MULHERES E CRIADOS · Deita-te já, por Deus. Haverá coisa melhor que estarem sentados ao xadrez...

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MULHERES E CRIADOS de Lope de Vega Tomem lá, que vos prometo que estou cansado de jogar. -Cansado de perder. -E de ganhar. Um aviso discreto: dizem que perguntando a um sábio como cuidaria um rei os que o serviam, disse: "jogando e ganhando, porque dizem que é a coisa que mais refresca o sangue". -Que frase mais apropriada! -Descobriste-a em verso ou prosa? -No sono que tive conseguia-o até às duas. Despe-te, por Deus, que perder tirou-te o sono. -Estás a apressar-me. Não é hora de dormir? E a falar tanto também é de acordar, que a aurora já se prepara. -Que poética metáfora! -Pára, dorme. Claridán, os que perdem ficam sempre depois na conversa. -Que haja quem jogue a naipes! -É sabido por todos que o homem se faz macho burro da roda d'água. -Os dromedários néscios não aguentam este jogo. -O xadrez é extraordinário. Desta vez, a noite vai dançar.

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MULHERES E CRIADOS de Lope de Vega Tomem lá, que vos prometo que estou cansado de jogar. -Cansado de perder. -E de ganhar. Um aviso discreto: dizem que perguntando a um sábio como cuidaria um rei os que o serviam, disse: "jogando e ganhando, porque dizem que é a coisa que mais refresca o sangue". -Que frase mais apropriada! -Descobriste-a em verso ou prosa? -No sono que tive conseguia-o até às duas. Despe-te, por Deus, que perder tirou-te o sono. -Estás a apressar-me. Não é hora de dormir? E a falar tanto também é de acordar, que a aurora já se prepara. -Que poética metáfora! -Pára, dorme. Claridán, os que perdem ficam sempre depois na conversa. -Que haja quem jogue a naipes! -É sabido por todos que o homem se faz macho burro da roda d'água. -Os dromedários néscios não aguentam este jogo. -O xadrez é extraordinário. Desta vez, a noite vai dançar.

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Deita-te já, por Deus. Haverá coisa melhor que estarem sentados ao xadrez dos honrados, desonrando-se os dois e dizendo pequenos provérbios? -É um jogo de razão e perde-se o sentimento. -Não há desatinos escritos como os que dizes aqui. -Certo que o jogo há-de ser jogado e não estudado. Anteontem, vi uns homens a jogar croquet. -É bom para fazer exercício. -Condeno tanto exercício. -Não falas, Claridán? -Estou calado para ver se deixas de falar e te deitas. -A bola é bonita. Ver uma figura, com os pés levantados, a mostrar o que tem é um jogo com menos danos. -Se dura uma noite ou duas, por Deus, é muito danoso e para a saúde perigoso. Por fim, a vossa senhoria não quer deitar-se? Quer aproveitar na noite o que perde no dia. O que sabes de Florianica, a da rua de Pez? -(Desta vez ele não dorme.) -Empobreceu? -Rica não está. -Eu suspeito que se apaixonou.

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Estes desejos por homens com capotes, que agora andam pela corte, deixam-na mal cuidada. -Já não falas, Claridán? Durmo, senhor, que a noite vai desabrochar. -Dormes em pé? -Sou um sem-vergonha que come em pé e dorme em pé. -Bem, deixai-me agora. -Vamos dormir? -Sim. Que Deus te dê bons dias. O zelo de Claridán pôs-me em novo cuidado: que notável pressa me deu! Será coisa de ser galã do meu sujeito amoroso? Não disse um ciumento que um louco não sentiu amor se não sentiu ciúme. Viva Deus, que pode ser que me tenha dado esta pressa, e que a vê e não me avisa. Sem causa, amor? Temo sem temer, logo não é sem causa. Que perderei em sabê-lo? Bem, quero vê-lo, pois a causa é medo de amor. Olá, Teodoro. Teodoro! -Senhor, senhor. -Entra. -Quem está nos meus aposentos? -Ninguém. Fabio e Lidoro saíram

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com o Claridán para as suas pousadas. -Quero ver uma certa senhora. Dá-me um traje galante, chapéu e gibão, que com capote irei. -Que aço? -O que mo tiraram, e aquele escudo de Sevilha. Vou. (E não com pouca pena, mas tem que ser pelos meus males!) Haveis visto pressa igual? Mas é bom prevenir. Saberei se Claridán serve o que eu sirvo. Desde ontem que tenho ciúmes. Aqui está a espada e a capa, gibão e chapéu. -Mostra. -Vossa senhoria quer a minha companhia? (Seria dar de mim parte fraca e não posso dar a entender à minha dona que vou de parte secreta.) -Bem, gostaria de acompanhar-te. Não percas o sono, Teodoro, que vou seguramente. -Deus te guie e que bem regresses. -E de uma forma resoluta. Estou com ciúmes do Conde, porque há mais de quinze dias que vê quem eu adoro, e as conquistas do ouro são disputas temerárias. Não tenho por homem sensato quem do ouro não se guarda:

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não há fogo de artifício, não há estrondo, nem instrumento que me lembre que mais depressa feche a porta à vontade, e que a casta honestidade mais facilmente corrompe. Mas que perco eu em ir ver se lá vai, pois não me conhecerá, mesmo que me deixe ver? Bem, isto são ciúmes: não os quero dar lugar, que de não os remediar acabam em duelos. Martes, regressa à rua; vê se há algum rumor. Na rua, senhor, só há rumor da tua cintura. Estás com medo sem causa. Chega e fala sem cuidado, que Martes vai a teu lado, Marte com uma letra mais. Deixa-me nesta esquina: verás que terão medo de mim os que passam por aqui. Caminha para essa parte, porque se na esquina estás vais ser uma obrigação de te quererem ver. Vai e não me ensines mais, que ninguém vem de noite nem para ver nem para encontrar. -A Violante está deitada?

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Apeou-se tarde do coche, mas não temas de que a mulher apaixonada durma. -Eu vou. -(E eu de medo me afundo, que esta rua é desabitada e é meu lema nas contendas esperar pelo novo dia.) -Estás sozinha, gelosia? Quando na ausência há ciúmes não se dorme durante muito tempo. Bem sabeis que as minhas desculpas têm parte de culpa dos homens do palácio. O Conde não queria deitar-se. Que havia de fazer? Não há nenhum medo no amor senão apenas em desculpar, que parece que as culpas que o amor condena dão às vezes menos pena que o pedido de desculpas. De manhã, vamos à minha irmã para eu tomar a água de ferro. E eu esta noite espero por essa feliz manhã. -Estás deitada? O que fazes? -Dormia de tão cansada. (Nunca o medo enganou, que o amor do ciúme nasceu. À janela está, por Deus!) (Vem um homem disfarçado; muito largo e quadrado. Digo um? Mas são dois. Digo dois? Parecem três!

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Vou esconder-me aqui.) -(Ai de mim, o Claridán fala! Os meus ciúmes são merecedores, mas pode muito bem não falar com Luciana. Como saberei se é a irmã sem me dar a conhecer? Vou fingir um equívoco.) Ai, que morto estou! Senhora, o meu corajoso lacaio Martes queixou-se. Vou lá, pois ele vigiava-me a rua. -Não te ponhas em perigo, se ameaçado está, pode custar-vos a vida. Estou cheia de medo. (As invenções do amor que os ciúmes faz esquecer! Bem, chego agora.) Ò da janela! Quem é? Claridán, que nunca pretendo alcançar pelos pés o que pode a espada. -Bem podeis falar-me, Luciana. -Vens enganar-me. A alma e a voz trocada, que não sois Claridán nem eu Luciana. (Os céus sossegaram os meus ciúmes, que a do galã é a Violante.) Cavalheiro, não vos conheço e, por isso, fecharei a janela. Fechai-a, pois não sois Luciana, que a vossa voz não conheço. (Tão depressa outro galã

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ocupou meu lugar? Essa ofensa incentiva a esgrima, que não me deixou assentar. Ió Martes, que não consigo alcançar-te antes de segunda-feira. Vou voltar ao posto que deixei e encontrar pastagens comuns pois impedem-me o passo. Ah, cavalheiro! Que quereis? Que a que espera não espere se espera em tal casa. Esperava aqui um criado que me pareceu infiel e já me sinto melhor com ele porque estou seguro. Que, deixando-me deitar, pensei que servia a dama a quem eu servia, mas enganei-me. Não é amante de quem eu pensei; a minha imaginação foi vã porque sirvo a Luciana e Claridán a Violante. -Sois o Conde, meu senhor? -Eu mesmo. -Senhor! -Detém-te, pois sabes claramente que estado tem o meu amor. Violante quer-te a ti: diz-lhe que suavize Luciana, que Luciana o fará por sua irmã e ela fará isso por ti, e eu não serei mau amigo

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e virei a teu lado, porque pelo amor de Luciana virei de noite contigo. Dito está, Claridán; boas noites. Senhor, irei contigo. O favor que essa janela te dá, não o perderás por mim. -Eu sei o que é. -Senhor... Goza a ocasião presente. Fica, fica aqui. Deixou-me obrigado, e meteu-me numa confusão. Mas quando é que os amores não são a mesma pena e cuidado? Ele quer bem a Luciana e já sabe o meu desejo. (É este o Conde! Que vejo? A minha esperança não foi vã. Está à porta! O que farei? Foi certa a minha desventura. Haverá constante formosura onde não há verdade e fé?) -Quem vem? -Quem por acaso passa. -Pois passe se passa por acaso. -Supondo que por acaso passo, há coisas nesta casa que me podem deter. Pois não se detenha nela porque saberei defendê-la. -E eu saberei atacá-la.

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-Teodoro? -Claridán? -Sou o Claridán. -Eu, Teodoro. -Se guardas o respeito de um dono amante e galã, bem puderei deter-te para que não chegues a esta casa. Suspeitando que quem passa veio ver a minha morte. O Conde foi-se daqui e contou-me que adora a Luciana, e quer que eu e a sua irmã lho digamos. Confessou com grande maldade que o excita acompanhar-me. Eu não pude desculpar-me, pois a nossa amizade me dava vozes, Teodoro. Afinal o Conde é senhor. O Conde será o meu fim. Morro e Luciana adoro! Se te descompões com ele, Teodoro, perdes tudo e rogo que te recordes apenas destas duas razões: Luciana quer-te para marido e igual; se o Conde trata mal, há-de chover sobre ti. Se estas mulheres, eu e tu o enganarmos, e Luciana o atrai de hoje para amanhã, que amante não se cansa? Já sabes que os senhores sofrem mal com atrasos;

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pois vendo que é imortal o fim destes amores, há-de mudar de opinião. Pois tu, firme como um estaca, gozarás sem perder nada o prémio da tua afeição. Dizes bem. Não quero ser néscio e não aceitar o conselho. -Deixo a minha honra nas tuas mãos. -Já começa a amanhecer, mas eu sei que sairão de manhã para tomar a água de ferro. Aí falarás. Haverá algo mais feroz do que ter ciúmes, Claridán? Vem, mudaremos de traje e confia, que se a mulher quer não existe poder para contrastar o seu esquecimento; e as que não são semelhantes mostram geralmente o seu valor, que efeitos o amor fará em mulheres que são líderes? Esta casa tem dono? Olá, criados! Lopes, Laurêncio, Inés! Ah, gente. Olá! Por força há-de sair o sol primeiro. Que Deus me deixe chegar aos teus setenta! Todos os velhos são madrugadores; deve ser porque, como pouco lhes resta, não devem querer passá-lo em sonos, para além de que é a imagem da morte, e não quereis temê-la dessa sorte.

