Mulheres Em Movimento: migração, trabalho e gênero em Belém

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MULHERES EM MOVIMENTO MIGRAÇÃO, TRABALHO E GÊNERO EM BELÉM DO PARÁ SODIREITOS MAIO 2011

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MULHERES EM MOVIMENTOMIGRAÇÃO, TRABALHO E GÊNERO EM BELÉM DO PARÁ

SODIREITOSMAIO 2011

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Coordenação e redação final:

Lucia Isabel da Conceição Silva Marcel Theodoor Hazeu

Agentes de Pesquisa (Mulheres Migrantes)

Adriana Pinto Nascimento Danielle da Silva Lima Danielle Silva de Sousa Delma da Silva Santos Gleize Letícia Raiol Castro Josenilda Santos Silva Leticia Libini Lourenço Pereira Luciana Maria Farias Moutinho Patrícia Guilherme Machado Shirlene Souza da Silva Siglia Betânia da Silva Souza

Editoração e capa: Arthur FariasNormatização: Ellison dos SantosRevisão de texto: Roseany Lima

Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais na Amazônia - Sodireitos

Conselho DiretorAndreza Smith - Diretora GeralGiselle da Silva – Diretora de PlanejamentoSandra Cruz – Diretora Financeira

Conselho FiscalEliana HazeuMariselma FernandesSimone Fonseca

Coordenação executivaAlvaro Negrão e Mileny Matos

Equipe técnicaAngélica Lima, Cleia do Carmo, Danielle Figueiredo, Lilian Pinheiro, Lucia Isabel Silva, Luzimary Leão, Manoel Junior, Marcel Hazeu, Patricia Miranda, Paula Pantoja.

Estagiários: Arthur Farias e Rosildo Reis

MULHERES EM MOVIMENTOMIGRAÇÃO, TRABALHO E GÊNERO EM BELÉM DO PARÁ

_______________________________________________________________________________________________Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais na Amazônia Mulheres em movimento: migração, trabalho e gênero em Belém do Pará / Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais na Amazônia. Belém: Sodireitos, 2011. 167 p. ISBN

1. Mulheres – Migração – Belém (PA). 2. Mulheres – Condições sócioeconômicas. I. Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais na Amazônia – Sodireitos.

CDD 305.43098115_________________________________________________________

Ficha CatalográficaElaborada por Ellison dos Santos

Copyright: Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais na Amazônia- Sodireitos, 2011Todos os direitos reservados. Esta publicação pode ser utilizada, desde que seja citada a fonte.

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MULHERES EM MOVIMENTOMIGRAÇÃO, TRABALHO E GÊNERO EM BELÉM DO PARÁ

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APRESENTAÇÃO

Em março de 2010 a Iniciativa Global das Nações Unidas para Combater Tráfico de Pessoas (UN.GIFT) convidou organizações não governamentais que atuam contra o tráfico humano para submeter projetos para o recentemente criado Facilidade de Pequenos Fundos (Small Grant Facility). Cinco semanas depois, mais de 440 projetos tinham sido recebidos de 76 países. As propostas abrangeram desde atividades de suporte direto a vítimas, empoderamento de grupos vulneráveis e comunidades, cooperação entre organizações não governamentais de países de origem e de destino e até a coleta e produção de conhecimento pautada na realidade.

Depois de uma revisão cuidadosa de cada projeto, os 30 mais relevantes foram escolhidos para uma avaliação final feita por especialistas de diferentes agências internacionais. Representantes da Organização Internacional para as Migrações (OIM), a Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), o escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e UN.GIFT selecionaram 12 projetos mais promissores para financiamento. Entre estes, estava o da ONG ‘Sodireitos’, com a finalidade de produzir conhecimento baseado na realidade sobre o processo de migração e tráfico de pessoas para elaborar estratégias contra o tráfico e empoderar mulheres afetadas para lutar por seus direitos.

Este relatório é o resultado deste processo. Mulheres migrantes foram contatadas através de trabalho de campo, entrevistadas e convidadas para participar do notável processo de pesquisa. Foram organizados encontros participativos onde as histórias de vida, experiências e visões serviam como ponto de partida para construir conhecimento. Junto com as mulheres foram desenvolvidas novas estratégias para enfrentar o tráfico humano e para empoderar os homens e mulheres em situação de vulnerabilidade assim como as vítimas/sobreviventes que retornam.

UN.GIFT, uma aliança de seis maiores organizações internacionais atuando para combater o tráfico humano, sente-se honrada pela possibilidade de contribuir com este projeto valioso e interessante. Como uma iniciativa de vários stakeholders que providencia acesso global para expertise, conhecimento e parcerias inovadoras, UN.GIFT promoverá os achados deste projeto, através de todos os seus canais e redes para outros interessados que poderão se beneficiar das lições aprendidas. UN.GIFT espera poder continuar apoiando as atividades da Sodireitos no futuro.

Sandra Kozeschnik Responsável da UN.GIFT para Parceria com a Sociedade Civil

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O OLHAR DE UMA MULHER MIGRANTE SOBRE A PESQUISA

Quando fomos convidadas a participar de uma pesquisa sobre migração de mulheres, nenhuma de nós imaginava o que vinha a seguir. Uma acreditou que aquele “gringo” e aquela mulher queriam traficá-la para algum outro país, outra foi convencida de que deveria cobrar para contar sua experiência de migração e algumas não estavam muito interessadas em “reviver” a migração quando abordadas e convidadas a participar desta pesquisa.

O que nenhuma de nós imaginava é o quanto esse processo iria fazer diferença em nossas vidas. Para algumas pessoas, a história de 11 mulheres pode não parecer muito, mas todas nós, nossas famílias, principalmente mães e filhos, sabemos o quanto ela representou em nossas vidas.

O resultado da pesquisa ainda não se transformou em políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas ou de políticas afirmativas para as mulheres migrantes, tampouco levou a uma transformação de uma sociedade machista e patriarcal para uma sociedade que trate homens e mulheres com igualdade, mas já transformou 11 histórias de vida, visões de si mesmas e de mundo.

Para nós, a principal mudança aconteceu dentro de cada uma, dos dois coordenadores da pesquisa e dos demais sócios desta entidade, pois juntos refletimos, relembramos e nos demos conta de que algumas de nós foram traficadas, porque não tínhamos ciência disso. Decidimos que não queremos somente fazer parte das estatísticas de um Brasil que migra procurando novas oportunidades de emprego, de vida digna, de relacionamentos menos conturbados, uma busca que às vezes acaba encontrando exploração, desigualdades, discriminação, algo que já sentíamos aqui no nosso país e que acreditávamos não mais sentir num país dito “desenvolvido”.

Com esta pesquisa, nós mudamos e queremos que esta mudança se reflita também em uma mudança de políticas para mulheres. Queremos que mulheres tenham na migração uma opção de fato e não apenas quando não são apresentadas outras opções.

O que vem a seguir são fragmentos de nossas histórias, vividas por mulheres que estudaram a fundo suas próprias histórias, a sociedade, os Direitos Humanos, as relações familiares e amorosas, mulheres que hoje têm uma outra visão de suas vidas

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e da sociedade em que vivem, e também querem que essa pesquisa não sirva apenas para ser mais um livro na estante de algum parlamentar ou governante.

Queremos que este tempo que passamos analisando várias situações de nossas vidas contribua para o debate e dê subsídios para a implantação de políticas públicas que possam ser de prevenção (visando à diminuição da incidência de casos de tráfico de mulheres e de violação dos direitos de migrantes), punição para os que cometem tais crimes, proteção às vítimas e conscientização para mulheres vulneráveis ao tráfico e que pretendem migrar (para que busquem mais informações sobre o destino e que possam fazer uma migração segura), assim como dê subsídios para as organizações que, como a Sodireitos, lutam pelos direitos dos migrantes no enfrentamento ao tráfico de pessoas.

Josenilda Silva, mulher migrante, agente de pesquisa.

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A CONSTRUÇÃO DE UM PROCESSO DE PESQUISA.

O texto que vocês têm em mãos é mais do que um relatório de pesquisa. É o relato/testemunho de um percurso da relação e do envolvimento de algumas pessoas com uma experiência de refletir a vida sob formas diversas, ressignificar vivências, reconstruir trajetórias e também, porque não, de experimentar novas formas de fazer pesquisa: conhecer uma realidade, seus sujeitos e construir conhecimentos.

Não está muito baseado em considerações teóricas (embora destas não possamos nos furtar), nem na opinião de apenas uma pessoa, ao contrário, é o coletivo e o processo de construir-se coletivamente que aparecem.

O percurso a que nos referimos é um trabalho de Pesquisa Ação sobre migração internacional de Mulheres das periferias da cidade de Belém (Amazônia – Brasil). A pesquisa foi proposta pela Sociedade dos Direitos Sexuais Amazônia – Sodireitos (como será identificada no decorrer do texto), que é uma Organização Não Governamental, com sede na mesma cidade e que tem uma ação de prevenção, atendimento, incidência política e pesquisa com a temática dos direitos sexuais e migratórios.

O grupo de pesquisa foi constituído por 13 pessoas, 11 agentes de pesquisa e dois pesquisadores, coordenadores desta pesquisa. As agentes de pesquisa são mulheres que viveram experiência de migração internacional e retornaram ao Brasil.

O que propusemos às mulheres foi uma tarefa aparentemente “simples”: refletir sobre suas vidas, o que estão fazendo, o que fizeram e como querem continuar fazendo. Foi um trabalho de pesquisa baseado nos relatos de vida. Retratos, fragmentos que evidenciaram projetos de vida, mostraram necessidades, fragilidades e fortalezas, rupturas e onde foi inevitável o confronto entre as fronteiras de territórios e aquelas simbólicas, invisíveis de que também somos feitos.

Quem são e como se constroem estas mulheres: é assim o tema central

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deste livro. E este tema nos permite abordar as questões mais profundas e ao mesmo tempo mais elementares da vida: ser mulher, mãe, filha, migrante, prostituta, babá, doméstica, trabalhadora, guerreiras, enfim, como elas mesmas se definem. E o que cada um destes papéis, ou posições, implica como definem e são definidas as verdades contidas em cada um destes, e os mitos, os temores, desejos, riscos e vontade de lutar por uma vida melhor, que é no fundo, o que todos nós almejamos.

O texto não oferece respostas prontas, no máximo pode sugerir caminhos a percorrer ou a não percorrer, também porque para as questões e problemas que se apresentam não pode haver uma única solução.

Limitamo-nos a algumas descrições e por dentro destas nos arriscamos a algumas análises de relações de fatores e aspectos múltiplos que direcionam ou circunscrevem as trajetórias de mulheres em um contexto muito específico: o da migração das periferias de uma metrópole da Amazônia para o mundo. O que este mundo – daqui e de lá – reserva a estas mulheres?

Identidade, família, trabalho, educação, relacionamentos amorosos, direitos e políticas públicas são as questões que permeiam estas trajetórias, traduzidas em acesso e oportunidades ou não-oportunidades e seus significados.

O que se propõe nas páginas que seguem é um convite a visitar e percorrer conosco esta experiência. O convite é para conhecer um grupo de mulheres e suas trajetórias, refazendo, em certo sentido, a viagem que elas fizeram, mergulhando nas experiências e fazendo assim, também sua própria viagem.

O livro é dividido em três partes. A primeira parte é uma contextualização e apresentação da pesquisa-ação, dos sujeitos da pesquisa e do percurso metodológico. Esta parte começa com uma introdução da construção da proposta e dos objetivos da pesquisa ação. Em seguida, há uma apresentação do grupo elaborada pelas mulheres e u ma autoapresentação de cada uma (um) das (dos) integrantes do grupo, dando ao leitor uma visão da composição do grupo. Em função dos depoimentos e relatos íntimos que aparecem, as mulheres optaram por identificar-se no texto deste livro por pedras preciosas, como forma de preservar a privacidade de cada uma delas.

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As histórias que aparecem iniciando os capítulos são histórias compostas por fragmentos da vida, sentimentos e concepções de cada uma das mulheres participantes, formando, assim, um mosaico da vida real. É uma linguagem que procura expressar uma vivência e concepção da vivência de todas as mulheres, dividida como coletiva, pois é parte de todas suas histórias. Não se trata, portanto, de ficção, mas de relatos de um sujeito coletivo. Estas histórias serão destacadas em itálico.

A segunda parte traz os debates sobre temas que foram trabalhados coletivamente e que se mostraram constituintes na formação das suas identidades, e estes serão apresentados. Cada capítulo traz extratos dos debates de cada uma das temáticas discutidas (identidade, família, educação e trabalho, migração, relacionamentos), apresentando a dinâmica metodológica e as discussões travadas no grupo, mescladas com algumas análises e comentários.

Na terceira parte, direitos humanos e políticas públicas são discutidos à luz das experiências e reivindicações formuladas nos capítulos anteriores, traduzindo os debates do grupo e finalizando com as propostas e recomendações do trabalho, que apontam para proposição de políticas públicas para a garantia dos direitos das mulheres migrantes, e se finaliza com os resultados subjetivos e as mudanças que ocorreram em decorrência da pesquisa ação na visão das mulheres, conforme seus depoimentos

A opção por este formato visa à possibilidade de dialogar com públicos diversos (políticos, secretarias, ministérios, diplomatas, movimentos sociais, estudantes, pesquisadores e mulheres migrantes), pensando na diversidade de interesses de cada um destes, desde aqueles mais interessados em discutir mais a temática da migração feminina, a perspectiva dos direitos humanos, a proposição de políticas públicas na área, ou ainda aqueles com interesse mais metodológico do trabalho com mulheres.

Boa Leitura!Marcel e Isabel, coordenadores da pesquisa

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ÍNDICE

PARTE I

1. Introdução: o contexto e objetivo desta pesquisa ação 122. Sujeitos, cenas e cenários 22a. O grupo de pesquisa 22b. As mulheres migrantes por elas mesmas 22c. Os coordenadores da pesquisa 28d. Chegada: Aeroporto internacional Val-de-cans; Destino: Sodireitos 283. A construção de uma trajetória: grupo e sujeitos se (re)construindo 36a. Mulheres, que mulheres? 37b. Conhecendo cada mulher: entrevistas individuais 40c. Grupo e Metodologia em ação. 41d. A dinâmica dos encontros 43 PARTE II

4. Família 525. Relacionamentos 716. Trabalho 937. Migração 140

PARTE III

8. Direitos humanos e políticas públicas: a distância entre 159 o declarado e o vivido

9. Conclusões 16210. Algumas marcas significativas deste trabalho 166

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Parte I1. O CONTEXTO E OBJETIVO DESTA PESQUISA AÇÃO

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Os movimentos migratórios, que sempre fizeram parte dos processos de grupos humanos, vêm demonstrando considerável aumento nas últimas décadas. Estima-se também que este fenômeno mantém estreita relação com mudanças experimentadas no mundo pós-moderno: desenvolvimento tecnológico e comunicacional por um lado, que constroem ou aumentam os desejos de mobilidade e descobertas e, por outro, o acirramento das desigualdades, exclusão e pobreza, tanto entre as nações quanto entre as pessoas de forma geral.

Dados da ONU dão conta da existência de aproximadamente 200 milhões de migrantes internacionais e quase 740 milhões de migrantes internos, que são aqueles que se deslocam entre as fronteiras de seu próprio país (ONU / PNUD, 2009).

Juntamente com os números crescentes, também crescem e se acirram os problemas relacionados. Em geral, à situação da migração também se colam os estereótipos negativos que relacionam migrantes com concorrência pelos postos de empregos dos nacionais, com aumento da violência e ilegalidade, pois os relacionam com pessoas em vulnerabilidade.

Em parte, isso se deve ao aumento dos obstáculos impostos àqueles que decidem migrar, fato esse decorrente das políticas que limitam e restringem a migração. Sabe-se também que os obstáculos à mobilidade são especialmente maiores para as pessoas pouco qualificadas.

A produção de conhecimentos na área pode ajudar a derrubar tais estereótipos, conforme aponta o Relatório de Desenvolvimento Humano 2009- Ultrapassar barreiras: Mobilidade e desenvolvimento humanos (ONU / PNUD).

A literatura da área tem apontado para a chamada feminilização dos deslocamentos populacionais, uma vez que cerca de metade dos migrantes, em todo o mundo, são mulheres . A migração da América Latina para Europa atualmente é predominantemente feminina, chegando a 75% no

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Parte I1. O CONTEXTO E OBJETIVO DESTA PESQUISA AÇÃO

caso do Brasil. Quer dizer, essa feminilização dos deslocamentos pode estar intimamente relacionada com a chamada feminilização da pobreza (aumento da responsabilização unicamente da mulher pelo sustento dos filhos e dos domicílios).

Tanto é assim que no horizonte ou na justificativa da opção destas mulheres está sempre o desejo de mudar de vida, em busca de renda por meio de trabalho/emprego na lógica das estratégias de sobrevivência acessíveis para as oriundas da classe pobre.

Que novas problematizações esta maior visibilidade das mulheres trazem para o debate do fenômeno migracional? Como se inserem as questões de gênero nessa dinâmica? O que significa a migração na vida das mulheres (e das suas famílias)?

Quando se fala na Amazônia, a situação ganha contornos específicos. A população tem denunciado, com suas condições de vida e também com sua voz, as diversas formas pelas quais a riqueza, exuberância e o potencial econômico da região não têm servido à melhoria de suas condições de vida.

Trata-se de uma área que ocupa cerca de 60% do território brasileiro, com importância estratégica nacional e alvo de pressão internacional pela preservação de uma das maiores biodiversidades do planeta. Trata-se ainda de uma região que nunca mereceu o tipo e tamanho de atenção devida por parte das políticas governamentais e que, por isso, também concentra problemas de tamanha ou maior relevância, nacional e internacional.

A sua história de ocupação ou exploração foi marcada pela visão de um bioma homogêneo que reiteradamente negligenciou a população que a habita, os homens e mulheres que buscam nos recursos da região a possibilidade de construir sonhos de vida digna para eles e seus filhos.

Os projetos, em geral, são planejados para cumprir um papel bem definido dentro da expansão do capital nacional e internacional. Todos estes, em geral, são baseados e respaldados por pesquisas, incentivos e fortes argumentos sobre a importância socioeconômica para o desenvolvimento da região e do país.

Argumentos que caem por terra, quando se percebe que a população da Amazônia é, na verdade, mera expectadora desse “desenvolvimento”,

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sem considerar seu conhecimento e sem se beneficiar do “desenvolvimento, sofrendo, em geral, uma das suas piores consequências: a miséria e a necessidade de abandonar suas terras.

O que se verifica é uma ausência das discussões sobre desenvolvimento na agenda pública brasileira, ou desenvolvimento visto apenas pelo viés econômico.

Um dos resultados dessa expropriação é o processo de migração interna e externa, que faz com que hoje cerca de 70% da população da Amazônia viva nas cidades, grande parte delas em aglomerados da periferia sem acesso aos bens e serviços básicos, sem alternativas de inserção social ou tendo que, individualmente, construí-las ou procurá-las.

Estas situações de vulnerabilidades, que são característica da população em geral, afetam de modo específico grupos populacionais distintos, como, por exemplo, as mulheres, crianças e jovens. Isso porque, para estes grupos, a pobreza e exclusão social e econômica é transversalizada por fortes marcadores de gênero e idade.

É certo que o país tem experimentado avanços nos últimos anos em termos, por exemplo, de garantia de direitos sociais, políticas afirmativas para as mulheres, novas legislações garantidoras de direitos (como é o caso da lei Maria da Penha) e novos desenhos institucionais como a criação da Secretaria de políticas para as mulheres. Mas sabe-se também que há um longo caminho a ser percorrido para que estas conquistas sejam efetivamente sentidas no conjunto da população, de forma concreta em termos de garantia de direitos, inserção social e vida digna.

Toda a experiência de trabalho com mulheres demonstra a frequência de mulheres migrantes como sujeitos ativos e violados na organização social das periferias de Belém, sendo pródigas em apresentar suas situações de idas e vindas para diversos países da Europa ou América Latina, em que levam na bagagem grandes esperanças e sonhos, mas que na volta são preenchidas com fracasso, decepção e, para muitas, frequentes histórias de violações.

Compreender este fenômeno tem se constituído num dos eixos de trabalho da Sociedade dos Direitos Sexuais Amazônia – Sodireitos. Por isso, esta organização coordenou em 2007/2008 uma pesquisa tri-nacional sobre

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tráficio de mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname, procurando enteder a dinâmica deste processo nesta rota específica, cuja existência era denunciada, mas cujos atores, suas relações e suas realidades não eram conhecidas. A pesquisa mostrou uma realidade de violações de gênero desde a infância das mulheres, que chegaram a ser inseridas no tráfico de mulheres para Suriname, suas lutas e as lógicas do funcionamento da rede de tráfico de muheres. Estas mulheres fazem parte de um contingente cada vez mais expressivo de mulheres que migram para fora do Brasil, sendo que nem todas por meio do tráfico de mulheres.

Esta pesquisa compõe uma rede mundial de pesquisas sobre migração de mulheres da Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres – Gaatw, que visa coletar informações e analisá-las, junto com um grupo de mulheres migrantes em Belém, dispostas a participar do processo de pesquisa e formação a partir de experiências de mulheres sobre a migração (forçada ou voluntária, interna ou para o estrangeiro) e trabalho, e construir protagonismo com estas, na identificação e resolução dos problemas que enfrentam, por meio de um processo de empoderamento individual e coletivo.

Para atingir esses objetivos, a opção se fez pelo processo de Pesquisa Ação, como uma modalidade de pesquisa qualitativa, com uma abordagem que integra investigação – formação (ou educação) e ação. Como desenho metodológico, esta modalidade tem início nos anos 60 / 70, com educadores e pesquisadores e seus questionamentos sobre as formas tradicionais de educação e de produzir conhecimento. Questionando os postulados da neutralidade, da objetividade e do distanciamento entre “pesquisador e objeto pesquisado” e ainda o lugar da relação com as realidades sociais específicas nestes processos, foi inicialmente mais utilizada nos movimentos sociais e posteriormente aceita no âmbito acadêmico (Brandão, 1981. M. Thiollent, 2005. Haguette, 1987 / 2005; Bauer & Gaskell, 2002). Trata-se de uma linha de pesquisa integrada a possibilidades de ação coletiva, sempre associada à resolução de problemas ou a objetivos de transformação.

Segundo Borda (1981), a pesquisa ação é “uma metodologia dentro de um processo vivencial que inclui, simultaneamente, educação de adultos, pesquisa científica e ação social ou política e considera como fontes de conhecimento a

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análise crítica, o diagnóstico de situações e a prática cotidiana”. Neste sentido, esta prática de pesquisa refaz a relação dos pesquisadores

com o fenômeno e sujeitos investigados e estimula estes sujeitos a ampliar seus limites de expressão e participação, aprenderem juntos a descobrir, compreender e analisar a realidade, construir e socializar conhecimentos e aplicá-los em ações de transformação. Sua opção apóia-se na percepção de tê-la como instrumento potencial para possibilitar este processo com as mulheres migrantes.

Neste processo, adota-se o empoderamento como um dos objetivos da Pesquisa Ação, envolvendo desde o processo inicial de sensibilização das mulheres e a análise crítica de suas vidas e experiências, passando pela análise dos fatores a estas relacionados, tais como: as causas dos seus problemas ou dificuldades; as estruturas ou relações de desigualdades; as violações dos direitos humanos; a identificação de possibilidades ou proposições para o enfrentamento destes (proposição e controle de políticas públicas); e a percepção ou identificação das possibilidades de engajamento individual ou coletivo delas para a mudança de suas vidas.

A noção de empoderamento é adotada, neste texto, de forma associada à concepção sobre o processo de construção de identidade.

O termo é aqui utilizado como tradução do termo em inglês empowerment; trata-se de um conceito já conhecido na literatura e relacionado com os movimentos de resistência política. Nestes movimentos, aparece como uma das estratégias de formação popular no trato com as questões e problemas sociais (Silva, A. 2008); é, portanto, uma estratégia de construir capacidades nos sujeitos coletivos ou individuais para compreender e enfrentar problemas, sendo definido como a construção das capacidades desses sujeitos para perceber suas problemáticas, analisar suas causas e relações, reconhecer possibilidades e oportunidades de ação e tomar decisões ou engajar-se em propostas ou ações políticas de enfrentamento ou solução. Trata-se, enfim, de um processo em que os sujeitos tomam consciência ou entram em contato com seu próprio poder de transformação de suas vidas.

A pesquisa ação, aqui referida para além da investigação ou descrição de situações de mulheres migrantes, busca fundamentalmente, que este trabalho

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Parte I1. O CONTEXTO E OBJETIVO DESTA PESQUISA AÇÃO

possa ser conduzido e protagonizado pelas próprias mulheres envolvidas num processo, ao mesmo tempo, individual e coletivo de diálogos, reflexões sobre suas vidas e problemas, e que possam sugerir propostas que podem e querem adotar para resolver estes problemas.

A pesquisa se insere assim numa ação de intervenção direta na realidade social, combinando paradigma interpretativo (compreender e interpretar a realidade e os significados das pessoas) e sociocrítico (identificar o potencial de mudança).

Estas expectativas justificam a opção pela pesquisa ação, por entendê-la mais que uma metodologia de pesquisa, mas como um instrumento político que demonstra capacidade de aliar a possibilidade de aprofundamento dos fatores diversos que podem impactar a vida de cada uma das mulheres, simultaneamente à provocação de atitudes, de criação de um espaço pessoal e político, de construção de capacidades críticas pelo estímulo ao engajamento e participação em ações transformadoras ou propostas de superação de problemas.

Na tessitura do texto, alguns conceitos serão amplamente utilizados. Por se tratar de temáticas e conceitos complexos, pensa-se necessária uma discussão sobre estes.

A temática da identidade tem sido extensamente discutida. Isto porque, os quadros de referência com os quais se discutiam “o sujeito” e seus processos de construção sofrem mudanças profundas nas chamadas modernidade ou pós-modernidade, que põem em declínio as “velhas identidades que, por tanto tempo, estabilizaram o mundo, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno” (Hall, 2006. P. 07).

O fato é que a visão do sujeito unificado, estável ou centrado, parece insuficiente para dar conta das complexidades das ações e relações dos sujeitos diante das transformações experimentadas neste começo de século XXI. Entende-se com Hall, que estas transformações profundas fragmentam “as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado nos tinham oferecido sólidas localizações como indivíduos sociais” (Hall, 2006, p. 09). O debate da identidade se coloca como campo de construção ou negociação (Bauman, 2005), assumindo o pressuposto

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Parte I1. O CONTEXTO E OBJETIVO DESTA PESQUISA AÇÃO

de que identidades são fabricadas, promovidas, confrontadas, substituídas, sempre refeitas a partir de interesses e experiências, não sendo nem passivas nem estáticas. Outro aspecto que se precisa assumir aqui é também o da impossibilidade de oferecer afirmações conclusivas sobre um conceito ainda tão complexo.

No contexto desta pesquisa, entende-se que a negociação entre as possibilidades e oportunidades que tiveram as mulheres migrantes, assim como os limites e impedimentos, constituem-se como elementos fundamentais para pensar os processos de construção de suas identidades. Segundo Hall (2006), ao invés de apresentarem identidades estáveis, os sujeitos podem constituir-se de várias identidades complementares ou contraditórias. Quais as possibilidades que lhes apresentam, diante da diferença, exclusão e marginalização, como marcas da modernidade e que se agudizam na situação de vida dessas mulheres? Como elas elaboram sua ação e reação? Aqui a noção de estilos de vida (Giddens, 2002) ajuda a compreender a ação de cada indivíduo ao ser forçado a escolher identidades dentro do jogo social, concordando que em parte os pobres (e as mulheres pobres) têm menores possibilidades de escolhas.

Pode-se falar assim de processos de construção moldados, como afirma Castells (1996/2008), “pelas tendências conflitantes da globalização e da identidade, visto que, de forma concreta, estas mulheres se constroem num processo contínuo de confrontos subjetivos e resistência individual ante as permanentes violações que enfrentam devido suas condições sociais, econômicas e culturais.

Por outro lado, é esta noção de resistência que embasa o trabalho de pesquisa empreendido, com a crença de que o processo de violação ou de violências, ao mesmo tempo em que pode gerar submissão, são igualmente capazes de transformar, reforçar, inverter. Para Foucault, lá onde há poder, há resistência e, por isso mesmo, esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder. Isto nos aponta que, se há estruturas limitadoras, estas também podem abrir possibilidades de novas significações, de novos sujeitos, que rompem, reconstroem, tornam-se capazes de lutar contra a submissão.

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Pensa-se assim, que as mulheres, a despeito das desvantagens (econômicas e sociais) podem construir resistência e ocupar os espaços negados. O exercício da narrativa de suas histórias possibilitam compreender e analisar a construção de significados novos. Como integrantes do processo de pesquisa ação, objetivam utilizar estas possibilidades para a construção de resistência individual e coletiva.

Mas o que dizer sobre a identidade de gênero e a categoria mulher? Como não poderia deixar de ser, a discussão do gênero ou da identidade

de gênero se apóia nas mesmas premissas de construção de identidades expostas anteriormente. É sabido que o conceito gênero tem origem no contexto do movimento feminista (a partir da década de 70) como forma de aludir ao caráter eminentemente social (sociocultural) da diferenciação sexual ou da relação entre os sexos. Tradicionalmente, o uso do termo está, portanto, relacionado à necessidade de marcar a rejeição ou a contraposição ao “fantasma da naturalização” ou da essência, usados como argumento para explicar as diferenças entre os sexos. Gênero é, portanto, uma forma “de se referir à organização social entre os sexos” (Scott, 1990. p. 5 citado por Silva, 2006).

Do ponto de vista político, o uso do termo representa a ampliação do debate sobre as diferenças para incluir as questões e a condição da mulher; já do ponto de vista metodológico, o recorte de gênero provoca uma redefinição nos paradigmas tradicionais de pesquisa, ao tomar a “experiência pessoal e subjetiva das mulheres” (Scott, 1990) como categoria de análise. Trata-se, portanto, de um conceito crítico que se coloca com o intuito de questionar os padrões ou os pressupostos da dominação masculina baseados na noção de uma essência biológica (Silva, 2006). Tratam-se, em resumo, de estratégias que visam dar visibilidade e legitimidade às mulheres como sujeitos políticos. Por outro lado, diversos estudos na área demonstram ou apontam que, de alguma forma, as discussões sobre gênero têm girado em torno de polaridades ou binarismos: cultura/natureza; homem/mulher; masculinidade/feminilidade (Scott, 1990; Stolcke, 1991; Rosaldo, 1995; Butler, 2003/2008).

Butler, entretanto, chama a atenção para o fato de que este modelo, a despeito de retirar o locus de produção da identidade da essência biológica e

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Parte I1. O CONTEXTO E OBJETIVO DESTA PESQUISA AÇÃO

situá-la na cultura, ainda pressupõe uma identidade definida, estável. Logo, reforça aquilo que se propõe a superar. Para a autora, é necessário repensar a noção de identidade definida, assumindo a concepção de identidade não estável, e, consequentemente, assumir que “o próprio sujeito - mulheres - não é mais compreendido em termos estáveis ou permanentes” (p. 18).

A autora questiona o conceito de gênero, afirmando a necessidade de ir além dele e além dos dualismos, como forma de entender o processo de construção de sujeitos. Em sua crítica genealógica, Butler “recusa-se a buscar as origens do gênero, a verdade íntima do desejo feminino, uma identidade sexual genuína ou autêntica que a repressão impede de ver. Em vez disso, ela investiga as apostas políticas, designando como origem e causa, das categorias de identidade que, na verdade, são efeitos de instituições, práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos” (Butler, 2008. p. 09).

