Multimorbidades nos desfechos de saúde em idosos · a depressão foi associada à maior carga de...
Transcript of Multimorbidades nos desfechos de saúde em idosos · a depressão foi associada à maior carga de...
PESQUISA MÉDICA Especial - CARDIOMETABOLISMO | No 1 | 2012 |18
Multimorbidades nos desfechos de saúde em idososA presença de várias doenças crônicas no indivíduo idoso demanda particular atenção do clínico na hora de avaliar e tratar o paciente. Estudo realizado pela Faculdade de Medicina de Yale, que relacionou cinco doenças crônicas comuns a essa população, com quatro desfechos universais, esclarece sobre o efeito sinérgico entre as doenças e sua repercussão na funcionalidade do idoso
POR VANESSA SOUZA SANTANA
CLÍNICA GERIÁTRICA: DOENÇAS CRÔNICAS
12752 miolo.indd 18 16/12/11 17:26
PESQUISA MÉDICA Especial - CARDIOMETABOLISMO | No 1 | 2012 | 19
O Brasil é um país que passou por um pro-
cesso rápido e recente de envelhecimento
populacional. A expectativa de vida aumen-
tou de 33 anos para 68 anos durante o século 20 e,
atualmente, os idosos já correspondem a mais de 10%
da população. Projeções indicam que essa população
será de 32 milhões de pessoas em 2020, o que co-
locará o país na sexta posição mundial em número
de idosos. Esse avanço progressivo da expectativa de
vida implica, no entanto, no aumento de morbidades
por doenças crônicas não transmissíveis, que muitas
vezes são incapacitantes e oneram custos com a saúde.
O geriatra Márlon Aliberti, médico assistente do
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (FMUSP) e coordenador
do Hospital Dia da mesma instituição, tem em mente
esses dados quando lembra que o envelhecimento só
passou a ser discutido no País a partir da década de
1990 e ressalta que a geriatria surgiu nesse cenário
como uma especialidade relativamente nova no Bra-
sil. “O século passado contribuiu com o aumento da
expectativa de vida da população”, diz ele. “Que estes
anos de vida sejam acrescidos de qualidade, autono-
mia e independência para os idosos, é isso que espe-
ramos que aconteça neste século”.
Quase 50% dos indivíduos com idade superior a 60
anos convivem com quatro a cinco doenças crônicas.
Esta é a média, segundo demonstram vários estudos am-
bulatoriais atuais. Nas faixas etárias acima dos 80 anos,
essa média é ainda maior. Mas Aliberti acrescenta que a
população idosa é bastante heterogênea. “Eu atendo ido-
sos que têm apenas uma doença e acompanho outros que
convivem com até dez”. Da mesma forma, existem ido-
sos que necessitam usar apenas um medicamento, diaria-
mente, e outros que têm de tomar 17 drogas.
“Além dessa diversidade, o paciente idoso vem enca-
minhado com prescrições de especialistas, muitas vezes
inadequadas para sua idade e suas condições fisiológi-
cas”, alerta o geriatra, acrescentando que, por isso, a
avaliação individualizada do idoso é fundamental para
o sucesso de diagnóstico e tratamento. Ele ressalta, ain-
da, que a idade, sozinha, não diz muito sobre o idoso e
recomenda que o médico valorize a opinião do paciente
sobre sua própria saúde, que procure conhecê-lo bem.
Quantas medicações usa, quantas doenças tem, sua
funcionalidade está preservada, qual sua independência
e qualidade de vida? Esses são aspectos que o médico
deve avaliar ouvindo o idoso.