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Enganas-te, ignorante. Que os galos madrugam muito mais e são mais jovens, o mesmo para as aves e para os animais, a quem a natureza ensina; o homem dorme mais do que é justo porque é vicioso e não é robusto. A humidade é a causa de que os sonos abundam nos jovens, e nos velhos, por não os terem, é a secura. Gentil filósofo! Olha, essas donzelas hão-de ir para ao campo. Senhor, Inés poderá falar-te delas. É certo que madrugas os vizinhos com a tua voz. Inés, acorda Violante e Luciana, que é muito tarde. Já estão a vestir-se. Que aço de boa qualidade! O sol está à vista, quero chamá-las. Esteja vossa mercê bem acordada. Vossa mercê está mal acordado, a sua cara testemunha-o. -Dormiu bem? -Bastante. -Por aqui não passou nenhum acidente. -Falta de saúde? Amor não falta, que mesmo dormindo cobra as suas dívidas. -Vossa mercê sonhou? -Sonhei. -Que sonho sonhou? -Jardins, águas, flores, fontes, rios.

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Os meus poucas vezes têm água. Eu sonhei com touros. -Que mau presságio. -E como! E mais porque as casas seguiam-me e os quartos subiam-me. Vossa mercê sabe o que significa? Que vossa mercê, mesmo obrigado, não é homem de gado, bois ou ovelhas. -Aviso-o que ali à frente... -Dizia, senhora Inés... Saem nossos amos. Não te assustes não termos saído da cama antes, pois tomamos à força aquele ferro. -Vai, Lope. Por ela. Vou ágil. Se tirais proveito do exercício que algumas em Madrid tomam por vício porque recusais em ir ao campo? Não há vez que na planta não me estampe e que não venha cansada por um ano. Aqui estão as duas poções: mau ano para quem beber tal! Ainda se fosse ferro de Alaejos ou de Segóvia, pudera um homem perfilar a boca? Mas que receita, queixumes e inflamações, para os intestinos hipocôndricos? Ao boticário, a bebida a ele se deve, que apenas ele sabe o que se bebe. -Chama-te ali um certo forasteiro.

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-Volto já. Pois o meu pai já se foi. Toma estas vasilhas, Lope, e arranja um licor na rua. -Mas que bem feito! Para o fogo de amor que reside no meu peito não é este a temperança ou medicamento. Enganei-o para que daqui se fosse, é pesaroso vê-lo com poções. Dá-me os mantos depressa, que eu creio que nos espera amor com mais desejo. -Não estava ninguém na sala. -Deve ter-se ido embora. -Tomaste a água de ferro? -Apenas a saúde nos pode dar ânimo. -Que coisa tão amarga! -Aviso-te, filha, que a saúde que alegra o corpo, se cobra por meios dignos de dó. O médico receitou isto para o teu bem. Vão Lope e Inés; que vos acompanhem. O céu que guarde a tua vida. Até que veja o vosso remédio, que é que o meu coração deseja, que vos ama ternamente. Ah, cuidados de pai, quem os conhece chama-os de cuidados da alma, pois com quietude não poderá gozar tanto até que fique sem remédio! Desta maneira não põe a vida em causa.

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Que gozeis muitos anos, amigo Florencio, os belos anjos que agora vi, como dois sóis a ir para o campo, digo-te que te invejo - e com razão - por eles. Emiliano, peço-te que trates hoje do remédio delas a sós comigo, que juro que me colocam em cuidados a sua idade triste e a minha cansada. Se eu tivesse dois filhos libertava-os de todo os cuidados. A metade que posso vos ofereço em don Pedro. E eu estimo a minha boa sorte a que estou obrigado. Apesar de que as razões pela quais visito os demais amigos sejam as obrigações que tenho para com eles, este dia a visita é do meu próprio interesse. Conheceis o meu filho? Que me recorde, não o tenho visto. Vem aqui, Pedro, e beija as mãos de Florencio. Se as conquisto com o vosso justo amor, tão grande empresa, sou, de todas as estrelas, benquisto. É moço que valor e honra professa. É vosso filho, com isto sinto mais o seu valor e entendimento.

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Sou um vosso servo, esse nome que meu pai, eu e minha casa honramos. Pedro é muito cortês e gentil-homem, que como exemplo da sua quietude, temos a prudência na paz e nas armas; mas se o casarmos com Violante, a quem mostra inclinação notável, em muito cresceremos a nossa amizade. Emiliano, visto que sou pai, e tenho que ganhar numa mudança dessas, não poderei dar assim a palavra e a mão, sem saber o gosto de Violante. Penso que será certo e claro, pelo menos pelo que vejo, que as donzelas são felizes e em don Pedro há valor e entendimento. Elas foram esta manhã para o campo após tomar a benéfica água de ferro, pois a Luciana anda pálida. É forçoso esperar a altura certa. E don Pedro fará por merecê-la que esperará ansioso mil séculos, quanto mais que haja a água de ferro. (Mas espero que seja num ano como este!) Pensais que Pedro é como alguns moços que deste tempo, sem conselhos, que apenas têm os primeiros buços e de doença parecem velhos? Não é objecto de gozos alheios nem de si os espelhos se enamoram; não é fábula nem chacota das damas nem historiador de alheias famas; não presume saber o que não sabe nem está inquieto em zonas públicas.

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Selou à chave a alma e a boca para poder ser sensato e discreto. Com os amigos é brando e suave; divulga o bem e torna o mal secreto; afasta-se de néscios e venera sábios. -Basta que saiba fechar os lábios. -Estudou o que lhe competia: sabe latim. Fazeis bem em elogiar o que haveis feito. Não sou dado a tão grave pretensão, mas a alma vai suprir o que falta ao peito. O amor bem permite que o elogie e mais quando quero o seu proveito. Entretanto, vamos divertir-nos. O meu amor é justo. Socorro, santo céu! Enquanto esperamos, pergunta-lhe como fugiu. -Não me atrevo. -Porque não, já que estamos no campo? Martes, Claridán disse que não sois Marte com a espada e que em tomar a pousada sois mais hesitante do que galã, pois, deixando a esquina, a tremer em casa vos encontrou. Isso mereço eu por não ter sido galo, mas, se não fosse por mim, o tinham feito em pedaços. Valha-me Deus. Como assim?

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Vieram dez homens contra ele: onze lutavam a cavalo e treze eram escudeiros e aparte, quatro ou seis traziam belas pistolas francesas. Saio a passo para a ponte, como um romano valente, com uma ponta afiada detenho-os e faço-os fugir: sigo-os, derrubo-os, mato-os. E como é justo o recato, e como o homem teme a morte às mãos da justiça, quis esconder-me em casa, e, escondido, defendi-me da ganância do codicilo. Pois como é que nada os matou como tanta espada e pistola? -Houve uma ferida única. -Quem tão depressa os curou? Havia belos ensalmadores que, falando só em grego, remendaram com tecidos as lágrimas mais dolorosas. -Não os viste a ensalmar? -E vieram da Grécia? Não, aprenderam-no cá e eu agora quero-o estudar. Saberei que chamam ao pão morcego, e ao vinagre vinho. Pára com esse desatino. Pela vida de Claridán, rio-me deste bêbado. -Aproximam-se Violante e Luciana.

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-Trazem o cheiro das flores. -Não disseram mais nada. -Cala-te, besta! Ficarei calado. São eles, Luciana. Sim, sei que Teodoro está aqui porque fiquei alterada. Convidar com o que é prado às que são Primaveras não será justo para as margens que haveis honrado e pisado. Vossa é a água e as flores, e as sombras vossas são. (Exagerada introdução para um pastoral!) Os campos serão melhores para maios e abris, que os vossos gentis cortejos em ambos os meses estão. Se quereis tomai assento, pois estamos cansadas. Queres agradar-me com o teu silêncio? Não ficas feliz por ver-me? O amor sabe, Teodoro, que suspensa estou em ver-te, a linguagem não toma parte; apenas nos olhos te adoro. Árvores, dai-me licença que em vossa casca escreva para que cresça e para que viva esta palavra na minha ausência; quando Medoro em seus bosques, não com tão feliz estrela,

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escreveu pela sua bela amada, «apenas nos olhos te adoro». Deixa o punhal, que são já demasiadas finezas, nem escrevas nas cascas o que se encontra nas almas. Paga-se amor com amor. Que dizes acerca disto, Violante? Que um pintor é um amante morno, que se põe em lugares distantes. Também eu fiquei em suspenso. E como se cala ela, irmã? Inés voltou há uma semana, desde terça que está aqui. Uma mulher não pode esperar um bom pagamento de um amor destes, pois que se deixa querer por um Martes, que é um homem de mau agouro; e se num certo dia se casar será um negócio tão cruel, para quem casar com ele, que felicidade se pode esperar disso? Senhor Lope, trate-me bem que mesmo que não tome água de ferro, tenho ferros com que espero matar-lhe o puro desdém. Como sabe o lacaio que sou devota a Martes? -Isso perturba-a pouco? -Ao ver ciúmes, desmaio. -Vossa mercê chamou-me? -Não, senhor. Ouvi Martes não sei porquê.

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Sou, e assim aqui estou à disposição. Vossa mercê retire-se, que isto corre por minha conta. Se isso agrada Inés, mesmo que não queira que amor a veja. Senhores, cortejar é coisa de senhores que quanto mais velhos são mais juntos querem corroer. Estão em conversação; as mulheres no seu jardim: todos as vêem, mas no fim goza o fruto de quem elas são. -Bem dito. -Para ele será bem dito. Ai, bela Luciana. Como a minha vã esperança se declara já, pois sabeis o que tenho passado e que o Conde vos adora! Desgraçado, senhora, o criado competirá com o seu senhor. Por força me irei render ou o Conde me irá matar e, embora pouca aventura pareça ter a vida de servidão, sinto-me desorientado. Não poderá saber nem o Conde nem o mundo que o amor no fundo da alma tem aços imortais. Haverá coisa, mulher caridosa, que seja mais custosa? Uma alma ciumenta não poderá viver,

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sofrer e querer. Senhor, aviso-vos que o Conde se aproxima. -O Conde? -Sim. É o seu coche. Esperai, que haverá menos perigo, pois haverão mil desculpas e, se vos viu, fugir vai dar-lhe o que sentir, pois ama e sente ciúmes. -Nunca tive mais sorte. -Ele apeia-se. (Os ciúmes já me matam!) Um tela a retratar uma bela pintura flamenga! Há aqui árvores, galãs, senhoras, flores, um prado aprazível, montanhas ao fundo, fontes, bom... Quando a floresta afastas, as flores dão-te tapetes. -Belas damas... -Grande senhor... E se o calor dá amor, as árvores oferecem sombras. Teodoro, estás aqui? Acompanho Claridán para que não haja danos caso alguém tenha ciúmes. -Como está a água de ferro? -Bem. Parece que vosso peito sobe depois de tomar a água. O desdém é só de amor?