As afirmações da autora levam a repensar o discurso de uma identidade feminina comum, baseada numa noção estável de gênero que não mais se sustenta. Dessa forma, parece não fazer mais sentido definir o gênero como a interpretação cultural do sexo, já que sexo e gênero, sempre apareceram como categorias relacionadas, aludindo a um corpo que é interpretado culturalmente e as pessoas sempre se constroem, ou “só se tornam inteligíveis, ao adquirir seu gênero em conformidade com padrões reconhecíveis de inteligibilidade do gênero”, quer dizer, a pessoa sempre se constrói em conformidade com as condições e contextos nos quais se insere.

É essa matriz cultural (de heterossexualidade compulsória, no dizer de Butler) que confere inteligibilidade à identidade de gênero e faz com que certos tipos de identidades não possam existir ou sejam ininteligíveis. Segundo Butler, “aquelas cujos gêneros não decorrem do sexo e as práticas de desejo não decorrem nem do sexo, nem do gênero” (p. 48), a exemplo dos travestis ou das lésbicas.

Por fim, Butler afirma categoricamente: “não há identidade de gênero por trás das expressões do gênero; essa identidade é performativamente construída, pelas próprias ‘expressões’ tidas como seus resultados” (p. 48).

Aqui parece útil retomar para a noção de “identidade de gênero” a noção discutida anteriormente de “identidades” como fragmentação,

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Parte I1. O CONTEXTO E OBJETIVO DESTA PESQUISA AÇÃO

negociação e confronto, já que também, nesse caso, é impossível separá-la das dimensões políticas e culturais nas quais que se produz. Dessa forma, ser mulher não pode ser uma única identidade possível, seja porque nesta identidade podem caber processos diversos de negociação e de identificação (homo, hetero ou bissexual, travestis etc.), seja porque diferentes contextos históricos ou experiências também podem produzir diversidades ou ainda, pelas interseções do gênero com as diversidades de raças, classes, etnias, nacionalidades etc.

Nos limites desta pesquisa, interessa assim, descobrir e discutir como as migrantes inventam-se ou reinventam-se, não necessariamente (ou apenas) como mulheres, mas como quem constrói significados para suas vidas, faz e refaz opções, às vezes aceitando identidades impostas, outras as subvertendo, mas enfim, construindo os significados de sim mesmas.

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Parte 12. SUJEITOS, CENAS E CENÁRIOS

2 SUJEITOS, CENAS E CENÁRIOS

a. O grupo de pesquisa

b. As mulheres migrantes por elas mesmasPérola: Tenho 27 anos e isto é minha história de migração. Viajei para

Espanha no ano 2003, para a cidade de Leon, para trabalhar em um clube chamado Big Ben, para trabalhar como dançarina de estripe. Passei três anos para sustentar o meu filho que morava no Brasil. Me envolvi com um marroquino. Vivi dois anos com ele. Em casa tinha tudo que uma mulher podia ter. Uma vida de luxo. Um dia fui para o shopping com meu marido e um policial me pediu meu passaporte, ai ele estava vencido há 3 meses. Me levou para o calabouço da estrangeria. Me deixou presa e de lá fui mandada para o presídio de migrante em Madri. De lá, fui deportada acompanhada por duas policiais até o Rio de Janeiro, chegando no dia 18 de abril de 2008. Sem dinheiro, não tinha como retornar para Belém. Pedi para meu pai mandar minha passagem. Cheguei no aeroporto de Belém muito triste, mas lá estava me pai e minha mãe me esperando. Essa é minha história de migração. Tenho dois filhos, um menino e uma menina. Meus filhos são as coisas mais importantes que Deus me deu. Meu pai faleceu há dois anos, ele era muito

“Somos um grupo de mulheres que vivenciou a experiência da migração e/ou tráfico de pessoas. Somos mulheres diferentes e temos o mesmo objetivo. Mulheres, mães, vitoriosas, guerreiras que querem dar o melhor para a construção de um mundo melhor. Mulheres que passaram por diversas situações e que venceram a batalha e continuam lutando pelos seus objetivos e pela vida. Somos brasileiras e não desistimos nunca.”

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Parte 12. SUJEITOS, CENAS E CENÁRIOS

bom para mim. Espero que esteja com Deus. Minha mãe tem 62 anos, ela é muito boa com meus filhos, cuida deles muito bem e me ajuda muito.

Rubi: tenho 29 anos, moro em Icoaraci na periferia de Belém com três filhos, a menina de 12 anos, o segundo de dez anos e o de oito anos. Trabalhei aos 12 anos como babá, empregada doméstica, fui mãe adolescente. Morávamos de favor na casa de parentes eu, meu pai, minha mãe e minha filha mais velha. Em 2004, terminei o ensino médio, meu pai ficou desempregado, eu também, e sem esperança e expectativa de vida, muito comum para muitas jovens que vivem ou viveram a minha realidade. Sou filha adotiva e não conheço meus pais biológicos. Não sei nada de minha árvore genealógica. Aos 24 anos recebi convite para uma viagem para o Suriname para trabalhar como garçonete. Lá chegando, era no clube onde fiquei a um mês me prostituindo pra pagar essa dívida que lá já existia. Depois de seis meses, fugi com um namorado surinamense para o garimpo a 45 minutos de Paramaribo, de avião, onde fiquei 15 dias no cabaré na prostituição. Conheci um brasileiro e nos relacionamos durante três anos. Fiquei indo e vindo de Paramaribo e Belém, onde trabalhava de cozinheira. Não deu mais certo com o rapaz e voltei para o Brasil em 2008 e não voltei mais para o Suriname. Conheci a Sodireitos onde se abriram muitas esperanças. Fiz cursinho e comecei fazer curso técnico de radiologia em dezembro de 2010. Estou muito feliz de fazer parte deste grupo de mulheres corajosas e sonhadoras. É uma troca de experiências e foi uma grande experiência prá mim que vou levar pra minha vida inteira.

Turquesa: Tenho 38 anos, moro em Belém do Pará. Tenho três filhos. O mais velho tem 20 anos e o mais novo tem 15. Eu moro com eles e minha mãe, seu esposo e meu sobrinho. Somos sete irmãos, sendo quatro mulheres e três homens. Minha irmã Socorro, a terceira, ingressou para o Suriname há mais ou menos oito anos atrás e depois de dois anos que ele já estava lá, eu decidi viajar para o garimpo pra trabalhar na cozinha no baixão. Foi uma viagem boa, aprendi muitas coisas, tive muitas experiências. Passei seis anos no garimpo

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sem vir no Brasil, quando voltei para rever minha família, pois estava com muitas saudades. Pretendo um dia voltar para lá, porque aqui o emprego está muito difícil e o salário é baixo para quem não tem escolaridade, cursos e experiências, ao contrário do Suriname. É por isso que pretendo ir. Quero ajudar minha família, meus filhos e minha mãe, que precisam muito de mim. No momento estou desempregada. Apareceu em minha vida a Sodireitos, onde aprendi e troquei ideias e experiências com mulheres migrantes como eu, que tinham a migração com um único objetivo ajudar sua família. Agradeço a todos que contribuíram para me tornar a pessoa que sou hoje com autoestima e certa dos meus direitos. Obrigada Sodireitos!

Diamante: Tenho 25 anos. Sou de uma família de migrantes. Migrei duas vezes para Portugal, uma quando criança com a minha mãe e depois já adulta. Voltei para trabalhar, mas como as coisas estavam difíceis, não consegui me legalizar e depois de três anos procurando trabalho eu consegui uma vaga em um restaurante onde já ia me legalizar. Mas antes disso acontecer, acabei sendo deportada, presa e humilhada. Voltei, mesmo tendo minha família práticamente toda lá e tive que recomeçar a minha vida do zero no Brasil. Hoje, depois de dois anos aqui, faço faculdade de Turismo, faço cursos de línguas, e tenho oportunidade de participar da Sodireitos, com a pesquisa ação e o projeto “Mudando de Vida”, que me proporciona a fazer cursos de línguas que complementa minha formação acadêmica e também me auxilia na minha mudança de vida no Brasil.

Safira: Tenho 31 anos, tenho dois filhos, um de três anos outro de 13 anos. No momento trabalho na casa da minha sobrinha, mais não de carteira assinada. Eu parei de estudar no 1ª ano, mas em breve estarei de volta a estudar para concluir meu ensino médio. Antes de emigrar, trabalhei de garçonete no restaurante. Eu migrei para Suriname, onde fui para um clube. Eu fiquei só dois meses, de lá e fui para o garimpo, para um cabaré. Passei dois meses no cabaré, quando conheci o pai meu filho que hoje tem três anos. Engravidei e

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Parte 12. SUJEITOS, CENAS E CENÁRIOS

sofri muito. Depois de muito sofrimento, voltei para o Brasil. Fui refazer minha vida e foi que eu fui sonhar novamente. Comecei a participar da Sodireitos, a fazer cursos e a pensar em estudar para ser alguém na vida para dar o melhor para os meus filhos, minha mãe e minha irmã, com quem eu moro.

Ágata: Tenho 30 anos e quatro filhos. Estudei até o segundo grau e morei um ano e meio em Espanha. Eu trabalhava em uma casa de shows em Belém e uma de minhas amigas sempre dizia que queria voltar pra Espanha, onde viveu muitas felicidades e conseguiu dar para sua filha uma vida melhor, mandando dinheiro todos os meses. Inclusive, depois, veio buscar a menina que foi morar com ela lá. Essa minha amiga conseguiu um contato de uma moça que estava mandando mulheres para a Espanha e assim ela foi e depois de mais ou menos quatro meses esta amiga me ligou perguntando se eu queria ir pra lá também, que ela já tinha pagado o bilhete e estava muito bem. Então eu fui também. Essa moça me ligou e marcou tudo comigo, me deu dinheiro para tirar o passaporte, e um pouco para deixar em casa, comprou a minha passagem. Chegando lá, eu fui recebida por um homem que me levou para o clube em Ribadeo e lá eu fiquei durante três meses, sem poder sair, pagando uma dívida de passagem que não tinha fim. Este clube foi fechado em uma operação da polícia espanhola uma semana depois do término do pagamento do meu “bilhete”. Trabalhei em vários clubes em Lugo, Leon e Burgos. Já tinha mais ou menos um ano lá quando comecei a pensar em trabalhar em outros lugares que não fossem clubes, mas como não tinha “papeles”, não consegui. Alguns contatos que eu tinha feito até me prometeram que se eu viesse ao Brasil e voltasse, eles poderiam me fazer uma proposta de trabalho, algo que eu não tinha como fazer por conta da falta de dinheiro para vir ao Brasil e voltar. Enfim, morei ao total um ano e meio lá, aluguei uma casa junto com um namorado espanhol. Depois, quando terminamos, voltei ao Brasil e isso já faz sete anos. Quando voltei, depois que acabou o dinheiro que eu havia economizado lá, passei por muita dificuldade, não consegui trabalho, vivi em casa de uma amiga por algum tempo e por força do destino

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Parte 12. SUJEITOS, CENAS E CENÁRIOS

me engajei no movimento de juventude e de mulheres e fui convidada a ser secretária em um órgão de governo por um amigo. Participei de um projeto de Direitos Humanos, oferecido pela Sodireitos, na comunidade onde morava e depois fui indicada a participar da equipe de pesquisadoras. Nesta pesquisa onde aprendi muito e espero ter contribuído também. Sou mulher, militante, mãe e faço parte de um grupo que luta por um mundo melhor!

Topázio: Tenho 38 anos, tenho três filhos maravilhosos e um neto lindo. Tenho uma família que eu me orgulho de fazer parte dela. Tudo começou quando eu tive a minha primeira filha eu me empreguei em um restaurante francês. Já fazia um tempo que eu trabalhava lá. Uma certa noite apareceu um casal para jantar, eu fui atender e eles foram embora; no dia seguinte eles retornaram. O meu patrão foi atendê-los e eles pediram para que eu os atendesse. Quando eu me dirigi até a mesa que eles estavam, eles me pediram para eu sentar com eles. Eu pedi desculpa e disse que estava trabalhando, eles me responderam que iriam me esperar para sair para conversar. Foi quando eu caí em uma rede internacional de tráfico de mulheres, foi a pior coisa que me aconteceu na minha vida. Ele me fez uma boa proposta de emprego, dizendo que eu iria ganhar três salários e que eu não teria despesa nenhuma, que tudo seria por conta dele. Eu teria casa para morar a despesa seria tudo por conta dele e que todo dinheiro que eu ganhasse seria para mandar para minha família. Eu pedi um tempo para falar com a minha família e pedir uma opinião. Chegando em casa, eu contei para eles e eles concordaram que se eu tivesse vontade, era para eu aceitar. Eu, sem saber, estava sendo vítima de tráfico. Eu não gosto nem de lembrar. Até hoje é difícil falar nisso. Passei muitas coisas, mais agradeço ao meu bom Deus porque muitas não voltam.

Ametista: Tenho 24 anos, moro numa ilha no município de Belém. Tenho uma filha de seis anos. Com muito esforço, concluí o ensino médio em 2007, em 2009 viajei para Europa fui morar com uma tia na Alemanha, passei três meses na Alemanha e depois mudei para Holanda, onde passei

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nove meses. Conheci muitas pessoas que me ajudaram. Trabalhei como “baby sister” (babá), com esse dinheiro ajudava minha família aqui no Brasil. 16 de fevereiro sofri um acidente de carro, e o dinheiro que passei meses guardando tive que pagar uma multa por estar ilegal no país. Voltei para o Brasil dia 29 de fevereiro de 2010, cheguei sem expectativas, não tinha emprego. Foi quando conheci a SODIREITOS, onde eles me ajudaram muito, tanto psicologicamente e financeiramente. Agora sou educadora do Mova, educadora social em um projeto chamado “Mulheres da Paz” no bairro do Guamá, faço parte de outro projeto “mudando de vida”, organizado pela SODIREITOS. Voltei a estudar, fiz cursinho pré-vestibular. Fiz a prova da UFPA, mas não passei.

Cristal: Tenho 22 anos, moro com minha mãe em Icoaraci, tenho o ensino fundamental incompleto. Em 24 de julho de 2009, fui convidada para ir pro Suriname para reparar duas crianças com um contrato de um ano. Resolvi viajar sem o consentimento dos meus pais. Chegando lá, passei três meses e não me acostumei, pedi para voltar, mas a minha patroa disse que nosso acordo não tinha sido esse, eu teria que ficar um ano em Suriname, eu disse que eu não ia ficar mais lá e nem reparar os filhos dela, ela disse que eu poderia sair, mas teria que pagar 180 dólares para ela, falei com esposo dela e ele marcou minha passagem de volta. Cheguei ao Brasil no dia 28 de outubro de 2009. Minha mãe e minha irmã estavam no aeroporto me esperando. Voltei sem nada e não tinha emprego aqui, foi quando conheci a Sodireitos e me fizeram o convite de participar de um projeto de pesquisa ação, e hoje faço parte de um outro projeto “mudando de vida”. Aqui encontrei apoio, carinho e voltei a estudar, estou fazendo curso de informática.

Esmeralda: Tenho 32 anos e dois filhos. Quando viajei pro Suriname, tinha apenas 20 anos e muitos sonhos, mas esses sonhos quase viraram pesadelo se não fosse a fé que tenho em Deus que me deu força pra lutar e seguir em frente. Vim para um clube, eu sabia o que tinha que fazer. Chegando

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Parte 12. SUJEITOS, CENAS E CENÁRIOS

lá, não aceitei os fatos, então fugi do clube e fui trabalhar no garimpo. De lá pra cá minha migração se resume em garimpo. Passei por muitos desafios que se eu for relatar tudo, nós precisaríamos no mínimo de alguns meses, eu creio. Trabalho com vendas, até hoje procuro levar uma vida normal, gosto de ganhar meu dinheiro com o suor do meu rosto; luto pelos meus objetivos e nunca desisto dos meus sonhos, pois sei que um dia vou realizá-los, se Deus quiser.

Jade: Tenho 26 anos e tenho cinco filhos. Fui para o Suriname, onde sofri muito. Fugi do clube para onde tinham me levado e vivi dois anos na rua. Os homens me maltrataram muito. Com ajuda do consulado do Brasil, conseguiu voltar para casa, trazendo meu filho mais novo. Moro com minha mãe, minha irmã e três dos meus filhos. Não sei ler e escrever e gostaria de aprender.

c. Os coordenadores da pesquisaMarcel Hazeu. Tenho 45 anos, sou migrante holandês e moro há 17

anos em Belém. Sou casado com uma mulher brasileira e tenho uma filha de 13 anos. Sou mestre em Ciências Ambientais e mestre em Planejamento de desenvolvimento nos trópicos. Trabalhei no Movimento República de Emaús, no enfrentamento à violência sexual de crianças e adolescentes. Sou um dos fundadores da ONG Sodireitos, na qual atuo desde 2006 como pesquisador social e articulador político no enfrentamento ao tráfico de pessoas e na garantia de direitos migratórios e direitos sexuais.

Lúcia Isabel Silva: Tenho 47 anos e sou professora universitária e pesquisadora. Sou solteira (recentemente), tenho um filho de 20 anos e uma filha de 16. Tenho formação em Psicologia, com doutorado na mesma área. Faço pesquisa há algum tempo e me envolvi com a ONG Sodireitos e, por meio desta, com a temática da migração feminina.

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d. Chegada: Aeroporto internacional Val-de-Cans; Destino: Sodireitos

Belém, aeroporto internacional de Val-de-Cans. Uma fila de pessoas aguardando o controle de passaporte na sala de desembarque de vôos internacionais. Uma mulher jovem, em torno de 30 anos, bem vestida, maquiada e com uma bolsa no braço olha ao seu redor. O aeroporto parece o mesmo, mas ela não consegue se livrar da sensação de que algo tem mudado. Ela ainda não se deu conta de que o tempo que passou significa um tempo de mudança, de envelhecimento, de acontecimentos, de nascimentos e mortes.

Deveria ser um retorno para casa, mas será que ela queria realmente chegar lá, deste jeito e neste momento? Algumas mulheres ao seu redor foram deportadas da Guiana Francesa, Espanha e Holanda, como elas contaram. De um momento que estavam no país, trabalhando, namorando e fazendo planos, em um segundo esta realidade se transformou em prisão, humilhação, deportação e chegada no Brasil. Ela estava voltando depois de um período de trabalho em um clube de prostituição e depois num garimpo no Suriname. Dois anos de aventura, desespero, solidão, solidariedade, sofrimento, saudades... Todo dia parecia um novo desafio, uma superação.

Será que alguém estaria esperando por ela? Dois anos atrás ela passou pelo mesmo aeroporto, naquele momento embarcando, com uma pequena mala, não havia ninguém da família se despedindo. Como poderia ser, também, se ela nem avisou que iria viajar. Uma colega que encontrou no Suriname tinha conversado com a mãe dela sobre a viagem que ela iria realizar e até falaram sobre a prostituição. Ela não tinha feito disso, ela foi sozinha, só ligou para casa avisando quando já estava há duas semanas numa boate em Paramaribo.

Ela espera que desta vez sua mãe, irmã e seus filhos todos estejam no aeroporto, ansiosos para vê-la. A sua mãe virou o símbolo e referência dela do Brasil e de família. As fotos que ela tinha levado de seus filhos se tornaram âncoras, especialmente nos momentos mais difíceis. Agora ela vai vê-los em carne e osso novamente. Será que eles mudaram e que ela mesma mudou?

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Parte 12. SUJEITOS, CENAS E CENÁRIOS

Ela trouxe um urso de pelúcia e uma boneca grande, na bagagem de mão. Ela está voltando para o Brasil, o qual ela deixou atrás para conhecer

o mundo, arriscar a vida, ser alguém na vida e buscar melhores condições. Aquela decisão na época apertou seu coração, ela se lembra. A adrenalina que corria por seu corpo, a preparação, quase em segredo, atrás de passaporte, a vacinação contra febre amarela e a passagem. A mulher que a ajudou não era tão conhecida da família. Várias vezes ficou em dúvida se ela realmente queria ir, mas ela queria experimentar outra coisa, ficar um tempo longe do homem com quem teve um relacionamento por vários anos e com quem agora só vivia conflitos. Como ela estava combinando a viagem junto com uma colega, uma estimulava a outra. Quando embarcou, ainda pensou em desistir, mas queria encarar ao mesmo tempo sabendo que já estava devendo dinheiro da passagem e passaporte.

Agora de volta, parece que o tempo passou tão rápido, como se não tivesse ido, não tivesse acontecido tanta coisa. Voltar sem nada, também não era bem o que queria. Como encarar a família, os vizinhos? Alguém iria entendê-la?

Lá, fora morria de saudades do Brasil, se sentia brasileira, mesmo se juntando com outros brasileiros lá e fantasiando sobre como estava a situação no Brasil, acompanhando a seleção na copa, festejando carnaval, comprando havaianas e bebendo caipirinhas. Neste retorno, se lembra que ser brasileira é estar sem emprego, morando na casa da mãe, de madeira etc.

É como um soldado que volta de anos de guerra para casa. Havia certo orgulho na família que contava os dias que ela estava fora, mas quando volta não há mais lugar e nem sentido de estar de volta. Sua experiência de guerra (=migração) não vale nada para a realidade no lugar de origem, ainda mais quando volta machucada, com histórias, mas sem dinheiro. Com tudo que sofreu na guerra, aquela realidade parece de repente mais válida, onde a luta era clara e definida, onde contava com os outros soldados, onde eles eram brasileiros contra os outros, onde aprendeu sobreviver e se sentir viva todo dia.

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Parte 12. SUJEITOS, CENAS E CENÁRIOS

Ela volta para um lugar onde somente alguns familiares a esperam, mais pelas saudades, preocupações e pela esperança de algum benefício de fora do que pelo lugar que teria reservado ou que existiria e ela poderia ocupar e preencher. Na verdade, logo depois da alegria do reencontro, ela sabe que sua presença seria desnecessária para os outros, às vezes incômoda, às vezes até sem sentido, para ela e para os outros.

Depois do bem vindo por parte do policial federal, ela pega as suas duas malas que trouxe do Suriname. Comprou algumas coisas para alegrar a família, e roupas para se apresentar. Uma vida de dois anos em duas malas...

Não parecia que muita coisa tinha mudado. As mesmas pessoas, a chuva da tarde e poucas perspectivas. Era, portanto, estranho que duas pessoas de alguma organização que conhecia sua mãe queriam ir para sua casa e falar com ela. O que será que elas queriam dela? Poderiam ser pessoas ligadas às pessoas que ela conhecia no Suriname, que tinham ajudado com a passagem ou seriam pessoas ligadas à Polícia Federal? Quando ela estava no Suriname sua mãe tinha procurado ajuda na Polícia Federal, porque ela ficou preocupada pela falta de notícias e porque uma assistente social do bairro conversou com ela que sua filha poderia ser vítima de tráfico de mulheres. Mas como ela entrou sem problemas no país e já tinha passado um bom tempo, esta procura parecia algo estranho.

Ela se lembrou que no aeroporto uma das mulheres que voltou também do Suriname era acompanhada por policiais brasileiras, que ela logo depois da chegada foi levada para dar depoimento e que havia duas mulheres que não pareciam policiais e que estavam com a mãe da mulher. Parece que era o mesmo nome que lhe falaram, algo com direitos.No dia que foram para sua casa, apareceram uma mulher negra e um homem branco, parecia um gringo. Eles chegaram de carro, estacionando bem na frente de sua casa. Ela os convidou para entrar, onde eles sentaram numa cadeira e ela na beira da cama que também estava na sala. Era uma situação estranha, nunca os tinha visto. Eles pediram para ela contar sua história de migração e perguntaram se poderiam gravar sua conversa. De repente lhe deu vontade de contar tudo,

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Parte 12. SUJEITOS, CENAS E CENÁRIOS

como decidiu viajar, ou que vivenciou lá no Suriname, sobre a prostituição e seus sofrimentos. Parece que eles a compreenderam, pelo menos não a julgaram. No final, lhe fizeram um convite para ir a sede da organização deles para participar de uma reunião com outras mulheres que migraram para conhecer a proposta de participar de uma pesquisa. Ela confirmou que iria, mas no fundo não tinha tanta certeza. Para ela, o contato se encerrou naquela conversa. As duas pessoas poderiam bem ser outra coisa do que falaram e porque ela iria lá, para contar sua história novamente?

Duas semanas depois ela recebeu um telefonema (por que ela tinha dado seu número, mesmo que tivesse hesitado) convidando-a para um encontro na próxima semana. Ainda levaram para sua casa um envelope com convite e dinheiro para o ônibus. No dia marcado, ela desligou seu celular e levou seu filho para escola como todos os dias, visitou um colega e foi trabalhar num salão de beleza, onde tinha encontrado, por meio de sua mãe, um serviço de arrumar e organizar o espaço. Quando chegou em casa, tocou seu celular e ela atendeu. Eram as pessoas da Sodireitos de novo. Ela deu uma desculpa de ter esquecido e esperava que com isto tivesse encerrado esta história. Mas a convidaram para a outra semana, novamente. Disse de novo que iria, mas por que eles insistiram tanto? Parecia até estranho.

Quando chegou o dia do outro encontro, seu celular tocou. Ela atendeu e explicou para o homem da Sodireitos que ela não podia ir porque estava sem dinheiro para o ônibus, e ela morava mesmo distante. Ele a surpreendeu, disse que estava perto, de carro e que iria apanhá-la. Não havia como inventar outra desculpa. Quando ele apareceu, já tinha uma outra mulher no carro. Ela não a conhecia, mas conversando, descobriram que conheciam algumas pessoas em comum, no Suriname.

A chegada na Sodireitos foi estranha, mas todas as pessoas foram simpáticas e receptivas. Elas se juntaram com três outras mulheres que já estavam numa cozinha onde numa grande mesa estavam frutas, café e pão.

O caminho das onze mulheres até a sede da organização não governamental

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Parte 12. SUJEITOS, CENAS E CENÁRIOS

Sodireitos passou por diferentes trilhas, afirmando a singularidade da história de cada uma; elas não podiam ter chegado todas da mesma forma. Mulheres cujos caminhos ainda não tinham se cruzado, mesmo que tenham passado pelos mesmos lugares e encontrado as mesmas pessoas, sem se conhecer ou já ter se conhecido quando estava no outro país. Uma vez em Belém, seus “destinos” as levaram para Sodireitos.

Onze mulheres paraenses voltaram entre 2000 e 2010 de sua trajetória de migração para o Brasil, para Belém, cada uma. Uma história diferente para contar na bagagem. Mas contar para quem? Quem poderia escutar sem julgar? Ouvir e entender, interessar-se para começar uma nova caminhada? No aeroporto, não havia uma recepção oficial, nenhum serviço se prontificou para acolher as mulheres migrantes e valorizar suas experiências e nem parecia haver noção e conhecimento que mulheres com experiências migratórias existiam.

JADE foi contatada a partir de um contato com a mãe dela, que procurou a Sodireitos para localizar sua filha que há dois anos estava desaparecida depois de viajar para o Suriname. Uma amiga de igreja desta mãe ficou sabendo do trabalho da Sodireitos por meio de um trabalho que a ONG fazia no seu bairro de formação e mobilização. Com ajuda do consulado brasileiro no Suriname, se conseguiu localizar a mulher (e seu filho recém nascido) e trazê-la para Belém. Acolhida pela assistente social no aeroporto e em seguida, visitada na casa da sua mãe, ela foi convidada, numa outra visita, pela equipe de pesquisa da Sodireitos para participar de um primeiro momento da pesquisa ação.

A mãe de CRISTAL procurou Sodireitos, desta vez orientada pela polícia federal, para trazer sua filha de volta. A filha estava há três meses lá, mas queria voltar para Belém, uma vez que as condições de trabalho (como babá) a deixaram em cárcere privado. Com esforço próprio, ela voltou para Belém e ela também foi visitada pela equipe de atendimento e logo em seguida pela equipe da pesquisa, que a lançou o mesmo convite.

ESMERALDA conversou na Sodireitos com a coordenação da pesquisa e disse que assumiria a pesquisa ação, enquanto ela não migrasse novamente.

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Parte 12. SUJEITOS, CENAS E CENÁRIOS

Uma agente de saúde que participou do programa de prevenção da Sodireitos chegou com SAFIRA perguntando se ela poderia conversar com pessoas da Sodireitos. Depois de um primeiro contato da assistente social, ela recebeu e coordenação da pesquisa na casa de sua irmã, onde cuidava das netas da mesma, que trabalhava em São Paulo. Depois de contar sua história de migração para o Suriname, mostrou-se interessada em participar.

Em 2006, o programa Jepiara (programa interinstitucional de enfrentamento ao tráfico de pessoas e exploração sexual de crianças e adolescentes em Belém) fazia visitas às zonas de prostituição em Belém com um trabalho preventivo, quando encontrou TOPÁZIO, que se ofereceu para ajudar e acompanhar o trabalho, uma vez que ela atuava na prostituição e tinha sido traficada. Em 2007, ela foi uma das mulheres entrevistadas pela pesquisa coordenada pela Sodireitos sobre tráfico de mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname e desde a fundação da Sodireitos participava, irregularmente, de discussões e trabalhos. Ligamos para ela para fazer o convite de participar da pesquisa, o que ela imediatamente aceitou.

O primo da AMETISTA conhecia Marcel e contou que sua prima tinha viajado e morado na Holanda. Ele deu seu telefone. Depois de uma primeira entrevista à beira do Rio Guamá (uma vez que ela mora numa ilha em frente à cidade de Belém), ela aceitou conhecer a Sodireitos e saber da proposta da pesquisa ação.

Via Orkut (rede virtual de amizades), foi feita uma chamada numa comunidade de brasileiros no exterior. DIAMANTE respondeu e houve uma conversa via MSN. Depois da entrevista on line, ela se mostrou interessada em conhecer a Sodireitos e a proposta de pesquisa ação.

SAFIRA convidou, depois dos primeiros encontros da pesquisa ação, duas amigas que também tinham migrado para o Suriname. Primeiro trouxe a TURQUESA e depois que ela realizou uma entrevista com RUBI, a convidou também para participar do grupo de pesquisa.

ÁGATA participava de um grupo de jovens socialistas no seu bairro, um grupo de mulheres e atuava como assessora de uma deputada estadual quando

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Parte 12. SUJEITOS, CENAS E CENÁRIOS

participou de uma atividade da Sodireitos no seu bairro. Esta atividade fazia parte de um trabalho de prevenção, criando e fortalecendo redes sociais comunitárias em vários bairros de Belém. Ela se envolveu neste trabalho e quando perguntada se conheciam alguém com experiência de migração para participar do projeto “Mudando de Vida” na Sodireitos, ela se identificou como migrante e poderia ter sido vítima de tráfico de mulheres. A equipe da Sodireitos sugeriu que ela conhecesse o grupo e trabalho da pesquisa ação.

O grupo de mulheres prostitutas do Pará (GEMPAC) pediu a Sodireitos para atender PÉROLA, que tinha voltado há algum tempo deportada da Espanha. Depois dos primeiros contatos pela equipe da Sodireitos, esta a convidou para participar da pesquisa.

Durante oito meses, as mulheres construíram e debateram suas experiências em vista da sua ressignificação para poder passar para ação de mudança nas suas vidas e em âmbito da sociedade.

Os próximos capítulos trarão uma sistematização deste processo, com informações de suas vidas, observações e críticas à sociedade e leituras a partir de suas vivências de temas que impactam a vida de mulheres migrantes.

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Parte I3. A CONSTRUÇÃO DE UMA TRAJETÓRIA: GRUPO E SUJEITOS SE (RE)CONSTRUINDO

3. A CONSTRUÇÃO DE UMA TRAJETÓRIA: GRUPO E SUJEITOS SE (RE)CONSTRUINDO

Em geral, se faz pesquisa para se conhecer um fenômeno, um objeto, uma realidade, enfim. Nas organizações sociais, à ação da pesquisa tem se juntado, além das intenções citadas acima, o interesse de aproximação com uma dada realidade e a produção de conhecimentos sobre esta realidade, tomando ambos (aproximação com e conhecimento de) como instrumentos estratégicos para a ação dentro da missão das organizações.

