil, mostre que tem medo de barata, ria %ninho.

– Não tenho medo de barata – eu confessava.– Não importa! Comece a ter! – falava, com a auto-

ridade de quem colecionava numerosos pretendentes.Desperto de minhas lembranças ao ouvir o trilado

do passarinho, ao longe, no restinho de Mata Atlântica para a qual a minha janela serve de moldura.

– É inveja, bem-te-vi!Penso um pouco e concluo que não, não tinha in-

veja de Milena. Achava divertido seu jeito atabalhoado, sobretudo quando acontecia de ter algum varão por per-to. Ela era leve e aparentemente frágil.

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Eu gostava de estudar e passava horas me arru-mando para %car em casa. Não tinha para onde ir nem por que ir.

Um dia, quatro de abril, conheci João Paulo. Pu-blicitário. Criativo. Divertido. Encantador.

Como de costume, comecei perguntando tudo o que não era importante. Principais campanhas, produ-tos, pai do marketing, diferenças de produtos e serviços entre países. E ele, demonstrando atenção, nada respon-dia. Sorria apenas e comentava traços do meu corpo e da minha personalidade. Desenhou uma orquídea re-chonchuda, escreveu um poema desavergonhado que falava em partes que se abriam e acolhiam, beija-/ores ousados, mel e sabor. Eu perguntava ainda mais – nervo-sa. E ele brincava com minha ânsia por segurança. Era um mar de águas revoltas que estava por ser visitado. Medo. Amor.

De saudade em saudade, fomos nos sentindo im-prescindíveis. Afagos eram companheiros constantes. Seu romantismo me proporcionava entardeceres ines-quecíveis. E tudo era surpreendente.

Milena me aconselhava a fazer-me de difícil. Impossível. Estava entregue. Não havia espaço para outro pensamento. O patinho feio tinha se transfor-mado. E sorrisos e espera. Espera leve – ele nunca me deixava apreensiva. Nem sequer um desentendimen-to. Parecia sonho. Não era.

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Casamo-nos. Castelo imaginário. Tudo era tão delicado e harmonioso. Música, doces, presentes, e ele ávido de um amor que eu consegui fazer esperar. Noite de afagos – quatro anos, hoje. Noite de dança, ele conduzindo com maestria, eu entregue, sem per-guntas. Silêncio. Dores. Angústia. Sem perguntas.

Havia um bilhete. Os dizeres não consigo repetir. Qua-tro anos apenas, e o inusitado chegou. Quem convidou?

Tivemos um %lho. André. Sempre gostei de no-mes bíblicos e pequenos. Nomes simples. O restante que seja construído. Ele puxou ao pai. Tanto melhor. Traços lindos, personalidade %rme de quem não teme caminhar com pés próprios – desejei. Não haverá oportunidade para construir nada. Estava com o pai. Foram juntos em viagem sem volta. E agora?

Quatro horas, como quatro são os elementos que for-mam o universo: terra, água, ar e fogo. Deixei louco, certa vez, um professor de %loso%a. Perguntas e perguntas. Sem-pre fui falante. Falante de assuntos não comprometedores.

Moramos no quarto andar de um prédio sim-ples. João Paulo sempre preferiu lugares bucólicos, românticos. Da janela do nosso quarto é possível ver o parque e identi%car os tais elementos da natureza. Especialmente a água, em que cintilam pérolas de luz quando a chuva mansa deposita gotas aleatórias so-bre folhas e /ores.

Nunca tive motivos para tristeza.

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João Paulo era um romântico incorrigível. Bilhetes eram propositadamente esquecidos em cantos do nosso apartamento. Os presentes tinham de ser encontrados – a%nal, o amor já estava ali, revelado, desnudado. Não havia mistérios, havia mistério! O luar nos assistia, di-zendo poemas na pequena área que %ca nos fundos do apartamento. Eu deitada na marquesa confortável, e ele dizendo coisas que me in/avam. Era assim sempre. Vez ou outra, algo mais picante:

– João Paulo, o que você quer para o jantar?

– Quem tem o principal não se preocupa com o acessório – dizia sorrindo, sorriso de desejo, e ainda completava: – Você é o principal.

Há alguns pequenos sapos, bichos aquáticos, no quarto de André. Ele gosta de sapos de pelúcia, de lou-ça, de madeira. E fala como se fosse um adulto. Dá aula aos sapos, às vezes os repreende como se não estivessem atentos. Recomeça a lição. Dizia que seria professor. Como a professora Emília, excelente educadora, que tocou com delicadeza da alma de meu %lho. É seu segundo ano na escola. Tinha apenas três anos. Era cedo demais para não ser mais nada.

Planejávamos quatro %lhos. O bom seria que fos-sem dois meninos e duas meninas. Se viessem de outro jeito, seriam igualmente bem-vindos.

Os sapos estão no quarto. O professor não voltará. Fi-carão sempre assim, as lições que aprenderam, aprenderam.

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Um desenho do Dia das Mães está por terminar. Ninguém há de terminá-lo.