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Nunca, senhor, fui valorizada por ser cruel ou desdenhosa, embora não tenha sido misericordiosa. Sei que me tens fitado com desejos de crueldade. Fora eu muito descorteja, que estimar o amor não é o contrário à honestidade, e amor de vossa senhoria não merece ingratidão. (Que imprudente inquietude o amor cria no meu peito!) Se fosse verdade, senhora, servir-vos com esta vida seria pouco. Ser amada agora não pode causar-me dor, e não vejo como -como no fim, pobre mulher- possa merecer tão grande esperança. (Se este avança vou perder o juízo. Por Deus, atalha Violante, é um primeiro indício de amor ou irás ver-me a fazer loucuras.) Senhor, estamos tão mal acomodadas e aqui tão pouco seguras de todos os que nos podem ver, depois haverá lugar para que podeis falar. Quero atrever-me a pedir-vos que nos dê licença que entremos, que estamos ausentes de casa há já algum tempo. E Claridán, tão galã, encontrou-nos no caminho e avisou-nos acerca do almoço. Perdoe-me vossa senhoria,

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se este pedido é um enorme atrevimento. Peço desculpa por não o saber, e pela minha fé, não me ter ocorrido. Não me tinhas avisado, Claridán, que presentearam estas senhoras a quem meu cuidado está? Bem, ide em boa hora, e vocês vão servi-las, que eu quero regressar à vila por estas ruas cobertas de flores. -Que a tua vida no céu prospere. Afasta o coche, Riselo. Quero antes esconder-me, estas árvores são próprias para isso, pois para tirar-me do engano esta é uma boa ocasião. Teodoro estava impaciente. Também quererá Luciana? Os ciumentos conhecem-se facilmente. Enfim, estes são criados e a amizade entre eles guarda a mais firme lealdade que a que estão obrigados. Eu adoro aquela mulher. Se ela se afeiçoa a Teodoro, serei néscio se a adoro podendo não a querer. Árvores, peço-vos que me oculteis não como Eneas, e que não dareis ciúmes ao vosso refrescante verde. Só quero confirmar os meus ciúmes; fazei-me esse favor, pois tantos amores sabeis cobrir e calar. Que fiz eu para a minha honra

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merecer tal desprezo por um louco? Teodoro, volta a sentar-te; volta, por Deus, ao almoço. Estás muito néscio. Confesso que estou muito néscio, pois vou fugindo de ti e viver sem ti não posso. Mas, ai Luciana, que devo fazer? Quem me aconselhará para me defender de mim quando eu próprio me ofendo? Volta, não estejas aborrecido; come, não sejas mal educado; olha que se faz tarde e é necessário que voltemos. Falas de comer, Luciana? Antes comerei veneno, perderei antes a minha vida e mil vidas. (Que coisa esta! Quando alguém se põe a ouvir as suas suspeitas, ouve menos? Olha que estás zangado sem razão nenhuma. Eu confesso-te, não aguento mais. O Conde matou-me com ciúmes, um senhor rico, formoso e meu dono. Oh, que um fogo ruim queime o Conde! (Não é mau que seja um fogo ruim porque se fosse bom fogo, queimar-me-ia mais depressa.) Que querias tu que fizesse com um senhor

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e mais ainda, o teu senhor? Seria melhor que perante tanta moderação fosse descortês? Pois com homens do povo e com a gente mais vil não haveria mal fazer isso. Teodoro, eu sou quem sou, e se te oiço e te quero, é porque tenho esperança de haver casamento; mas o Conde não me quer para esse fim e eu tenho muitos fins para examinar, tenho muito estima por Florencio e não lhe serei ingrata, pois o amor que lhe tenho é suficiente mesmo não fosse pai; Quanto mais sendo pai e tão bondoso? (Que bem está a minha pretensão! Estou bem arranjado. São estes bons criados?) Vês o que me estás a a dizer? Pois não é possível sossegar a cólera dos meus ciúmes. -O que te posso fazer eu, Teodoro? Pois que me vês a morrer, podereis fazer-me uma promessa de ódio ao Conde. Luciana, diz que jamais lhe abrirás uma porta para o teu peito; que rasgarás as suas cartas; que não escutarás as suas súplicas; que aos seus ricos presentes darás escárnio e desprezo; diz-me que tem má aparência, e um corpo desproporcionado;

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e se quiseres fazer comparação de algo feio, que seja com o Conde. Basta. (Isso será se eu quiser que com tanta baixaria não poderá haver consentimento. Vede o que se passa no mundo tudo por causa de amor! Teodoro bem favorece a minha causa. Que belo ofício de um bom criado! Devo-lhe a minha gratidão.) -Digo-te que juro, Teodoro. -Jura pelos teus olhos. Por eles darei a Próspero, teu senhor, ódio extremado, não aceitarei as suas cartas e não escutarei as suas súplicas; desprezarei os seus presentes irei compará-lo com a feieza, e dizer mal da sua aparência. Virás almoçar com isto? Irei servir-te com ânimo, satisfeito com essa promessa pela qual juro amar-te mil anos depois de morto; ser o teu esposo e conservar, para que o possa merecer, os pensamentos mais castos, os mais honestos desejos; não olhar a formosura se não for com desprezo, nem dar o meu pensamento a gosto de outrém.

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Se aparecer a formosura com cabelo ruivo ou negro, direi «tudo isto é sombra de ti e dos teus cabelos»; «a sua boca e os lábios rosados», direi... Pára, que penso que vamos ficar sem almoço. Perdoa-me se te causo enfado, que o amor fica sério rapidamente quando está sobre os ciúmes. Pois eu juro, não pelos olhos tão ingratos e orgulhosos da mais néscia mulher, excepto aos do amor cego, não procurar vingança com tentativas declaradas, que não é bom para a minha honra serem estes os meus criados, salvo procurar salvaguardas com tão subtis enredos, dissimulando a ofensa que todos os quatro me têm feito, que venham às minhas mãos, e será oportuno o tempo em que, pedindo-me misericórdia, não a encontrarão no meu peito. Matar Teodoro, seria coisa certa se me deixasse vencer por tão baixo pensamento, e ao traidor do Claridán irei colocá-lo em tão grande conflito que os que servem irão aprender

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a guardar lealdade ao dono. Mas vendo que isto é amor e considerando que começou em minha casa quero, pela força do engenho, ser traidor ao que é traidor, lisonjeiro ao lisonjeiro, desleal ao desleal; tal causa, tais efeitos. Os quatro não me enganarão por muito que saibam disto porque enganar ao que avisa, como é possível a quem está no seu juízo? E como ficou o Conde por nos encontrar ali juntos? Não sei o que pensa sobre ti. Detém-se e não responde. Não deve imaginar que Luciana tem amor por mim. -Parece-me antes que sente tristeza. -Para que eu entenda, que emenda tem? Algum engano que, quando perceber o sofrimento, não te ofende de forma alguma. -Sim, mas pode ofender a fidelidade, reciprocidade e verdade que ao dono se deve ter? Não, Teodoro. Pois tu foste o primeiro a querê-la, e o teu amor para com ela é legítimo e verdadeiro; e, por fim, será tua mulher e ele quer desonrá-la, de modo que o teu amor deve defendê-la

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a quem a quer ofender. Logo, não será traição que eu defenda Luciana? Antes virtude, pois é louca e vã a sua pretensão. Jurou pelos seus olhos que terá ódio à sua aparência sentirá enfado quando o vir à janela e na rua e comparar como ele quando vir algo feio. Que ela seja forte pois haverão mil eventos com ele. Claridán, as mulheres querem mais os seus pares, que com ímpares sentem-se mais inseguras. O amor não é bem correspondido de menor para o maior, pois volta para trás. -Fala baixo. -Como? -O Conde. Põe-te rápido a caminho, Teodoro. Assim Deus te acompanhe, que hás-de partir esta tarde porque o Marqués, meu sobrinho, disse-me que se sente mal; visita-o com esta e fala-lhe da tristeza e cuidado que sinto, e que se piorar irei eu em pessoa. A minha não está muito boa e algum cavalheiro da casa

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podia fazer melhor esse caminho sem faltar às suas responsabilidades. Desculpaste-te como é costume; só confio a ti as coisas do meu sobrinho, a quem ele sabe que eu tenho afecto. -Vou preparar-me. -Faz o que te peço e rápido. Assim que me derem o recado. (Eles pensam que me enganaram mas eu percebi tudo. Viva Deus que Teodoro há-de sair hoje da corte!) Bem pensava eu prevenir-me de alguns enganos. -O que te parece? -Não sei. Mas não podes recusar. Se me quer fora daqui, foi de enorme astúcia, e por aproveitar o facto de ser dono. Ele pensa que em quinze dias as suas loucas disputas, com iludido conceito, hão-de vencer Luciana? Ri-te disso. São mulheres, Claridán; o que não é hoje é amanhã. Por sorte, nos quinze dias, vendo o Conde e não Teodoro poderá ajudá-lo e o ouro dar prémio a disputas injustas. Atlanta é, na Antiguidade, um grande exemplo,

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cuja ganância foi tal que venceu a honestidade. Pois se três maçãs de ouro pára as que estão a correr, com quem não corre, o que farão tantas libras de tesouro? -O medo é sempre o vilão. -Posso amar sem ter ciúmes? Deixa essas loucas preocupações que te dão medo em vão e confia na virtude de Luciana. -Quero vê-la antes de partir. Com muito gosto e saúde espero ver-te regressar aos seus braços. Verás rapidamente como tenciono casar-me. Sinto que esses são os melhores laços. E a esse ponto, o silêncio. A Luciana é rica. Se o Conde me faltar, o amor me dará dono em Florencio. Não me atrevo a sair já para o campo por causa do Conde. Se está tão excitado, será alimentado pelas suas ânsias e talvez será melhor que não tomes a água de ferro. Quero perder esses instantes para não despertar o seu amor. Inés, jurei a Teodoro não tomar o partido do Conde e o contrário é do nosso próprio interesse, porque se eu trato mal o Conde, vai perceber que é por causa de Teodoro,

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e, desgostoso, irá vingar-se, que os homens não percebem que os ciúmes causam grandes inconvenientes. Se, em segredo, não tomares partido de ninguém todos esses ciúmes param. E o juramento? E mais isso, mas ouve e não te reveles. Mostraste a mão com que havias de tomar o partido? -Não. -Pois é seguro e simples, e se não concordas com o juramento que fizeste, se disseste com a direita, tomarás com a esquerda. Rio-me quando na ausência se tratam os amantes com verdade, tais firmezas são finas impertinências. Quando uma mulher diz «por pena não comerei», há-de almoçar dez vezes porque almoçar não é comer; se disse que não dormiu, vestida obviamente, é claro que se despiu completamente; e quando diz «não ver tudo, ofende-me», significa que não percebe de galas, homens e dinheiros; se diz, jura e disputa «hei-de ser vossa escrava

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toda a minha vida», deve-se entender que um dia é toda a vida. Existe religião que não faça que -repara no exemplo que te dou- o sustento de hoje permaneça amanhã? E na do amor, tirana, parece-me que a mulher não deixasse homem de hoje para amanhã. Penso bem, Inés, que te enganas e que não falas a sério. Estas coisas são quimeras e falando de enganos contigo, bem sei que, havendo honra, se há-de professar a verdade, firmeza e honestidade até que o amor pare no santíssimo matrimónio. -É o Teodoro? -Ele mesmo. -Como é que ele entrou, Inés? -Os ciúmes são fortes. Tendo de partir para onde o Conde, ciumento, me envia. É forçoso despedir-me e morrer. O amor, com isto, deu-me licença e atrevimento. Teodoro, a dor que sinto bem desculpa a tua dor. Para onde te envia o Conde? Eu não sei se é invenção ou a ocasião assim o obriga, pois neste mesmo dia vou ver o seu sobrinho com esta carta. -Abriste-a? -Eu, abri-a? Parece-te loucura abri-la por causa dos ciúmes?