Estes objetivos se articularam na construção desta proposta de pesquisa ação com mulheres migrantes. E se foi mais além. Neste momento, para a organização Sodireitos e para seu grupo de pesquisa, não bastava descrever ou conhecer as condições nas quais se dão os processos e movimentos migratórios de mulheres na Amazônia, mas fundamentalmente, construir (ou ajudar a construir) o protagonismo das próprias mulheres envolvidas num processo, ao mesmo tempo individual e coletivo, de diálogos, reflexões sobre suas vidas e problemas e sobre as alternativas e propostas que podem e querem assumir para resolvê-los.

Como todas as ações humanas, pesquisar é também fazer opções, e a nossa foi por um caminho, um desenho metodológico que desse conta deste objetivo: a pesquisa ação pareceu adequada.

A pesquisa se inseriu assim numa ação de intervenção direta na realidade social, combinando paradigma interpretativo (compreender e interpretar a realidade e os significados das pessoas) e sociocrítico (identificar o potencial de mudança nesta realidade, protagonizado pelos próprios atores da pesquisa).

Entende-se a pesquisa ação não apenas como uma metodologia de pesquisa, mas também como um instrumento político, com capacidade de aliar a possibilidade de conhecer os fatores diversos que impactam a vida de cada uma das mulheres e, simultaneamente, provocar atitudes de mudanças. Pretendía-se criar um espaço pessoal e político, de construção de capacidades críticas e de estímulo ao engajamento e participação em ações transformadoras

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ou propostas de superação de problemas que elas vivenciam. Como vivem estas mulheres? Em que contextos concretos e subjetivos

se constroem as opções e decisões de migrar? Quais relações (afetivas, sociais, profissionais etc.) travam antes, durante e depois de migrar? Com quem e como estas determinam suas decisões e suas vidas? Compreender estas e outras questões são passos importantes para que elas possam propor mudanças. Neste sentido, a metodologia da pesquisa ação se integrou a uma proposta de reconstrução da situação das mulheres, percebendo-as como sujeitos centrais e tomando suas vozes e situações concretas de vida como ponto de partida para esta compreensão.

Uma intenção subjacente ao processo de pesquisa era construir ou reconstruir sujeitos: cada uma das mulheres, os próprios pesquisadores, a própria organização Sodireitos e seu trabalho junto a este público.

Para isso, precisava-se descobrir que questões e problemas elas também tinham, como elas os vivenciavam e quais nos eram comuns (até aí as perguntas eram só nossas, dos pesquisadores), cumprindo o princípio de que neste tipo de pesquisa se investiga e age sobre um problema coletivamente percebido, buscando para este, soluções também coletivas. O trabalho começou com a clareza de que para iniciar, de fato, o processo e as decisões precisavam ser tomadas no coletivo: o que conhecer e investigar; a forma de fazê-lo o que discutir; a escolha das temáticas a aprofundar; o que é importante saber; quais questões tem mais potencial para desvendar uma realidade e nela intervir etc. Compor o grupo foi o primeiro passo!

a. Mulheres, que mulheres? Apesar de a Sodireitos já ter acumulado um experiência de trabalho com

mulheres migrantes, não dispúnhava de um grupo ou de várias mulheres em contato permanente para compor o trabalho. Precisou-se assim contatá-las, convidá-las, conquistar a adesão, o que não foi tarefa simples.

Havia uma ideia e uma proposta que eram baseadas em pressupostos e conhecimentos, que não necessariamente eram (ou são) os das mulheres

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que até este momento nunca haviam se encontrado (à exceção daquelas que haviam se conhecido em algum momento durante o período em que viveram no exterior). Além disso, é preciso reconhecer também que por mais informações que se tenham, nunca se conhecem de todo a realidade por elas vivenciadas, simplesmente porque não as viveream e, por isso, nosso conhecimento destas será sempre parcial, porque será construído de um ponto de vista externo, limitado, portanto.

Como motor inicial, dispunha-se, além da motivação, da crença de que o processo de empoderamento é básico para pensar mudanças nas condições de vida das mulheres, e foi com estas que se saímos às ruas das periferias da cidade com o convite às mulheres.

Para identificar e fazer as aproximações iniciais, retomaram-se os contatos com algumas mulheres que já haviam sido atendidas pela Sodireitos e se realizaram levantamentos nas comunidades onde se executa o trabalho de prevenção da entidade. A estratégia utilizada foi a realização de palestras sobre tráfico de pessoas e nestas se fez um levantamento de casos e situações de migração que possibilitou construir um mapa de locais com maior frequência de migração ou tráfico de mulheres para o exterior.

Após este levantamento, houve retornos ou visitas às residências das mulheres e diante da aceitação, apresentou-se a proposta inicial, incluindo metodologia e intenções para as mulheres.

Houve casos em que os contatos foram também com a família, porque estas estavam próximas e acabavam se envolvendo na conversa e aconteceram sem oposição da mulher migrante. Assim ocorreu uma aproximação com as mães, irmãs, sobrinhos etc.

Estas conversas mais ampliadas funcionaram como um momento de mais conhecimento sobre o contexto de vida das mulheres e suas famílias – o que fazem, como vivem, trabalham etc.; o que acabou possibilitando uma compreensão do universo familiar também.

Acabou-se percebendo como a família vê a viagem de um de seus membros e as opções das mulheres, como se envolve de forma diferenciada

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com esta questão: algumas que não sabem da decisão de viajar; as que sabem e concordam; as que sabem e não concordam, ou não apóiam; as que tomam parte na decisão. Percebeu-se também o papel que cada uma pode ter no desfecho do caso: foram as mães que se empenharam, procuraram a polícia, procuraram o braço da rede na comunidade, ameaçaram e foram ameaçadas por esta; é também, em alguns casos, quem recebe e utiliza o dinheiro (escasso geralmente) que as mulheres enviaram do exterior.

Conhecer as casas, falar com as famílias foi um processo de imersão inicial no contexto que abriu novas interrogações na discussão das possibilidades de protagonismo das mulheres e suas famílias. Este processo continua numa aproximação maior, as famílias (mães, filhas e filhos) passaram a frequentar a entidade, se envolveram em algumas atividades ou apenas visitaram.

Quatro casas foram visitadas e contataram-se então seis mulheres que demonstraram interesse em compor o grupo.

O desafio passou a ser então a adequação de condições para colocá-las em contato umas com as outras e tê-las reunidas no espaço da Sodireitos. Como iniciar de fato o processo de grupo? Onde? Quando? Em quais horários? Com que periodicidade?

Sabía-se de antemão que as mulheres migrantes abordadas formavam um conjunto de mulheres com características específicas: de baixa renda, o que implica que trabalham ou precisam trabalhar; têm filhos, o que impõe a questão de com quem deixá-los etc. Foi criada a estratégia de organizar um espaço na entidade com uma pessoa paga para cuidar das crianças durante os encontros, para quem precisava.

A escolaridade diversificada (desde analfabeta até estudante universitária) trouxe a questão de pensar com cuidado as estratégias para estes encontros, além de que estas, seria fundamental para atrair e manter a motivação das mulheres: pensar metodologia dinâmica, adaptada a diferentes níveis de motivação, interesse e escolaridade, hábito de estudos, de ouvir, concentração.

Diante das evidentes necessidades financeiras, foi preciso pensar em como recompensar o tempo dedicado ao trabalho, tanto como garantia de

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alguma renda, indiscutivelmente necessária, quanto como elemento de valorização deste tempo, de seus saberes e de seu trabalho. A garantia da bolsa de agentes de pesquisa funcionou como fator fundamental na garantia do tempo e na elevação da autoestima das mulheres que se sentiram valorizadas e recompensadas pelo trabalho que faziam. Esta bolsa, elas relataram mais tarde, garantiu respeito diante da família pela atividade, diante da afirmação de que “iam trabalhar”.

b. Conhecendo cada mulher: entrevistas individuaisDurante os contatos e mapeamentos iniciais e manifestações de adesão

das mulheres, passou-se para um momento individual de formalização do convite. O projeto/proposta e metodologia foram apresentados e solicitaram-se suas contribuições para adequações e formatação final do projeto.

Em seguida, partiu-se para uma entrevista compreensiva em profundidade já como primeiro momento da coleta de dados.

Estas entrevistas permitiram: ampliar a compreensão dos contextos de vida das mulheres; identificar experiências e formas de significação destas; começar a identificar problemas e questões que poderiam ser refletidos e eleitos como demandas de intervenção ou mudanças.

As entrevistas foram realizadas nas casas das mulheres ou na sede da entidade e duraram em média de 60 a 120 minutos, e seus conteúdos foram gravados e transcritos, sendo posteriormente devolvidos para as entrevistadas para que elas pudessem fazer alterações ou complementações e validá-los.

Falar de sua experiência, poder reler o que falou, poderia também ser uma forma de sistematizar a experiência vivida, de externalizar para poder trabalhá-la de outra forma, reconstruir significados. Em vez de uma lembrança e experiência que domina suas vidas, ela, ao se fazer narrativa, torna-se acessível para novas leituras, interpretações e ações. As entrevistas se constituíam como uma abordagem ampla das percepções das mulheres sobre sua vida e o processo de migração, nas quais não era necessário esgotar todos os temas, assuntos e informações, mas, reunir narrativas que pudessem trazer

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novas categorias para avançar no processo de construção do conhecimento.A pergunta aberta inicial que abriu o roteiro de entrevistas foi a seguinte:

“Bom dia, boa tarde ou boa noite. Eu sou (Isabel / Marcel), da equipe da SODIREITOS e esta é uma pesquisa sobre migração, trabalho e gênero. Nós queremos documentar as experiências de mulheres sobre a migração e trabalho, e analisar estas experiências desde uma perspectiva de direitos humanos. Você gostaria de relatar sua experiência para gente?”

Todas as demais questões vieram em função das narrativas iniciais, que foram se desenrolando de acordo com a nossa interação com as mulheres. Isto não impediu que outras questões fundamentais para a pesquisa pudessem ser feitas no decorrer da entrevista, caso não aparecessem na narrativa das mulheres.

Ao final das entrevistas, foram formalizados, mais uma vez, os convites para a construção do grupo de pesquisa ação. Foram apresentados e discutidos com as mulheres os procedimentos de confiança e credibilidade e feitos acordos e compromissos de trabalho, assegurando a confidencialidade das informações, o anonimato das identidades, a participação voluntária e a decisão coletiva sobre os usos das informações e formas de divulgação destas.

c. Grupo e Metodologia em açãoAcertados os procedimentos iniciais, o primeiro encontro do grupo

foi marcado. Vale dizer da excitação e ansiedade dos coordenadores da pesquisa espaço organizado com esmero, café da manhã, tudo arrumado. Com antecedência ele foi marcado, levado convite individual a cada casa e o dinheiro do transporte. Apareceram duas mulheres. Após um longo tempo de espera, decidiu-se que era importante valorizar a sua presença e começar o trabalho. As duas trocaram suas experiências, junto com os coordenadores da pesquisa e disseram gostar muito da experiência, garantindo sua participação no processo e entenderam este pequeno encontro já como primeiro encontro

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da pesquisa ação.Este primeiro “fracasso (pelo número de participantes) / sucesso (pelo

retorno positivo das duas mulheres)” deixou alertas aos desafios que teríam na mobilização do grupo, levando a aperfeiçoar as estratégias de mobilização e construção dos compromissos de participação. Havia o interesse declarado, mas era preciso transformar esta declaração em participação e compromissos efetivos.

Partiu-se para algumas suposições do que era necessário para despertar esse compromisso de participação. As mulheres precisariam: conhecer a entidade (não esquecer que elas, em sua maioria, viveram histórias de convites e propostas enganosas e, portanto, seria natural que fossem reticentes); saber mais do trabalho que a entidade desenvolve; ter condições financeiras para poder se deslocar até a sede da organização; experimentar a sensação de fazer parte de um grupo - também uma experiência não muito presente em suas vidas até então.

Estas reflexões levaram a um esquema de mobilização mais intensivo que incluiu: marcar e ligar antes para cada uma; negociar as possibilidades de impedimento (negociamos com empregadora de uma delas); organizar condições para trazer os filhos de quem não tinha com quem deixá-los; buscar em casa três das mulheres que moravam mais distante e não sabiam chegar à entidade. As demais se comprometeram em chegar sozinhas.

Claro que as estratégias de mobilização partiram das percepções dos coordenadores sobre o fato de as mulheres não terem comparecido. Entretanto, com o estreitamento das relações, elas passam a relatar suas próprias percepções sobre o convite e sobre os pesquisadores. “Achei que eram aliciadores”; “fiquei desconfiada, porque me fazem este convite assim?” “O que querem comigo?”. Inquietações que certamente apareceriam para qualquer pessoa que receba um convite para participar de uma organização que não conhece.

As estratégias se mostraram eficazes e o segundo encontro aconteceu com seis mulheres. As mesmas estratégias foram mantidas por mais alguns encontros e aos poucos foi se trabalhando a autonomia e compromisso

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e garantindo condições de transporte. Todas passaram a vir sozinhas e a mobilização se restringiu a um telefonema na véspera dos encontros para confirmar presença.

Uma das mulheres convidou mais duas mulheres migrantes que conhecia para participar, além de duas mulheres que foram contatadas por meio da internet e novos contatos diretos com um dos coordenadores da pesquisa ou outros técnicos da Sodireitos.

Com o passar dos encontros, todos os procedimentos de preparação (mobilização, alimentação, organização de material e espaço, exercícios de acolhida) passaram a ser feitos pelas próprias mulheres em duplas previamente escolhidas. A partir do VI encontro, também elas passam a discutir as temáticas, as tarefas e a metodologia para cada encontro.

d. A dinâmica dos encontrosO processo da pesquisa durou oito meses, constando de 21 encontros

com duração de 6 a 8 horas. Os encontros aconteceram a cada 15 dias.As mulheres foram convidadas a se engajar num processo coletivo de

reflexão e colaboração. A intenção inicial foi desenvolver um processo de reflexão crítica que permitisse, progressivamente, explorar/refletir a situação de suas vidas e identificar o que gostariam de mudar e como juntas poderiam pensar estratégias para isso.

Para isso havia uma metodologia padronizada de encontros que constava de uma abertura com um exercício de acolhimento (música, relaxamento, massagens, atividade de integração), seguido de uma retrospectiva do encontro anterior, com “prestação de contas” de alguma tarefa ou atividade pendente e aí sim, entrava a discussão da temática do dia: foram trabalhadas dez temáticas (ver quadro a seguir). Para possibilitar que cada uma tivesse tempo e instrumentos para pensar, refletir e organizar seus conhecimentos e experiências, usou-se a construção de cartazes e painéis, individualmente ou em pequenos grupos para, em seguida e a partir desta produção, iniciar debates e reflexões coletivas.

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QUADRO 1 - ENCONTROS DA PESQUISA AÇÃOEncontro DATA TEMÁTICA Nº DE

PART. METODOLOGIA

1 30/03 Apresentação 02 Roda de conversa

2 07/04 Identidade 06 Colagem

3 18/04 Trabalho e educação 06 Linha de tempo

4 04/05 Família (1) 08 Árvore genealógica

5 18/05 Família (2) 07 História impactante

6 01/06 Migração (1) 08 Antes de migrar

7 08/06 Roteiro de entrevista 06 Construção coletiva

8 22/06 Migração (2) 09 Lá e de volta

9 10/08 Prostituição 10 Debate

10 31/08 Relacionamentos 10 Teia de relacionamentos

11 13/09 Direitos Humanos 10Diálogo com a declaração e convenções de direitos

humanos

12 29/09 Políticas Públicas 09 Recortes de jornais e Cartazes

13 13/10 Releitura das produções (1) 09 Comentários nos cartazes

produzidos

14 27/10 Releitura das produções (2) 09 Comentários nos cartazes

produzidos

15 10/11 Preparação FSPAN (1) 09 Cartaz rasgada/debate sobre prostituição e migração

16 17/11 Preparação FSPAN (2) 09 Montagem da metodologia

17 06/12Elaboração roteiro

relatório da pesquisa ação

08 Leitura e discussão coletiva

18 20/12 Formulação do perfil de cada participante 10 Leitura e discussão coletiva

19 e 20 25/01/2011, 14/03/2011

Leitura e produção do relatório preliminar 6 Leitura e discussão coletiva

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QUADRO 2 - OUTRAS ATIVIDADES COLETIVAS DA PESQUISADATA TEMA DA ATIVIDADE Nº DE

PART. METODOLOGIA

12/08 Serviços no aeroporto 07 Visita e observação acompanhadas

08/09 Política de enfrentamento ao tráfico de pessoas 07 Debate com equipe da SEJUDH

22/09 Metodologia de pesquisa 07 Oficina ampliada

29/11 a 01/12 Participação FSPAN 04 Oficina, debates

O ponto de partida da pesquisa e, consequentemente, dos encontros, foi incentivar cada mulher a tomar a própria experiência de vida e ação cotidiana como objeto de reflexão em processos individuais e coletivos de análise, para, a partir destes, discutir as possibilidades de torná-las fontes de aprendizagem e conhecimento e reconstruí-las. Acredita-se que isso seja um elemento básico para a construção dos processos de empoderamento das mulheres no controle de suas próprias vidas.

No segundo encontro foi então negociada uma agenda de reflexões conjuntas e firmados acordos de funcionamento do grupo. Buscou-se deixar claro o engajamento coletivo, responsabilidades e papéis. Foram também reafirmadas as bases de construção das interações de confiança, preparando uma base interacional destas mulheres com a dupla de pesquisadores e as três profissionais do serviço de atendimento da Sodireitos, constituindo referências e apoio para o processo grupal.

O trabalho foi iniciado com a pergunta: como construir um espaço pessoal e político para o empoderamento das mulheres migrantes, de forma que estas possam refletir sobre suas condições de vida, suas experiências, causas e alternativas de solução para seus problemas?

Esta pergunta, difícil de responder, foi o guia inicial de construção do

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processo de pesquisa ação apoiada pelas informações que existiam e que as problematizamos, fazendo delas referências para debates e incidência política sobre migração, tráfico de mulheres e trabalho escravo. Estas, entretanto, se constituíam em problemas sociais que devem ser alvo da ação pública e problemas de pesquisas desde o início, mas não ainda para as mulheres, que apesar de os vivenciarem, não fazíam, destes, possivelmente, alvo de suas reflexões, de busca de suas inter-relações, causas e consequências.

A tônica do grupo foi um trabalho coletivo de levantar, sistematizar e interpretar as experiências, visões e ideias, procedendo após isso um processo de sistematização destas e também de tomadas de posição sobre o que fazer, como usar e quais os rumos a definir para o grupo após a conclusão desta fase de “pesquisa”.

Os encontros tiveram intenções diferenciadas:

1) Os primeiros foram de discussão e reflexão das experiências (encontros 01 - 10); 2) Depois relacionaram suas experiências com os Direitos Humanos e com Políticas Públicas, buscando identificar onde foram violados, a ação e omissão do Estado nas suas histórias de vida e pensando propostas de ação (encontros 11-12); 3) Encontros de releitura dos conhecimentos e reflexões produzidas (encontros 13-14); 4) Encontros de planejamento de produção da ação coletiva do grupo a partir do conhecimento e propostas produzidas (15-16);5) Encontros de produção do relatório final (17- 21).

O processo de condução do grupo foi marcante: colocou diante do trabalho coletivo a complexidade de mediar conflitos e dificuldades, afinar posições, construir confiança num grupo que ainda se formava e que trazia em cada participante marcas muito fortes de violência, enganos, o que gera um processo natural de “ficar de pé atrás, desconfianças etc.”. No grupo

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acabaram se evidenciando características pessoais diversas que originaram, naturalmente, alguns conflitos: algumas mais “pavio-curtos”, outras mais conciliadoras, algumas muito atentas às necessidades de atenção e cuidado por parte de outras, outras que demandaram mais atenção e cuidado. Estes processos acabaram por enriquecer a interação e produção grupal.

Para os coordenadores também foi um desafio importante de refletir até onde eram um dentro do grupo (o que era necessário para não marcar ainda mais diferenças), mas ao mesmo tempo, sabendo da necessidade de distanciamento do “observador”, que se distancia do grupo para perceber todo o movimento coletivo do mesmo e contribuir com sua produção. O desafio se colocava quando, ao mesmo tempo, era exigido um olhar, uma análise sobre as questões discutidas, uma fala para ajudar a entender, uma palavra de “especialista”; também era esperada e cobrada uma participação mais simétrica, um partilhar de experiências pessoais, das situações vividas, uma certa “curiosidade” por saber se também nós vivemos experiências de violências, preconceitos e como esta foi vivênciada por nós. Os coordenadores tiveram no grupo um papel “ambíguo” – ao mesmo tempo coordenadores, como eram chamados, e pesquisadores participantes, que precisavam fazer as mesmas tarefas e também narrar suas histórias e refleti-las. A dificuldade foi então administrar estas múltiplas posições, esses múltiplos “eus” que faziam parte do grupo, o que resultou num exercício autorreflexivo significativo

A ação foi baseada no pressuposto de olhar o grupo como um processo em construção, em movimento, num fazer-se contínuo. Assim, escutar e contribuir para que o grupo escutasse e compreendesse as narrativas, as experiências de cada uma, procurando refleti-las no coletivo, sem adotar posturas de julgamento, nem análises maniqueístas de certo ou errado, bom ou ruim, fracasso ou sucesso. Ao contrário, ouvir todas como experiências, percebendo que lições cada uma delas trazia, para o desenvolvimento individual ou coletivo.

Nestas reflexões, os coordenadores/técnicos também participavam com suas opiniões, que também não eram as mais ou menos certas, apenas mais

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uma forma de ver a questão.A pergunta: “quem és ou quem sou” remete a trajetórias, experiências,

confrontos indivíduos e contexto. Perguntas que procuraram posicionamentos de identidade e fundamentaram o início e desenvolvimento do trabalho da pesquisa: quem é você? Como se vê? Como se representa, como se apresenta, como se percebe, em diferentes situações, momentos e lugares?

Saindo do Brasil, chegando e vivendo “lá”, voltando para o Brasil: que identidades se produziram nesta trajetória, frente e dentro dos papéis e rótulos de ser mulher jovem, pobre e migrante?

Onze mulheres, que têm em comum o fato de ter emigrado (saído do Brasil) e reemigrado (ter voltado para o Brasil), de ser mulher e de originar de famílias pobres. No momento em que se encontraram no grupo de mulheres migrantes da pesquisa ação na Sodireitos, assumiram mais uma condição em comum: a de membro de um grupo de pesquisa.

Suas diferenças afirmam a individualidade e suas identidades singulares que juntas contam uma parte da história da realidade da migração de mulheres pobres no Pará.

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QUADRO 3 - UM PERFIL DAS MULHERES

MulheresPedras

Idade na pesquisa

Idade quando migrou

Nº filhos

Escolaridade quando migrou

Moradia antes / depois

País destinou

Forma de retorno

PÉROLA 27 24 023ª Série

do Ensino Fundamental

Casa alugada/

casa própria

Espanha Deportada

RUBI 29 24 03 Ensino Médio Completo

Na casa de Parentes/Com os

pais

SurinamePor

vontade própria

TURQUESA 38 30 03Ensino

Fundamental Incompleto

Com a Mãe o pai e seus

filhosSuriname

Por vontade própria

DIAMANTE 251ª vez

c/10 e 2ª vez c/ 21

0 Ensino Médio Completo

Na Casa da Avó Portugal Deportada

SAFIRA 31 27 02 1º Ano do Ensino Médio

Casa Própria Suriname

Por vontade própria

JADE 26 24 051ª Série

do Ensino Fundamental

Casa da Mãe Suriname

Por vontade própria

ÁGATA 30 21 04 Ensino Médio incompleto

Casa Alugada Espanha

Por vontade própria

TOPÁZIO 38 24 037ª Série

do Ensino Fundamental

Casa da Mãe

SurinameHolanda

Foragida do Clube

AMETISTA 24 23 01 Ensino Médio Completo

Casa dos Pais

AlemanhaHolanda

Por vontade própria

CRISTAL 22 21 0Ensino

Fundamental Incompleto

Casa dos Pais Suriname

Por vontade própria

ESMERALDA 32 20 028ª Série

do Ensino Fundamental

Casa dos Pais/ Está Morando

na Venezuela

SurinameVenezuela

Guiana Francesa

Por vontade própria

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Nestas breves apresentações podem-se perceber fortes marcadores de identidades de cada uma das mulheres. São sucessivas histórias de negação de direitos. São mulheres oriundas de famílias compostas, em geral, também por mulheres e crianças (mães, filhas e filhos destas). Se pensarmos identidade como se construindo em relação com o espaço e tempo em que cada sujeito vive, diremos, portanto, que estas que se expressam nas vivências em contextos e realidades precárias: moradias precárias, baixa escolaridade, gravidez e filhos ainda muito jovens, trabalho informal, desemprego.

A migração entra nas suas histórias como alternativa à falta de condições de vida, à falta de oportunidade dentro do país. Trata-se também de um fenômeno silencioso, invisível. Enquanto, por exemplo, nas áreas de fronteira ou garimpos, os migrantes são uma presença visível, as mulheres aqui referidas saem de suas casas, comunidades e diante da condição de vida que levam, só famíliares sentem essa falta, se sentem.

Além disso, porque por falarmos de saída, não é possível falar ou sentir a presença incômoda da nova pessoa, do diferente, do estranho, situação que acaba se evidenciando com elas na Espanha, no Suriname, na Holanda, enfim em cada lugar que elas procuram.

Essa característica faz com que o fenômeno emigratório destas mulheres passe quase que despercebido. Sabe-se que historicamente a discussão da migração só encontra espaço político quando o migrante se transforma em problema nos locais de destino.

São mulheres que já vivem processos de invisibilidade nas periferias, nas ruas e passagens dos bairros distantes do centro das grandes cidades (é o caso das que entrevistamos); já vivem invisíveis, em condições de pobreza, em moradias precárias, inacabadas ou sempre em construção e sob o estigma dos preconceitos, perdidas nos confins das grandes cidades. Como elas mesmas afirmam, só visíveis aos preconceitos que o fato de ter tentado uma outra forma de vida lá fora gera.

Oito mulheres migraram por meio de esquemas de tráfico, ou seja, por meio de pessoas de contato que as conduziram para um trabalho no exterior, no qual sofreram exploração e impedimento de ir e vir, na prostituição ou no trabalho doméstico.

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Parte II4. FAMÍLIAS

4. FAMÍLIAS

Ela lembra quando veio para Belém, ainda criança, com a mãe para morar na casa de um tio. Tinha nascido no interior do Pará, onde seus pais moravam. Eram muitos tios e tias, tanto do lado de sua mãe, quanto do lado de seu pai, alguns moravam na mesma cidade, outros tinham se mudado para Belém ou outras cidades ou comunidades. Ela não sabia por que sua mãe decidiu vir para Belém e morar junto com um irmão dela, na periferia da cidade, numa casa de madeira. Para ela, aquela casa se tornou seu lar, aquele monte de gente na casa, a sua família. Muitos dos vizinhos também vieram do interior, como a família dela, com muitos filhos e filhas. Sua mãe e tios ainda falavam da vida que tiveram no interior: a pesca, a roça, os negócios e as festas. Para ela, estas histórias não eram muito vivas e o que ela vivia era a periferia da cidade de Belém: muita gente, pouco espaço, lama quando chovia, calor nos dias de sol; muita música alta nas casas e na rua, cada casa vendendo ou oferecendo algum serviço, como também a dela: venda de produtos Avon, manicure, vende-se chopp, gelo, cerveja, corta-se cabelo etc.

Seu pai, ela conhecia pouco, não quis lembrar muito dele. Ele ajudou pouco para sustentar a família, deixou a esposa sozinha com os cinco filhos, batia nela e usava o dinheiro para comprar bebida, até deixá-la e ter mais filhos com outra mulher.

Sua mãe vivia cansada, correndo atrás, tentando administrar a família, na casa alugada encostada ao lado da casa do seu tio. Assim, sua mãe não foi sempre carinhosa e muitas vezes ela apanhou de sandália e de ripão. Ela considerava que merecia, mas doía muito e nem sempre foi justo. Pela experiência de bebida com o ex-marido, sua mãe começou a frequentar a igreja evangélica e tentava passar ou impor valores de castidade antes do casamento, não beber, não ir às festas e vestir roupas longas.

A irmã da sua mãe, a sua tia, viveu uma situação parecida, mas decidiu viajar. Ela foi para o Suriname, voltou depois de um ano. Ela tinha deixado seus filhos com a avó e logo depois de retorno ao Brasil, embarcou para Portugal. Com o passar do tempo, ela veio buscar seus filhos e levou mais alguns irmãos para morar com ela lá. Ela tinha se casado com um português e decidiu levar quem queria e podia.

Todas as mulheres pesquisaram suas histórias, desde seus avôs até seus

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filhos. Cada uma construiu, assim, sua árvore genealógica, com informações sobre nascimento, lugar onde reside atualmente ou faleceu cada pessoa representada. Algumas árvores vieram em forma de desenho de verdadeiras árvores, outras continham recortes de rostos de revistas representando os membros de sua família e outras verdadeiros organogramas cujas leituras levaram a longas observações e explicações para compreender os labirintos e teias familiares

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ÁG

ATA

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TU

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“É muito bom saber as nossas origens”As árvores genealógico-migratórias contaram 11 histórias diferentes que

levaram entre elas a comparações, revivências e reflexões. Observaram que a maioria das famílias é originária do interior do

Estado e que a migração, portanto, já fazia parte da história de suas famílias muito antes de elas embarcarem nas suas experiências migratórias. As suas histórias e de suas famílias seguiram ou encabeçaram a história da ocupação da Amazônia, onde as famílias pobres do nordeste e sul do país chegaram (estimuladas e enganadas) para ocupá-la e trabalhar nas grandes construções ou agricultura familiar. Exemplos concretos dos impactos das políticas de desenvolvimento pensadas para a região. A geração de seus pais migrou, por necessidade e em busca de melhoria de sua família, para os centros urbanos da região, como elas buscaram, quando arriscaram um novo passo migratório na família, quando foram para o exterior. “O governo deveria investir mais em políticas públicas no interior do Estado, assim a população não superlotaria as cidades, causando um grande fluxo de pessoas em hospitais e em escolas etc. causando um grande problema”. Esta observação de uma delas demonstra a capacidade de leitura sobre os determinantes desta história de migração familiar.

Outra característica observada nas árvores genealógicas foi o grande número de filhos que seus pais e avós tiveram, demonstrando a ausência de planejamento familiar naquela época e a quantidade de filhos respondendo a uma realidade do interior. Precisava-se de muita mão de obra, e também muitos filhos faleceram. Na cidade, já na geração das mulheres, a realidade já é diferente e a maioria teve poucos filhos ou não teve nenhum. Algo que parece se repetir é o fato de seus pais terem filhos com diferentes mulheres ou sua mãe com diferentes homens. Similarmente, muitas delas também experimentaram a maternidade de diferentes parceiros, que, por sua vez, também foram pais com outras mulheres.

O fato da migração interna sempre ter estado presente nas famílias levou a reflexão de que elas (agora) repetem uma mesma história.

“Nós estamos repetindo o que nossos pais ou avós fizeram, eles também migraram para outras cidades ou estados em busca de melhoria e nós também,

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só que agora, para o exterior”; “eles vieram (os pais) porque foi preciso, eu quis melhorar de vida”; “cada nova geração quer dar para os seus aquilo que não teve”; “a família do meu avô tomou tudo que ele tinha, então ele veio embora pra cá”; “mataram meu avô, minha mãe veio embora”.