Abordagem globalO manejo dessas morbidades, de forma isolada, au-
mentaria substancialmente os gastos com saúde,
além de ser pouco efetivo para a melhora da quali-
dade de vida dos idosos, daí a importância da abor-
dagem global desses pacientes, evidenciada pelos
resultados do Cardiovascular Health Study. Trata-se de
“Nós nos preocupamos em prolongar a sobrevida,em reduzir a mortalidade, mas também temos deestar atentos para a funcionalidade do paciente, que dependeda carga de doenças, da autopercepção de saúde ede sua participação ativa nas atividades do dia a dia”
CLÍNICA GERIÁTRICA: DOENÇAS CRÔNICAS
12752 miolo.indd 19 16/12/11 17:26
PESQUISA MÉDICA Especial - CARDIOMETABOLISMO | No 1 | 2012 |20
uma coorte multicêntrica que teve início em 1989, sob a
coordenação da Faculdade de Medicina de Yale, em New
Heaven, estado de Connecticut (Estados Unidos), com
seguimento de 5.298 idosos da comunidade, dos quais
57,5% eram mulheres e 14,4%, negros. O Cardiovascular Health Study já deu origem a 140 papers, entre eles este
sobre a influência de multimorbidades nos desfechos de
saúde em idosos, tema de nossa reportagem de capa. Os
indivíduos pesquisados apresentavam uma ou mais das
seguintes doenças crônicas: insuficiência cardíaca, doen-
ça pulmonar obstrutiva, osteoartrite, depressão e déficit
cognitivo. Para determinar o efeito das morbidades so-
bre o risco de morte, foi utilizado o modelo de regressão
Cox*. Foram quatro os desfechos avaliados: autopercep-
ção de saúde, funcionalidade, carga de sintomas e morte.
Os pesquisadores usaram o teste de interação — uma
modalidade estatística que permite analisar a correla-
ção entre duas ou mais variáveis e o impacto do ponto
de vista das probabilidades de um fator influenciar no
desfecho de outro — para avaliar se o efeito da associa-
ção de duas doenças era maior do que a adição das duas
condições isoladamente.
Além de ser um dos estudos mais importantes da me-
dicina geriátrica, por ser multicêntrico, envolver uma
coorte de mais de cinco mil idosos, que foram acompa-
nhados por um período de 12 anos e meio para as cinco
principais doenças crônicas que afetam essa população,
lembra a pesquisadora, o Cardiovascular Health Study
retrata bem a dificuldade que o médico experimenta ao
lidar com o paciente idoso, explica a pesquisadora Cláu-
dia Suemoto, chefe do Laboratório de Fisiopatologia do
Envelhecimento da FMUSP. “Os pesquisadores acom-
panharam as cinco principais doenças em idosos tanto
por prevalência como por importância e as relaciona-
ram com a autopercepção de saúde, carga de sintomas e
funcionalidade, além de mortalidade”.
Para Suemoto, é exatamente assim que deve atuar o
geriatra. “Nós nos preocupamos em prolongar a sobre-
vida, em reduzir a mortalidade, mas também temos de
estar atentos para a funcionalidade do paciente, que de-
pende da carga de doenças, da autopercepção de saúde e
de sua participação ativa nas atividades do dia a dia”, diz
ela. A pesquisadora esclarece que o enfoque geriátrico
desse estudo está, justamente, na análise conjunta de
várias doenças. “A maioria dos estudos costuma analisar
uma doença, isoladamente, mas na prática raros idosos
têm apenas uma doença”, adverte Suemoto.
As doenças crônicas causam impactos sobre a quali-
dade de vida dos idosos e são um importante problema
de saúde pública. A depressão, por exemplo, interfere
negativamente na funcionalidade do paciente por ser
incapacitante e aumentar o risco de suicídio, e sua pre-
valência é alta entre os idosos. Aproximadamente 15%
a 20% dos idosos não institucionalizados apresentam
sintomas depressivos. Segundo Suemoto, muitos es-
tudos já mostraram como a presença de uma doença
física aumenta o risco para depressão e vice-versa.
A discussão de artigos científicos relevantes para a
prática clínica geriátrica faz parte das atividades for-
mais do Departamento de Geriatria do Hospital das
Clínicas da FMUSP. Sob a denominação de Momento Científico, a prática foi instituída para atualização dos
pesquisadores sobre o manejo clínico do paciente ido-
so. A geriatra e pesquisadora Cláudia Suemoto é res-
ponsável pela programação dos temas e a coordenação
dos seminários que visam à discussão de estudos in-
ternacionais e nacionais e à troca de experiência.
Doenças mais prevalentes e desfechos observadosA idade mediana dos pacientes do Cardiovascular Health Study foi de 72 anos. A maioria apresentava
autopercepção da saúde razoável e boa funcionalidade.