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-Não tinha envelope? -Tinha. Deixa-me arranjar-te outro envelope. Isto é uma traição e pouca lealdade em mim. O amor traz a sua bula para toda a deslealdade. Não vês que a vontade jamais permite ter senhor e que a todos desdenha; que nela só existe um duque e é ela que o elege, como Génova ou Veneza? -Abre o envelope. -Já tirei a carta. -Lê ou leio eu. -Assim o dizes. Digo. Sobrinho, preocupo-me com a vida e com os maiores enganos possíveis: peço-te que entretenhas Teodoro, o meu secretário, na vossa casa durante seis ou sete meses, que me dá desgosto numa certa pretensão minha e, para não o matar, pareceu-me que este é o remédio mais seguro. Coisas como esta que só da vossa ingenuidade e sangue te confio. Deus te salve. -O que te parece? -Estou doido! Parece-te que as mulheres são a razão? És a única.

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Pois pensaste pouco se achas que não há remédio para isto. -Pois existe remédio para isto? -Sim. Remédio? Espera-me aqui; verás um enorme engano. Platão sabe muito bem filosofia; Jenofonte sabe enconomia; Lívio, história; Anacreonte, amor; Plutarco, a sabedoria moral. Tolomeo bem sabe geografia e Colón, o horizonte antárquico. Ovídeo, a amizade; Virgílio, a montanha, e Horácio sabe a poesia lírica; Homero sabe bem a competência; Arnaldo como se refina o ouro e a alquimia; Zeuxis sabe e ensina pintura; mas se a arte de enganar é ciência, a arte de enganar sabe a Luciana. Que bem estás em casa, Teodoro, que bem estás! Ver-te traz temperança, Lope, ao fogo que me queima e por isso quero que te lembres que te tenho de servir. Para seres Guadalquivir, faltam-te os remos verdes. Que bem estás! Suspeito que se as galeras brancas adornam as suas livres ondas, também as trago no meu peito.

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Pois como estás em casa e forçado? Aqui estou por meu gosto, forçado a um caminho vou. -Lope. -Senhora? -Tem cuidado em entregar este papel. -A quem escreves? -Ao Conde. -Tu escreves ao Conde? Conforme a resposta saberás o que farei com ele. -Puseste-me em mais cuidados. -Vai, Lope. Eu vou. -Estou perplexo, senhora. -Remediei a tua partida. -Vais encontrar-me perdido. -Não, Teodoro. Não estejas triste. Tu vais fingir que partiste e nesta casa te vais esconder. Em tua casa? De que modo? Será o meu pai, Teodoro, quem te vai esconder. Tu queres perder tudo? Verás uma invenção que surpreenderá a tua inteligência. Nela vamos, com precaução, porque perigosa é. Conta-me o que pretendes fazer. Só por estar o Conde pelo meio impede que haja qualquer remédio. Ao conhecer a infelicidade, verás que as velas vão amainar o amor do Conde,

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e que o amor serve, com esporas, a esperança de um favor. É bem verdade que na ausência de Teodoro vai tentar fazê-la render-se. A diligência para o Conde, não vai ser suficiente, porque não passa ouro aqui, pois somos gente de bem. -Vêm grandes milagres. -(Bom, pela vida de Teodoro. -Não é um lindo enredo? -Extremo... -Pois vem comigo. -E seguro? -Juro-te Teodoro, de novo, o mesmo que te jurei.) -Quem estava aqui? -A minha irmã com Teodoro, penso eu. Terá havido choro eterno ao despedir-se de Luciana. Ficariam envergonhados. Ai, Claridán, que nada queira que se ausente! -Que queira antes a morte. -Que se diria de juízos mal formados? Tudo isso o amor ensina. Meu pai e todo o rigor de certos noivos cansados. -Aqui me escondo. -E bem. Nos sofrimentos amorosos, ausências fazem enganos e ciumes causam desdém.

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(Violante está aqui e, se assim quiser, para poder falar-lhe mais livremente, que esperem os dois lá fora. Don Pedro esperará obedientemente, que eu tenho que fazer. -Que o céu vos guarde. -Estarei aqui, senhor. Escondido.) Filha, a vossa idade já me dá receio. Ontem falei-vos, não de forma clara, no que em vosso remédio me desvelo; não tereis em mim um amparo sempre seguro. É um gentil-homem quem vos proponho; rico, embora nisto eu não repare. O seu pai tem o nome de Emiliano; ele se chama Pedro e a meu gosto não se podia fazer um homem de cera que à vossa qualidade figurasse de forma tão justa como este que vos proponho. Meu senhor, sinto-me humilde. gosto do vosso gosto, e nele coloco a minha vontade. Só vos suplico que me deixe falar a sós com esse cavalheiro. Confio no teu juízo, pois tentarás examiná-lo primeiro. Se compram um cavalo, passeiam-no para ver se é lento ou rápido; se os pés, se as mãos o envolvem; se lhe observam os dentes, não será mais justo que as mulheres vejam o que compram?

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Excelente razão. Gosto que o vejas. Senhor don Pedro! Estava aqui tão perto? (Nunca tive tal desgosto na minha vida! Escondi-me enquanto falavam e outro noivo também estava escondido, e vigiava-me com a mão no punhal. Eu o vigiava, pálido também. E fomos, com o tempo, dois homens de sorte. Que o amor queira que acerte na campanha.) Senhor don Pedro, falai com a minha Violante, que a sua felicidade e escolha me aconselha. -À sua mercê. Não quero estar adiante. Terá vossa mercê o atrevimento de lhe falar neste instante. Elogio o vosso raro entendimento porque quer um rigoroso exame para chegar a um casamento oficial. Vossa mercê, pela sua figura graciosa, parece ser saudável. Quando isso interessa, um veterinário cuidadoso vai ver-me. Não é demasiado jovem para moço da corte. É homem de bom esgrimir? Traz punhal com uma só lâmina? Se vos presenteia, a cólera anima-me. Costuma usar luminária no peito, com adornos em cima? Visto-me como um galã.

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Nunca lhe fizeram um sotaina a que chamam capa de cor? Usa calçado estreito? Vai muitas vezes aonde não o chamam? Sabe falar com vocábulos esquisitos ou com os dos bebés que mamam? Escreve «saúde e vida» nas cartas e sabe falar, quando todos se calam, e em reuniões públicas em gritos? Descende dos gregos ou dos visigodos? (Por Deus, que para noiva não é muito santa, pois examina-me de modos estranhos!) Mas escute também, pois adianta-se, e diga-me se se assusta tanto com os mortos como com os vivos; se calça poucos ou muitos números; se é costume ter os dois noivos juntos atrás da seda, na qual se apresentam os pombinhos; se veste silício e apitos, sem bom gosto, em tons de azul; se encontra joanetes nos braços por chamar meninas com bonecas aos homens que dão tais laços; se dá respostas secas ou suaves; se é amiga de coches ou de touros mais do que de almofadas e de fiar. Mais alguma coisa a dizer, cavalo de ouro? Se dissera não estar apaixonado, que derrame chamas vivas pelos poros. Pelos poros? Que vocábulo licenciado!

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Bem, como termina esta música? Fico despedido e humilhado; mas, por estes enganos, que é o mais certo, vossa mercê irá fazer-me uma certa coisa. Que vos servirei, acredite, se for acertado. Amo-vos por serdes discreta e formosa, e desenamorar-me de repente parece-me difícil, por Deus, consegui-lo diligentemente. Mas, entretanto, peço-vos licença que me sente aqui. O vosso estilo cortês, vossa paciência, obrigam-me a ter de vos servir, mas nunca o amor se cura com a presença. Eu farei a minha diligência com ouvidos. E eu direi que para vos desenamorar, persuadir-vos deve bastar. Pois com isto o melhor será deixar-vos porque nestas sedas há gente que se pode aborrecer por ver-nos a falar. Um santo haja Deus. Pura benção de noivo deste tempo. Que o céu vos guarde. -Parecias néscia. -Sim, mas segura. De que serviu agora fazer alarde de tantos desatinos?