As árvores mostraram muito mais avós e mães do que avôs e pais, revelando a ausência, ou menor significado, dos homens nas suas vidas. Elas falaram menos deles, até porque a maioria não conviveu muito com seu pai e não o considera como realmente família. O fato de não ter participado na sua educação e os cuidados, ou a violência que suas mães (e às vezes elas mesmas também) sofreram por parte dele foi o motivo exposto de sua ausência nas árvores. Muitas vezes não tinha mesmo informações sobre o paradeiro, origem e outros familiares por parte do pai. Às vezes seus pais tiveram outros filhos com outras mulheres, que elas não consideraram como seus irmãos:

“Meu pai tem 18 filhos, com outras mulheres”. Esta realidade se repetiu, às vezes, nas suas próprias relações: “o pai do

meu filho também tem outros filhos com outras”. As mulheres citam as mães como grandes referências e ponto de apoio:

“a única pessoa da minha família que me dá apoio é a minha mãe”. As árvores se tornam verdadeiras construções matriarcais, nas quais a mãe, e elas mesmas também, pareciam estar sozinhas para dar conta de todos os galhos (filhos, sobrinhos, netos). Apesar das linhas ligarem as pessoas na árvore genealógica, não necessariamente significa uma relação de convivência e cuidados, elas expressaram claramente a visão e sentimento de pertencimento e importância das pessoas da família nas vidas delas.

Os membros da maioria das famílias encontram-se “espalhados” pelo Estado, país e até pelo mundo. De nenhuma das famílias os membros moram no mesmo lugar (Belém), ou seja, mostram na sua organização no espaço suas buscas por melhores condições. As pessoas não se fixaram para sua vida toda no mesmo lugar. Estamos voltando a ser nômades? Ou esse movimento sempre foi marca dos grupos humanos neste contexto?

Nestas histórias familiares que acompanham as árvores genealógicas, há sempre a migração delas para o exterior, mas há também: uma família que tem grande parte de seus membros em Portugal; outra cuja irmã ou sobrinha estão

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no Suriname; e várias na qual a mulher foi a única migrante internacional.Os deslocamentos, às vezes, são acompanhados ou se dão sob tensões e

com conflitos. Apesar da centralidade e valorização da mãe nas árvores e as inúmeras ligações com outros membros da família, na realidade as relações muitas vezes foram tensas: “eu e a D (prima) somos prostitutas, ninguém quer saber de mim”. “Aí ela me dá apoio e eu pra ela”; “ela já deu todos os filhos”; “às vezes um estranho faz mais do que a própria família”; “era muito bom se a família fosse unida, se uma precisasse a outra ajudava...”.

Seria esta uma história de repetição de necessidades? Como entra a migração para o exterior nestas histórias? Porque os recursos no país estão mais escassos? Porque há mais facilidades em viajar para fora?

“Aqui em Belém não tem mais emprego, tô aqui há dois anos, deixei currículo e nada – a gente viaja pra achar coisa melhor”.

Os pais das mulheres fizeram parte de um outro momento migratório na região, do campo (ou da floresta) para a cidade, devido à concentração de serviços públicos e oportunidades de trabalho nas cidades e da expulsão de famílias do interior devido conflitos de terra, falta de investimentos, isolamento etc. Mas a cidade não se mostra destino final. As mulheres, já a terceira geração nas suas árvores genealógicas, tomaram iniciativas de migrar para o exterior, muitas vezes por meio de contatos informais com pessoas pouco conhecidas. Migraram seus avôs e pais como famílias inteiras (ou primeiro o homem e depois o resto da sua família), elas migraram sozinhas, seis delas deixando filhos com suas mães ou outras pessoas para cuidar.

As mulheres desta pesquisa são de uma certa geração na história familiar que poderia ser recontada a partir da própria memória das mulheres e de familiares que ela podia consultar. Para se reconhecer como alguém, produzir sua identidade, é imprescindível se referir a sua família, que é a referência primária de identidade e a rede de socialização e organização da sua sobrevivência.

Situar-se no tempo, no contexto do trabalho e educação, pede um olhar para a rede e história familiar na qual cada mulher está inserida. O que ela vê quando olha para trás, em busca de seus avôs (ou bisavós)? Hoje eles estão mortos, velhos, distantes ou, em alguns casos, ainda muito perto. Mas quando

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ela percebe que conseguiu desenhar a árvore genealógica da sua vida, que se torna uma história viva, e percebe que a história de seus familiares se entrelaça com a dela, a linha de tempo que construiu parece não ter mais um início fixo, é uma linha que vai além, é a sua história desenhada e concretizada numa rede de linhas que formam uma trama da vida de famílias pobres na Amazônia.

Seus avôs e avós, seus país e mães, como elas, tomaram na sua história já decisões dramáticas, corajosas e, às vezes, contraditórias. Nestas decisões houve momentos de migração com toda a família, principalmente do interior da Amazônia para a cidade, de deixar a família e de dividir os cuidados com filhos com outros membros da família. Realidades que as mulheres que migraram também vivenciaram na sua trajetória.

A mãe se mostra uma figura central nas suas vidas e, mesmo com as árvores cheias de pessoas e relações familiares, quando elas definem sua família, elas se restringem a sua mãe, seus próprios filhos e, no máximo, alguns irmãos e irmãs ou um primo que se preocupou com elas. São famílias, ao mesmo tempo, extensas, pelos laços consaguíneos, mas reduzidas, se a questão é rede de apoio, ajuda e proteção. A relação com a mãe é tanto idealizada quanto problematizada, é a pessoa que a criou, cuidou de seus filhos, lutou por sua volta, a acolheu, mas ao mesmo tempo a pessoa que esperava um retorno maior da sua migração, com quem conviver é difícil, que restringe e limita. É a pessoa de referência nas suas vidas, mas não diretamente como exemplo. Ter voltado do exterior parece até uma derrota frente a sua mãe, que agora ampliou seu domínio sobre sua vida, enquanto elas procuravam independência.

A figura dos pais nas histórias das mulheres é pouco significada, à primeira vista. Nenhuma das mulheres vive mais com seu pai, que pouco influenciou no momento de emigrar e nada fez para ela voltar. Os pais dos filhos das mulheres também são pessoas ausentes no dia-dia da sobrevivência e educação dos filhos, mas estão presente nas narrativas e nas esperanças de algumas de chamá-los para dividir a responsabilidade. Muitas delas contam, com gene e orgulho, de avôs, pais e parceiros que tiveram filhos com várias mulheres, tendo até mais de 20 filhos.

As mães é que ficam com a responsabilidade de criar os filhos que ela

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teve, os pais são quase isentados de responsabilidade, embora, às vezes, questionem esse constructo social. O papel e responsabilidade dos homens, os pais de várias gerações nas famílias, precisam ser trabalhados para que eles, pelo menos, contribuam na educação e sustento dos seus filhos.

As discussões geraram a necessidade de continuar a aprofundar a discussão, em especial sobe as relações com a mãe e o significado da família. Este aprofundamento pareceu essencial para poder passar desta rede familiar para a vivência que tiveram quando migraram, deixaram este grupo de socialização primária para viver e encarar uma realidade na qual sua identidade não era mais socialmente constituída pela família, mas pelo fato de ser brasileira migrante, pela nacionalidade, portanto.

Fazer parte de uma família é fazer parte da sua história e de sua forma de organização. Família é quem elas consideram quem é parte da família. Quando é adotada, como RUBI, elas se perguntam onde começa a sua história familiar, como se cruzaram as linhas de tempo delas com aquelas das novas famílias que se tornaram as suas. O amor e cuidados que expressa pela família adotiva se mistura, ao mesmo tempo, com as dores que permeiam as relações: quando foi expulsa de casa com 14 anos, quando desconfiaram que tinha perdido a virgindade ou quando os outros filhos da sua mãe adotiva a desconsideram como legítima filha (a legitimaram, portanto),capaz de cuidar e conviver com seus pais adotivos, hoje já idosos.

A história de vínculos com a mãe adotiva aparece como boa referência, embora às vezes com alguns conflitos, como aparecem nas histórias daquelas que foram adotadas, como RUBI, ou que viveram a infância/adolescência mais com avós: AMETISTA, PÉROLA, DIAMANTE ou que já jovens saíram da proximidade da mãe, como ESMERALDA E ÁGATA.

As histórias de violências familiares aparecem como marcas fortes. Uma delas viu sua mãe apanhando muito de seu pai, sofria com a violência doméstica, quis intervir, desenvolveu raiva dele. As raízes religiosas da sua mãe e vivência na igreja protestante a levaram a ser empregada doméstica ainda pré-adolescente, na casa de um homem da igreja, onde sofreu abuso sexual e maus-tratos, até que sua mãe a trouxe de volta para casa.

Da mesma forma, aparecem as contradições sobre dar o filho para

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Parte II4. FAMÍLIAS

outra pessoa criar, uma situação também frequente entre o grupo. Uma das mulheres deu um filho, outro é criado pela família do pai do mesmo (que está preso por tráfico de drogas) e três moram com a própria. Neste caso, quem é considerada a mãe? Dar a filha (ou filho) para adoção ou para ser criada por outras pessoas não é uma realidade que só se apresenta na vida das mulheres que migraram, apesar de que para elas pelo deslocamento se faz necessário. Neste caso, há então a perda do papel ou status de mãe?

Parece haver uma aparente contraditoriedade nas formas como os vínculos e relações são vivenciados. Também em especial com a mãe: na distância, uma saudade imensa, mas no retorno as brigas ou conflitos. Isso também parece permear as relações entre mãe e filhas, não apenas entre as mulheres migrantes.

As famílias dificilmente são passiveis de serem desenhadas como simples árvores genealógicas, o que quer dizer que elas não se enquadram nos modelos tradicionais de famílias, o que, às vezes, é incorretamente percebido como desestrutura. No entanto, para além das expectativas tradicionais de estrutura nuclear de família, é preciso considerar as diferentes formas de organização ou as novas estruturas familiares, percebendo juntamente, a família em sua funcionalidade. Isto significa também que a política de assistência que parte da unidade familiar como base de sua intervenção deve considerar as complexas construções, arranjos e relações familiares.

Apesar das inúmeras ligações na árvore genealógica, as relações são, muitas vezes, frágeis e fogem de papéis tradicionais. As políticas que investem na infância e adolescência precisam se especializar na diversidade das relações de responsabilidade possíveis: avós, tio ou irmã que ficam responsáveis pela criança e, portanto, precisam de apoio e respaldo.

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Parte II5. RELACIONAMENTOS

5. RELACIONAMENTOS

Quando ela começou a namorar, ela ainda era adolescente, com um rapaz que conheceu na casa do vizinho, onde ela e outros jovens da rua sempre se encontravam. Era aquela coisa, brincando, insinuando, sem que ela soubesse bem para onde isto iria levar, mas a sensação era gostosa e sem pensar muito, ficou com ele. Tinha que ser escondido, porque sua mãe não podia saber, ela ainda era virgem e adolescente, nunca ela iria perdoar. O sexo foi bom, apesar de que, no início, um pouco estranho e desajustado. Ela levou um susto quando sua menstruação não veio e que descobriu que estava grávida. Levou mais uns dois meses para contar para sua mãe. O rapaz com quem tinha ficado, graças a Deus, assumiu o namoro, bem diferente do que uma colega que namorou um rapaz, até bem de vida, que, quando ela contou que estava grávida, mudou-se para Rio de Janeiro com outra mulher e não deu mais notícias. Apesar da bronca e da mudança para morar com o namorado, sua mãe não a abandonou, como ela temia. Difícil mesmo foi conviver com o namorado, que chegava muitas vezes tarde e não queria dar nenhuma satisfação. Quando ela descobriu que estava grávida, de novo, ele deixou até de falar com ela e quando ela o abordava, ele a tratava com ignorância e até com violência. As vizinhas já tinham falado para ela que ele estava saindo com uma adolescente e no dia que ela viu os dois juntos, partiu para cima dela. Decidiu voltar para a casa da sua mãe, que primeiro deu uma lição de moral, tipo: “eu te avisei”. Agora com dois filhos, quem vai te querer? Pior de tudo que ela ainda gostava daquele infeliz com quem agora teve dois filhos. As poucas vezes que conseguiu ir para uma festa, aproveitou para curtir os meninos, namorar e fazer amor. Difícil parecia conseguir outro relacionamento. Sua irmã também já voltou para sua casa depois de um relacionamento estranho com um homem mais velho. Na verdade, ela trabalhava para ele como empregada doméstica e o homem insistiu (será que forçou?) em fazer sexo com ela. Carente e dependente, ela cedeu, sem sentimento de amor e se sentir cada vez pior. Quando engravidou dele, sua mãe foi buscá-la para voltar para casa.

Quando viajou para o Suriname, sentiu que poderia começar algo

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Parte II5. RELACIONAMENTOS

novo, quem sabe encontrar uma pessoa legal. Os primeiros dias no clube de prostituição foram muito difíceis e fazer sexo com o primeiro cliente foi péssimo. Sentiu-se suja, sem vontade de descer de novo, esfregou com força o sabonete no seu corpo e deu vontade de desistir de tudo. Com o passar do tempo, ela conheceu homens que visitavam o clube e que puxavam conversa legal, pareciam entender a vida dela e falaram sobre a vida fora do clube. Assim conheceu um brasileiro que sempre quando ia para o clube a procurava. Além dos bons papos, o sexo com ele também era diferente. Gostou dele, tanto pela atenção quanto pelos planos que se formaram a partir do relacionamento com ele e seu trabalho no garimpo. Um dia ela pediu para ele levá-la do clube para o garimpo. Ela foi com o dono do clube e pagou o que ela ainda estava devendo. Foi muito grato para ele e juntos foram para o garimpo. Conseguiram ficar juntos por quase três anos, ela cozinhando para os peões, indo e voltando para a cidade para fazer compras e levar ouro. Foi uma boa parceria, talvez não fosse amor, mas um companheiro bom e sexo maravilhoso. Nas festas no final de semana na currutela, rolava muita bebida e ela amava dançar. Seu parceiro se amigou com uma outra moça lá. Quando ela voltou para Belém para visitar sua mãe, ele a deixou saber, via rádio, que ele já estava junto com a outra. Na verdade ele sempre foi um mulherengo. Na cidade de Paramaribo ainda tinha conhecido um holandês antes de embarcar para Belém. Ficaram umas noites juntos, um homem com dinheiro e do mundo. Sentiu uma nova atração, por ele e pela oportunidade que brotava. Ele falou da possibilidade de ir para Holanda e ela sabia de amigas que se casaram lá e vivem muito bem. De volta em Belém, os pensamentos, sentimentos e imaginação viagem às vezes de volta para o parceiro do garimpo ou para o Holandês. Relacionar-se de novo em Belém? Com um ex-namorado? O cobrador de ônibus que deu seu número de telefone? O amigo de seu irmão que sempre está na sua casa? Ficar só é bom por algum tempo, mas ter um namoro e poder dividir a vida com alguém é o que ela deseja muito. Com toda sua experiência, boa e ruim, ela só sabe que n16,5

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Parte II5. RELACIONAMENTOS

A família não é a única rede de relacionamentos de referência e importância na vida. As mulheres contaram de vários relacionamentos amorosos, afetivos e sexuais que tiveram e marcaram suas vidas. Para poder falar mais destes relacionamentos, cada mulher escolheu até cinco pessoas com quem se relacionou e que considera como as mais importantes na sua vida. Construíram cartazes com seu nome no meio e dele saindo linhas para nomes de pessoas com quem se relacionaram. Além do nome, qualificaram um pouco estes relacionamentos com o período que durou, o país onde se relacionaram, a nacionalidade da pessoa, o número de filhos que tiveram juntos, o patrimônio que construíram, a causa direta do fim do relacionamento e como se relacionam ainda hoje. Umas mulheres se limitaram a somente duas relações, outras precisaram, segundo elas, escolher entre dezenas de relacionamentos. Tanto a produção da rede de relacionamentos quanto a apresentação e reflexão sobre a mesma levaram a muitas emoções, boas recordações, raiva embutida e, como contaram depois, a retomada de algumas relações que tinham sido terminadas.

REDES DE RELACIONAMENTOS AMOROSOSNos círculos que rodeiam o círculo central com o nome da mulher há:• Nome fantasia – ano do relacionamento;• Lugar e país do encontro;• Filho (as);• Tipo de relacionamento;• Relação hoje com esta pessoa.

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Parte II5. RELACIONAMENTOS

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Parte II5. RELACIONAMENTOS

AGATA Escolheu entre os relacionamentos na sua vida os cinco mais importantes. Entre um e outro, houve outros, mas sem muita importância. Os dois primeiros relacionamentos relatados ela conheceu na casa do vizinho e na casa de um amigo. Com o primeiro, ela aprendeu muito sobre como um relacionamento pode ser, diferente do que via de seus pais. Acabou por ele não querer nada muito sério, mas teve seu primeiro filho com ele. O segundo filho veio com o outro relacionamento, no qual o sentimento era mais de gostar do que de amar. Apesar de poucas brigas, ela queria mais da relação. Depois de acabar o amigamento, ele também se afastou do filho que passou a ser o filho só dela. O terceiro relacionamento apresentado era com um francês que conheceu num bar onde muitas mulheres iam, na época, para encontrar homens para fazer programa devido à proximidade de um grande hotel. Com este ela namorou depois à distância (ele na França e ela aqui). Na segunda vez que ele esteve no Brasil, tiveram muitas brigas, por ela ainda estar na prostituição. Aprendeu muito com ele, mas o mundo deles era muito diferente, ele era professor lá na França e não tinha como mantê-la lá. Ela também não tinha estudado muito na vida, então era mais difícil de encontrar trabalho lá e assim a relação chegou ao fim. Na Espanha, no Clube conheceu um espanhol que gostava muito dela, era um sentimento entre gostar e amar. Brigaram muito, principalmente por ciúme, uma vez que os amigos dele a paqueravam muito. Era uma relação entre brigas, companheirismo e afeto. Depois de uma briga, ela falou que voltaria para o Brasil, comprou a passagem e veio embora. No Brasil, depois de alguns namoros, se juntou com seu atual marido, com quem tem dois filhos. Ele cuida dos filhos dela como se fossem dele, principalmente o filho do segundo relacionamento que ele conheceu quando tinha apenas um ano de vida. Dividem e se entendem, sem brigas (estão juntos há quatro anos), apesar de serem muito diferentes.

AMETISTA apresentou um quadro de relacionamentos, no qual o pai da sua filha não constava, por “não ter significância na vida dela, foi algo que aconteceu”. O primeiro relacionamento apresentado (2001-2005) morava na mesma ilha que ela, uma relação de carinho e respeito que acabou quando ela veio morar em Belém para estudar. Apesar de morar na mesma ilha, de novo, não tem mais contato. Em (2006-2008) conheceu um rapaz numa festa em

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Parte II5. RELACIONAMENTOS

Belém. Era uma paixão intensa. Ela o deixou para viajar, mas até hoje seu coração bate forte quando se encontram. Na Holanda conheceu um turco com quem namorou/ficou. Quando descobriu que ele estava envolvido com drogas, ela se afastou e encontrou um africano num bar com quem rolou amor e com quem quase casou, mas foi quando voltou para o Brasil. Mantém contato com ele, não considera o relacionamento acabado. Mas no Brasil conheceu um rapaz na sua casa, que foi uma paixão. Foi bom até quando durou, mas sente falta dele. Ele era muito ciumento.

CRISTAL relatou três relacionamentos. Todos, ela conheceu na sua casa ou na rua na frente de sua casa. Com nenhum deles ela chegou de fato a namorar. Ela gostou do rapaz que conheceu na sua casa (funcionário da companhia elétrica, que procurou abrigo na sua casa quando o carro da empresa pregou e caiu uma chuva), mas descobriu que ele tinha outra namorada e o largou (foi quando viajou para o Suriname).

DIAMANTE apresentou cinco relações que acompanham sua trajetória migratória. O primeiro namorado (2004 a 2008) foi caracterizado por paixão e ciúme, e quando ela viajou para o Portugal, a relação acabou. Considerou esta relação o primeiro e único amor. Não tem mais contato com ele. No prédio de sua tia, em 2008 (Portugal), conheceu outro rapaz por quem sentiu uma forte atração física que com o tempo se transformou em paixão. Considerou a relação como “enrolada” e acabou por traição dela. Numa festa, em 2009, conheceu outro rapaz com quem começou a namorar. Uma relação marcada por insegurança e ciúmes e quando ela começou a gostar, foi deportada. De volta ao Brasil, conheceu um rapaz na praça. Ele a deu força, pouco brigaram, mas terminou com ele por ser muito safado. Mantém um contato legal com ele. Neste ano (2010) namorou um amigo do irmão dela. Havia muito carinho entre os dois, mas a “ex” dele apareceu grávida.

JADE apresentou três relacionamentos. O primeiro, quando ela tinha 12 anos, era um homem da igreja com 49 anos que visitava sua casa e a levou para morar com ele. Ele era casado e tinha cinco filhos, mas manteve relações sexuais com ela e a ameaçava. A esposa dele avisou à mãe de Jade, que foi buscá-la. De 2000 a 2003 se relacionou com outro rapaz, de 29 anos, com quem fugiu. Viviam em festas e teve dois filhos com ele. Em 2006 se

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Parte II5. RELACIONAMENTOS

relacionou com outro rapaz, que foi “tudo de bom”. Eles se gostam muito e tiveram dois filhos. Ele foi preso e ela foi para o Suriname, mas ela ainda espera por ele.

PÉROLA relatou dois relacionamentos. O primeiro ela conheceu numa festa de reggae em São Luis, para onde a mãe a tinha deixado ir com uma amiga. Ela voltou grávida dele, o que tentou esconder. Quando descobriram, mandaram chamar o rapaz, que era DJ, para assumir. Ele veio morar em Belém e moraram juntos. Mas ele era muito ciumento e violento. Ela foi para Espanha, onde um marroquino a tirou do clube para morar com ele. Ele estava apaixonado por ela, mas ela foi deportada, e o que ela ouviu dizer foi que ele se matou. Voltou com o primeiro namorado, com quem teve outra filha. Moravam juntos, se mudaram devido ameaças relacionadas a consumo de drogas. Brigaram muito e ela o denunciou à polícia. Ele foi embora para o Maranhão, e ela foi buscá-lo recentemente e estão morando juntos de novo.

RUBI descreveu, com muitas informações, quatro relacionamentos. O primeiro ela começou em 1996, com 15 anos, com um homem 12 anos mais velho. Moravam juntos, mas ele a desprezou muito, batia e a deixava em casa enquanto saia ou voltava tarde. Tiveram dois filhos. Depois de cada filho, tiveram crises e ela voltava para casa da mãe, que no início a acolhia, mas depois de voltar pela terceira vez para a casa da mãe, esta não queria que ela voltasse mais. Rubi achava que o amava demais e voltava até decidir (ter coragem) acabar de vez. Em 2002 se relacionou com um senhor 20 anos mais velho, do Rio de Janeiro, onde trabalhava e que cuidava dele. Ela não gostava dele e teve uma gravidez não desejada. Sua irmã adotou a criança. No garimpo no Suriname, encontrou o que ela chama de verdadeiro amor: um garimpeiro que tinha fama de ficar com as mulheres de programa sem pagar. Ele a testou e ela conseguiu conquistá-lo. Moraram e trabalharam juntos no garimpo e na cidade, ficando juntos entre “tapas e beijos”. Depois ela resolveu voltar para sua casa, no Brasil, e algumas semanas depois, ele ligou avisando que estava com outra mulher. Ele está, segundo ela, para sempre no seu coração. De volta em Belém (2008), se relacionou com um rapaz mais novo. Ela “amou demais, confiou demais, deixou-se levar e se entregou a uma pessoa que a magoou muito”. Tiveram muitos momentos bons, uma relação boa com a

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Parte II5. RELACIONAMENTOS

família dele, ele a ajudou muito, mas ela não aguentava a safadeza dele. Não consegue contar quantas vezes brigou com meninas por causa dele. Ela foi trocada por outra. Faz três meses que se deixaram.

SAFIRA contou de seu primeiro grande amor, que conheceu em 1995 na frente da sua casa. Foi amor à primeira vista e proibido, porque sua mãe não queria que ela já namorasse. Eles se amigaram de verdade e foram morar juntos. Tiveram um filho, brigaram pouco e, de repente, ela decidiu deixá-lo. Até hoje não sabe por que o deixou e saiu de casa, pois até hoje gosta dele, o ama. O segundo grande amor foi em 2006 no garimpo. Teve uma atração muito forte e eles se realizavam na relação sexual. Não criaram nenhum patrimônio e eles brigavam muito, porque ele era muito safado. Ela acha que houve afeto, paixão e sexo. Acabaram por causa da traição dele. Teve um filho com ele.

TOPÁZIO apresentou quatro relacionamentos. O primeiro ela conheceu num estádio de futebol, em 1988, e começaram a namorar. Existia afeto. Ele era de uma família com condições e quando ela descobriu que estava grávida dele, ele casou com outra mulher e se mudou para Rio de Janeiro. Não tem mais contato com ele. Depois, em 1992, ela se relacionou com um francês, com quem foi morar em São Paulo. Depois de cinco meses, ele sumiu e a deixou sozinha. Nunca brigaram. Depois um holandês num clube na Holanda. Namoraram e ele sempre a tratou muito bem. Ela engravidou e voltou para o Brasil. Todo mês ele liga para saber como a filha dele está. No Brasil, conheceu um brasileiro num shopping center. Moraram juntos por nove anos. Ele era muito ciumento e mulherengo. “quando engravidei de outro homem, acabou a relação, mas ele continuou a ajudando e até hoje mantemos uma boa relação”. No debate, acrescentou ainda uma relação que ela valorizou muito, com uma mulher. Sentiu inicialmente vergonha de contar, mas depois acrescentou.

TURQUESA: seu quadro conta principalmente a história de um relacionamento muito sofrido. Ela namorou desde seus 17 anos um rapaz que virou policial, com quem teve três filhos, mas com quem ela nunca morou junto. Ele a deixou por outra moça de 15 anos, que também engravidou dele. Ela foi várias vezes atrás desta outra moça para implorar que ela deixasse seu

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Parte II5. RELACIONAMENTOS

marido. No Suriname ficou três anos com um homem, e quando esta relação acabou, ela voltou para o Brasil, onde continua pensando no primeiro amor. Muitas mulheres começaram a namorar e se relacionar entre 12 e 16 anos.

Onde se anda e vai define quem se pode encontrar: na praça, na casa de um amigo, numa festa ou num clube/ponto de prostituição, onde os contatos foram feitos. Para encontrar pessoas fora de seu círculo de convivência, de outras classes sociais, viajar, estar numa festa ou num clube (onde todo tipo de homem vai) parece uma forma.

Nenhum amor é eterno, apesar de os contos de fada e as promessas no altar quando se casa sugerirem o contrário. A expressão “o amor é eterno enquanto dura” parece responder melhor às experiências de relacionamentos. Nenhum relacionamento se define somente como amor e paz, pois todos os relacionamentos oscilam entre conflitos e afetos. Com os relacionamentos todas aprendem, tanto do próprio relacionamento quanto da pessoa com quem se relacionam.

Os relacionamentos no garimpo parecem ter tido uma mágica de companheirismo, de certa igualdade de responsabilidades etc. A cultura e as condições no garimpo, a forma como se negociam os relacionamentos, no meio do mato, redefiniram papéis. Há uma carência mútua, uma interdependência e concepção de comunidade. Todos os relacionamentos no garimpo tiveram estes momentos de se sentir parte da vida garimpeira. Às vezes, estes relacionamentos se tornaram insustentáveis por outros relacionamentos que o parceiro iniciava ou a vontade de voltar para Belém, enquanto o parceiro não pensava em deixar o garimpo.

Ao contrário do que muitas vezes se afirma, nem todas as mulheres viajaram fugindo de relacionamentos ruins ou violentos. Algumas viajaram para o exterior (ou do exterior para o Brasil) deixando relacionamentos que gostavam para trás. Elas não queriam apostar todas as fichas e se prender a um relacionamento ainda tão jovens, enquanto ainda não viveram quase nada do mundo. Mas muitas viveram relacionamentos frustrados, conturbados e conflituosos, cujo fim ou falta de perspectiva estimularam uma sensação de querer sair, de deixar para trás esta pessoa e este sentimento

A gravidez impactou muito nas relações. Algumas foram logo

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Parte II5. RELACIONAMENTOS

abandonadas, outras, ao contrário, enjoaram dos homens. A gravidez, às vezes, as obrigou a ficar junto ou marcou uma relação não desejada.

Os relacionamentos no Suriname se deram basicamente com brasileiros, na Europa com outros migrantes (turco, africano, marroquino) ou com nativos (holandês, espanhol).

Em alguns momentos, parece que “homens brasileiros não prestam”, mas alguns namorados brasileiros que tiveram antes de viajar são bem lembrados, como também parceiros brasileiros no Suriname. Ainda se falou de saudades de namorar um brasileiro, porque é diferente do que com um estrangeiro.

As relações são definidas por palavras como companheirismo, aprendizagem, sexo, compreensão, paixão, gostar e amar. Nem sempre as relações de paixão foram as mais bem sucedidas e valorizadas. Pergunta-se: o que sustenta um relacionamento? Uma coisa é certa, ter filhos juntos não implica numa garantia para a manutenção do relacionamento.

As histórias mostram como a maternidade e cuidados dos filhos encontram diferentes formas, além do papel tradicional pensado. Mães, irmãs, o pai, outras famílias, elas com suas mães cuidam e dividem os cuidados.

As palavras traição e safadeza voltam em muitas histórias. Quando entram outras pessoas na relação, o que sustentou a relação parece acabar ou mostra que a relação já tinha acabado.

O relacionamento ideal desenhado fala de vida em paz, respeito entre os dois, obrigação de casal, assumir o papel de marido e mulher.

Não havia consenso sobre a divisão dos papéis. Algumas defenderam que a mulher deve cuidar do marido, deixar a casa em ordem e cuidar das crianças. Outras defendem uma divisão das tarefas, argumentam que nunca precisaram de um homem para criar seus filhos e que querem independência financeira, ganhar seu próprio dinheiro: “sempre trabalhei e me virei, mulher não deve ser submissa, deixar o homem dominar”. Duas mulheres contaram sobre relacionamentos em que denunciaram seus companheiros por violência.

• “A gente se relaciona a partir de como você se vê. Da forma como você se coloca na relação, depende como vai ser essa relação”

• “Em toda relação, cada um precisa ceder. Mas até onde você cede? O que é o seu limite? Quando decide que passou dos limites e sai da relação?”

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Parte II5. RELACIONAMENTOS

• “Se o homem pode fazer o que quer, a relação não dá certo.”Como base no título de um livro famoso do Robin Norwood sobre as

mulheres que sofrem e convivem com violência doméstica, alguém disse: “nunca se deve amar demais!” - “Amamos demais”.

Amar demais deixa de ser saudável quando persistimos num relacionamento inacessível, insensato - e mesmo assim somos incapazes de rompê-lo. Robin Norwood aborda a face negativa e destrutiva do amor, a obsessão pelo outro, uma estrada de “mão única”, baseada no medo e na insegurança.

Todas concordaram que filhos não prendem ninguém numa relação e que não se deve aceitar violência.

Uma relação de uma das mulheres com uma mulher levou à observação de que o respeito mútuo às vezes parece mais fácil, uma vez que tal relação não traz automaticamente os papéis de gênero, de ser homem, de ser macho. Ninguém precisa se definir como homossexual ou heterossexual, pois assim impede o simples fato de poder amar alguém do mesmo sexo ou de outro sexo. Amor não tem sexo. Muitas relações nascem de convivência, atração, respeito, companheirismo, ajuda mútua, portanto, diferentes relações são possíveis.