André e seu jeito carinhoso.– Mamãe, a história do sapo manhoso, por favor,

vai...– Eu já te contei dezenas de vezes essa história, %lho.– Conte de novo, de novo...Deveria ter contado mais uma vez ou, pelo me-

nos, mais quatro vezes.E agora?Nunca trabalhei.Filha única, perdi meu pai ainda criança e minha

mãe no ano passado. E agora?Já comprei tudo para o jantar. Há /ores espalha-

das pela casa. Gosto de cuidar de tudo. Resolvi, para surpreender João Paulo, esconder alguns bilhetinhos, rastros de ternura, que estão jogados por aí.

Quem há de encontrá-los? Tenho vivido na indesejá-vel companhia da dor. Já arruinei pedaços de mim, ima-ginando que já os perdi, os dois. Se assim for, sei que vou reaprender a sorrir, um dia, mas não terei como ensinar os sapos do André.

Não há notícias.Sabe-se que o avião se chocou no ar com outro

menor. E caiu. Dizem que é o meio de transporte mais seguro. Dizem que a cada dez milhões de decolagens cai um avião. E por que esse?

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Por que João Paulo foi visitar a mãe e levou o André? Por que eu não fui com eles? Por que ele não me ouviu – havia uma angústia anormal em mim. Por que não se atrasou e perdeu o voo?

Quatro perguntas. Quatro anos de amor. Casamos no mesmo dia em que nos conhecemos, um ano depois.

Estou grávida. Ainda não sei se é menina ou menino.Talvez seja melhor fazer o jantar. Há roupas de

João Paulo que precisam ser lavadas e passadas. A televisão não diz nada. Caíram na /oresta.

Imagino André abraçado ao pai. Imagino João Paulo tentando proteger seu rebento. Sempre acredi-tei em milagres.

Ainda não sabem se há sobreviventes. Algo me diz que há quatro sobreviventes. Intuição feminina. Intuição de mulher, de mãe, de quem ama.

Se forem quatro sobreviventes, os dois estarão vivos.

Mas por que eles e não os outros?Há outras mulheres, outras mães, outras canções

de tristeza.Há outros sapos em latente espera, há outras mu-

lheres que nada esperavam e que, surpreendidas pelo amor, se tornaram quatro vezes felizes. Quatro de to-talidade. Era perfeição demais.

Mas estou grávida.

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Tímidas ou lascivas. Rejeitadas ou asse-diadas. Fiéis ou volúveis. Avarentas ou perdulárias. Prudentes, perversas, esqui-sitas, amorosas. Ao percorrer esta cole-tânea de contos de Gabriel Chalita, o leitor tem a impressão de se ver diante de todas as mulheres e de todos os sen-timentos do mundo. A complexidade das situações vividas pelas personagens é mostrada de modo sutil, e os recursos de narrativa vão do lírico ao satírico, pas-sando pelo drama, com a habilidade de quem se apoia no olhar atento e na sen-sibilidade. Gabriel Chalita visita o uni-verso feminino e penetra na alma dessas mulheres impressionantes. O leitor não deve esperar pelo deslumbramento, mas sim pela sinceridade. É a vida, como em um palco, escancarada para a avidez do leitor. Temos a solteirona que faz do pro-jeto de encontrar um marido um com-promisso em todos os lugares, dos bailes da terceira idade às missas dominicais. Temos a mãe, desesperada com o silên-cio do filho supostamente desaparecido, escandalosa e patética. Temos a velhota cheia de manias, que se confessa com a amiga surda-muda. Temos a precavida professora que não põe o pé nem na fím-bria do mar, por medo do tubarão. De-notando grande percepção, e com um estilo ao mesmo tempo claro e requinta-do, Gabriel Chalita descobre na mente de suas personagens medos, ambições, fragilidades, expectativas, frustrações. Sentimentos, afinal. Vida em estado bruto. O autor diz esperar que ninguém passe incólume por estas páginas. Não, não passará, como dizia o poeta. Cada um destes contos, como um afago ou um beliscão, deixará sua marca indelé-vel no coração dos leitores.

Nascido em 30 de abril de 1969, em Cachoeira Paulista (SP), Gabriel Chalita é educador, escritor, palestrante e apresentador de rádio e TV. Professor e doutor em Direito e em Comunicação e Semiótica, mestre em Sociologia e em Filosofia do Direito, assina uma obra que soma 46 títulos publicados e cerca de 9 milhões de exemplares vendidos. Ex-secretário Estadual de Educação e ex-presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed), é membro da Academia Brasileira de Educação e da Academia Paulista de Letras. É vereador da cidade de São Paulo, tendo sido o mais votado no Brasil, em 2008.

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As mulheres são as estrelas desta coletânea de contos. São relatos singelos e verdadeiros, em que até as tin-tas do drama ganham nuanças de humor e lirismo. Todas as histórias são resultado da aguda observação e da imensa sensibilidade de Gabriel Chalita. Nesta incursão pelo terreno da narrativa curta, o autor re-vela o espectro multicor dos sentimentos femininos e os desvenda com sutileza e perspicácia. Estão to-dos aqui: a inveja, o ciúme, a paixão, a esperança, a descrença, o desamor. Mulheres de Água é um livro que encanta, comove, alegra, mas que também faz pensar. Em resumo, é um livro sobre as mulheres em pleno diálogo com a vida.

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