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Pretendia que fazer com que este mancebo se acobardasse, os que são repreendidos no primeiro dia acobardam-se toda a vida. Não foi ousadia dar licença para voltar? Quando as mulheres são firmes? Não temas competências desiguais. Amo e temo. A minha irmã e o seu amor tardam. Vamos; compensaremos as suas ausências. Foi um milagre não ter matado este homem. Claridán, este não é tempo de contendas. É mais homem, quem tem mais prudência. Procurava vossa senhoria, com boa nova e certa, na sua casa, e à porta da minha venho falar-lhe. Este papel de Luciana merece boas alegrias. Por quem dá e quem oferece, ide, Lope, amanhã a casa, onde vos darão vestes e cem escudos. Este papel foi livrança bem correspondida, que à letra vista aceitaste. -Não foi à letra vista. Pois leia. Asseguraste hoje a minha conquista, meu doce amor. Vossa senhoria pode visitar-me em minha casa sempre que o desejar

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e é esta a maneira: um irmão de uma amiga minha, que se chama don Pedro, feriu um seu rival. Vossa senhoria há-de falar com meu pai e, dizendo que é seu familiar, pedir-lhe que o esconda em sua casa até ver se o homem morre, cuja ocasião poderá entrar para visitar-me e ver-me. Deus vos guarde. Haverá invenção mais valente? Haverá coisa mais bem planeada? A minha sorte está declarada; já é certa a posse. Oh, que bem fiz em mandar Teodoro para Madrid! Olá! Perguntai, dizei se posso falar com Florencio. Irei chamá-lo, senhor, como haveis aconselhado. Podeis ir, estais dispensado; o Amor favorece-me hoje. Senhor, o Conde Própero vem falar-vos. Pois o que me quer vossa senhoria nesta casa, grande senhor? Que honra, que privilégio é este? A notícia de que o vosso valor e entendimento deu-me a opinião que tereis e me trouxe para vos falar. Retire-se comigo. Se for para vos servir, ofereço-vos agora a casa e a fazenda. Confiando no que disse e se é forçoso valer-me de um fidalgo

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num certo caso, Florencio, de todos sois o preferido. Mais uma vez, obrigais-me a servir-vos. Don Pedro, um cavalheiro de minha casa, não menos que meu primo, teve à noite uns certos golpes numa rua, que entre homens não se descansam as espadas. Queria escondê-lo da justiça e enquanto descansa a malícia dos seus rivais e pensei que na vossa casa estaria bem guardado, pois é grande, tem jardim e é retirada. Podeis fazer-me este favor? Quisera eu que esta casa fosse uma fortaleza, para que fosse digno o aposento de um homem com esse mérito. Em boa hora, venha mil vezes, acredite que será servido com vontade e quando faltarem forças ao desejo. Muito obrigado. Vou. E porque é justo, vou enviar-vos as obras que vos devo, elas darão testemunho a Florencio. -Enviai rapidamente. -Isso farei. -O céu vos guarde. O mesmo, ilustre Conde. Que a vossa vida prospere longos anos. A sorte fez com que o Conde me envie alguma coisa. És um grande príncipe. Entra, Lope, e chama as minhas duas filhas,

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quero falar-lhes do sucesso, pois em casa vive-se com modéstia. Sei muito bem que guardarão silêncio. Elas vêm; conta-lhes o que se passa. Filhas, o Conde Próspero partiu agora mesmo de nossa casa. Teremos, por sorte, casamento de criado? Estás longe da verdade, Violante. O homem quer que eu tenha em nossa casa, homem sem pretensões e que nem se casa, um de don Pedro, um primo-irmão seu, que se esconde por certos golpes. E tu metes em casa homens que brandam espadas? Luciana aconselha que assim se ganham amigos desta sorte e que o Conde é um príncipe discreto, com boa reputação na corte. Faria bem negar-lhe que se escondesse, cara a cara, um homem de atributos? Que importa que o tenha aqui seis dias? Se isto vos cansa, escondam-se vocês. Senhor, ninguém discute o que é justo, para o ser basta sê-lo a teu gosto. -Não sei se me atrevo a entrar. -Entrou um homem. -Quem és? -Senhor, dai-me os vossos pés. Quero dar os braços, que em vos ver e pelo recato sois o primo do Conde. Animo-me em ver-vos com tal nobreza e boa cortesia. Sou don Pedro, quem o Conde manda servir-vos.

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Não tenho mais que dizer-vos que os meus adversários andam atrás dos meus passos. Já a minha vida vos confio. Eu prepararei, para que viva, os remédios necessários. Senhoras, perdoai-me, que os homens tímidos trazem sempre diversão com o medo da prisão. Mau hóspede virei a ser, não me posso dispensar que, tendo de confiar, a melhor escolha e embora a dívida amedronte vos asseguro, e confesso-vos, não posso ser preso com dois anjos da guarda. Estai seguro, senhor. Aqui sereis servido, não como é merecido alguém tão generoso, mas como nos for possível. Preparai o aposento. Acreditai que toda a casa deseja dar-vos alegria. Se o jardim vos agrada, podereis entreter-vos nele. Se quiserdes livros, que são amigos, tenho ali os romances de Cintio. Alegrai-vos, que tudo acaba bem ou mal, por dinheiro ou por precaução. Fecharemos de alto a baixo, e também com todo o rigor. Há paredes que bem podem dar lugar a um ataque. Não fiqueis triste. (Não estaria se este vilão de amor

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não me escondesse do meu rival; com efeito, quero o bem a quem me faz andar assim.) Como comigo se passou o mesmo quando era jovem, se quiserdes sair e ver quem passa de noite, eu tenho gente em minha casa de quem vos podeis servir, e mesmo eu, se pegar na espada, irei convosco. Que Deus vos dê muitos anos, pois sabeis dar alegria aos homens aflitos. Eu não hei-de sair, senhor, que o rival é forte e chegará aos seus ouvidos. Mas enquanto dura esta fama, tomarei conselho convosco, para enganar certo velho que é pai dessa senhora, e com isto poderei vê-la e há-de vir a ser minha. Quem ama corajosamente não teme nenhuma estrela em contrário. Dir-vos-ei coisas notáveis, para enganardes esse pai, pois, don Pedro, é certo que sois amável. Ficareis aqui muito bem, nessa fortuna que vos percorre. Se a vossa me socorre dou-me já os parabéns. Entrai no jardim enquanto vos preparam o aposento. Vou com muita alegria. Filhas, nunca me espanto por aquilo que passei.

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Fui moço, estive em perigo, feri-me, preso estive, o tempo chegou e acalmei. Se quiserdes, havemos de brindar este ilustre cavalheiro. Se te agrada, quero servi-lo. Entrei com vossa licença, porque o Conde mandou-me que desse um recado a don Pedro. Foi para o jardim e levam-lhe agora a comida. Sou camareiro do Conde; ninguém em segredo se esconde de mim. Nem aqui haverá quem vos impeça, mas irei falar-lhe primeiro. Ide em boa hora. Que coisa é esta tão engenhosa? Por Deus, morro de riso. Mas o que faremos se o Conde quiser ver este don Pedro? Inventaremos uma indisposição que o possa entreter enquanto nos casamos. Quem fez o primeiro enredo fará outros mil. Estou certa de que estamos seguros. Mas não vês que o Conde pensa que Teodoro viaja, e ao mesmo tempo concede que o esconda em minha casa? Já estou a ver, Luciana, e que a pura discrição deu um efeito doido à sua vã confiança. Lope vem perturbado.

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Claridán, Teodoro e o senhor estão à mesa, que o velho fez-se convidado. Bem, parecem sogro e genro, mas aviso que don Pedro está aqui. -O meu noivo? -Sim. E o meu eterno cansaço. Violante, falemos-lhe bem, que neste don Pedro creio o bem. Pois aborrece-me o mundo que como você se importe também. Vai para dentro, Claridán. Que esta casa já é do Conde. -Vou ver como está o Teodoro. -Estão a comer. Se te parece, Violante, que peço licença apressadamente, a paciência causa repugnância, mas eu sou amante dela, que embora te tenha jurado desenamorar-me rapidamente, não se junta a este conselho de repugnância tão rápido como gostarias, e de que se encontra preparado. Um homem enamora-se rapidamente até que fique doido, mas depois separa-se e desenamora-se pouco a pouco. Percebi agora que para amar basta entregar os despojos, vem um homem sem enfado e descobre o caminho trilhado, mas para regressar, quem sabe, húmido em pranto dos olhos. Termino, venho pedir-te três dias para te esquecer, pois foi impossível

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persuadir-te que quero apenas ouvir-te, Violante, que apenas quero conhecer-te e não fazer com que me tenhas repugnância pois percorrendo a outra parte penso que vou esquecer-te e devo ir a querer-te. Outras coisas vi e, embora me parecem bem, não têm aquele desdém com que levo de ti. Põe, senhora, mais cuidado em odiar-me mais; mas não, que me darás mais ocasiões de te querer, porque para odiares hás-de amar e não desejar. Don Pedro, com que oração pensada me persuades! Podem pensar-se verdades, e são verdades quando as digo. Enfim, pedes-me três dias para acabar com o teu amor? Os teus olhos têm de perder o medo das minhas ânsias, que bem sei que não há-de ser nem três nem três mil poderosos. Tanta mulher formosa não te esforça a desejar? Como o homem que comeu, mesmo que um príncipe veja a mesa, não o regozija nem lhe desperta os sentidos, assim a mim, morto o desejo, fico com imensos desgostos -tal como o que levo nos olhos- com quantas formosas vejo. Pois don Pedro, a mim importa-me que me faças sentir repugnância.

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-E a mim, querer-te. -O Conde está aqui. Conforme dita a ocasião, nesta cadeira se se deve sentar e, no meio dos dois, dissimular. Deus vos guarde. Estou muito contente que o Conde venha nesta ocasião. Pensei em encontrar-vos sozinha. Está aqui o senhor don Pedro, por quem escrevi a carta. Tenha-me vossa mercê por muito seu. -A demora é minha em não nos conhecermos. -Esta manhã falei com Florencio para que vos tivesse nesta casa como um filho, e assim me prometeu, e bem se vê que vos guarda com cuidado, pois está fechada e quem suspeito pareça só chega até ao pátio. A nobreza que acompanha o valor antigo que revelam as vossas armas, as bandeiras inimigas, o capacete coroado, as crónicas, as histórias que fazem reverência à fama e que se guardam para memória nos arquivos do tempo, que poderíam prometer senão essa mão sincera que me daria protecção e que na casa de Florencio me daria dois mil conselhos dignos de tão rico sangue? Porque tenho mais amor que méritos, e

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esperanças, embora a cruel Violante me responde sempre de forma ingrata. -Isso, mas quereis a Violante e vindes a esta casa por essa razão, e não é tanto a contenda como a irmã me disse? A irmã favoreceu-me, e Florencio apoia a minha parte, mas não é suficiente. Don Pedro, eu pensei que estaria aqui sozinho para tratar das feridas. Tenho feridas que trespassam a alma, ilustre Conde, e o pior é odiar-me sem causa. -Afastaste-te por ela? Por ela e para lhe agradar farei coisas incríveis. Se soubesse que Violante vos tratava dessa forma, eu cuidaria de a suavizar. Pois entre golpes ponde-vos em perigo e ela paga-vos dessa maneira? Dessa maneira me paga, que me golpeia o amor, e a alma em várias partes. A contenda correu-vos lindamente pois a razão para estardes aqui é a vossa senhora. Contendas tenho eu com ela, estranhas e cheias de sangue, odeia-me e mandou-me esquecê-la. Não ireis encontrar a justiça por mais que a procureis. Não quero justiça porque lhe peço piedade. Perdoai, Luciana, que falava ao senhor don Pedro, pois desejava conhecê-lo.