Como não havia nenhuma relação igual à outra, e há várias possibilidades de relacionamentos e maternidade, percebeu-se que uma relação ideal depende de cada relação. Não há um modelo de relação ou relacionamento, nem em duração, divisão de papéis, tipo de parceiro ou parceira, nem na relação com os filhos.

A busca de amor, ou de um grande amor, também esteve presente quando decidiram migrar:

• “Acho que todos desejamos encontrar alguém com quem dividimos tristezas e alegrias. Estamos todas atrás de um grande amor. Nosso objetivo é encontrar um grande amor. Acho que todas nós um dia pensamos que no outro país poderia encontrar nossos príncipes encantados. Todos nossos trabalhos sempre falam de esperança e de conquistar todos os objetivos e ser muito amada. Para ter alguém com quem podemos contar em todos os momentos, lutar juntos e construir

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Parte II5. RELACIONAMENTOS

uma família”.A vida não é só organizada e estruturada em torno do trabalho, mas

também em torno das relações amorosas e afetivas. A migração das mulheres se enquadra muito bem nesta afirmação. Relações frustradas no Brasil proporcionaram o estado emocional e psicológico para encarar uma nova aventura, uma saída.

No Suriname, as relações:• São, na sua grande maioria, com outros brasileiros, que estão também

numa situação entre semirregular (visto de trabalho temporário) ou irregular; • Nunca são oficializadas em termos da lei (casamento);• Envolvem várias parcerias de trabalho;• Não contam com a possibilidade de levar filhos para o Suriname;• Não estabelecem uma relação transnacional entre a família no Brasil

e a nova família no Suriname.

Para se relacionar as pessoas precisavam primeiro se encontrar. Nas periferias os relacionamentos se estabeleceram na própria vizinhança, pela vida na rua, nas festas, nas igrejas etc. Porém, considerando relacionamentos na pós-modernidade, estes lugares perderam importância para quem quer procurar outras possibilidades de vida, construir outras identidades. O espaço virtual é um dos novos espaços de encontro e como tal, também teve importância na vida e no estabelecimento de algumas das mulheres migrantes.

Outros espaços de encontro no processo migratório, além da internet, são criados ou ganham visibilidade e significado para possibilidades de novos relacionamentos. Neste campo, a prostituição, festas brasileiras organizadas e encontros de amigos de mulheres brasileiras já casadas com estrangeiros, são os principais espaços mencionados pelas mulheres migrantes nesta pesquisa. Ou seja, a prostituição (lugar de negociação comercial de encontros e relacionamentos sexuais) se configura também como lugar de possibilidades (e negociação) de relacionamentos afetivos e casamentos. O cultivo de uma cultura brasileira de festas, na qual a presença e a figura da mulher brasileira são exaltadas, também facilita as possibilidades de novos relacionamentos afetivos. São lugares concretos e simbólicos construídos, reconhecidos pelas mulheres brasileiras migrantes e os homens europeus, surinameses e brasileiros

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Parte II5. RELACIONAMENTOS

no exterior como de relacionamentos, prefácio de possíveis casamentos. Os relacionamentos das mulheres no Suriname nunca são ou foram

legalizados. Eles ocorreram no campo da irregularidade de estadia naquele país, tanto dos homens quanto das mulheres (pois no Suriname muitas das relações foram estabelecidas com brasileiros) ou da ilegalidade (extraconjugais por parte dos homens surinameses ou holandeses). Parece haver uma perspectiva de temporalidade da relação, como o próprio ritmo da garimpagem, do trabalho nos clubes e da própria migração. Há um intenso fluxo e refluxo das mulheres entre o Suriname e o Brasil, muitas vezes sustentado por relações de amigamento e a perspectiva de continuar juntos.

Em todas as situações no Suriname, com exceção de uma mulher que estava trabalhando como cozinheira num garimpo, as mulheres conheceram o seu parceiro quando estavam na prostituição. Estas relações envolviam geralmente um pagamento ao dono dos prostíbulos onde as mulheres estavam trabalhando ou uma ajuda num momento de fuga. Uma realidade muito diferente da Europa, que só se faz entender melhor a partir de algumas falas, uma vez que ela está longe da realidade da maioria dos (das) pesquisadores(as) que estudam migração.

As relações, no contexto de garimpo e drogas, tendem a passar por profundas crises que muitas vezes levam à finalização das relações, tanto que nenhuma das mulheres que migrou para o Suriname mantém atualmente o relacionamento com o parceiro que encontrou naquele país. As relações com brasileiros no garimpo ganharam uma conotação de parcerias, de companheirismo, de dividir o trabalho e os desafios naquele espaço remoto e isolado. Às vezes, as mulheres viajaram para o Brasil para visitar seus familiares, mas em geral ficaram longos períodos na atividade garimpeira com seu parceiro. As relações acabaram quando havia crises na atividade garimpeira, o parceiro optava por ficar com outra mulher ou quando, por doença e questões familiares, elas precisavam se afastar.

O que parecia sustentar a relação era justamente a convivência no garimpo, onde duas pessoas carentes e longe de suas famílias encontraram uma na outra um acolhimento, afeto, proteção e companheirismo. Elas não mencionaram amor, mas o cuidado com o outro como elemento principal. Fora

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Parte II6. TRABALHO

do garimpo, as relações com brasileiros, outros estrangeiros ou surinameses na cidade (Paramaribo) ocorreram num ambiente de relações extraconjugais, temporárias e incertas.

6. TRABALHO

Ela sempre teve a noção de que precisava trabalhar o mais rápido possível, para ajudar em casa, mas principalmente para ser mais independente. Em vez de encontrar esta independência, seus pais a mandaram embora logo cedo, com 13 anos, para ser trabalhadora doméstica em casa de família, porque eles desconfiaram que ela havia perdido sua virgindade e assim a consideraram não mais como filha que precisava de proteção, mas uma jovem que agora precisava assumir as consequências de seus atos. Como sua mãe também já trabalhava como doméstica, ela conseguiu o lugar. Não foi uma experiência boa, o dono daquela casa tentou abusá-la várias vezes. Será que ele não viu que ela ainda era quase uma criança? Talvez ele agisse com o preconceito que tinha levado seus pais a mandá-la trabalhar, uma vez perdida a virgindade, eles pensam que já é mulher, ou pior, que deve querer, gostar ou pelo menos aceitar investidas sexuais.

De volta para sua casa, na verdade fugida do patrão que a abusava, ela não conseguiu assegurar a escola quando seu primeiro filho tinha nascido. No início, ainda tentou, deixando seu filho com sua mãe, mas logo que ele começava a chorar, ela o levava para escola, para mamar ou até para deixar com ela, já que ele somente ficava quieto no colo da mãe. Não dava mais, parecia um castigo ou provocação. Por algum tempo, ficou mais em casa, cuidando seu filho, mas sentiu a cobrança que ela deveria contribuir agora ainda muito mais. Ela não quis chamar o pai do filho para ajudar, nem tinha mais contato com ele e ela não precisava.

Quando ficou sabendo, que precisavam de garçonete num restaurante, ela logo foi lá. Conseguiu a vaga. Foram meses de muito trabalho, longos dias que vararam a noite. Ficar o dia todo em pé era pesado, mas pior era voltar para casa sempre depois da meia noite, quando quase não havia ônibus e que as ruas por onde precisava andar a pé ficavam desertas e escuras. Duas vezes ela foi assaltada por rapazes de bicicleta com arma na mão. Levaram seu celular, dinheiro, bolsa e documentos. Ainda precisava acordar cedo para levar seu filho para uma escola. Decidiu entregar seu lugar e procurar outra coisa.

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Uma colega falou de um trabalho que fazia, mas também tinha largado. Era numa fábrica onde se preparava peixe para exportação. Ela trabalhava o dia todo com mão no gelo e não os donos não queriam assinar sua carteira de trabalho. Qualquer atraso ou falta era descontado, mas as horas extras, esquecidas. Não conseguia dormir de dor nas mãos e braços e quando chegou um momento que atrasaram dois meses para pagar, ela entregou seu lugar. Não parecia, portanto, uma opção. Ela sentiu que era difícil conseguir um trabalho que pagasse bem e com boas condições. Será que ela precisava sempre aceitar esta exploração no trabalho?

O convite para trabalhar no Suriname soava melhor do que o trabalho que tinha encontrado e para o qual havia vagas em Belém. Uma colega com quem às vezes saía já fazia strip-tease numa boate em Belém e falou que um dono de clube no Suriname precisava de mulheres para trabalhar no clube dele. Apesar de ela nunca ter se prostituído, ela imaginou que não deveria ser tão difícil, mesmo porque seria somente por um curto tempo, longe da família e podendo voltar com dinheiro para investir em outra coisa em Belém. Outras mulheres também não já tinham conseguido, por que ela não?

Migrar significou se inserir num novo mercado de trabalho, procurar e encontrar oportunidades de trabalho fora do país. Qual foi sua experiência de trabalho antes de migrar e quais as condições de trabalho que enfrentaram no Brasil e no exterior? Através da reconstrução de sua trajetória de trabalho e educação, em forma de linha de tempo, as mulheres e coordenadores da pesquisa tiveram a oportunidade de perceber características do mercado de trabalho que marcaram suas vidas. Abriu também a possibilidade de pensar sua situação atual, a lógica perversa da sociedade e perspectivas de futuro.

Através destas linhas de tempo, a produção da história de cada mulher foi abordada, refletindo momentos que marcaram e significaram tanto que são lembrados e referendados na construção da linha que compreende toda sua vida, desde o nascimento até o momento da construção da mesma. Quando as mulheres se encontraram na Sodireitos, reviveram um momento específico na sua história de vida, que começou há muito tempo atrás quando nasceram e começaram a sua interação com o mundo. Os momentos lembrados são únicos e vivenciados somente naquele momento, mas quando lembrados, são revividos e ressignificados, uma vez que a memória faz parte de um

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Parte II6. TRABALHO

contínuo de momentos que formam uma linha de tempo singular. A linha de cada mulher se junta às das outras mulheres, compreendendo praticamente o mesmo período, com experiências muito parecidas, ainda que únicas para cada uma. Juntas, estas histórias formam a história do grupo das mulheres migrantes desta pesquisa.

O que mais preocupava as mulheres migrantes no Brasil no momento que elaboraram suas linhas de tempo era:

• Falta de atenção de políticas públicas, especialmente para as garotas de programa;

• Miséria;• Fome;• Problemas na área de educação;• Falta de oportunidades (emprego, qualificação, educação);• Falta de trabalho que impossibilita ter uma renda para comprar

uma casa;• Violência;• Falta de oportunidades, de condições de vida para a população;• Falta de responsabilidade, de compromisso com a população por

parte do Governo;• Falta de perspectivas e oportunidades nos bairros de periferia.

Todas observaram que há situações nas linhas de tempo que se repetem nas histórias de cada uma: o início dos estudos; o primeiro filho; a interrupção dos estudos; primeiros trabalhos precários e temporários; a migração; o trabalho como migrante; o retorno; dificuldade de encontrar trabalho e de retomar os estudos. Das mulheres que tiveram filhos, todas as trajetórias escolares foram interrompidas quando do nascimento do primeiro filho, uma interrupção de uma preparação “lógica” para sua inserção no mercado de trabalho urbano, que exige cada vez mais diplomas para ser acessado.

A gravidez interrompeu o estudo? Só se formos fracas. Se tivermos força de vontade, nada interrompe! O que separa a força da fraqueza? É o desânimo, pensarmos que não podemos mais fazer algo por causa da gravidez.

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Esta interrupção as lançou, em algum momento, no mercado formal ou informal de trabalho, onde vivenciaram a precariedade das relações de trabalho, a baixa remuneração e a instabilidade. Procuraram trabalhos entre seus 18 e 25 anos, sendo que algumas delas já trabalharam desde os dez ou 12 anos. A procura é sempre onde se espera demanda por mulheres jovens, com baixa qualificação, numa demonstração de consciência de seus limites, o que também limitava as expectativas.

A possibilidade de migrar aparece diante da situação de desemprego ou subemprego.

O trabalho no exterior era, em primeira instância, para quem não migrou atrás de algum familiar, a prostituição ou como babá ou no trabalho doméstico em geral.

Aquelas que entraram na prostituição, se tornaram presas e forçadas, mesmo aquelas que foram cientes que iriam trabalhar como prostituta. Quatro das mulheres foram enganadas e descobriram que precisavam se prostituir quando chegaram, enquanto três foram sabendo, mas perderam logo a liberdade e autonomia quando foram recebidas e empregadas em clubes de prostituição. As três mulheres que viajaram atrás de um familiar (tia, irmã ou a mãe), se inseriram no mercado de trabalho informal fora da prostituição, no comércio, como babá e como cozinheira no garimpo, sem perder sua liberdade de ir e vir.

O retorno ao Brasil, forçado pela deportação para três mulheres, com ajuda externa para duas mulheres e as outras por vontade e força própria, foi acompanhado por dificuldades de encontrar trabalho. Cursos de qualificação, retomada dos estudos e trabalhos pontuais marcaram as tentativas de volta em Belém, inclusive encontrar na Sodireitos um espaço de reflexão e investimento nas suas capacidades e possibilidades.

OBSERVAÇÕES GERAIS SOBRE AS LINHAS DE TEMPO• Suriname faz parte de quase todas as histórias;• Todas foram em busca de melhorias de trabalho;• Muitas abandonaram seus estudos para cuidar de seus filhos.

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TIPOS DE TRABALHO EXERCIDO

• Prostituição;• Doceira;• Salão de beleza;• Cozinheira;• Babá;• Doméstica;• Manicure;

NO QUE DESEJARIAM TRABALHAR• Técnica de radiologia;• Atriz;• Assistente social;• Turismo;• FUNAI (órgão do governo);• Operadora de caixa.

O levantamento mostrou que trabalharam em profissões que não precisam de escolaridade ou qualificação profissional especializada, e que geralmente são exercidas sem carteira assinada. Muitos trabalhos realizados têm uma dimensão de divisão de trabalho por gênero, quer dizer, são os trabalhos “destinados às mulheres”.

Desemprego e trabalho (in)formal - precário e temporário - marcaram as histórias e muitas tentativas de acerto: montar negócios; alternativas de ganhar o sustento (vendas, cozinhar, manicure, prostituição). A inserção no trabalho é sempre instável, precária, e estas foram submetidas a relações exploradoras de poder.

As linhas de tempo gritam por um bom emprego e as migrações que vivenciamos foram, em grande, parte por falta de oportunidades, este fato não mudou durante nossa ausência e quando voltamos, novamente foi um grande problema que enfrentamos. Viajamos com a esperança de conseguir

• Vendas;• Garçonete;• Auxiliar de operação;• Crochê;• Fábrica de peixe;• Fábrica de açaí.• Classificadora de capas/compensadas;

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uma vida melhor e, na pressa ou pela necessidade, algumas não tiveram a oportunidade de terminar seus estudos. Conseguimos empregos como babá, garçonete, vendedora e doméstica.

Parece que há uma tentativa de recomeço para quase todas. Estudamos pouco e agora, depois de adultas, queremos retomar os estudos e a participação social. Só queremos trabalhar, mas para trabalhar precisa se qualificar.

A maioria no final da sua linha está participando de algum curso ou projeto. Hoje, nossa esperança é a Sodireitos, com o projeto mudando a vida e a pesquisa, pois todas nós temos a Sodireitos como um caminho para alcançar nossos objetivos.

Minha linha de tempo não pára aqui. Ainda tenho muitos sonhos a realizar.

O que é o trabalho e qual sua centralidade na vida das pessoas? O trabalho sempre foi fundamental na vida social, modo pelo qual todas as sociedades se relacionam com a natureza e produzem suas formas de sobrevivência, produzem suas identidades, se produzem.

Diante desta importância, parece adequado indagar: qual a centralidade na vida de mulheres migrantes? Como se configura hoje o mundo do trabalho e como este se configura no contexto específico dos bairros ou comunidades das mulheres em questão? Como as mulheres se inserem ou são inseridas nele? Quais dificuldades? Quais as percepções e significados sobre essa inserção? Quais suas expectativas? Que resultados conseguem no Brasil e no exterior?

A discussão do tema trabalho evidenciada nos encontros do grupo apareceu como forma de pensá-las como trabalhadoras, que, afinal, elas são e é por esta via que a migração entra em suas vidas. Logo, parece uma dimensão importante para organizar e significar as experiências, reconstruir entendimentos de cada uma e do grupo em formação.

Um levantamento inicial aponta o trabalho, ou questões a ele relacionadas, como as maiores preocupações das mulheres: miséria, fome, desemprego, falta de oportunidades de trabalho, de qualificação, falta de renda, falta de moradia. São aspectos que denunciam a não inserção ou inserção precária no trabalho e suas consequências nas outras possibilidades de inserção social: não moradia, abandono nas periferias, falta de comida, falta de condições para sustentar

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os filhos. Todos estes referenciados como condição de suscetibilidades às propostas, em sua maioria, enganosas, de trabalho no exterior. Todos estes elementos aparecem no percurso de trabalho das mulheres, através da linha do tempo.

Não há como negar que o que aparece nas vidas das mulheres é também reflexo das mudanças e dificuldades que marcam hoje as formas de organização do trabalho, o que leva a questionar sua validade como categoria explicativa da vida social. Dados evidenciam a diminuição da capacidade do mercado de absorver os trabalhadores, além da diminuição da capacidade subjetiva da categoria trabalho ser pensada como centro organizador das referências, da autoestima. Parece cada vez mais difícil construir identidades a partir do trabalho, em especial para a população mais pobre, cujas relações se fazem muito mais pela ótica do desemprego, da instabilidade, da informalidade e precariedade nas relações com o trabalho.

Todas estas características marcam as trajetórias de trabalho e de vida destas mulheres. O acesso à educação talvez apareça como determinante para outras formas de inserção: máximo de oito anos de escolaridade e o abandono da escola para cuidar dos filhos. Isso acaba determinando as possibilidades de postos que se disponibilizam para elas: postos informais, mal remunerados, relações precárias (apenas duas delas viveram uma única experiência de emprego com carteira assinada).

Outro dado importante é a distância entre as condições concretas de trabalho, ou não trabalho, e as expectativas reveladoras também da vontade (e coragem) das mulheres em ir atrás de seus sonhos.

Para além dos óbices gerais, não se deve esquecer o papel que o gênero assume nesta inserção. Sabe-se que há dificuldades gerais, entretanto, as condições diferenciadas por gênero são assumidas pelo mercado de trabalho, interferindo na própria organização deste. Gênero, classe e etnia atuam como dimensões que estruturam a totalidade das práticas sociais, sendo assim categorias indispensáveis para se refletir sobre a condição das mulheres no mundo do trabalho. São elas que abandonam a escola para cuidar dos filhos. São elas que estão em maior quantidade no trabalho doméstico, que tem a menor valorização, a menor remuneração, além dos riscos e preconceitos a

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que estão submetidas.O intenso processo de terceirização de serviços ou de etapas do processo

produtivo, por meio da subcontratação e do assalariamento sem carteira, da informalização, da flexibilização das relações sociais no mundo do trabalho, adquiriu, com a mão-de-obra feminina, um importante papel estruturador da vida delas – isso aparece estampado nas linhas do tempo.

Por sua vez, a migração de mulheres muitas vezes é diretamente relacionada com prostituição. Este discurso tem um fundamento na experiência de muitas mulheres de classes pobres que conseguiram por meio da prostituição no exterior uma primeira entrada num outro país, às vezes sabendo que iria para se prostituir, às vezes enganada. Nem todas as mulheres migrantes passam por esta experiência, mas todas são atingidas pelo rótulo de ser prostituta.

Ser rotulada de prostituta atinge a própria mulher e sua família e, inevitavelmente, exige um posicionamento, uma defesa, uma reação e uma reflexão. A vivência com este rótulo de prostituta e a passagem concreta de várias mulheres pela prostituição instrumentalizou as mulheres migrantes com uma visão bastante crítica sobre a prostituição e sobre os preconceitos que cercam esta atividade e que recaem especialmente nas suas costas.

Um grupo de seis mulheres da pesquisa teve o privilégio de poder participar do encontro nacional de prostitutas em julho de 2010, em Porto Alegre, a convite do GEMPAC (Grupo de Mulheres Prostitutas do Pará), depois de terem participado de um seminário sobre tráfico de mulheres, organizado pela mesma organização no dia 24 de junho de 2010.

Com os debates e discussões destes dois encontros na bagagem, foi realizado um debate interno com todas as mulheres da pesquisa ação, para quem a experiência de participar destes encontros gerou impressões diversas, desde o reconhecimento da importância da luta das prostitutas até questionamentos sobre a organização interna do movimento e sobre o foco dos debates. Em geral, avaliaram os encontros como muito importantes e estimulantes para pensar a causa das prostitutas. O debate no grupo não visou uma avaliação dos encontros, mas um espaço de elaboração de opiniões e posições sobre a prostituição.

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Parte II6. TRABALHO

O debate passou por quatro grandes blocos de discussão:1. O que é prostituição ou ser prostituta? Prostituição é trabalho? Como

é a realidade e rotina da prostituição?2. Como o estigma de prostituição influencia na sua vida? Como seus

filhos e sua mãe reagem a este estigma?3. A luta pelos direitos das prostitutas.

O que é prostituição ou ser prostituta? Prostituição é trabalho? Como é a realidade e rotina da prostituição?

• Prostituição, pra mim, é tipo um refúgio, uma opção entendeu? Eu não tenho opção em outros empregos, eu não tenho chance de me empregar em outro lugar, pra eu não roubar, não colocar meus filhos pra estar pedindo, eu prefiro vender meu corpo.

• Eu acho que a prostituição não é só vender o corpo, não. Prostituição é como se fosse um trabalho também. Tudo bem que a gente tá dando o nosso corpo, mas tem mulher por aí que dá o corpo dela de graça, então a gente tá dando por dinheiro, não tá dando como muitas dão por aí, de graça.

• É como se tivesse trabalhando.• Olha, fazer striper também é prostituição porque ela tá mostrando o corpo

dela. É prostituição também, pra mim. Tudo que vai ali dentro de um cabaré pra mim é prostituição.

• Ela vende seu corpo, vende o sonho daqueles homens que procuram, né? Vão em busca dessas mulheres que proporcionam prazeres por uma hora, por meia hora, um pernoite, é isso.

• Dama de companhia, porque tem homens que não fazem nada, fica só conversando.

• Eu concordo muito com uma avaliação de uma amiga minha, que ela disse que é prostituta, mas não gosta de ser chamada assim. Eu gosto de ser chamada de garota de programa. Aí esses nomes: garota de programa, mulher de vida fácil, puta pobre, sabe? Duzentas mil nomenclaturas, mas o que faz uma prostituta? O quê que faz? Então eu acho muito interessante uma coisa que é o motivo que levou; outra

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Parte II6. TRABALHO

coisa é o caminho que fez a pessoa chegar até aquele ponto e se ela vai continuar ou se ela não vai.

• Eu acho que uma prostituta vende o seu corpo e aí tem uma coisa que independe das estratégias que a gente usa pra dizer que naquele momento onde eu estou no cabaré, que eu estou no clube, que eu estou na pista, seja lá onde for, aquela lá não sou eu; aquele momento que eu estou lá não é a Susana, é a Maria. Geralmente ela inventa logo um nome, a pessoa não tem o nome dela no cabaré, ela inventa logo um nome, então é um nome de um palco. Se ela tá fazendo strip-tease, é um nome diferente que ela arrumou. É a outra, e aí essa nomenclatura elas fazem para se distanciar como se fosse outra pessoa, como se eu fosse eu aqui em casa, com os filhos, com os amigos no final de semana e lá naquele momento era a Susana, outra pessoa. Ali as estratégias que a gente usa na nossa cabeça pra se distanciar daquilo.

• Uma delas, inclusive, eu achei isso muito interessante: é não sentir prazer. Então tu te travas justamente porque aquilo que tu estás fazendo, mas tu não estás gostando; então tu não gostar, pra tu te sentires bem, ou beber e ficar louca. É uma das estratégias que tu usas pra se distanciar daquele momento onde tu não és tu, tu és outra. Eu acho que eu tenho que estudar isso, porque é muita viagem!

• Prostituição não é bem vender o corpo, é alugar porque não é assim de vez, né? É alugar por umas horas.

• Quando eu falo “eu alugo”, eu também, por algum tempo, sou sua. O homem pensa: “eu faço o que eu quiser”. O que faz o homem e uma mulher, um casal, a procurar uma prostituta? Às vezes é a vontade de fazer sexo, às vezes é a vontade de realizar um prazer que não realiza com seus parceiros e parceiras, às vezes é vontade de conversar, às vezes é vontade de sair com alguém, que não tem esse alguém pra sair. Enfim, são vários os motivos que fazem um homem ou mulher, casal, procurar uma prostituta.

• Era tão bom quando eu ficava assim, num clube, quando eu chegava assim e via os clientes certos, que a gente já conhecia, porque a gente faz a primeira vez, aí depois faz a segunda e depois ele já vem só com a gente, aí já não vai pulando. Quer dizer, eu sentia prazer assim. Quando eu ia pro quarto, como a primeira vez que eu fui com homem, lá em Suriname, ele voltou com dois dias, depois voltou de novo e foi comigo. Depois, já no outro dia, ele já veio e todo dia ele tava lá no clube só comigo, só comigo. Eu achava tão legal assim. É tipo assim, como se eu vendesse assim roupa, se eu vendesse roupa pro Marcel aí o Marcel gostava da minha roupa,

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Parte II6. TRABALHO

aí quando o Marcel quisesse comprar outra roupa, vinha comprar de novo comigo. Prostituição é um trabalho que é uma coisa que a gente satisfaz os homens. Se a gente não soubesse satisfazer, eles não vinham pagar de novo e ficar satisfeitos. Se eu fosse trabalhar na casa de alguém pra cozinhar, arrumar, passar as roupas dele, ele ia gostar e ia me contratar de vez pra eu trabalhar e se não gostar, não vai mais me contratar. Eu acho assim que é sim um trabalho.

• Eu acho assim, que quando elas falam: “Trabalho, assim, de noite, eu me prostituo e de dia eu trabalho”, elas querem dizer assim pra sociedade, elas querem trabalho como sendo trabalho decente perante a sociedade.

• Eu acho que a gente começa a falar que é um trabalho não digno, que é um trabalho degradante ou que é um trabalho. Ainda que seja um trabalho, mas que é um trabalho com mais um adjetivo. A partir do momento que tu rompes, tu não tens essa intimidade e nem vontade, às vezes o que te move pra ir pra cama com um homem naquele momento não é a vontade, nem porque ele é bonito, nem porque ele é legal, mas porque ele tá te pagando e tu precisas daquele dinheiro ou tu queres aquele dinheiro, ou tu queres aquela broca, ou tu queres aquele prato de comida.

• Eu digo assim: mulher que é mulher que gosta de ser prostituta, ela se dá valor, ela não vai por qualquer mixaria, não.

• Eu acho que a pessoa vai porque quer e muitas não, mas é um trabalho também como tem de manhã, de noite. Eu vejo muitas dizerem: “ah, hoje eu vou trabalhar”. Lá no garimpo, principalmente, muitas diziam: “eu vou trabalhar o dia todo, que mais tarde eu vou pro salão trabalhar”, e o que elas faziam? Elas iam beber. Eu dizia: “mas como é que tu vais fazer? Ah eu bebo e ninguém dá o nome verdadeiro, é Maria Cristina, é Joana”. Não tem uma Maria que o diga no garimpo. Elas não dão não, aí vão no quarto: “quanto é que tu tens aí?” “Eu te dou tanto”. A dona do cabaré vai dizer: “bora trabalhar, essa daí não tá dando nada, vai, vai sua “ploc”, prostituta, senão tu não vais almoçar amanhã não”. “Eu que vou te dar comida, eu vou lavar louça, e ainda vou lavar tuas roupas”. Elas têm que descontar o que elas ganham ali, elas têm que beber também muito, pra poder aguentar. Pra mim é isso.

• Eu acho que eu era mais chata quando era prostituta do que eu sou nas minhas relações pessoais, do que eu sou com o meu marido, porque eu era muito mais assim, como eu vou dizer, eu chegava logo e cruzava as minhas pernas, pegava meu copo e dizia: “eu não faço isso, eu não faço aquilo, eu não isso, eu não aquilo,

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só isso, só aquilo, só por pouco tempo”. Porque chegou o momento que eu já tinha passado por tantas situações difíceis, pra mim, que eu tinha que me precaver de que aquilo não ia acontecer de novo; que aquela pessoa não ia querer fazer essa coisa comigo, porque realmente as pessoas pensam que por aquele momento é um aluguel, por aquele momento que horas vai começar e que horas vai terminar. “Então eu vou te pagar por duas horas ou por uma noite e naquela noite tu és minha e tu fazes o que eu quiser, e eu sou teu dono”. É mais ou menos assim que se dá a relação, e a fim de que? Ah, a fim de conversar, a fim de sair ou a fim de fazer sexo a noite inteira, ou afim de um monte de coisa. Tem um monte de coisa que pode acontecer. A pessoa quando ela paga uma prostituta, ela quer que ela seja dela aquele momento.

• Na Europa, tu és escrava, aqui não. Aqui tu vais pra onde tu queres, fica com quem tu queres e se esse homem tá te pagando pouco e aquele quer te pagar mais, tu vais com aquele. Só que tem as coisas boas também na Europa, te levam num bom restaurante, conversam contigo, jantam, vão numa discoteca, dançam contigo. Tem também os lados bons e tem vezes que eles nem ficam.

Como o estigma de prostituição influencia na sua vida? Como seus filhos e sua mãe reagem a este estigma?

• Prostituta ela não é só falada, ela é discriminada. Naquele momento, prostituta, muitas pessoas aceitam ser e muitas não aceitam ser. É muito chato, até a gente mesmo dizer, se olhar no espelho: “eu vendo meu corpo, eu sou uma prostituta”. Nossos filhos são atormentados, dizem: “tua mãe é uma puta”. Às vezes a gente vai pra algum lugar e ouve: “ela é uma prostituta, tua mãe não vale nada”. Isso é muito chato, mas naquele momento a gente está fazendo pelos nossos filhos, né? Pra dar de comer, de beber. É muito chato ser prostituta, é uma coisa que nem eu mesmo sei explicar.

• Foi o que aconteceu quando eu passei na rua. Eu não voltei pra discutir, eu passei e fiquei calada, entrei em casa e comecei a chorar. Por um bom tempo os meus vizinhos não falavam comigo porque eu era puta, aí eles muito tempo não falavam comigo.

• Sabe o que disseram pra ele (filho): “a tua mãe disse que foi fazer striper, tua mãe foi ser puta lá na Espanha”. Ele tem sete anos. Por isso que eu fiz questão de me sair de lá, eu passava na rua todo mundo comentava lá, todo mundo comentava.

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Parte II6. TRABALHO

• O meu filho hoje tem 12 anos. Eu falo: “meu filho, você não é pai de ninguém pra bater em ninguém, se falarem, deixa falar, venha embora pra dentro de casa”. Ele diz: “mas mãe, ficam dizendo que a senhora é puta, que a senhora é isso, mãe”. Eu disse: “não liga, deixa falarem e vem embora, eu não tô aqui dentro de casa? Eu não tô aqui, eu ando pedindo alguma coisa? Tu andas pedindo alguma coisa pra alguém? Então pronto, deixa falarem pra lá, o importante é o que eu sou contigo, que nós somos aqui”.

• Eu tenho uma filha. Se ela tomasse uma decisão de ser prostituta, será que eu iria aceitar? Eu ia conversar com ela?