A porcentagem de óbitos em doze anos de estudo foi de
4%, aproximadamente 212 indivíduos. A osteoartrite foi
a comorbidade mais prevalente entre os sujeitos do estu-
do, correspondendo a 58% da amostra. A maioria dos pa-
cientes apresentava apenas uma doença, 31% não tinham
doenças e 22% apresentavam mais de duas doenças.
As cinco comorbidades estudadas influenciaram ne-
gativamente a autopercepção de saúde, mas as de maior
impacto foram a insuficiência cardíaca crônica (ICC) e a
depressão. Todas as doenças causaram impacto negativo
sobre a funcionalidade, mas a ICC e a depressão, nova-
mente, foram as doenças que mais produziram perda da
funcionalidade. O déficit cognitivo foi a única comorbi-
dade que não interferiu nesse desfecho de carga de sinto-
mas, ou seja, os pacientes com comprometimento cogni-
tivo não relataram ter mais sintomas do que os outros. Já
a depressão foi associada à maior carga de sintomas nos
pacientes. A insuficiência cardíaca foi a doença mais cor-
relacionada com a mortalidade, e a osteoartrite foi a única
morbidade que não se correlacionou com esse desfecho.
Das cinco comorbidades analisadas no estudo, com
exceção da osteoartrite para óbito e da demência
para a carga de sintomas, as demais foram correla-
cionadas com os desfechos avaliados. A funcionali-
dade dos idosos foi prejudicada por todas as doenças
avaliadas, e a associação entre as doenças apresentou
efeito sinérgico sobre esse desfecho, entre elas, par-
ticularmente a depressão e a insuficiência cardíaca.
As cinco comorbidades
estudadas influenciaram
negativamente na autopercepção
de saúde, mas as de maior
impacto foram a insuficiência
cardíaca crônica (ICC) e
a depressão
CLÍNICA GERIÁTRICA: DOENÇAS CRÔNICAS
12752 miolo.indd 20 16/12/11 17:26
PESQUISA MÉDICA Especial - CARDIOMETABOLISMO | No 1 | 2012 | 21
Impactos sobre a funcionalidadeO grande achado do Cardiovascular Health Study, e
por isso ele foi publicado na revista de maior impac-
to em geriatria, o Journal of the American Geriatrics Society (JAGS), foi estudar a interação entre as doen-
ças para tentar entender como várias morbidades se
manifestam em uma mesma pessoa. Será que elas se
somam ou se multiplicam? Em outras palavras, será
que uma potencializa a outra e vice-versa?
O gráfico acima evidencia interação significativa
em duas situações específicas: quando se correla-
cionou depressão com ICC e depressão com déficit
cognitivo. O resultado sobre a funcionalidade do pa-
ciente não foi igual à soma dos efeitos isolados. O que
se observa é a potencialização dos efeitos. Diante da
sinergia negativa, conclui-se que para a manutenção
da funcionalidade do idoso é imperioso impedir que
essas doenças ocorram ao mesmo tempo.
A abordagem do idoso com multimorbidades, espe-
cialmente no início do acompanhamento médico, consis-
te em tratar primeiro aquilo que mais causa sofrimento,
o que mais incomoda, explica a pesquisadora e geriatra
Dra. Cláudia Suemoto. Essa estratégia aumenta a con-
fiança do paciente no médico, favorece sua adesão ao tra-
tamento e o envolvimento da família e cuidadores com
o processo. “O foco inicial é o principal sintoma”, repete
a geriatra, o que não significa que um paciente depri-
mido, com ICC, hipertensão arterial sistêmica (HAS) e
diabetes, ficará sem tratamento para as outras doenças.
“Todas serão tratadas”, ela acrescenta, “mas se tiver
de priorizar alguma das doenças para evitar os efeitos
terapêuticos indesejáveis e garantir sua adesão e da fa-
mília ao tratamento, a estratégia na primeira consulta
é essa: resolver o que mais incomoda”, orienta Suemo-
to. No caso do paciente idoso, o que mais incomoda e
deve chamar a atenção do médico, segundo ela, é a perda
de funcionalidade, de autonomia, da independência de
fazer as coisas por si só, sem ajuda de outras pessoas.