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Desculpai a minha demora. Pois já sabeis o que se passa. Rogo-vos que o favoreça. Basta o vosso gosto. Porque não me perguntais por Teodoro? Teodoro molesta muito esta casa e depois porque aguarda outro dono. -Já está em Madrid. -Valha-me Deus! Ele vos valha e com que força saiu essa admiração da alma. Não hão-de faltar maldades. Esta noite, pelas dez, quero falar-vos sem testemunhas. Se don Pedro não andar pela casa, eu sairei. Já conheço todas as suas desgraças, e hei-de confiar-lhe as minhas antes que desta casa saia. -Enfim, Teodoro foi-se? Esta ausência de Teodoro é um corajoso toque às armas. -A jornada foi muito longa? -Foi ver um sobrinho meu. -Voltará depressa? Se demora, para vós voltará rápido; se não, será um longa ausência que passará os seis meses. Que a saúde não lhe faça falta e que nunca regresse de lá. Por apenas essa palavra, prometo-vos um adorno com cem diamantes encastrados, e vou-me porque

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não quero lançar suspeitas, que quem ama, por enfado é descoberto. Adeus, Violante. Ilustre Próspero, a minha irmã confessa que vos está muito devedora. Don Pedro, uma palavra. Que manda vossa senhoria a um escravo que aqui tem? Pois trouxe-o a esta casa e procuro com Violante que conquistemos a sua simpatia e me pague no mesmo ofício com a divina Luciana. Servirei a vossa senhoria pelas muitas obrigações. Se aparecerem inimigos, levais a minha espada a seu lado, porque são as mais seguras quando os senhores as desembainham. -Beijo-os os pés mil vezes. -Porque me acompanha? Irei à porta convosco. Vai fazer isso? Porta nem vê-la! Não vê que alguém que queira justiça o pode avistar através da porta ou de uma janela? Pois isso não me importa, que casar não é delito. Enquanto o ferido recupera, o melhor é que não se saiba o que se passa. -Adeus, senhoras. -Adeus. Que grande nobreza. Enorme, é certo que senhores destes

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roubam as almas. -Ao sair, deu-me este anel. -A mim, deu-me esta bolsa dourada. -Haverá tal príncipe? -É a doação de um monarca soberano. Grandeza de senhor humilde. Alguns enganam-se consideravelmente em mostrá-lo, com cortesias fáceis em nenhum mortal sombreiro o tafetã se gasta. Fiquei aficionado, mas não me agrada muito o seu discernimento. -Porquê? -Porque fala com metáforas. Não percebi o que disse sobre feridas, presos, justiça, espadas, esconder, reservado e outras coisas relacionadas. -São os novos usos da corte. -Tomo o vosso tempo. Deus vos guarde. -O mesmo vos guarde. De vossa injusta vingança. O que te parece? Que foi a coisa mais bem planeada que vi na minha vida. Lope, vai adiante e vê se sogro e genro jogam ou sobre o que é que tratam. Vou. Há ganância em rio revolto. Enfim, Violante, a invenção agrada-te? Basta ser tua, que mulheres e criados podem revirar Espanha. Florencio, deu-me grande alegria por ter recebido don Pedro.

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Quem vos disse? Sinto na alma que saibam que o tenho retraído. Estou muito agradecido, tal é justo, que o honreis com tão honestas intenções. Quero antes deixar-vos satisfeito, coisa que o Conde Próspero só fez pelo medo da justiça. -Que medo, que justiça e que efeito? São certas feridas e a malícia deve temer, que o oposto não é tranquilo. Que oposto, que feridas? A ganância só se serve a si mesma. Pensei, prometo-vos, que sabíeis tudo o que se passa pois tratastes para ele estar em minha casa. Eu estive néscio. São coisas de moço; já sabeis que os anos de juventude trazem estes desgostos e alboroços, e que os ciúmes têm sempre efeitos vis. Nunca prometem as mais certas alegrias; roubam subtilmente a vida e a honra. Enfim, o Conde o honra como a um parente e é por ele que eu e a minha gente o servimos. O que me mandais? -Não tenho o que vos aconselhar. -O céu vos guarde. O mesmo vos desejo. Para tanta velhice, tiros tão fracos? Vejo o néscio don Pedro, por detrás disto, para me enganar. Debaixo das minhas barbas, já não há respeito, só desejo. Onde lhe falarei? Mas ali vem. Mas como sai se tem inimigos?

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Amor, que nunca dás o que prometes e como uma criança pedes o que deste, não há idade segura, não há estado que não perturbes, derrubes e inquietes. Amor, não há livrança que não aceites, e pagamento que não tenhas faltado, embora logo desapreciado te rendas e aos cobardes sempre atacas. Amor, vestido com instáveis luas, filho da esperança e do desprezo, mil vezes néscio e por vezes discreto, quem sensato te dará preço, pois onde descansas mais, é onde importunas mais. Importunar é condição de néscio. Quisera falar-te em local mais secreto para dar castigo às tuas loucuras. Pedro, que como pai posso entregar-te pois já sei que procuras o meu fim. Mas já que feriste um homem, que fazes escondido da justiça e de outras desventuras numa casa tão honrada? Que não é milagre não puxar da espada? Diz-me, porque saíste à tua sorte para mais tendo tantos inimigos? Pois não era eu pai para te ter bem guardado entre familiares ou entre amigos? Dizem-me que está ferido de morte. Se te prendem, faltarão testemunhas? Oh Pedro, tu estás a matar-me! Nem sei se devo responder-te ou irritar-me. Eu, feri quem? Que belo silêncio!

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Pergunta a Florencio o que se passa! É verdade que na casa de Florencio encontrei um jovem, numa casa tão nobre -por Deus, não a distingo de mármore- se bem com ciúmes o amor me queima, porque ele tinha a mão perto do punho, e eu também, senhor, no punho da espada. Mas não me atacou nem disse nada. Estávamos ambos escondidos. Nenhum de vós desembainhou a espada? Quem são os que estão feridos de morte? Pois sem sangue ou honrada contenda, quem viu os homens encolhidos? Tu negas e mentes, mas responde: porque te favorece e te ajuda o Conde? Porque serve Luciana e lhe parece que eu hei-de ser marido de Violante, e eu sei que Violante me odeia e que deve ter um amante secreto. Pedro, essa suspeita enlouquece-te e pôs-te em perigo idêntico. Regressa, volta a casa de Florencio e guarda reserva e silêncio. Isso farei eu pelo que o amor ambiciona: conquistar o desdém daquela ingrata. -Que a justiça não te apanhe. -A mim, senhor? -Não prendem quem mata? -Pois que prendam a Violante. Que malícia! Que maus costumes me relata! Ai, filhos. Quando bons, duram pouco; quando maus, enlouquecem um pai. -Teodoro nunca te escreveu?

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-Deve estar irritado, e estará desenganado de que eu amo a sua Luciana. -Confio no meu sobrinho para o entreter. -Enfim, ele não vai regressar? Demasiado tarde, imagino. Não são elogios vãos, que nesta ocasião na minha idade nunca o são, quero beijar-vos as mãos. Disse pouco: que vossa senhoria me dê os pés. Levantai-vos, pela minha vida; não me façais ser descortês. Sou pai de don Pedro, a quem Florencio contou como ali o havéis honrado e na obrigação em que estou; mil anos o céu vos guarde para que a todos nos possa dar tantos favores. Podeis perder qualquer receio de que haverá perigo onde está escondido. Eu o servi, pelo menos, -não porque o agradeceis- o mais que foi possível, pois disse publicamente que don Pedro é meu parente e também primo o chamei. Pois creia vossa senhoria que não terá perdido a honra, supondo que com o seu valor merecia ser rei, e porque Pedro é bastante fidalgo. Tenho um solar no vale de Carriedo, que como nobre posso disfrutar e por não me faltar dinheiro, a mais certa fidalguia que ofereço a vossa senhoria.

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Muito agradeço a vossa vontade, a vossa intenção. Vós sois dono de tudo. Não ofereça que, por Deus, aceitarei a oferta. Senhor, pois já que sabeis os passos deste rapaz e a sua teimosa intenção que tão nobremente favoreceis, pedi a Florencio que o case com Violante, que receio que lhe cause desgosto por outro amante secreto, que vos juro que a nobreza que lhe dais como primo, não a ireis perder ou manchar, porque poderá ser o início de uma linhagem em Espanha, estimada pelo nome. Eu o tenho como um homem cuja pessoa acompanha a virtude como a honra, por isso falarei com Florencio e lhe darei resposta. Que vivais mil anos, senhor. Eu vou confiante no favor que lhe fareis. Vereis, com efeito, se depositei amor e cuidado. A grandes coisas te obriga o amor por Luciana. Creio que me vai realizar o desejo mil vezes difícil, mas com esta ocasião de arranjar o casamento de don Pedro, a meu tormento, a meu engano, a minha prisão, ficarei tranquilo para falar com Luciana. Vamos, Riselo. Que de outra sorte receio que esta fadiga possa durar.

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De minha sorte com razão me lamento, belíssima Violante, pois sinto por Teodoro, suponho que é por ele que mereço ver-vos, as muitas demoras que pões para o fim de nossas intenções. Ele escondido pode vê-la, sem medo do Conde, com o enredo que Luciana planeou, o bem que o Conde terá já perdido. Mas eu vou atrasando o bem que vou perdendo e desejando. Que don Pedro confia e o enganado Conde apoia o seu intento e a sua ousadia, e enfim, merece como prémio um grande amor. Casar com Teodoro, e eu irei perder-te porque te adoro. Que suspeitas vilãs. Que pensamentos inúteis e malnascidos, que se não aproveitas a ocasião que tens nas mãos, os que odeio podem dar ciúmes, mas são fingidos! São fingidos, Violante? Quem ama de verdade, finge ciúmes? (Céus, tenho sempre de falar diante da injusta causa dos meus ciúmes! Não é este o que se escondeu e assustou o meu início de marido? O que farei, que estou a morrer?) Enfim, Violante, eu hei-de ver a minha morte. (E eu, o que estarei a ver?) O que queres? Que Teodoro desconcerte

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todas as minhas esperanças? (Com este motivo, que amor não fará mudanças?) -Com que razão injusta te queixas? -Quando é que viste razão nos ciumentos? (Com cansaço a mim me deixas.) Violante, entre dois noivos aborrecidos há mais razões do que dizes. (Mas estas feridas há-de ser verdade!) -Aqui está o don Pedro. -Ai, céus! (Viram-me.) Oh, senhora. Deus vos guarde! (Os ciúmes mais extraordinários tornam valente o homem mais cobarde.) -Sejais benvindo. -Que fazeis aqui ociosa? (Estou perdido!) O senhor Claridán perguntava-me pelo seu dono, o Conde. (Se a razão e a paciência acabam e com este me exponho, espero um grande mal.) -Já é tarde, senhora. O que mandais? -Que Deus vos guarde. Para que não vos canseis de mim, senhora, não me atrevo a ter ciúmes deste galã, desta sombra. Enfim, tereis a sorte de apenas ousar avisar-vos que me provoca angústia. Calo-me, mesmo cheio de razão. Nunca vos vi tão sensato, don Pedro, se não agora.

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Serei tão néscio? Pois não é néscio quem visita a quem irrita; quem quer a quem o odeia; quem paga a quem não cobra; quem segue a quem foge; responde a quem não o chama, e que brinca com o fio cortante da espada? Não dizem que o amor merece coroa e triunfo quando permanece firme e ofensas adora? É verdade, mas isso é quando as esperanças o persuadem, e quando os favores o animam para quebrar impossíveis. Mas se o nosso acordo é uma obrigação necessária para vos desenamorar, dou-vos o término por horas. Quem vos há-de agradecer que compitais com as tenazes rosas e com os pólos com que toda a máquina dos céus move o seu curso? Para coisa tão difícil como desenamorar a quem se enamorou por vós, quisera eu algumas lições, porque eu não hei-de ir pelas rosas às plantas de Tesalia, nem onde a lua chora. Suplico-vos que mas deis. Porque me espanta ver-vos, porque me cansa falar-vos e não interessa o que me dizeis, ouvi algumas lições.