• “Eu não sei se tu vais ter muita escolha de conversar, entendeu, mas ou tu vais ter que aceitar ou vais expulsar ela de casa”. Porque quando eu cheguei da Europa, fui aí pro bar do parque. Eu ia fazer programa. Toda noite eu chegava e a mamãe abria a porta e ela dizia: “como foi tua noite, foi bem?”. Eu dizia: “foi, foi muito boa, tá aqui o dinheiro eu tô morta de cansada”. Aí amanhecia, comprava comida: “compra isso que tá faltando”. Entendeu? No outro dia a gente sentava no café da manhã e já conversava. Ela dizia: “como foi, tu conheceu gente nova?”. Ela queria mais me investigar, do que saber como foi a minha noite.

• A minha mãe fazia era me humilhar.• A minha também.• A minha não, ela nunca disse assim, ser puta eu não sei, ela nunca (...).• A minha falava assim: “tu podes fazer striper a noite toda, eu só quero

que tu chegues com dinheiro pro teu filho”.• Não, a mamãe queria saber o que foi que aconteceu comigo.• Eu falei: “mãe, eu vou pra Suriname”. Ela disse: “tu vai fazer o que?”. Eu

vou fazer ploc”. A única coisa que ela falou foi assim mesmo: “tu és de maior, eu não vou poder de prender dentro de casa, tu sabes o que tu fazes da tua vida, então se tu quiser ir vai, se tu não quiser, não vai”.

Luta pelos direitos das prostitutas

• Pra isso, há o movimento das prostitutas, para que esse trabalho, essa profissão seja regulamentada. Porque se você chega num bar e tem uma garçonete ali, tem todo um código e leis que estão assegurando a integridade física dela e da pessoa que está se servindo dos serviços desse bar, precisa respeitar essa garçonete.

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Parte II6. TRABALHO

Com o alto índice de criminalidade no Brasil, a vulnerabilidade da prostituta hoje é muito grande, porque além dela não ter assegurados os direitos específicos como profissional, na questão do serviço, muitas prostitutas acabam sofrendo com vários tipos de violência, desde violência da própria polícia, que é paga pra prestar serviços de segurança pública, até mesmo dos próprios clientes. A situação de vulnerabilidade que essa prostituta hoje se encontra é muito grande, porque se você tá como profissional que tem seus direitos garantidos, direitos trabalhistas e direitos humanos, eles resolvem. A violação da imagem de uma prostituta é porque nenhum direito é reconhecido; é só discriminação numa sociedade que é muito preconceituosa, com uma cultura muito grande de tabus.

• É esse cenário da prostituição: a prostituta é a pessoa, mulher que presta serviços sexuais ou pode até mesmo ser um ato de escutar, um ato de só dormir, como muitas prostitutas declararam, que às vezes os clientes pagavam só pra dormir do lado: “ah, conversa comigo, que a minha esposa não conversa comigo”; ou até mesmo pra tá satisfazendo certas fantasias dos próprios clientes. “Olha, eu faço isso eu faço aquilo e eu tenho meus direitos. Você não pode fazer isso ou eu só faço até esse ponto”. Muitas prostitutas sofrem violência por se negarem a passar por tal situação e essa falta de legislação dá brecha pra que cliente pense: “ah eu tô pagando e eu quero que você faça o que eu quero”, daí acaba passando por cima de todos os direitos humanos e a integridade física dessa mulher fica ameaçada. Acaba até mesmo humilhada, sofrendo violência psicológica e física. Essa situação que hoje está estourada no Brasil é por essa falta de uma legislação que possa amparar essa mulher que se prostitui, não só mulher como homem, o homossexual. É preciso sim que se tenham mais políticas específicas e direitos pra essas mulheres, pra esses profissionais, pois eu entendo isso como uma profissão, eu olho dessa maneira.

Prostituição é um trabalho, mas é um trabalho que vem com um adjetivo junto e por isso as mulheres vivem essas contradições, acabam tendo que se defender de muitas formas. Uma diz assim: “ah eu falei com meu filho”, e a outra diz: “eu não falei porque eu não saberia o que dizer”. Por meio destas duas situações, pode-se entender que esse trabalho é adjetivado, que se encontra sempre uma forma de se defender. Dizer para seu filho pode ser uma estratégia de fortalecimento triplo: uma forma de empoderar a mulher, deixá-la mais forte diante do filho e possivelmente, deixá-lo mais forte diante dos

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Parte II6. TRABALHO

outros, além disso, fortalece a relação entre mãe e filho. Poder dizer para o filho o que ela é e o que ela faz, isso o ajudaria a lidar melhor com a situação. Talvez isso seja bom para a relação dos dois e para o filho conseguir lidar com a situação.

Para a outra, vale o contrário. Não falar nada, não comentar também é uma estratégia, também está se protegendo e é o motivo porque ainda não quis dizer. Nessa história não tem regra, vale aquilo que deixa mãe e filho e a relação entre ambos mais tranquila.

Dentro do movimento das prostitutas, há o discurso de que a prostituição é uma profissão que as mulheres assumem porque gostam, ainda que tenham outras opções: “escolhi ser prostituta”. É possível que para algumas pessoas isso se faça dessa forma. No caso das mulheres migrantes desta pesquisa que atuaram na prostituição, esta atividade não foi uma escolha.

Precisa-se lidar com as situações exatamente dessa forma: 1) se a mulher não considera uma escolha e acha que pode ter outra oportunidade, vai atrás disso e vai construir; 2) se foi uma escolha, então precisa procurar construir formas de viver essa escolha com segurança com tranquilidade, sem violência. A base da discussão passa a ser não a prostituição, mas o direito da mulher ao corpo, à saúde, à proteção contra a exploração e à violência.

Trata-se de poder refletir e pensar nas possibilidades que se pode ter sendo prostituta, sendo imigrante, sendo o que seja que se pode fazer na vida, mas fazer disso uma escolha diante da construção de um projeto de respostas pessoais. Não tem regra, a as respostas não vão ser iguais. Não é uma escolha entre: “é bacana ser prostituta, vamos todas virar prostitutas”, ou: “é uma droga ser prostituta, ninguém vai ser prostituta”. Estes extremos parecem ser exceções.

A prostituição parece tratar de relações que se estabelecem entre pessoas onde uma paga e outra recebe, é uma negociação que se dá em torno de uma relação. Alguém está comprando, negociando uma relação explicitamente. Na negociação pode até ser que não se diga logo quanto é, mas já se sabe que vai chegar a um acordo, depois, ou antes, pois está embutido na relação. Para isso, nem sempre precisa ter sexo, porque o que se negocia é uma relação momentânea. A relação pode ser de acompanhante, de colo, de ouvido, de

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sexo, de dormida etc. O próprio ato de negociação pode ser excitante para os dois, porque há possibilidade de aceitar ou recusar. Há um jogo de poder, no qual o poder aquisitivo do cliente, e a necessidade da prostituta são elementos importantes, mas ela também exerce um poder, por meio da sedução, do corpo, de saber que ela pode oferecer algo que o cliente necessita. Ademais, há também uma relação com quem é dono ou domina o espaço do encontro, que também lucra e interfere na negociação. Isso deixa claro que o importante é a garantia das condições seguras e de igualdade de direitos nesta negociação.

O rótulo de prostituta parece ter grande peso na produção da identidade das mulheres. Mesmo podendo ter sido “funcional” em algum momento da trajetória de migração para garantir espaço no mercado de sexo e para acessar algumas redes sociais no início da imigração, ele se torna um estigma do qual dificilmente se livram e que tem consequências práticas de discriminação em qualquer lugar. Em todos os países, desde o Brasil, o Suriname até os países europeus, a prostituição é um mercado marginalizado, discriminado e estigmatizado. Ser vinculado com este mercado implica em ser considerada “a outra”, uma vítima que precisa de resgate ou uma mulher caída, impura, que deve ser excluída. Há, portanto, a necessidade de produção de contra-identidades, que desmontarão a eternidade e a ideia de prostituta como uma identidade única.

Historicamente, as mulheres (solteiras, casadas, jovens, meninas, pobres, ricas), de uma forma ou de outra, enfrentaram alguma necessidade de se defender desse estigma, se proteger para não serem vistas como, tomar cuidado com o que vão falar sempre.

A organização do mercado de sexo precisa e procura mulheres migrantes de classes populares de diversos países do mundo para a prostituição, para se vincular à (muitas vezes a única) possibilidade de migração e renda. Nem todas as mulheres migraram por meio deste mercado, mas a imposição desta imagem é funcional para o mercado. Esta imagem vulnerabiliza mulheres migrantes, pois as coloca na margem das sociedades e, portanto, as deixa mais manipuláveis, além de naturalizar a ideia de precisar passar por prostituição quando se pensa em migração.

Os governos também passam a controlar os fluxos migratórios das

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Parte II6. TRABALHO

mulheres, alegando estar protegendo as mulheres migrantes contra a exploração na prostituição ou a sociedade contra a desmoralização.

A lógica migratória oferece às mulheres migrantes pobres a prostituição como uma das poucas possibilidades de concretizar seu projeto migratório, pela negação de acesso a outras formas de migrar e trabalhar, articulada com a organização do mercado de sexo, que se beneficia com a irregularidade e ilegalidade, criando e alimentando uma lógica de migração insegura. Este processo força muitas mulheres migrantes, de fato, a entrar no mercado de sexo e as impõe a ‘identidade de prostituta’. As mulheres não optaram e nem se identificaram com o “ser prostituta” ou “ser imigrante”, mas optaram por migrar e, às vezes, por meio da prostituição, entrar no outro país, sem imaginar as consequências desta decisão. Assim, toda mulher migrante do Brasil, de classe popular, começa a ser identificada como uma prostituta, atuando e se identificando como tal, ou não.

Aquelas que nunca atuaram na prostituição antes de migrar, dificilmente podiam imaginar o impacto que esta atividade traria para as possibilidades de negociação e produção de suas identidades.

Esta identidade produzida no contexto migratório, que ainda se pautou em histórias criadas para sustentá-la em prol do mercado sexual, como a erotização da imagem da mulher brasileira, o povo brasileiro como mais aberto ao sexo e, consequentemente, mais “quente” e liberal que os demais etc, também começa fazer parte do discurso das próprias mulheres migrantes, que confirmaram que as brasileiras seriam mais quentes e melhor de cama que as mulheres dos países para onde migraram.

O rótulo de prostituta confunde, por interesses diversos, o exercício de uma atividade, em algum momento e sob certas condições, com um elemento constitutivo e essencial de uma identidade, uma divisão das mulheres em: “prostitutas imigrantes” versus “mulheres honestas nacionais”; “prostitutas e migrantes” versus “mulheres honestas que ficaram nas suas famílias”.

O estigma se estende ainda para os filhos, que, quando podem, procuram desvincular a imagem da prostituição da imagem da mãe migrante. Ou seja, os filhos, a mãe e os irmãos também são afetados devido à “migração na

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Parte II6. TRABALHO

família”. Os filhos escutam dizer que suas mães são “putas” e começam a ser rotulados, excluídos, sofrem bullying e entram em dois processos possíveis: 1) Negação de ser filho daquela mulher que migrou: “ela não é minha mãe”. Neste caso, escolhem e afirmam que a pessoa que os cria (avó, tia) é sua mãe. Um processo muito doloroso, para ambas as partes, já que é uma negação por força da discriminação; ou 2) Identificação com a mãe e defesa desta, argumentando que sua mãe é uma supermãe, arriscando e suportando tudo que as pessoas poderiam imaginar para batalhar para o bem estar de seus filhos. Estas duas posições refletem os discursos dominantes sobre a migração das mulheres: “elas não prestam, são putas”; ou: “elas foram forçadas pelas circunstâncias de sobrevivência de toda família, especialmente dos filhos”.

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Parte II7. MIGRAÇÃO

7. MIGRAÇÃO

Nunca ela se sentiu tão estranha e tão aventureira. Tudo parecia diferente, as casas, as pessoas, ela não entendeu nada do que as pessoas falaram. Parecia como se fosse um filme. Ela viu que as outras mulheres com quem viajava sentiam a mesma coisa, menos aquelas que já chegaram pela terceira ou quarta vez no Suriname. Elas falaram muito entre si, perguntaram por conhecidos e até falaram o que elas chamaram de “taque taque”. Ela sentia o olhar de todas as pessoas, dos homens com um sorriso superior, as mulheres virando a cabeça para não vê-la. Pensou como ela queria que sua irmã ou mãe pudessem vê-la agora, sozinha num outro país.

Como nada era conhecido, a quantidade de impressões a deixaram sentir pequena e muito estranha, ainda dependente da pessoa desconhecida que veio buscá-la, porque não tinha como começar a caminhar. Para onde, que direção, que destino? Foi até um alívio perceber que alguém a esperava. Não eram bem umas boas vindas, tipo guia de turismo. O homem surinamês, que falava muito bem português e sentava ao lado do motorista na Kombi que as levava tinha outras informações para dar. Primeiro ele pediu o passaporte de todas para verificar quem estava ali e falou que devolveria no destino. Ainda comentou que elas precisavam se produzir bem melhor, porque deste jeito não conseguiriam muita coisa. Depois ele se virou e começou a falar com o motorista que andava em alta velocidade por uma estrada longa, que passava por vilas com lojas e símbolos chineses, templos hindustanos com lindas torres, cobertos de ouro, uma vegetação tipo savana, muitos carros de luxo e pequenos ônibus todos pintados diferentes.

A chegada no lugar de destino foi um choque. Sem ter almoçado nada, ansiosa e cansada, ela e as mulheres que viajaram juntas foram chamadas pela gerente do clube. Em poucas palavras, ela deixou claro que para comer precisava trabalhar e que o trabalho era para fazer programa com o maior número de homens por dia. Ela explicou que, como elas estavam devendo a passagem, o transporte do taxi até o clube e o passaporte, elas

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Parte II7. MIGRAÇÃO

precisariam primeiro fazer tantos programas até pagar esta dívida e só depois poderiam guardar, sem contar ainda que a alimentação, hospedagem, limpeza do clube e até os seguranças também seriam descontados. Ela se lembrou que uma colega que foi para Espanha tinha contado uma história parecida, mas naquele momento ela não se interessou muito, achou que ela deveria ter exagerado e que era uma coisa mais desta colega, até porque ela já fazia programa em Belém antes de viajar. Essa colega tinha contado que ficou trancada num clube de prostituição na Espanha até pagar sua dívida e quando finalmente conseguiu, a Polícia Federal prendeu os donos e trancou o clube por suspeita de tráfico de mulheres. Em vez de levar as mulheres para testemunhar e oferecer proteção, deixaram-nas na rua, em frente ao clube, só com suas malas. Estas mulheres pediram “abrigo” num outro clube.

O período no Suriname foi duro, principalmente os primeiros meses no clube. Algumas meninas se tornaram amigas, outras, nem tanto. Ela achou que havia ciúme, porque arranjou logo um cliente que gostou dela e bancava tudo para ela, só a procurava. Por sorte, ele a tirou do clube e foram juntos para o garimpo. No meio do mato não foi fácil para viver, mas ela se orgulha ainda por ter conseguido se virar lá, cozinhando, arrumando, administrando negócios... A relação com seu parceiro foi boa, no início, mas como ele era muito mulherengo, não deu mais certo. Quando ficou sabendo que seu pai estava muito doente, ela decidiu voltar, mesmo sem muito dinheiro, uma vez que gastou muito para se curar de malária.

No garimpo, se sentiu melhor do que na cidade. Eram brasileiros entre si. Na cidade, as mulheres surinamesas a olhavam com desprezo, chamavam-na de puta e viravam as costas. Os homens até tratavam-na um pouco melhor. Ela achou que as mulheres brasileiras, como ela, realmente eram mais “sexis” e “boas” do que as surinamesas.

Voltar para casa era estranho, porque no garimpo ela se sentia, de alguma forma, parte de uma comunidade, não sabia como era a vida real no Brasil depois de três anos, mas uma etapa parecia estar se findando. Talvez não fosse um retorno, mas uma migração para um lugar que tinha

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Parte II7. MIGRAÇÃO

conhecido que mudou com o tempo, como ela também mudou. E talvez não fosse para sempre, uma vez que ela agora sabia que conseguiria sobreviver no desconhecido.

A compreensão e relato sobre a experiência de migração foi preparada num caderno, no qual responderam perguntas sobre três momentos distintos da sua experiência migratória para revisitar e sistematizar sua experiência: “antes de migrar”, “a situação lá (no exterior)” e o “retorno”, tentando resgatar fatos importantes, perspectivas e ideias sobre a migração nestes três momentos e lugares vivenciados. Esta revisita foi a um só tempo, física (pensar/lembrar das pessoas, lugares, atividades e situações) e subjetiva (as percepções e sensações, memórias, saudades etc.), enfim, os lugares sobre os quais se pensa, fantasia, se lembra, sonha voltar ou esquecer completamente. Em cada momento, os dois espaços eram vivenciados: antes de viajar, como percebiam a realidade aqui e o imaginário de um lugar fora; quando estavam num outro país, como esse era percebido e como se pensava no Brasil; No retorno, como o Brasil se reapresentava nas suas vidas e como se lembrava o exterior. Um exercício muito complexo e desafiador.

ANTES DE VIAJARA maioria contou que foram informadas sobre o destino e ajudadas para a

viagem por uma amiga, vizinha, colega, mãe ou irmã. As mulheres, em geral, contaram antes de viajar para poucas pessoas sobre seu plano de viagem. A maioria contou só para sua mãe (mas duas nem contaram ou só o fizeram na última hora, saindo fugidas ou informando sobre outro destino). Só uma chamou uma reunião da família, na qual todos expressaram sua alegria com a oportunidade que se apresentava.

Todas pensaram encontrar boas oportunidades de trabalho e/ou renda, sem conhecer de fato nada sobre os países para onde foram, com exceção de DIAMANTE, que foi a primeira vez ainda criança, mas na segunda vez, já adulta, viajou com a experiência da primeira estadia em Portugal.

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Parte II7. MIGRAÇÃO

A proposta do trabalho se mostrou depois enganosa para três mulheres, mas os convites que receberam pareciam se encaixar perfeitamente na experiência profissional que estavam tendo no Brasil (strip-tease, garçonete num restaurante, babá). As três acabaram tendo que trabalhar na prostituição num clube. Aquelas que foram convidadas para o trabalho que realmente foram exercer, não tinham noção do que significava trabalhar naquela profissão (prostituição) ou esperavam uma relação de trabalho que as garantissem liberdade de locomoção e bom pagamento; encontraram uma realidade exploradora, a qual não tinham imaginado. Duas mulheres viajaram atrás de familiares. DIAMANTE voltou para Portugal (depois de ter passado sua adolescência lá com sua mãe e ter voltado para o Brasil com sua avó) na perspectiva de poder trabalhar e organizar sua vida lá, uma vez que tinha morado lá e passado uma infância com certo luxo. O mercado de trabalho em Portugal se mostrou, porém, de difícil acesso e explorador para uma brasileira sem visto permanente. TURQUESA foi a convite de sua irmã para o garimpo, e não sentiu diferença entre o que esperava e o que encontrou.

A fantasia sobre “o europeu”, loiro e de olhos azuis, fazia também parte da imaginação, inclusive de quem viajou para o Suriname, que ficaram surpresas com as características de negro e indiano que encontraram na população local.

QUADRO 4 - TEMPO DE MIGRAÇÃO

QUANTO TEMPO PENSOU EM FICAR FORA QUANTO TEMPO FICOU

10 MESES 02 ANOS

01 ANO 03 MESES (não aceitou as condições de trabalho)

04 MESES 2,8 ANOS

NÃO SABIA 03 ANOS

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Parte II7. MIGRAÇÃO

01 ANO 05 ANOS

03 MESES 3,8 ANOS

06 MESES 3,8 ANOS

02 ANOS 03 ANOS

Todas tinham uma perspectiva de tempo máximo para ficar no exterior e voltar, o que, na realidade, não se cumpriu. A maioria ficou muito mais tempo, em busca de conseguir o dinheiro que queria trazer de volta, ou impossibilitadas de voltar por terem se juntado com alguém – constituído uma “nova família”.

QUADRO 5 - A REALIDADE DE LÁ.

TÓPICO SAFIRA – Suriname

ESMERALDA – Suriname, Guiana

FrancesaPÉROLA –

EspanhaTOPÁZIO –

Suriname, Holanda, Alemanha.

QUEM TE RECEBEU

A sua colega que a convidou

e o dono do clube

Ninguém, viajou acompanhada de

Belém

Bruna, agenciadora e o filho do dono do clube (que a reconheceu via

foto)

No Suriname: A mulher que a levou.Na Holanda: o filho do dono de clube.Na Alemanha: o dono do clube.

ONDE FICOU No clubeClube (1) de

prostituição em Paramaribo.

Madrid, clube de prostituição.

No clube (2) de prostituição no

Suriname

QUEM TE AJUDOU

Amiga que a levou

(orientações, comida)

NinguémColega, que a

ajudou se arrumar, como se prostituir

Cliente brasileiro que era traficante de

drogas02 surinameses,

também traficantes, pagando despesas

QUEM TE EXPLOROU

Dono do clube (exigia muitos programas para pagar dívida)

Tentaram mas não conseguiram (só fazia beber e chorar) – fugiu

Colega de clube dando força; árabe

(cliente) que se apaixonou por ela, pagou sua dívida

Os donos de clube que ganharam

dinheiro

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Parte II7. MIGRAÇÃO

COM QUEM SE

RELACIONOU

Javanês (cliente no clube), garimpeiro (cliente e

depois parceiro e pai de seu

filho)

Sócio do dono do clube; holandês,

cliente; Brasileiro garimpeiro,

parceiro por 3 anos

Dono de clube que a obrigava a se

prostituir; clientes, a maioria muito

ruim, fedorentos e ignorantes. Havia

uma diferença grande entre árabes

(mais gentis) e espanhóis

Deus, vivia orando; as meninas nos

clubes; os clientes

COMO VIVEUCom muita dificuldade (financeira)

Procurando meios de sobrevivência:

cozinhar, lavar roupa, salão – no

garimpo e na cidade

No clube, muito mal

Presa, vigiada, humilhada, escravizada

DE QUE(M) TINHA

SAUDADESFamília, filho e

mãe Família e filhosFilho e mãe

(conseguiu comprar uma casa com

ajuda do marido)

Familiares, comida caseira da mamãe

O QUE GOSTOU Diversões

Situação financeira, melhor do que em

BelémDinheiro, um país

bonitoTudo no Suriname era insuportável

O QUE NÃO GOSTOU

Descaso com brasileiros, que não tinham vez;

o tratamento ignorante da

polícia

Falta de respeito do povo de lá com os brasileiros – como se fossem leprosos

Discriminação com os brasileiros

e com todos os estrangeiros

Frio (a pele fica mais

bonita)Comida

árabe

DECISÃO PARA VOLTAR

Por causa do filho que teve no Suriname; Medo de ser

morta por um “preto” contra quem depus

num processo criminal

Não decidiu voltar, foi expulsa/deportada do país. Antes voltava só

para visitar.

Não decidiu voltar, foi deportada

(depois de ficar 2 meses presa.

Só pensava em voltar e aceitou

na hora quando o dono do clube na

Alemanha a deixou embarcar

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127

Parte II7. MIGRAÇÃO

TÓPICO CRISTAL Suriname

JADE Suriname

DIAMANTE Portugal

TURQUESASuriname

QUEM TE RECEBEU

Empregado do dono do hotel e um

taxista

A pessoa que a convidou e um

taxista

Marido da mãe e sua tia (quando estava

com 9 anos)Mãe e tia (20

anos) – ficou presa no aeroporto pois

constava uma dívida/multa em nome da sua

mãe

Irmã que já trabalhava 04 anos

no Suriname

ONDE FICOUNa casa do

dono do hotel.

Clube de prostituição em Nickerie, rua

Casa da mãe Hotel e garimpo

QUEM TE AJUDOU

A menina que a levou: defendia-a na frente da dona da casa (brasileira, esposa do

Bily) – dona Vera

A menina que fez o convite,

ajudou no clube com comida e orientações

(depois fugiu do clube depois de

ter roubado várias coisas de lá)

Mãe, família, namorado Irmã

QUEM TE EXPLOROU

Dona da casa onde trabalhou

Homens que queriam sexo em troca de qualquer

ajuda

Nos trabalhos nas lojas de chineses (10 horas/dia) explorada como migrante ilegal

Não se sentiu explorada

COM QUEM SE RELACIONOU

Ninguém, não a

deixavam sair para

canto nenhum

Homens na rua; surinamês, pai do seu filho que lhe

batia muito

Amigos brasileiros e portugueses

Macapaense, garimpeiro

COMO VIVEU Presa dentro da casa

Num clube, na rua, na casa de

uma mulher (como empregada), numa

boca de drogas

1 vez: tempo de vacas gordas, com certo luxo2 vez: falta de dinheiro

Trabalhava no garimpo como

cozinheira e pegou muita malária

DE QUE(M) TINHA

SAUDADES

Mãe, andar sozinha,

açaí, colégioMãe e filhos Avô parentes, festas Filhos e

família

GOSTOU Nada Marido, cerveja Cultura do paísAmizades com

brasileiros e maranhenses

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Parte II7. MIGRAÇÃO

NÃO GOSTOU Comidas Casa onde morava (só drogados)

Preconceito e arrogância dos

portuguesesMalaria e dengue

DECISÃO PARA VOLTAR

Sua cabeça estava cheia de piolho, adoeceu,

ficou triste, pediu para dono do

hotel para voltar.

Sua amiga ajudou pegar

um taxi e sair

Tirou certidão do filho. Ficou sabendo através de uma amiga que a polícia

brasileira estava a sua procura e foi para a embaixada

brasileira. Ela ficou hospedada num hotel e foi transportada por

avião da FAB para Belém

1ª vez: a avó foi buscá-la para ficar

com ela (até ela morrer)

2ª vez: queria voltar mas não tinha

condições – foi deportada

Para rever sua família; ela estava

doente

TÓPICO RUBI ÁGATA AMETISTA

QUEM TE RECEBEU

Taxista (Depois de Três horas esperando

no aeroporto)Um segurança do Clube Minha tia e meu tio

ONDE FICOU No clube No clube Na casa da minha tia

QUEM TE AJUDOU

Namorado Surinamense, e amigas

brasileirasAs brasileiras que já estavam lá há

mais tempo e uma africana Minha tia e meu tio

QUEM TE EXPLOROU A dona do clube Os donos do clube Minha patroa de

Amsterdã

COM QUEM SE

RELACIONOU

Brasileiros, holandeses, chineses.

. .Com as brasileiras, depois com o

gerente de outro clube

Com holandês, africano,

brasileiros, português

COMO VIVEU

Trabalhei no clube pagando aluguel, a água era salgada e

quente, passei fome, não sabia falar,

mas depois fui me adaptando.

Nos primeiros meses presa no clube até pagar a dívida, depois fui

para outro clubes e aluguei uma casa

Trabalhando como babá, diarista,

empregada doméstica

DE QUE(M) TINHA

SAUDADESDa minha mãe, dos

meus filhos, da famíliaDos amigos, família e de não se

olhada como uma estranha (por ser estrangeira)

Da minha filha, família, amigos, da comida brasileira (açaí, charque)

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129

Parte II7. MIGRAÇÃO

O QUE GOSTOU

Comida, da maneira como eles vivem, a melhor estrutura de

vida.

As comidas, a estrutura do país (tudo limpo, saúde de pública de

qualidade)

A condição de vida, das festas, do dinheiro que

ganhava, dos amigos e tios

A apresentação da experiência de lá foi sistematizada no quadro e levou a várias reflexões e observações.

Quando SAFIRA contou sobre a primeira vez que ficou com um cliente na prostituição no Suriname, e que ela se sentiu tão suja e depois tomou um banho por mais de uma hora, esfregando com força o sabão no seu corpo, PÉROLA se levantou e disse: “você fez isso também?”. O tema da prostituição se mostrou importante para aprofundar, uma vez que todas vivenciaram, de alguma forma, a “prostituição” na vida, seja como estigma ou prática concreta. Elas perceberam que, independente se atuaram ou não na prostituição, tanto “lá” (no exterior), quanto “aqui” (no Brasil), todas eram consideradas prostitutas e tratadas como tal, conforme já relatado. Seus filhos ouviram de seus colegas na escola que sua mãe era uma puta porque foi para Suriname, quando procurava emprego recebia comentários de que elas eram prostitutas etc. Uma mulher migrante que não migra com seu “marido” é rotulada e tratada como prostituta (o que significa ser discriminada, abordada sexualmente em adversas situações etc.). A sociedade se fecha e se posiciona quando mulheres pobres tomam a decisão de migrar, procurar trabalho e ocupar novos espaços.

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Parte II7. MIGRAÇÃO

QUADRO 6 - O RETORNO.

AMETISTA (Alemanha, SAFIRA TURQUESA PÉROLA CRISTAL TOPÁZIO

Quem te recebeu?

Família e filha e 50

pessoas da comunidade na ilha, que estavam a sua espera

Mãe, irmã e amiga Família Mãe, filho,

irmã Irmã e Mãe

Ninguém (Ninguém

sabia que eu

chegaria)

Para quem contou sua

experiência?Família e amigos

Sodireitos (mais

ninguém, ninguém

quis saber)

Algumas amigas Mãe

Irmã, mãe, colegas e vizinhos

Para a família e amigos

Quem te ajudou? Família Mãe Irmã Amiga Irmã e

Sodireitos

Projeto Jepiara e depois a

Sodireitos

Quem te abandonou/

discriminou?Primas e vizinhos

Alguns amigos,

reconceitos. Só 10%

dos amigos falam com

ela

Ninguém Irmãos Vizinhos Vizinhos

De que se sente falta/saudades de outro país?

Tia, dinheiro, patroas

(que eram amigas), o conforto

Quase tudo; amizades; diversões

Amigos e irmã que mora lá

Dinheiro; ex-marido;

vida melhor; limpeza

Nada

Das comidas, chocolate, roupas e do frio

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Parte II7. MIGRAÇÃO

O que te decepcionou de volta ao

Brasil?Nada

Falta de emprego; violência

Falta de emprego

Falta de emprego

Não ter conseguido terminar de

construir sua casa;-Falta de emprego.

Eu pensei que meu

namorado eataria me esperando,

mas ele já estava casado

com outra.

O que mudou

aqui entre quando saiu

e quando voltou?

“eu” – jeito de pensar; era muito “infantil”;

mente espandida

Não era tão violento; falta de

emprego

Filhos que cresceram

Filhos que cresceram Nada

A minha cabeça

(saí daqui sã e voltei cheia de

problemas na cabeça)

JADE ÁGATA RUBI DIAMANTE

Quem te recebeu? Mãe

Amigos (e família depois no interior)

Amiga que mora no Paramaribo,

que veio junto ao Brasil e a deixa

em casa

1° vez: Tios e primos, voltei com minha avó.2° vez: Minha tia em Fortaleza e em Belém meus primos e amiga.

Para quem contou sua

experiência?Mãe

Não para muita gente, nem com a mãe; agora

se sente mais aliviada

Família, alguns amigos Para parentes e amigos.

Quem te ajudou? Mãe Amiga, mãe

“decidiu Só a mãe Tia, primos e amigas.

Quem te abandonou/

discriminou?Ninguém

Não senti muito aqui – porque

não contou a ninguém

Vizinho, algumas amigas

que também tinham ido para

Suriname

Ninguém

De que se sente falta/saudades de outro país?

Pai do filho e a família dele

Comida, estrutura

física do país, saúde, tudo

que é público

Ex-marido dinheiro alguns

amigosFamiliares, comida,

conforto e segurança,

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Parte II7. MIGRAÇÃO

O que te decepcionou de volta ao

Brasil?