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Tirarei o meu livro de memórias para as escrever. Força. -Fazei isso. -Dizei. Escrevei: a primeira coisa é não pensar na pessoa que se quer. Está muito bem. Porque se lentamente toma espaço no pensamento, enlouquece uma alma. Esta tem muito custo. Não é possível vê-la, pois se o edifício se funda em privá-la da vista, que, vendo uma coisa bela, mais firme oscila e mais forte se transtorna. -A terceira: esta é a mais fácil. -Vamos a ver. Procurar outra. E se a sua senhora é discreta, pelo menos que não seja tonta. Colocará aqui os seus desejos: se é nobre falseará histórias, e se for do seu interesse, fará da bolsa prato, que atrás dela irá a alma; que mil homens apaixonam-se muito mais pelo que gastam, do que pelos sabores que disfrutam. Bastam estas lições. São três pontos que me enlouquecem; quero repeti-los para melhor me preparar. O primeiro é não pensar: dai-me licença que responda

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à primeira lição. Dar lições em abundância sem que se coloque argumentação. Não sou doutor, sou noiva. Razão haverá para que o maestro oiça os seus discípulos. Eu começo a não pensar porque o esquecimento salva o meu amor. Se penso em não pensar, é notório que penso, logo não posso não pensar. A argumentos me sujeita, mas não serão muitos se vossa mercê se coloca em tantos pensamentos. A lição de não ver, a alma responde que não é justo que a faça, que tem estas duas janelas que Deus fez para ver a beleza das coisas, e por onde se informa do entendimento da sua qualidade. Quanto a amar outra mulher, penso que se dobra o amor, porque quem o sabe diz que o amor não se suborna. Pois se se vai acrescentar amor, alterando-o noutra, a lição é toda falsa. -Pois, senhor, Deus o salve. Eu não falo mais nos meus livros. O vosso entendimento fabrica remédios que me destroem, pois se se queima Troia e dizeis que se lhe dê neve, a dos Alpes é pouca. Tenho que te falar um pouco, se estás sozinha.

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Estou sozinha. Dizes bem, pois eu me vou e -cansado de te cansar, oh a minha grande miséria!- Violante disse a verdade, porque não há mais solidão do que uma companhia néscia. -Que quer este tolo daqui? -Quer esquecer e querer. -Podem ser os dois contrários? -É néscio e pensa que sim. Senhora, assim que estejas casada com o Claridán, fidalgo, nobre e galã, eu sei que é o que desejas, que impeças o entendimento, pois poderás fazê-lo, do casamento de Inés com Martes, pois jamais ele foi bom; porque, se não foi artifício querer matar-me, diz-me que com ele se vai casar. E, Martes sendo tão cruel, como pode a Inés regozijar-se, pois se não há-de casar-se nem deixar-se urdir na teia dele? Senhora, se queres Claridán, faz-me este bem. Eu farei com que serenes o desdém e os ciúmes que tens. Aviso-te que são abundantes. Prega aos céus que disfrutes teu marido sem gritos, sem desgostos e sem ciúmes; e não passes necessidades; nem empenhes prata nem vestidos; que durmas protegida e não sonhes com prisão ou com doenças;

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te canses de vestidos de seda e tela fina e que nunca na igreja invejes os adornos da tua vizinha; não vejas os inimigos orgulhosos das suas vinganças nem que as confianças dos teus melhores amigos te enganem; que cubras os tamancos de prata e tenhas casa com sol no telhado e com sombra no jardim; que o teu esposo nunca se sobressalte por ires aonde quiseres e jamais te falte coche, que é o centro das mulheres; que a tua sogra não dure um mês e, no que toca a enviuvar, que chores e não dês que chorar e que a aguardente aqueça os teus pés. Esconde-te ali, Lope, que penso que vem aí. Que o céu te guarde e me dê consolo. (Não sei o que esta minha ama inconstante pensa de si mesma, pois estes loucos enganos não hão-de durar mil anos.) -Inés. -Senhora Violante? -O que faz a minha irmã? -Está ali com o dissimulado don Pedro. -O Claridán já se foi? -Já sim. -Há muito? Chega-te aqui. -Agora, neste mesmo instante.

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Inés, Lope queixou-se, ciumento e desesperado, que Martes se adianta nas pretensões de casar contigo. Se queres ter um bom ano, livra-o desse engano. Lope queixa-se de mim de modo que tu argumentas sobre efeitos tão injustos? Eu desvio as suas palavras? Vendo as minhas coisas como suas? Canto com outros grilos e no fim ofendo o cisne? Eu sustento, por ser sábia, que os outros são ignorantes? Quando é que, de forma invejosa, procurei que se consuma a sua opinião? Quando murmurei sobre a sua pena ou disse mal da sua prosa? Lope não tem razão. Só se queixa de Martes, por quem disse que tens a tua opinião mal fundada. Ai, Violante! Mesmo que seja verdade que lhe faço ciúmes com Martes, são artes de fingimento para caçar. Assim procuro ter mais cuidados, pois os homens que desejam querem ser maltratados. Mas em verdade te digo, por ele me atormento. (Pois assim, agora saberei como haveis de estar comigo.) Inés, sendo essa a sorte, não tenho que te rogar. Vou falar com a minha irmã.

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Quero que estejas segura de que sou toda de Lope. -O Senhor está por aqui? -Lope? -Penso que sim. -Em boa hora te topo. Inés, isso de topar é mais próprio para carneiros, e mesmo que aches próprio o Lope considera impróprio. Com quem falavas? -Agora? Com Violante. -E esperavas Martes com oitavas? Falei a minha senhora o estado do meu amor, porque assegura-me que tu procuras o meu bem. Foi erro de minha senhora e que não deve saber que tenho casamento. -Casamento? -Não te minto. -Com quem? -Com uma mulher. -Vais casar-te? -Porque não? Que defeitos vês em mim? Não o digo eu por ti, que por mim o digo eu. Oh, se visses essa mulher! É uma autêntica personagem de Quevedo. Não há tanto prazer numa noite de São João. Terna como uma toranja, sobrancelhas bem pintadas, com uma boca que poderá ir da popa à proa; pestanas de seda; olhos como duas botoeiras; os dentes

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parecem sonetos de Garcilaso; a garganta e a traqueia, superam a neve pura, que pela sua brancura o cisne se pode chamar de cisneiro; mãos como de papel e toda, se não te magoa, como uma peça inglesa ou melhor ainda, como um floco com mel. Que enorme despudor é esse que me falas quando te casas? -Não tens partes dignas de atenção? -Desmaio-me. -Não faças tal. -Pois deixa-me cair. Agora estamos vingados, pois os homens que desejam querem ser maltratados. (Um dia que venha aqui, hei-de falar com este andrajoso que está sempre a causar-me danos!) -És o Martes? Fui em tempos Martes de Carnestolendas, mas agora... Cala-te, vens a tempo, pois tens de dar-me o calor de certas prendas. Em que te posso servir? Inés, embora Martes venha não é bom que com ele te afastes, e me deixes a morrer pois foi tudo zombaria. O lacaio que se chegue para lá, quando está comigo estou a honrá-la como dono. Vou apartar o cachorrinho do lacaio mercenário. Aqui não vai haver discussão. Homem de Peralvillo, tens atrevimento

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contra quem, nas artes navais, se colocou atrás de um farol para se pôr em salvamento? -Hoje morrerás sem remédio! -Sem remédio? Que coisa estranha! Cavalheiros, parem! Parem! Vejam que estou no meio. Pois o que é que se há-de fazer? Que ele e Martes apresentem méritos, serviços, terras e julgo quem há-de ser. Eu digo que sou fidalgo como um cavalo alazão, sincero como um falcão e ligeiro como um galgo. Sou como um galo cantor, e hábil como um jogador, e não há, de norte a sul, um amante mais respeitável. A Inés que fale dos meus serviços pessoais. -Está dito? -Penso que sim. -Oiça. Diga. Em tais casos, tenho que ser Mandricardo da bela Doralice. Vejamos o que nos diz. Sou um valente exagerado; o chapéu sobre os olhos, serve de adereço aos bigodes criminais, negros, porque não são vermelhos. A fisionomia, negócio audaz, tão extraordinária que podia fazer um vocabulário. Sou respeitador. -É? Sim, que tenho saúde agora e saúdo

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a qualquer hora quem me saúda. Canto como um sacristão e bebo como um esponja, cheiro como uma toranja ou ervas de São João. Mato coisas para comer e como os outros que matam. Trato como me tratam e calo-me se está ocupado. Porque sabendo que estudei, sei latim e negar em grego, porque se o sei em grego, como saberão o que sei? Visto pelo meu tribunal, provado e alegado, digo que Lope ganhou. -Eu, vitória? -Tal e tal. -A sentença, no final, foi tua. -Abona em favor dele. Que tal pessoa seja de lacaio tão ruim. -Vai seguindo. -Eu, porquê? Antes livre que ser touro. Presumo eu, Teodoro, que tanta fé te cansa. Estou cansado de esperar, mas não de estar aqui favorecido por ti. Mas fechado, com efeito. O Conde vem aqui, nas ocasiões que tu lhe deste, e deixa-me ciumento com tanta conversa. Penso que me fechaste só para falar com ele, que foi uma astúcia cruel e eu fui enganado. Estão aqui Lope e Inés. Olá! Vão ali para fora. (-Mas há aqui alguma quimera? -São ciúmes. Isso são.)

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Belo pagamento me dás, por enganar um pai velho e um senhor. Esse é um conselho que jamais te dei, pois quando eu partia fizeste-me abrir a carta e dificultar-me a partida foi astúcia tua e não minha. O Conde, que não podia ver-te uma vez por ano, vem mil vezes com este engano, que tem sido uma linda quimera. Ele visita-te e não sei se vem falar-te de noite. Tu sais e ele, no coche, vê-te no Prado, na rua Mayor, e como se fosse para mim, o Conde deleita-se contigo. Que tem sido um estranho primor, pois venho a ser uma dessas cartas de jogo e uma ave da horta, de onde não posso comer. Fechaste-me lindamente e o Conde à casa trouxeste. Teodoro, sempre foste um louco; sempre me foste um ingrato. Eu planeei este engano, Teodoro, para ver o Conde aqui? Não dirás antes: «porque te adoro e não te quero longe de mim?» Os homens são todos iguais quando nos vêem como loucas! Cansai-vos, ofendei-vos, ide-vos com tão baixos modos. Chegas com o lenço aos olhos? Esta é um ocasião de pranto? A ofensa não foi tão grande. Deixa o lenço, que te cegas. Olha que já me sinto envergonhado.

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Foste ingrato com os olhos e como os trato como mortos, amortalho-os num lenço. Oh, que nunca eu te falasse dos meus ciúmes e das minhas verdades. -Diz «necessidades ciumentas». -Pelo menos olha para mim. Olha, que não posso estar tanto tempo na tua angústia. Olha-me ou mata-me. -Oh, que graça. Eu tenho de te matar? -Sim, deixando-me morrer. Se tenho de te perdoar vai ser com uma condição, que tens... -O quê? -De te desdizer. -O Conde está aqui fora! -Foge, Teodoro! -E agora, senhora, não tenho razão? -Que espere, senhora. Oh, lágrimas de mulher, com mentiras como verdades! Que sabeis e podeis fazer injustas amizades! Passo tão mal sem vós que não me dispenso de vos ver, mesmo sabendo que poderei ofender-vos. -Por Deus, boa desculpa. Igual ao vosso decoro e à minha justa cortesia. Não sabe vossa senhoria como eu soube de Teodoro? Que havia de entrar aqui? Enfim, que vos escreveu? -Que interessa, se eu não vos respondo.

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-É assim? -O eco respondeu-vos. -Como disse ele que estava? Disse-me que estava bem, embora por vós ofendido, arde em ciúmes porque diz que me falais e está seguro de que entrais de noite em minha casa. Queixa-se que você me vê, de coche, na rua Mayor e no Prado. -Quando é que vos falei de noite? -São efeitos dos ciúmes pela ausência. Bem me descansais em falar dele, mas não sejais cruel com um homem tão predisposto que sofre destas injustiças e vede que já é tempo de me pagar. Quem aguentará com tantas obrigações? Porque eu poderei querer, mas não poderei pagar. Pois eu tenho de obrigar-vos já que tive a felicidade de ver-vos. Cuidado com as mãos, senhor! Que descompostura é esta? Sofro por ver composta a vossa crueldade para com o meu amor. -Porás a mesa para comer cedo. -Meu pai! -É este o Conde. -Oh, bom Florencio! Senhor, tantas mercês? Vinha falar-vos sobre um negócio de importância. Pois eu deixo-vos, senhor.

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(Deixei meu Teodoro satisfeito por odiar o Conde e mostrar que o adoro!) Florencio, os moços -já passaste por moço- têm fúria na alma e é a vontade que reina e facilmente resvala para o sangue. Sabei que, para que vos fale claramente, don Pedro vivendo em vossa casa, está de tal modo inclinado para a Violante que a ama até à morte. Em lágrimas, pede-me que vos diga que lha deis em casamento, sendo ele um cavalheiro tão nobre, mesmo que não mereça descasá-la. E eu recebo dele um enorme favor porque sei que meu primo se empregou com pessoas de grandes méritos. Quero cair aos vossos pés, tão obrigado que estou desde hoje, eu e minhas filhas e meus familiares serviremos o vosso nome como escravos e hão-de nos chamar pelo vosso apelido. Don Pedro ficará agradecido e a nossa casa ficará honrada com Violante. Quem terá tido semelhante alegria? Pois bem, Florencio será. Esta noite, eu mesmo o trarei no meu choche para precaver o alegre casamento. Ele irá ver-me e regressará comigo galã de pensamentos, seda e ouro. Pois irei avisá-lo para que vos veja logo, Conde e senhor,

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assim que seja noite. -O céu vos dê mil netos de tal genro. E aumente a vossa vida num eterno século. Quem terá tido semelhante alegria? Que homem com tanta idade foi tão feliz? Oh amor, casamenteiro dos céus, que a ti mesmo dás um dote único! Em boa hora, o nobre primo do Conde sofreu estas feridas e em boa hora o escondemos na minha alegre casa. Enfim, terei netos do primo do Conde. Olá, Lope! Fabricio! Olá! Chamai-me logo o senhor don Pedro. Dizem sempre que o seu dono ouve melhor o seu próprio nome. Como vos posso servir, pois desejo saber a causa da alegria em que vos vejo. Senhor don Pedro, o Conde Próspero, encantado, arranjou-me um casamento; até posso dizer para mim, porque vos quero tanto, que quase me põe a pensar que sou eu que me vou casar. O Conde é um grande cavalheiro e quer favorecer-me para que seja vosso genro, porque se o bem me deseja, que maior bem poderá fazer-me? Não me respondais assim, que esta casa não merece tanto bem. Ela enriquece a nossa, ao Conde e a mim. E quando será? Agora e para esta noite, virá aqui com o seu coche, com que vos quer trazer. E eu esperarei em vossa casa porque,

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embora tenha amizades, ainda não estou muito seguro. Vou contar às minhas filhas. Suspeito que vão ficar loucas. Que fim tencionas pôr aos enredos que fizeste? Nesta altura, Teodoro, o Conde manda chamar o don Pedro. Claridán, não há que esconder nada do Conde, prudência até chegar a ocasião para me casar. Ele não quis esconder-me e não procurou a sua ficção? Pois eu também, Claridan, procurei os meus códigos. -Foi erro de amor? -Sim, foi. -Pois estão desculpados. -Esta noite, perdemos o Conde. Sim, mas ganhamos uma rica fazenda e casamos tal como queremos. Quando um senhor se desagrada, o que faz? Despede imediatamente, quando rugar não vale pena, mesmo com injusta causa. Pois o criado poderá ter a mesma liberdade, se outro dono como maior comodidade o chamou. -Perderemos a fama entre o povo. Isso é loucura. O Conde procura o seu gosto, mas não é razão. E por um gosto viciado não há-de perder dois criados, que ele sabe que são honrados, um remédio que é tão justo. Vamos prevenir-nos que o Conde, por fim,

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é quem é, e nos há-de honrar depois. Agora, se servir tal é mau galardão, siguemos a nossa fortuna, pois não há que esperar nenhuma se perdemos a ocasião. O don Pedro já voltou? Estamos à espera dele, para haver mais ligeireza Ricardo levou o teu coche. Disseste-lhe que viesse com adornos de casado? Já sabe da sua felicidade. Caso-o por interesse meu, por obrigação a Violante, de cujas mãos espero a posse de Luciana. -Don Pedro já chegou. Perdoe-me vossa senhoria se me atrasei; esperava o alfaiate e o sapateiro. Não pude mais. Don Pedro, estais desculpado só por vir tão galã. Não me prometia menos o vosso generoso amparo, em cujas alas, senhor, mereço os raios do sol. Fiz-vos meu primo e toda a casa vos serve. Favor tão grande não pode ser de peito menos nobre. -Parece-me que é hora de ir. -Achas! Olá! Achas! Olá! -Don Pedro, ouvi... -Já sei o que quereis. Falais-me de desonra,

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e Luciana vai ser vossa ou hei-de viver mau casamento com Violante. Estou perdido! (Que viva Deus. Se me caso, este não há-de entrar pelas minhas portas.) -O coche chegou. -Achas! Partamos. -Desdobra bem esse estrado. -Esta sim, é a noite. Enquanto não acontecer, estarei em sobressalto. Já não tens que temer porque combinamos declarar-nos ao Conde. (Inés, estes canalhas a revoltarem-se contra o pão que comeram dos seus amos, e estas duas a favorecê-los. -Lope, eu falo com respeito. Conheces mal os enredos de mulheres e criados. Que elegantes e compostas estão estas duas nos seus estrados. As mulheres têm dois dias que celebram com grande ostentação, mesmo rindo ou chorando: um é casar e o outro é enviuvar. -Fala baixo. Vem aí o senhor e o noivo. -Diz noivos, que são quatro.) Este é Claridán, camareiro do Conde, que tem tratado das minhas coisas com ele. -Já sei que veio prestar-nos honras. -E servir-vos como é obrigação.

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Podeis embelezar-vos enquanto vem quem vos irá dar as mãos. Aqui, senhor Claridán. Não fora razão para tirar o lugar ao vosso esposo. O Conde e Emiliano com don Pedro! (-Tróia foi aqui! -Estou morto! Eu estou a tremer!) Florencio, trago aqui meu primo o senhor don Pedro. Senhor, aqui estou para vos servir e para ser escravo de Violante. Somos familiares com Florencio, pois já juntamos o nosso sangue. Que don Pedro e vosso primo? Aqui está a quem eu dei a minha filha, que não é o don Pedro filho de Emiliano, mas sim este cavalheiro. Como é isso? Afastem-se! Outro don Pedro? Este foi um bom ano de don Pedros. Não é este que vejo aqui, o Teodoro, meu secretário? -Sim, senhor. Eu sou Teodoro. -Por conseguinte há aqui engano? Senhor, quando me enviaste ao Marqués, vim perturbado despedir-me desta casa, onde há mais de seis anos que sirvo a Luciana, e ela, suspeitando do meu sofrimento, abriu a carta e, lendo a tua crueldade

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e a minha ofensa e sem me dar parte, planeou o engano em que estás: que Florencio me recebeu como don Pedro e pensando tu que quem trazes é don Pedro. Casaste-o com Violante; aprendeu com a tua invenção. Eu já estou casado. Se por acaso te ofendes com o meu remédio, prefiro morrer com honra pela lâmina da tua espada do que num longo exílio. Estar ausente seis meses! Pois que viva o céu, traidor, que assim será verdade. Senhor, um ilustre príncipe, que é exemplo para todo o mundo, vai cometer um acto tão baixo? Vós e espada contra um vosso criado? Se é assim tão mau, não é digno da minha nobreza. Não é don Pedro? Matém-no! Senhor, já está feito. O seu crime foi amar, não é justo que o castigueis da mesma culpa de que vós sois culpado. Casou-se com Luciana; se estais irritado por mim, fico aqui com a Violante. Não fica, senhor fidalgo, que Violante é a minha mulher. -Isso é pouco e mal falado. Mato-o eu? -Não matais ninguém. Vede se estou bem vendido pelos dois! Pois hoje morrereis ambos. Violante rogou-vos por Teodoro, senhor. E obrigou-me a rogar por Claridán.

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Que linda liberdade! O que espera, não restitui a minha honra? Calma, amigo Florencio; não inciteis assim o Conde. As suas filhas casaram-se com dois fidalgos muito nobres e criados de um grande senhor. Se pior fora, ouvi àparte. Os dois estão a deliberar sobre o que hão-de fazer a estes selos. -E quantos pares são? -Quatro. Reconheço que isto é melhor e que fico mais honrado. Senhor Conde, eu sou o responsável por este episódio e, pensando que se não o acabar aqui resulta num prejuízo maior, peço-vos que tenhais por bem que criados tão honrados como os vossos sejam meus familiares. Se é o que quereis, eu calo-me. Haveis de ser padrinho; haveis de os perdoar. Eu por vós os perdoo e abraço-os, e sendo quem sou, dou doze mil ducados de dote a estas senhoras. E a mim, que também me caso com Inés, não há qualquer coisa? A ti, mando-te duzentos. Diga vossa senhoria se são ducados ou paus, que duzentos é um mau número. Que o diga Martes. Pois digo-lhe que lhe dê

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duzentos figos. -Figos? Caso-me sem dote! -A burla veio a ser minha. Aqui terminou Belardo, o que se passa no mundo de mulheres e criados. Tradução: Luís Mestre ( [email protected] )