Filhos estavam passando

necessidades; falta de trabalho

Mudança de padrão de

vida; rodeada por mais

pessoas que se afastaram porque ela mudou de

estilo de vida, acabou a gastança.

As drogas, pó, falta de

oportunidade e de emprego

Falta de trabalho, violência, corrupção,

saúde e educação precários.

O que mudou aqui entre

quando saiu e quando voltou?

Filhos grandes, vivos e sua mãe

viva

“eu” pensava mais na vida,

no futuro, atitudes

diferentes

Muitas novas vias

Mais violência, e melhorou um pouco

as oportunidades qualificação e estudos

com alguns programas do governo.

Em parte do grupo, há certa saudade da vida no exterior. O conforto, a comida, o dinheiro, a possibilidade de trabalho, as amizades. Outras, ao contrário, reconheceram algumas destas vantagens, mas, por exemplo, não ressaltaram as amizades (não teve, ou depois se mostraram que não eram amizades) etc.

O “dinheiro” não as levou a uma situação e condição muito melhor no Brasil, com exceção de aquisição de algumas casas modestas e ter dado algum conforto para a família na época que estava fora. Com exceção de DIAMANTE, que voltou determinada para estudar e trabalhar aqui e AGATA que trabalhou na assessoria parlamentar, todas ressaltaram a falta de perspectivas de trabalho, correndo há muito tempo atrás de trabalho. Perceberam que a migração ocorreu numa fase de juventude, na qual tudo parecia possível, poder ser repetido depois ou consertado. Com o passar do tempo e das experiências vividas, a situação se mostrou diferente e mais difícil. Elas mudaram, ganharam experiência, amadureceram e têm um novo olhar sobre a vida. É este fato que as diferencia da pessoa que migrou alguns anos atrás, algo que deve e pode ser potencializado em vez de ser algo que as exclui. De forma geral, o principal ganho com a migração foi a experiência de conhecer e viver no exterior o que resulta em amadurecimento pessoal,

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Parte II7. MIGRAÇÃO

justamente um elemento que não aparece ou aparece timidamente na lista dos argumentos para migrar.

O debate sobre migração das mulheres traz grandes reflexões para reconhecê-las como sujeitos de uma história da Amazônia com a qual elas podem contribuir.

A migração delas não desencadeou automaticamente um movimento reivindicatório por melhores condições na periferia ou por mais direitos como cidadãs. Isso em parte porque a migração feminina é carregada demais com valores e preconceitos que mais isolam as famílias na comunidade. Porém, ao mesmo tempo, as famílias deixam de viver o bairro como seu (único) território, uma vez vinculadas ao mundo a partir da migração de uma ou mais mulheres da família.

Migrar não significou o afastamento completo da mulher migrante de sua família. O relacionamento familiar, muitas vezes, intensificou-se e se aprofundou depois da saída. Mudou a organização e funcionamento familiar e os significados que cada um(a) deu à nova realidade.

O retorno concreto implicou na necessidade de emprego, trabalho e renda no Brasil. O retorno significou muitas vezes um retorno para o mundo de desemprego e sub-emprego, agravado pelo avançar da idade e as realidades familiares com quem precisam estabelecer uma nova convivência. Quem deixou a família para trás, vivendo no exterior com a promessa de trazer benefícios para a família, não encontrou facilmente um novo lugar na casa, na família e na comunidade quando este retorno era sem marido (saíram solteiras) e sem dinheiro (saíram se endividando).

Para algumas novas tentativas de migração podem ser encaradas, para outras sobra uma luta muito sozinha e isolada no Brasil para (re)conquistar algum espaço na família, na comunidade e no próprio país. A volta para a casa da mãe deixou aquelas que tiveram que viver esta realidade numa situação difícil. Saíram do país, quase sem consultar a família, viveram sua vida de migrantes praticamente sozinhas, encarando e superando todos os desafios que a migração internacional as trouxe, em busca de mais independência,

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Parte II7. MIGRAÇÃO

“gloria”, novas experiências, dinheiro para comprar sua casa. No retorno, precisaram se hospedar e se adequar às regras na casa da mãe. Parece mesmo uma derrota que estabeleceu uma nova relação de dependência e de submissão vivenciada

O processo de retorno que as levou a estas condições teve sua origem no exterior em deportações que interromperam o projeto migratório, doenças cujos tratamentos consumiram todo dinheiro juntado no exterior, exploração extrema no trabalho (doméstico e sexual) que deixou mulheres migrantes praticamente vivendo na rua ou em semi-escravidão ou relações afetivas no exterior que acabaram e que formavam a base da organização de trabalho em conjunto da mulher migrante com seu parceiro.

A migração ocupou um lugar de destaque na história de vida destas mulheres, uma vez que afirmou seu protagonismo na produção de sua identidade quando elas, consciente ou inconscientemente, tomaram a decisão de romper com o contexto no qual se produzia sua identidade até então e partiram para outro lugar onde se tornaram, explicitamente, “a outra” e onde a nova realidade e novas relações sociais entraram em choque com as experiências e contextos anteriores. Uma nova fase de produção de identidade.

Esta “busca”, porém, não pode ser interpretada simplesmente como uma opção livre, num momento de uma “crise de identidade”, pois tanto a própria crise quanto a saída encontrada se inseriram em realidades de desigualdades de classe, gênero e raça, em contextos internacionais que influenciaram no próprio fenômeno migratório e nas relações de poder que permearam todas as relações envolvidas na trajetória das mulheres migrantes.

Também não se pode negar que a busca de possibilidades de negociar e produzir identidades fez parte dos projetos migratórios, além dos fatores macro-econômicos, políticos e sociais.

As mulheres se encontraram, quando saíram das periferias de Belém, sozinhas em busca de resolver seus problemas e desafios. O projeto migratório as inseriu no mercado internacional de trabalho e numa convivência com uma comunidade brasileira migrante, que poderiam sinalizar para elas a

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Parte II7. MIGRAÇÃO

possibilidade e necessidade de uma atuação mais coletiva. Não foi o que se observou. Cada sucesso ou derrota na trajetória de migração foi festejado ou lamentado como (des)mérito de cada uma.

A produção da identidade das mulheres se inicia antes de seu projeto migratório, na periferia de Belém, com características de pobre, mãe (solteira), nascida na periferia, ex-esposa, trabalhadora temporária em serviços precários e filha e irmã de família numerosa, oriunda do interior do estado do Pará.

São mulheres e sobre elas recaíram expectativas e normas referentes ao papel de mulher que ela deveria assumir, tanto a partir da cultura interiorana trazida com a família, quanto a partir das normas machistas que dominam a vida na periferia. São papéis que se referem a cuidados com filhos, assumir o lugar de uma dona de lar, esposa e trabalhadora no âmbito doméstico.

São estes papéis aos quais as mulheres se referem como sua responsabilidade quando justificaram sua migração, numa tentativa ambígua de assumir identidades impostas e de quebrar com as mesmas ao mesmo tempo.

Migrar significou, de fato, a possibilidade de colocar em cheque identidades produzidas num certo contexto, neste caso periferias de Belém, por meio de confronto com novos contextos e sujeitos. A insatisfação com a identidade de uma mulher segregada numa periferia de Belém podia ser alterada, por exemplo, em novas realidades sociais que pediram novos posicionamentos, possibilitando novas leituras de ser mulher e ser brasileira. Ser brasileira no exterior tem outro significado do que ser brasileira numa periferia de Belém, às vezes com maiores possibilidades de negociação e mobilidade social e espacial. Ao mesmo tempo migrar significou carregar um novo olhar e preconceito que recai sobre as mulheres de classes populares quando saem dos papéis femininos tradicionais, de mãe e esposas, de donas de casa e dependentes financeiras de seus maridos.

Na periferia, elas pareciam ser condenadas a viver e ser uma mulher com acesso precário a emprego, trabalho e moradia, empenhar-se no papel de mãe, parte de uma família que na periferia encontrou sua estação final, no meio

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Parte II7. MIGRAÇÃO

da violência urbana, com estratégias precárias de sobrevivência e a pressão social de ser uma boa mãe, filha e irmã.

Sair para outro espaço e se inserir em outras redes sociais se mostrou uma estratégia que na periferia se apresentou a partir de contatos com outras pessoas que já viajaram e por meio das redes virtuais de relacionamentos. Esta mudança significou não “ser uma mulher da periferia”, mas se tornar “uma mulher do mundo” e procurar transformar com esta nova identidade a história de sua família.

Quando a mulher decide migrar e sair da realidade periférica para “o mundo”, ela entra num novo processo. De uma mulher membro de uma rede familiar, afetiva e comunitária numa periferia de Belém, ela se tornou uma mulher “pobre, brasileira, migrante e sozinha num contexto migratório”.

Desta vez, a pressão social não tende a reforçar a necessidade de assumir o papel de mulher de família, mas se enquadrar na nova realidade em função do mercado do trabalho. Trata-se de se tornar uma “brasileira”, “imigrante”, e “prostituta”. Estes processos de estigmatização se mostraram presentes na vida de todas as mulheres.

Apesar de não ter tido noção clara sobre o que era ser brasileira, a experiência migratória as obrigou a construir uma identidade brasileira que correspondeu à imagem existente sobre o Brasil (e as brasileiras) nos outros países. Esta imagem se pauta no samba, Rio de Janeiro, mulatas, sensualidade, festas com caipirinha, capoeira e futebol. Ser brasileira no exterior, portanto, significa se enquadrar e ser enquadrada nestas “características”, mesmo se elas passam longe de fazer parte de sua auto-imagem até então.

Ser imigrante obrigou cada mulher, o tempo todo, a se justificar por que ela saiu do país e por que ela estava naquele outro país específico. Isto reforçou os discursos que enfatizaram a pobreza, a falta de oportunidades e a violência no Brasil, sem abrir a possibilidade, inicialmente, de assumir outras motivações (mais subjetivas).

Ser migrante é uma identidade não escolhida, mas obrigatoriamente assumida e imposta pela divisão internacional do mundo em nações e, portanto,

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Parte II7. MIGRAÇÃO

em territórios com populações consideradas nacionais e as populações de outras nações como estrangeiros. Quando elas emigram para outra nação, elas se tornam, além de estrangeiras, imigrantes, ou seja, estrangeiras que estão dentro de outra nação que não é sua. São nacionais de outros países, neste caso do Brasil, que são os outros presentes no seio de uma nação, onde podem se relacionar com nacionais nativos, trabalhar e conviver, mas sempre como imigrante, portanto, não-nacional e sem a plena cidadania dos nacionais, sem direitos políticos plenos. Elas não tinham os mesmos direitos de que têm os nativos em termos de acesso a serviços públicos de saúde, educação e assistência, além de saber que seu lugar no mercado de trabalho era restrito ao que é considerado não adequado para nativos, lugares que sobram e se organizam para a mão de obra migrante, com maiores graus de exploração.

Ser migrante pobre, com todo preconceito que isto carrega, leva também a identidades defensivas, que incorporam justificativas socialmente aceitáveis e desejadas e fogem da possibilidade real e veladamente expressa de querer migrar simplesmente para poder conhecer outros cantos, encontrar outras pessoas com quem poderia se relacionar, até experimentar a prostituição longe do controle da família e se aventurar. Estas motivações são “proibidas” para mulheres pobres das periferias. Ser uma mulher bandeirante, desbravadora, aventureira etc. não é uma identidade permitida e foi a luta contra identidades que correspondem a papéis tradicionais de gênero na comunidade de origem, que as levaram, de certa forma, a investir num projeto migratório, encontra neste novo campo novas expectativas, normas e pressões para forçá-las assumir o papel para elas destinadas (boas mães, esposas), condená-las como sem vergonhas ou tentar salvá-las da opressão machista. Uma contradição que é difícil desmistificar.

As mulheres retornaram sem o “sucesso financeiro” ou “conjugal”. Elas trouxeram na bagagem somente uma experiência que não é valorizada como capital, uma vez que carrega a imagem da mulher degenerada e derrotada, muitas vezes rotulada de “puta”. O lugar que deixaram não existe mais como tal e sua volta pede re-organização do espaço e das relações para poder “inseri-

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Parte II7. MIGRAÇÃO

las” de algum modo, algo que nem toda família está disposta a fazer. Por estarem acostumadas a não ter acesso a seus direitos e viver na

periferia da sociedade, adaptaram-se facilmente às condições encontradas no exterior, sem questionar muito e seguindo os caminhos que imaginavam possíveis ou que se apresentaram.

Esta pesquisa ação tentou acrescentar a este rico e complexo processo de construção de identidades, justamente uma chave para que este não continue individual e isolado, mas coletivo e político.

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Parte III8. DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS: A DISTÂNCIA ENTRE O DECLARADO E O VIVIDO.

8. DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS A DISTÂNCIA ENTRE O DECLARADO E O VIVIDO.

Direitos humanos, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos [...] reconhecidos e protegidos, não há democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo (N. Bobbio).

Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que em 2010 completou 60 anos, passando por diversos pactos internacionais até a Constituição Brasileira até os recentes Planos Nacionais de Direitos Humanos, os direitos humanos estão não apenas declarados e regulados, mas passam a ocupar lugar de destaque na organização jurídica nacional e internacional. Mas, não custa perguntar: como essas declarações e regulações chegam à vida da população “comum”? O que elas conhecem, sabem daquilo que lhes é garantido? Aliás, vale perguntar antes o que lhes é garantido e o que lhes é negado? E qual é a percepção que se tem daquilo que lhes é garantido e daquilo que lhes é negado? Perguntas como estas e as possíveis respostas, parecem fundamentais para pensar em qualquer alternativa protagônica de sujeitos na melhoria de sua qualidade de vida. Concordando com o que diz Bobbio no texto em epígrafe, é assim que se chega nesta discussão com as mulheres/sujeitos desta pesquisa, mulheres para as quais, o termo “cidadãs do mundo” foi (ou é) um sonho, ao mesmo tempo tão próximo e tão distante.

A primeira pergunta era simples e direta: O que são Direitos Humanos? Seria esta uma pergunta necessária, diante do tanto que se tem dito a respeito?

“São os direitos de alguém”, diz a primeira; é respeito; é cidadania; é ir e

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Parte III8. DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS: A DISTÂNCIA ENTRE O DECLARADO E O VIVIDO.

vir; é escolha; é vida, completam as demais. É educação; é família, é trabalho; é saúde; é amor; é registro de nascimento; é segurança, é paz, é direito de ter bom governo; é harmonia; é felicidade; é dignidade; é igualdade; é viver em sociedade; é não discriminação; é justiça; é sonhar; é não abrir mão dos seus direitos e dos seus sonhos. E a lista das respostas vai se alongando. O que dizem todas as respostas? Do que elas falam? De coisas com as quais sonhamos e não temos? Falam daquilo que nos falta? Daquilo que em nossas vidas vemos garantidos para algumas pessoas e quase nunca para nós mesmos?

As respostas e as discussões que estas geram dizem da necessidade de ainda questionar sobre a temática. A questão dos direitos humanos não parece tão distante, a julgar pelas respostas que aparecem. Pelo menos não em termos da noção daquilo a que tem direito, daquilo que elas reconhecem como seus direitos. Mas como são vivenciados ou garantidos concretamente? O que é ser cidadão ou cidadã? E o que é ser cidadã do mundo? Como este direito me foi garantido quando vivi no exterior? Fui respeitada? Tive respeitado meu direito de ir e vir? Qual a consciência construída sobre os direitos humanos e de cada uma se reconhecer sujeito de direitos? Nesta construção parece residir a importância do debate. Educação, família, trabalho, segurança, saúde. O que a não garantia destes direitos básicos tem a ver com as histórias de migração e violências já relatadas por todas as mulheres em capítulos anteriores neste texto? A reflexão de uma delas mostra um pouco da resposta: “a minha vida poderia ter sido diferente se toda esta lista de direitos tivesse sido garantida”. Esta reflexão parece chave. Quantas vidas seriam diferentes se a garantia dos direitos humanos tivesse significado real na vida das pessoas e nas atuações dos governos?O princípio da indissociabilidade parece fundamental para compreender como esta não garantia determinou, como num efeito em cadeia, todas as situações de vulnerabilidades que permearam a vida das mulheres. Com base no perfil sociodemográfico de cada uma das mulheres, um jogo rápido de perguntas e respostas sobre alguns dos direitos básicos:

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Parte III8. DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS: A DISTÂNCIA ENTRE O DECLARADO E O VIVIDO.

Pergunta 01: como tiveram garantidos o direito à convivência familiar e as necessidades básicas para um desenvolvimento saudável na infância e adolescência? A resposta: é verdade que algumas viveram com as famílias originais, mas para muitas, a falta de condições de sustento levou à experiência de ser doada para outras famílias. Conflitos e violências foram também constantes; trabalho infantil e histórias de abuso sexual para outras; filhos na adolescência ajudam a conformar este perfil. Tudo isso demonstra, de forma geral, a marca da infância e da adolescência na Amazônia.

Pergunta 02: como o direito à educação foi garantido? A resposta: em média, quatro ou cinco anos de escolaridade para algumas, para outras nenhum ano de escolaridade; para uma delas, o curso superior. Para todas, no entanto, as marcas de uma educação de qualidade precária que não tem garantido desempenho e formação para melhorar a inclusão social delas, como também não tem sido garantida para as crianças e jovens que se desenvolvem sob condições semelhantes, a exemplo dos seus próprios filhos.

Pergunta 03: quais as oportunidades de trabalho? A resposta vem das próprias mulheres na reflexão sobre o artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Ora, se é verdade, que toda pessoa tem direito ao emprego, à condição digna de trabalho, à proteção contra desemprego, ao pagamento igual pelo mesmo trabalho, a receber pagamento suficiente para garantir uma existência digna para si e para própria família e direito de se associar a um sindicado de trabalhadores, por que todas nós estamos viajando a procura de trabalho e de melhoria pra nós mesmas e para nossas famílias e sem nenhuma destas garantias?

Muitas delas, como dito na pergunta anterior, iniciam sua experiência laboral ainda na infância, no trabalho doméstico, uma experiência que limita outras oportunidades: concorre com o tempo da escola, da formação etc. Na sequência de experiências há: diaristas domésticas, vendedoras, garçonetes, operárias de fábrica, striper, prostitutas. Vale ressaltar que todas estas

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Parte III8. DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS: A DISTÂNCIA ENTRE O DECLARADO E O VIVIDO.

atividades geralmente são exercidas sem vínculos formais e nem as garantias laborais dos trabalhadores com carteira assinada. Nos poucos casos que havia, nem esta garantia significava segurança contra exploração. Quanto ao trabalho, a percepção de negação é clara: “não tive meus direitos nem lá (no exterior), nem aqui”.

Poder-se-ia continuar perguntando sobre as experiências de sociabilidade, de acesso a cultura, lazer, a serviços básicos de saúde, às condições de segurança, de formação de vínculos afetivos seguros, de condições dignas de moradia etc., mas por ora parece suficiente para perceber as condições básicas de negação de direitos nesse campo.

Para as mulheres, a noção de direitos aparece intimamente ligada a de oportunidades, e aí cabe a pergunta: quais são, concretamente, as oportunidades de inserção social para as mulheres com baixa escolaridade, experiências de subempregos, nenhuma qualificação profissional e com filhos pequenos para sustentar sem alternativa de deixá-los?

Para completar o jogo de perguntas e respostas, uma última reflexão: são mulheres, e mulheres que vivenciaram uma experiência específica de migração para o exterior. Como pensar as violações específicas nesta situação, quer dizer, como discutir a relação GÊNERO – MIGRAÇÃO E DIREITOS HUMANOS? Há nuances diferenciadas quando se relacionam estes aspectos? Novamente os trechos das declarações e pactos de DH ajudaram na compreensão das mulheres, que fazem as seguintes reflexões:

Eu achei o artigo oito parecido um pouco (...) porque todas as pessoas têm direito a ter documentos. E o que foi que aconteceu com os meus documentos que ficaram? Eu fui dar parte e o homem não quis nem saber, disse que eu não tinha vez porque eu era prostituta. Nada foi resolvido, então eu achei parecido com essa situação dos meus documentos.

Veja o Artigo 9: “ninguém poderá ser preso, detido ou isolado por motivos arbitrários”. Eu, no meu caso, eu fui deportada e fiquei presa e fui presa junto com criminosos. Eu acho que esse foi meu direito violado.

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Parte III8. DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS: A DISTÂNCIA ENTRE O DECLARADO E O VIVIDO.

Assim, a gente não tinha liberdade, né? De sair pra rua e comprar o que queria, porque a gente não tinha pagado o passaporte. Os seguranças pulavam pra usar as meninas e ainda diziam que se a gente falasse, a gente era morta; a gente não tinha liberdade de sair. Algumas vezes que não tinha comida lá e não tinha como a cozinheira fazer comida pra dar pra gente, e a gente tinha que garantir nosso dinheiro pra comprar, mas nem isso eu podia sair, porque o passaporte não tava pago.

Toda pessoa tem direito de ir e vir e deixar seu país e a ele retornar. Engraçado é isso, né? A gente viajou e não tivemos direito de retornar quando a gente viajou. Eu fui deportada.

Eu não vim com meus documentos, nem com meu passaporte e nem com a autorização.

E eu vim pela embaixada, mas sem os meus documentos (...) eu não consegui pegar passaporte e mais a minha identidade ficou pra lá.

O artigo primeiro da declaração universal dos direitos humanos, onde diz que todas as pessoas nascem livres e iguais. Eu coloquei que nossos filhos nasceram em hospitais públicos e sabemos que nesse momento já existia desigualdade no tratamento e isso é uma realidade na vida do pobre, muito diferente dos hospitais particulares de pessoas que têm condições para usufruir desse serviço privado. Então eu coloquei como interrogação, isso é igualdade? Até na hora de nascer, já nasce diferente, já nasce com tratamento diferente.

Ninguém será sujeito a interferência na sua vida privada, na vida famíliar, no seu lar, na sua correspondência e nem ataques a sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei quando há interferências ou ataques. Eu coloquei um caso que aconteceu comigo, mas também eu acho que com todas as meninas aqui. Fui para outro país para trabalhar como babá e doméstica, quando voltei meus vizinhos me acusaram de ter ido me prostituir. Sofri com as calúnias e minha imagem foi denegrida. Acho que todas aqui tivemos também, o nosso direito violado.

Eu também, da mesma forma que ela, eu fui pra fora do Brasil, aí todo mundo falou: ela foi ser puta, foi ser aquilo, como sempre o que todo mundo comenta.

“Taí” um direito que eu não sabia que existia; Eu também não sabia. Neste caso, tu não pode ser mantido preso, detido ou exilado e comigo

aconteceu tudo isso: eu fui presa, fui detida e apanhei; eu não matei e não roubei ninguém, e meus direitos também foram violados, fui deportada sem meus documentos.

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Eu também não sabia que tinha esse direito, agora eu fiquei sabendo. Isso é uma humilhação que a gente passa.

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas - isso que aconteceu com a gente, nós duas, a gente teve um ritual com todos aqueles trâmites de recrutamento, transporte, recepção e não podia sair do clube.

É, não podia sair do clube enquanto não pagasse aquela dívida imensa. A gente “não podia sair, eu fiquei quase quatro meses sem sair, eu só fui sair depois que pagaram a dívida.

É que assim ninguém é sujeito, mas eu fui sujeita a escravidão e a servir outras pessoas sem querer, entendeu? Contra a minha vontade eu fiquei presa lá. Servindo escrava, sendo presa num clube e servindo aos clientes que eu nunca eu vi antes. Eu era forçada a fazer aquilo, então foi violado esse meu direito, entendeu?

Ah, tá! Toda pessoa tem deveres perante a comunidade. Então o quê a gente comentava? É que quando a gente fala de direitos, a gente costuma falar muito dos direitos que a gente quer. E dos direitos que a gente precisa, que a gente acha que são necessários: que a gente quer ter direito à vida, a gente ter direito à saúde, a gente quer ter direito a uma educação com qualidade, enfim, direitos básicos. A gente quer os direitos humanos, mas a gente esquece que a gente não tem só direitos. Que a gente tem deveres também pra sociedade, aí a gente também tem dever de tentar mudar o que tá errado, tentar corrigir essa sociedade que nós fazemos parte dela também, então também é nosso dever tentar mudar, é o nosso dever tentar melhorar. E esses direitos que nós, às vezes, temos violados, a gente também tem o dever de tentar cobrar, inclusive do poder público. E há situações como essa, onde a gente se qualifica pra interferir com uma diferente na sociedade, eu acho que são muito positivas. Mas também a gente não pode esquecer que os direitos que nós queremos pra nós, as outras pessoas também querem pra elas, independente da situação da vida que ela viveu, quer dizer, é muito contraditório. Às vezes a gente pensar em direito da gente recebendo e esquecer que os outros também têm direitos, independente da vida que eles levaram ou das oportunidades que eles não tiveram.

Lá na Espanha, se a gente não descesse, a gente pagava multa ou então trabalhava com a esponja metida lá ...

Assim a gente fala e é tudo ao contrário! Ninguém vai preso, mas eu fiquei presa por não pagar uma passagem, fiquei presa no clube por não pagar uma

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passagem que era um absurdo, aquilo não era real o que eu ia pagar, entendeu? Porque eles cobraram umas quinhentas passagens nas minhas costas. Aí eu não tinha recurso pra pagar e fiquei presa por não pagar uma dívida.

Eu também fiquei isolada num país estranho pra pagar uma dívida que não acabava nunca, que só fazia aumentar, pagando multas, dívidas que apareciam que eu jamais imaginei de ter, três vezes mais que o valor real, uma coisa assim que não acabava, que eu não aceitava, pra mim, foi inaceitável. Até hoje eu não consigo pensar o tanto que em um mês eu tive que pagar. Eu paguei essa dívida toda em um mês e ainda tinha que ficar mais seis meses pra poder sair desse clube com os meus documentos. Sendo que é teu direito os teus documentos e que estavam presos na mão de pessoas estranhas.

E eu acho assim, que todas que estão aqui, passaram por isso, assim como a gente, por isso sabem o que a gente passou, a gente quer que outras pessoas passem e continuem passando? Aí fora tem muitas garotas, muitas meninas passando o que a gente passou, a nossa realidade e essas pessoas que vivem por trás ganhando sobre elas, sobre nós, sobre as outras que estão lá, sendo impunes, só ganhando enquanto as outras ali sendo escravas, apanhando e sendo humilhadas.

Assim, no caso, nós fomos escravas brancas em outro país. Fomos escravizadas. Assim é diferente de cor, de raça, a gente deveria ter o respeito e a dignidade de todos, não é verdade? Então o que queremos é um mundo melhor para todos os seres humanos e dignidade para todos, liberdade, paz, amor, respeito, felicidade.

Ora, o que se percebe é que para além das violações às quais homens e mulheres são submetidos, existem muitas outras, às quais as mulheres sofrem simplesmente porque são mulheres. No contexto do trabalho, da migração, das relações sociais, em geral, muitos direitos básicos das mulheres são violados. São elas que acabam abandonando a escola mais cedo para cuidar dos filhos, são elas as maiores absorvidas pelo trabalho doméstico e nestes, mais vulneráveis aos abusos de ordem sexual ou a violências físicas e verbais. São as mulheres que têm violentados seu corpo e sua dignidade ao serem obrigadas a fazer sexo com homens de quem não gostam, e com muitos deles numa mesma noite, e são elas, por fim, que convivem e aguentam os

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diferentes episódios de discriminação na família, na rua, na vizinhança, nos órgãos públicos que, em tese, deveriam cumprir o papel do Estado de proteger estes direitos.

Falamos de pessoas que não têm direito a ter direitos? De pessoas que, como essas mulheres, são impelidas a escolhas (opções) que trazem danos a si mesmas? Então para estas os Direitos Humanos não valem? Porque os papéis, documentos e leis ainda passam tão despercebidos? E o que fazer para fazer valer?

As reflexões acima demonstram o potencial deste debate para a irradiação de uma cultura, uma mentalidade ou uma consciência de direitos humanos. Precisa-se construir uma subjetividade de promoção de direitos e este parece ser um primeiro resultado dessa discussão com as mulheres. Estas reflexões permitem reconhecer os direitos humanos como instrumento de mudança social. Sabemos que as recentes decisões do governo brasileiro, com a criação de um programa nacional de direitos humanos, representam um passo importante na construção de uma política pública de direitos humanos, mas muito ainda há a ser feito.

Por isso, as recomendações finais deste trabalho referem-se inicialmente às posturas que os governos (em especial, mas que não exclui o envolvimento da sociedade civil) devem adotar para diminuir as restrições à mobilidade de pessoas e para aumentar a proteção aos direitos dos/das migrantes. Dessa forma é preciso garantir:

1. Os Direitos humanos como perspectiva das políticas sociais e migratórias.

Os diversos relatos e situações apresentados no conjunto deste texto mostram muitas e diferentes formas de violações aos Direitos humanos. Mais graves ou discretas, em diversas situações os direitos fundamentais à dignidade e à liberdade das mulheres se acham atingidos. A despeito dos avanços obtidos neste campo, os relatos mostram que ainda há muito que avançar, o que diz

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muito da necessidade de enfatizar os princípios dos direitos humanos para melhor proteger os direitos das mulheres. Esta ênfase evidencia a cooperação entre países e a necessidade de integrá-la com o desejo e liberdade de migração segura, garantindo às mulheres migrantes o direito de proteção contra todas as formas de exploração. É preciso investir ainda mais na compreensão de cada um dos direitos e liberdades, investindo com isso, na cultura e na adoção de medidas nacionais e internacionais para assegurar a observância e garantia efetivas. Esta perspectiva passa também pela ampla disseminação dos conteúdos de cada um dos instrumentos (pactos, convenções, tratados) nacionais e internacionais de proteção, garantindo o reconhecimento dos mecanismos seguros a serem acessados em cada caso específico. Em resumo, passa pela percepção da migração como direito, devendo, todas as violações ou violências sofridas por migrantes ser compreendidas como violação aos direitos humanos, sendo, portanto, objeto prioritário de proteção.

2. Admitir as relações globalização e pobreza como fatores de risco e vulnerabilização das mulheres.

Uma das ideias mais repetidas neste texto é a relação entre as situações de vida das mulheres e a conformação daquilo a que chamamos vulnerabilidade para a migração não segura. Esta, na maioria dos casos aqui discutidos, sempre aparece relacionada à ausência de oportunidades e opções de emprego, condições de vida e sustento da família e baixo poder social das mulheres. É impossível não aludir aqui ao impacto que as políticas de mercado e de ajuste econômico (desregulamentação, livre mercado, privatização, diminuição dos investimentos sociais etc.), impostas pelas grandes agências internacionais a assumidas pelos governos têm na conformação destas situações, embora na prática as mulheres nem se deem conta disso. A despeito do discurso corrente de crescimento econômico, que é claramente uma alternativa para minimizar os custos humanos do capitalismo, a realidade é de retração das políticas sociais e dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais com o aumento da desigualdade e da pobreza nos países.

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Fala-se de pobreza de forma genérica, colocando-a na raiz dos elementos que impulsionam a migração, mas o que constitui a pobreza e como defini-la? Pode-se dizer que a globalização e seus efeitos, geram uma forma de pobreza diferenciada, que além da falta material, aumenta o sentido de desespero e desamparo da população, na mesma medida em que faltam os mecanismos tradicionais de proteção e segurança da população e assistência às famílias.

Se é verdade que grandes empreendimentos geram alguns postos de trabalho, também o é que, estes não são suficientes para absorver a quantidade de trabalhadores que perdem suas ocupações em função destes mesmos empreendimentos, a exemplo do que acontece com os pequenos agricultores que perdem suas terras e trabalho para o agronegócio e acabam inchando as periferias das cidades, realidade bastante evidente nos relatos das famílias aqui mencionadas.

Os fatores macro econômicos e de mercado moldam, sem que as mulheres se deem conta disso, as decisões mais subjetivas das suas vidas, entre elas a de migrar. A perversidade desta realidade demonstra que tanto as mulheres quanto suas famílias se sentem responsáveis e culpadas pelas condições em que vivem e pelo insucesso da sua trajetória de migração, ao mesmo tempo em que o discurso oficial e as políticas públicas reforçam esta mesma ideia: mulheres vulneráveis e histórias individuais de pobreza.

3. As Políticas de desenvolvimento precisam responder às necessidades das populações locais.

As políticas de desenvolvimento impactam enormemente as comunidades mais pobres e marginalizadas, impactos esses que são ignorados pelos proponentes. É preciso que à aprovação dos grandes projetos se acoplem medidas de solução dos impactos negativos que em geral estes geram. Faltam políticas sociais que deem conta dos problemas já existentes e muitas vezes agravados pelas políticas de desenvolvimento e suas, às vezes, grandes obras. Falta de postos de trabalho para a população local, danos ambientais, ameaças às identidades culturais das populações locais, falta de adequação dos

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serviços públicos à chegada de migrantes que a expectativa de emprego gera, ocasionando várias outras formas de pressão por serviços (saúde, educação, segurança etc.), aumento da violência por causa da desorganização fundiária e espacial das atividades produtivas, são exemplos desses problemas aos quais os projetos precisam responder.

4. Políticas específicas para promover oportunidades de trabalho para as mulheres.

Como já dito, as transformações sociais hoje têm como marca, a retirada ou redução do Estado no investimento social para ampliação de acesso a direitos (garantir serviços, saúde, educação, segurança) que, de fato, só atingem de forma negativa as comunidades pobres (já que as ricas têm condições de pagar por estes bens e serviços). As políticas compensatórias ou redistributivas (como o bolsa família, minha casa, minha vida etc.) têm chegado timidamente às mulheres e seu impacto para a melhoria de vida se mostrou mínimo com a sensação de cidadania pouco elevada. O Programa Bolsa Família, por exemplo, atendeu até 2010 cerca de 12 milhões de família, com valores que podem variar entre R$ 32,00 e R$ 242,00, o que ainda resulta um valor mínimo que não garante as necessidades básicas das famílias.1

Os impactos negativos são maiores entre as mulheres, que são impelidas a estratégias de proporcionar, prover aquilo que o Estado não garante (por exemplo, pagam escolas privadas mais baratas e de menor qualificação, pagam por serviços de saúde mais baratos e mais acessíveis nos bairros, um exame, uma consulta).

O efeito é uma pressão em cascata que empurra as mulheres para a economia informal, trabalho doméstico, trabalho sexual, situações de exploração e até tráfico de mulheres, muitas vezes subdimensionando os riscos e perigos que as propostas escondem.

No mesmo contexto, crescem os argumentos em favor do empreendedorismo, do apelo ao poder e capacidades individuais, ao uso dos talentos para propor ações ou negócios. Entretanto, a ênfase destas políticas

1 fonte: WWW.mds.gov.br/bolsafamília. acessado em 02/04/2011. às 17 horas.

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investe no empreendedorismo dos jovens (efetivo para evitar uma opção por migração insegura), mas, ao mesmo tempo, exclui mulheres que não finalizaram o ensino médio e aquelas que voltam de experiências migratórias, não mais tão jovem e ainda sem o nível educacional exigido para cursos profissionalizantes.

Os dados apresentados demonstram como muitas mulheres já fizeram esta aposta, elas são pródigas em diversas tentativas (ver linhas do tempo), mas que não prosperam, porque faltam recursos financeiros, faltam experiência e qualificação, capital cultural, enfim, que apóiem estas expectativas e as sustentem. Por outro lado, sabemos que há algumas experiências de mulheres que, de forma coletiva ou individual, conquistaram e conseguiram ser bem sucedidas, conquistando poder dentro de suas famílias e comunidades. Isso demonstra que há um potencial que precisa ser expandido, incentivado, como forma concreta de ampliar as oportunidades econômicas e sociais das mulheres.

5. Políticas de Educação e qualificação profissional.Faz- se hoje todo um discurso em torno do aumento dos postos de

emprego no Brasil e em algumas áreas, o que parece ser fato, assim como é fato também que as pessoas (homens e mulheres) com qualificação e formação respondem mais a estas oportunidades. O que a realidade tem demonstrado é que os postos gerados demandam mão de obra qualificada, especialização, exigências que não correspondem ao perfil das mulheres migrantes em questão. Estas têm a baixa escolaridade como marca, mesmo aquelas que têm mais anos de escolaridade (Ensino médio completo ou até curso superior iniciado) tem percebido que esta escolaridade é insuficiente para o acesso ao trabalho. Elas acabam esbarrando na ausência de uma formação profissional, de experiência ou nas deficiências da educação regular que receberam. São todas oriundas de escolas públicas precárias no ensino fundamental e médio, com uma formação e domínio de conteúdos deficitário. É caso raro aquelas que acessam o ensino superior (como duas das daquelas aqui inseridas),

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dependendo muitas vezes de estímulos e apoio de família e redes sociais diferenciadas e com necessidade de pagamento, pois em geral é de instituições privadas, já que as universidades públicas são mais disputadas e em geral “reservadas” aos oriundos das escolas privadas, mais bem preparados. O desemprego é estrutural nos trabalhadores de baixa qualificação, caso das mulheres em questão.

Para a maioria das mulheres pobres, a precariedade da formação impera e o ensino profissional é inexistente. Estes aspectos gritam forte na situação delas. São urgentes medidas para ampliar, em larga escala, o acesso para mulheres a cursos profissionalizantes, linhas de crédito etc., combinados com investimento em aumento da escolaridade, mas que não a tome como requisito, com bolsas de estudo, se for necessário.

Para exemplificar esta necessidade, pode-se considerar que dados recentes mostram o Brasil como um país de destino de migrantes qualificados, mostrando que de pouco mais de 66 mil em 1991, os imigrantes internacionais no Brasil chegaram aos 144 mil em 2000 (OIM & MTE. Perfil do Migrante Brasileiro 2009). Também o número de autorizações para trabalho de estrangeiros cresceu de 5.376 autorizações em 1993 para 43.993 em 2008, sendo que estes se distribuem em áreas que exigem maior qualificação: ciências e artes, direção de empresas, organizações de interesse público. Ainda segundo a OIM, neste mesmo período, as taxas de escolaridade desses migrantes também mostraram acréscimo de oito para 12 anos ou mais de estudo.

Por outro lado, o Brasil também se caracteriza como um país que “expulsa” sua população. A despeito das dificuldades em estimar o número total de brasileiros que deixaram o território nacional, os dados apontam para um perfil de escolaridade mais elevada dentre aqueles que migram para os EUA ou Japão e mais baixa escolaridade dos que vão para países do Mercosul (OIM & MTE. Perfil do Migrante Brasileiro 2009). Vale dizer que estes números se referem aos migrantes documentados, sendo possível inferir que dentre os não documentados estão os de mais baixa escolaridade, como as

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mulheres migrantes participantes desta pesquisa. Em resumo, estes dados, embora não conclusivos, podem evidenciar que o Brasil receba trabalhadores mais qualificados enquanto expulsa brasileiros de menor qualificação, para postos também mais mal-remunerados e menos protegidos. No enfrentamento dessa situação o investimento na qualificação e educação é imprescindível.

6. A perspectiva de gênero como foco das políticasÉ necessário diminuir o impacto discriminatório de gênero das políticas

e ao mesmo tempo adotar a perspectiva de gênero como foco das políticas públicas. Esta frase propositalmente paradoxal pretende aludir ao fato de que as questões sociais e as propostas políticas de solução, historicamente, impactam diferentemente homens e mulheres, sendo que estas sempre mais afetadas negativamente. Os desafios para as mulheres se originam de múltiplas relações: classe social, etnia, nível de educação, qualificação profissional, responsabilidades pelo sustento dos filhos quando os homens se vão, expectativas sociais sobre o papel e comportamento da mulher na sociedade, discriminação por seu status reprodutivo e sua sexualidade, sujeição à violência sexual. Tudo isso pesa demais sobre elas.

Todos esses fatores contribuem na conformação das vulnerabilidades como num efeito em cascata: formação deficitária originando baixa renda em razão do não acesso ao trabalho, que por sua vez gera outras impossibilidades de inserção (em serviços, em educação, em saúde), impedindo que construam ou melhorem suas possibilidades de participação social, uma vez que não dominam as informações e códigos necessários, têm pouca capacidade de circulação no meio social, não conhecem os serviços e direitos e nem os meios de acessá-los, como por exemplo, vaga na escola para elas e seus filhos, tirar documentos, matrículas em alguns programas ou serviços de assistência. Todas estas necessidades ou desejos motivam ou incentivam as mulheres a aceitar alguns convites e propostas, abrindo mão de direitos básicos, que às vezes é a única oportunidade que aparecem. Elas não estão em situação de escolha, porque esta só é possível quando se está diante de várias opções.

Vida diferenciada exige benefícios e proteção diferenciados. É preciso

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perceber e valorizar as mulheres, pois elas são provedoras materiais e cuidadoras emocionais e sociais da família (e às vezes cuidadoras nas comunidades também). Quando lhes são negadas as oportunidades, esse papel é ameaçado e as ameaças se estendem para além delas, afetando um grupo maior de pessoas (crianças, jovens, idosos), a família e a comunidade, pois estes também sofrem estes impactos. As mulheres dão conta das responsabilidades que a vida moderna lhes tem reservado, sacrificando-se e submetendo-se à exploração e negação de seus direitos. São necessárias estratégias que aumentem o poder das mulheres de conhecer e exercer seus direitos e protegê-los.

7. Produção de conhecimentos (observatórios).É preciso ainda empreender políticas de construção de base de

dados seguros sobre migração feminina, e reconhecer que não há ainda conhecimentos suficientes sobre como as mulheres migram (sob quais condições, experiências, remessa, tipo de ocupações, formas de organização etc.). Os dados recentes sobre o perfil migratório brasileiro ainda trazem, em poucos detalhes, o lugar das mulheres nesse processo.

Os dados são indispensáveis para: dimensionar o tamanho da questão e suas conseqüências; argumentar a favor de políticas baseadas nas necessidades e na perspectiva de gênero e diminuir discriminação e vulnerabilização. Conhecer e se aproximar cada vez mais desta realidade contribui para diminuir o preconceito e estigmatização que se cola à imagem da mulher migrante, uma vez que estes se apóiam em pré-conceitos, na mais concreta tradução do termo.

Maior conhecimento na área pode identificar quem, como e porque as pessoas migram. Será que apenas faltas justificam a decisão de migrar? Quem ganha com a exploração em torno delas? Pode também fazeer perceber que as mulheres também podem migrar razões ou aspirações positivas – conhecer, ter novas experiências, razões profissionais, culturais, oportunidades pessoais –, desejos nos quais os papéis de provedora e de busca de autorrealização se

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complementam. A percepção das motivações negativas se faz baseada nos argumentos das vulnerabilidades e, frequentemente, vitimiza suas narrativas, alimentando a discriminação e, às vezes, até as criminalizando, enquanto identificar as motivações positivas ajudam a construir uma outra imagem da mulher migrante. Estas motivações são possíveis, embora no contexto estudado os problemas apareçam mais enfaticamente, já que se trabalhou com mulheres pobres e sem formação maior.

8. Enfrentamento à Violência contra a mulherApesar dos avanços neste campo, com a implementação de políticas

de proteção aos direitos da mulher, da Lei Maria da Penha, do aumento no número de delegacias especializadas e o recém lançado II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres com princípios e metas bem definidas no que tange à proteção e garantia dos direitos das mulheres em diversas áreas, a sociedade ainda parece vivenciar níveis crescentes de violência contra elas. Diversos países experimentam repressão nos direitos, no status econômico e social das mulheres. Embora se observem avanços, estes não se traduzem ou ainda carecem de maior tradução na vida cotidiana. Pode-se dizer que a violência, em especial a violência sexual, talvez seja uma das violações dos direitos humanos mais associados à vida das mulheres, em geral, e à migração feminina em particular.

No Brasil, como em outros países, ainda há uma luta grande por convencer as pessoas e governos de que a violência contra a mulher é grave violação com origem em fatores sociais, políticos, econômicos e culturais. Se em alguns contextos essa luta é mais publicizada e reconhecida (violência física, sexual, por exemplo) gozando de políticas de atenção mais fortes, em outros é menos olhada e combatida. Ainda se faz “vista grossa” para muitas situações, como violência em locais de trabalho, abuso no trabalho doméstico, muitas e diferentes formas de preconceitos e discriminações nas comunidades, escolas, ruas, serviços públicos de saúde, segurança, dentro das relações sociais, por agentes do Estado, com empregadores etc. Ainda

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há um caminho a ser percorrido. Os relatos mostram como essa vitimização secundária tem um efeito negativo duplo, pois além de ser uma violação, ainda impede ou dificulta o acesso a outros direitos (como educação, saúde, segurança, assistência, justiça).

É preciso a ênfase na defesa contra as diferentes formas de violência, percebendo que esta deve envolver a análise de fatores mais sistêmicos que aumentam o risco da violência ou ausência dos Direitos Humanos em suas causas e consequências. Nenhuma medida pode violar o direito de escolha e admitir a exploração econômica, física e sexual.

9. Atenção e Proteção aos direitos trabalhistas nos diversos setores, inclusive informal e doméstico e trabalho sexual

É sabido que sobram postos de trabalho em condições precárias e são estas que mais absorvem mão de obra feminina, pois, em geral, as relações são fortemente atravessadas pelos marcadores de gênero. Se as mulheres já são exploradas no setor formal de trabalho, isso se agrava no setor informal, aí incluído o trabalho doméstico e o trabalho sexual.

Está provado também que quanto mais lacunas no reconhecimento dos Direitos Humanos e trabalhistas, maior o risco de exploração. Há um jogo de cegos ou faz de conta aqui? Se se confirma que o setor doméstico e o trabalho sexual são aqueles que mais absorvem mulheres migrantes pobres, porque não garantir e proteger as relações neste setor mais ampla e efetivamente? Até quando se vai ignorar este fato? Porque estes setores continuam não reconhecidos, tanto no Brasil quanto nos países aqui referidos? A luta é também pela defesa veemente dos direitos e proteção legal para trabalhadoras em quaisquer atividades.

10. Fim da perspectiva de securitização da migraçãoA globalização, ao mesmo tempo em que apela para a transnacionalidade

ou multiterritorialidade, apela também para nacionalidade e políticas menos “visíveis” de controle migratório, vigilância de fronteiras e intolerância

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com migrantes. Dentro do processo de regulação do acesso ao território e a vivência do estrangeiro nos países, as consequências são adversas para o migrante em geral e muito mais para as mulheres como os casos estudados demonstram. A tendência geral é de tratar a migração sempre no âmbito da segurança nacional, resultando em prisões, deportações, ameaças, deixando os migrantes continuamente sob pressão, levando-os a aceitar as piores condições de trabalho e submetendo-os a violência maior.

11. Políticas binacionais de garantia de direitos e proteção às migrantes

Os estudos têm demonstrado a existência de um histórico de migração ou rotas migratórias mais intensas entre alguns países, no caso do Brasil, são exemplos as trocas emigratórias para os EUA, Paraguai, Japão e Reino Unido, Itália e Espanha (OIM & MTE. 2009). Além disso, tanto países de origem, quanto de destino têm, em geral, relações de mercado, políticas migratórias ou diferentes formas de intercambio comercial, científico etc. Se estas são possíveis e se falamos de áreas de interesse de dois países, que se acham ligados por correntes migratórias, com efeitos positivos e negativos para os dois países, isso deveria abrir o argumento para que as relações fossem discutidas conjuntamente, com as políticas sendo desenvolvidas também de forma integrada, bilateral.

Como pensar num sistema supranacional de proposição e controle das políticas migratórias? A quem se reclama por direitos uma vez no exterior? A quem submeter alegações, denúncias, reivindicações?

Há que se admitir que na migração há uma relação entre uma necessidade, traduzida por falta de oportunidades das mulheres no país de origem, e outra necessidade, traduzida por oportunidades ou demandas do mercado no destino, que na realidade são mais sub-oportunidades, já que são no trabalho sexual ou doméstico. De qualquer forma, há uma situação que chama e atrai, e as migrantes respondem. Logo, não estaremos diante de responsabilidades

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não unilaterais, mas binacionais?Há claramente a necessidade de cobrança deste papel do Estado, desta

ação diferenciada, que é uma ação afirmativa. É preciso ter política pública para garantir educação, garantir trabalho e todos os direitos econômicos, sociais e culturais.

Então, para além das pressões dos organismos internacionais, para além das diversas conferências dentro do país, tem que ter movimentos que lutem para que esses direitos sejam garantidos, porque só ter declarado no papel, não serve. Movimentos que reconhecem na migrante uma pessoa com direitos iguais a partir de outras experiências, mas nem por isso, menos válidas, aliás, muitas vezes enriquecedoras, são necessários.

O que diz a legislação dos direitos humanos para nós? Que o governo tem a obrigação de garantir direitos, o governo tem obrigação e nós também, mas são os governos que assinaram esse documento, então eles têm que garantir.

Entretanto, a história tem demonstrado que o governo precisa ser monitorado e avaliado sistematicamente em relação ao que se compromete no discurso, nos planos internos, nos tratados, acordos, na relação com organismos internacionais e, fundamentalmente, com a população. Fica patente o papel da sociedade, se organizando em torno desta luta.

Alguns direitos não precisariam ser declarados, Por exemplo, o direito à vida. Mas em alguns momentos se precisou afirmar, com força, isso, e ainda hoje muitas lutas se travam por tal direito. Os direitos são históricos, não são garantidos por natureza, mas para se efetivarem, precisam ser conquistados, então essa é a grande diferença: existem direitos humanos, mas eles não são dados, eles têm que ser conquistados todo dia, apesar de ser um direito. Direitos humanos são históricos, porque são fruto da luta.

E para isso, há a necessidade de atores individuais e coletivos fortes, conscientes e organizados que proponham, acompanhem e controlem estas ações. Nesta luta, as mulheres têm um grande papel. Mulheres migrantes são, muitas vezes, tratadas pelas políticas públicas como vítimas ou degeneradas, objeto de intervenções moralistas e assistencialistas, para não precisar dialogar

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com as raízes sociais da migração feminina nem com as reivindicações políticas que a migração feminina provoca.

No tocante aos movimentos sociais, é preciso atenção aos riscos de posturas que identificam as mulheres migrantes como objeto de lutas para sua salvação e como antagonistas das lutas das mulheres pelas vivências da prostituição. Em ambas as arenas, é preciso ter a coragem de escutar as mulheres migrantes, considerar suas histórias, experiências e reivindicações, não só para um avanço na garantia dos direitos delas, mas principalmente para avançar nas mudanças sociais em geral.

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Parte III9. CONCLUSÕES

9. CONCLUSÕES

• Todas as mulheres se apresentaram como trabalhadoras, numa busca incessante de trabalho e renda. O mercado e a sociedade, porém, não estão estruturados para inseri-las e oferecer condições dignas e promissoras, ao contrário, eles se aproveitam da situação das mulheres trabalhadoras para inseri-las de forma precária no mercado, visando maiores graus de exploração possíveis. Esta “exploração” inerente à organização do mercado e da sociedade se perpetua também nas suas experiências migratórias e se agravam depois de sua volta;

• As mulheres migrantes (com histórias de tráfico de mulheres ou não) precisam ser abordadas em todas as esferas (executiva, legislativa e judiciária) e políticas como mulheres trabalhadoras em vez de serem caracterizadas como vítimas ou ”mulheres perdidas”;

• A estipulação de metas para aumentar a escolaridade das mulheres, considerando suas necessidades específicas, torna-se estratégia imprescindível para o exercício da cidadania delas, visto que a educação gera maiores oportunidades, o que influenciará diretamente na sua qualidade de vida e na vida de seus filhos;

• É preciso ampliar o percentual de mulheres nos programas de qualificação profissional e implantação de programas de qualificação específicos para mulheres;

• Políticas de formação e geração de renda têm que focar, como um dos seus públicos prioritários, mulheres jovens, entre 18 e 35 anos, inclusive com atenção especial para aquelas que voltaram de experiências migratórias;

• Os programas de formação e geração de renda precisam contar com bolsas de incentivo de valores compatíveis com as necessidades de sobrevivência das mulheres, muitas vezes mães, ou seja, um salário mínimo (mínimo = mínimo);

• As exigências de escolaridade para cursos técnicos e profissionalizantes excluem grandes parcelas das mulheres jovens (migrantes)

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Parte III9. CONCLUSÕES

da possibilidade de formação. Apesar do princípio louvável do estímulo à escolarização, a realidade das mulheres mostra que elas precisam de formação profissional. Uma combinação de elevação da escolaridade, formação/qualificação profissional, garantia de uma renda (mínima) e acesso a crédito parece uma boa fórmula. Há, porém, tempos diferenciados e concorrência de tempo entre as atividades de estudo, qualificação e trabalho (além dos afazeres domésticos). Minimamente, pode-se afirmar que a alfabetização é fundamental, mas a elevação de escolaridade não deve ser uma exigência para poder acessar os outros eixos de promoção de direitos. Portanto, não há uma fórmula única para aumentar as possibilidades de geração de renda e trabalho e não se deve atrelar as diferentes atividades de promoção de direitos entre si de forma absoluta, sob o risco de excluir ainda mais as mulheres;

• Apesar de garantido no Estatuto da Criança e do Adolescente, as mulheres dificilmente encontram uma creche ou escola de ensino fundamental com vagas e próximas de sua residência, o que dificulta ainda mais sua vida como mãe e jovem com filhos;

• O Estado brasileiro precisa efetivar a defesa, em âmbito nacional e internacional, dos direitos dos trabalhadores (nativos e migrantes), por meio de fiscalização das condições em que se encontram trabalhando, com a consequente responsabilização exemplar dos exploradores, bem como realizar a cooperação internacional para a proteção dos brasileiros trabalhadores no exterior;

• As mulheres que querem migrar devem receber orientação segura sobre direitos, riscos e apoio, e ser for o caso, ser encaminhadas para a rede de assistência que deve investir nas suas necessidades e oferecer outras opções além da migração;

• Nos lugares de retorno, se faz importante criar serviços de orientação para reinserção, articulados e dentro da própria rede de atendimento social, incluindo atendimento médico, psicológico, orientação e capacitação profissional, crédito e ajuda de moradia. Isto se refere tanto aos direitos como cidadãs quanto a oportunizar as potencialidades que mulheres que migra(ra)

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Parte III9. CONCLUSÕES

m têm (iniciativa, coragem, espírito empreendedor etc.); • A rede de atendimento precisa ser qualificada para atenção específica,

com formação dos profissionais das diversas áreas: saúde, educação, segurança pública; precisa trabalhar as condições de infraestrutura desses serviços (material e equipamentos, e garantia de funcionamento em horário integral em postos de atendimento, a exemplo dos postos avançados em aeroportos);

• As mulheres migrantes, inclusive as vítimas de tráfico de pessoas, precisam ser abordadas, citadas, mencionadas e consideradas como trabalhadoras em vez de serem rotuladas de prostitutas;

• O Estado brasileiro deve incorporar os relatos dos migrantes na sua política nacional e internacional de direitos humanos, inclusive na avaliação desta política, defendendo posicionamentos a partir das realidades vividas, a fim de tornar mais eficiente a sua proteção;

• É preciso consolidar ou efetivar os diversos espaços de monitoramento, avaliação e controle dos planos de garantia de direitos com efetiva participação da sociedade civil (III Plano Nacional de Direitos Humanos; Plano Nacional de Políticas para as Mulheres; Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas);

• O Brasil precisa assumir, no âmbito das relações internacionais, uma postura radical na defesa dos direitos de migrantes em geral, de brasileiros em especial, como também ter uma postura radical para a garantia dos mesmos direitos de migrantes no seu país. Ou seja, sempre priorizando os direitos de brasileiros no exterior e de migrantes no Brasil em relação a outros interesses diplomáticos ou econômicos que podem ser conflitantes.

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Parte III10. ALGUMAS MARCAS SIGNIFICATIVAS DESTE TRABALHO

10. ALGUMAS MARCAS SIGNIFICATIVAS DESTE TRABALHO

Retomando as afirmações e objetivos iniciais sobre a opção por um desenho de pesquisa ação, faz-se necessário discutir aqui algumas das marcas significativas do processo realizado e seus resultados.

Inicialmente, cumpre destacar o papel da metodologia (científico e social) – pensa-se que foi a opção metodológica que possibilitou uma apreensão e descrições tão detalhadas sobre as vidas, famílias, a forma como vivem e como elas pensam a forma como vivem, que outro desenho possivelmente não conseguiria captar.

Além disso, confirma a possibilidade de formas diversas de fazer pesquisa e construir conhecimentos e que se precisa sair mais da condição de ver ou construir “objetos de pesquisa” para trabalharmos com “sujeitos da pesquisa”.

Há que ressaltar o papel político e o significado para a proposição de políticas e para os movimentos. A nossa crença inicial se confirma, de que este é um caminho para o trabalho com as mulheres: escutar a voz; valorizar as experiências; construir canais de expressão, ressignificação da experiência vivida. Esse é o caminho da construção de sujeitos mais livres, autônomos. Nenhum sujeito se constrói se não se faz autor de sua história, palavra e discurso, e esse é o caminho para a construção de identidades coletivas e protagonistas.

Os dados permitem ver concretamente aquilo que há muito já se evidencia: o papel da mulher como provedora, contribuindo com argumentos para a reconstrução de um papel historicamente pensado como masculino e que não mais corresponde à realidade. Isso obriga as políticas a reconhecer este novo papel, valorizá-lo e protegê-lo com investimentos concretos do Estado. Ora, quando falta proteção e garantias aos direitos da mulher, isso se reflete muito fortemente em um grupo grande de pessoas, toda uma família

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que depende desta mulher.Faz-se importante pensar nas condições concretas de vida das mulheres

– viver essa experiência de reconstrução pessoal implica em ter as condições básicas (e não apenas mínimas) de sobrevivência garantidas, satisfeitas. Como uma mulher terá tempo e condições subjetivas para formação, vida em grupo, experiências de empoderamento, sem ter deixado comida para os filhos em casa? Daí a importância de aliar possibilidade de renda com possibilidades de empoderamento social e pessoal.

Ademais, pensa-se a possibilidade de reconstruir o olhar sobre a migração e a mulher migrante – a pesquisa reúne argumentos que demonstram que não se tratam de vítimas, mulheres indefesas ou que não querem nada; ao contrário. O processo da pesquisa demonstra que a migração é um fenômeno muito mais presente na vida das famílias do que se supõe – precisa ser olhado como constituinte da dinâmica social de organização dos grupos e, como tal, ser alvo do investimento do Estado na sua garantia e proteção.

E por fim, nos depoimentos das mulheres agentes de pesquisa, encontraram-se marcas identificadas de mudanças, ao responder à pergunta: “O que mudou na sua vida ou na sua forma de ver as coisas? E o que espera deste trabalho?

Mudou muita coisa na minha vida depois de vários debates que fizemos sobre vários temas, mas o mais importante foi ter, hoje, um olhar diferente para a migração, que ainda que eu tivesse uma experiência de migração, nunca havia parado para pensar sobre porque as pessoas migram ou com são tratadas antes, durante e depois da migração, sobre os preconceitos que rondam os migrantes, mais especificamente se este migrante for mulher.

Conhecer uma entidade que trabalha no enfrentamento ao tráfico de pessoas, principalmente mulheres.

Eu aprendi valorizar mais o nosso país. Aprendi que a gente tem que encarar a nossa situação que levamos no nosso lugar e que a migração nos leva a situações perigosas, colocando em risco a nossa vida. Eu espero viajar uma outra vez, não como prostituta, mas sim como passeio.

Mudou a minha forma de pensar sobre emigração e sobre meus direitos

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que tenho de estrangeira em outro país e ter força para lutar por um futuro melhor para outras migrantes. Participar da pesquisa foi muito bom para a minha vida.

Mudou principalmente minha autoestima, estou mais confiante no meu potencial, acreditando que tudo o que eu quero posso fazer e acontecer.

Amadureci bastante e o conhecimento se expandiu em minha mente.

Muitas coisas mudaram na minha vida com a pesquisa, uma delas foi que meu conhecimento evoluiu e atualmente tenho outro modo de ver e pensar sobre a migração, prostituição, tráfico de pessoas e principalmente sobre os direitos que todos temos, mas muitas vezes não nos são dados, então temos que defendê-los.

Também acho que a pesquisa me acrescentou muito como pessoa, pois pude trocar experiências com minhas colegas, e até mesmo aprender com o erro delas, e estar muito mais informada sobre assuntos que não dava muita importância e me passava despercebida, como os meus próprios direitos. Sem dúvida nenhuma, o conhecimento foi muito importante, pois assim obtive mais confiança pra cobrar e lutar por direitos que temos em qualquer lugar que tivermos, e para que futuros migrantes sejam tratados com respeito e dignidade.

A prostituição não é vida para nenhuma mulher, é muito sofrida e tem muita gente que discrimina.

Pude ver que todas essas coisas são muito ligadas, principalmente para mulheres de baixa renda, e temos muito mais em comum do que imaginávamos, sendo que nossas famílias também já tiveram a experiência de migração, quando vieram do interior para a cidade em busca de melhores condições de vida, e que também por não terem muita informação e planejamento familiar (nossos avós e pais tinham muitos filhos). Consequentemente, os filhos tinham que começar a trabalhar cedo para ajudar no sustento da família e deixando os estudos de lado. A maioria das mulheres de baixa renda acabam se relacionando cedo, tendo filhos e constituindo família, que não deram certo e assim surgem várias “oportunidades”, que as mulheres acham que podem ajudá-las para o sustento de suas famílias, como um convite para trabalhar em outro país.

Compreendi melhor o debate sobre prostituição, inclusive para poder defender as mulheres (ou homens) que optam por este trabalho.

Entendi a migração sob vários olhares, não somente pela minha experiência. Entendi que pessoas podem migrar e ainda assim não podem ser obrigadas a aceitar todo e qualquer tipo de trabalho ou vida que possa ferir sua dignidade, afinal de contas, em qualquer lugar do mundo que vamos levamos nossos direitos humanos e precisamos defendê-los.

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Parte III10. ALGUMAS MARCAS SIGNIFICATIVAS DESTE TRABALHO

Ao participar da pesquisa, comecei a ter um novo olhar para questões como o direito de decidir trabalhar na prostituição e que precisa ser respeitado, direitos da mulher, principalmente no que diz respeito à migração e pela primeira vez li documentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Espero que as pessoas vejam as migrantes mais como pessoas que viajam para outros países em busca de um futuro melhor para outras pessoas. Espero que a vida das mulheres que participaram da pesquisa sirva de exemplo para nossas mulheres paraenses.

Espero que se possa tratar a migração como uma questão social que vai muito além de uma simples opção de ir para outro país. Acho que nós mulheres que participamos deste primeiro processo de Pesquisa ação podemos contribuir muito nesse debate com a experiência, mas também no enfrentamento de situações de tráfico de pessoas e na discussão sobre migração, afinal, é importante a experiência que temos para contribuir no enfrentamento e prevenção ao tráfico de pessoas e no debate sobre migração.

Espero que todos que leiam o livro tenham consciência de não fazer o que nós fizemos. Que se procurem ajuda se alguém lhes convidar para sair do país.

Espero que possamos abrir os olhos de muita gente, tanto da sociedade, como do Estado, e que possamos cobrar leis e direitos que protejam os migrantes dentro ou fora do país.

Espero que a pesquisa possa ajudar nesse trabalho da prevenção e que o governo olhe para essas mulheres com mais respeito.

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Parte III11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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