“Essa condição é muito importante para o ser humano e,
quando o envelhecimento começa, torna-se ainda mais
importante pela dificuldade em mantê-la.”
ReferênciasGero Saúde. Disponível em: www.gerosaude.com.br. Acesso
em 24 nov. 2011.
Tinetti ME, McAvay GJ, Chang SS, Newman AB, Fitzpat-
rick AL, Fried TR, Peduzzi PN. Contribution of Multiple
Chronic Conditions to Universal Health Outcomes. J Am
Geriatr Soc. 2011;1-6.
2,2
2,0
1,8
1,6
1,4
1,3
2,02,1
1,2
1,2
1,0
0,8
0,6
0,4
0,2
0,0
EFEITO DA INTERAÇÃO DE COMORBIDADE NAS ATIVIDADES BÁSICAS DE VIDA DIÁRIA (ABVDs) E ATIVIDADES INSTRUMENTAIS DE VIDA DIÁRIA (AIVDs)
ABVD
s re
aliz
adas
com
difi
culd
ade
ou n
em ta
nto
Depres
são is
olada
Depres
são is
olada
Depres
são is
olada
Depres
são e
défic
it cog
nitivo
Depres
são e
osteo
artrit
e
Osteoa
rtrite
isola
da
isolad
a
doença pulmonar obstrutiva crônica depressãoDepressão e osteoartrite
Depressão e déficit cognitivo
Um levantamento de 2007, feito pelo Serviço de Geriatria da Santa Casa de São Paulo com 100 idosos, na faixa etária dos 75 anos, encontrou 41% desses idosos em uma das duas situações: ou tomando medicamentos em excesso ou em doses inadequadas
CLÍNICA GERIÁTRICA: DOENÇAS CRÔNICAS
12752 miolo.indd 21 16/12/11 17:26
PESQUISA MÉDICA Especial - CARDIOMETABOLISMO | No 1 | 2012 |22
O MANEJO DO PACIENTE GERIÁTRICO
Os pacientes idosos são os maiores usuários de medicamentos e, no Brasil, tomam medicamentos em excesso ou em doses inadequadas
POR VANESSA SOUZA SANTANA
ESCALAS DE AVALIAÇÃO
O Cardiovascular Health Study utilizou duas escalas para mensurar a funcionalidade dos idosos que partici-param da pesquisa, que são baseadas em questionários sobre atividades básicas da vida diária ou ABVDs, como é a sigla em português, e atividades instrumentais da
-1,2.
A escala de ABVDs busca saber se o paciente tem condições de tomar banho sozinho, vestir-se, realizar a higiene pessoal, bem como manter o controle esfincte-riano, se transferir de um lugar para outro e alimentar-
que exigem o manuseio de algum instrumento necessá-
-
em uma das duas situações: ou tomando medicamen-tos em excesso ou em doses inadequadas. Segundo o geriatra Dr. Márlon Aliberti, um quinto das internações hospitalares de idosos é provocado por efeitos adver-sos a medicações1. A introdução de novas medicações para esses pacientes deve ser gradativa, uma vez que a reserva funcional deles é menor do que a de um adulto
em geral, diminuídas, o que torna mais lenta a meta-bolização dos fármacos e aumenta a chance de efeitos adversos”, lembra o geriatra Aliberti.
-trico. Esse paciente apresentou-se no ambulatório
diabetes descontrolada e depressão. Sentia-se muito desmotivado. “Se durante a consulta, concluo que o problema que mais o incomoda é a falta de vontade
para fazer suas atividades básicas, minha prioridade
as outras medicações gradativamente”.
O baixo nível de escolaridade de alguns idosos, a falta de orientação adequada sobre as medicações, a polifarmácia e o uso de fitoterápicos, geralmente não informado ao médico, são fatores que contribuem para
minimizar a iatrogenia medicamentosa, Aliberti reco-menda a prescrição de drogas que tenham perfil seguro para essa faixa etária, em dose baixa no início do trata-mento e perspectiva de chegar à dose ideal lentamente,
da literatura. “É preciso ter cautela e bom senso”, diz ele, “e valorizar a boa relação médico-paciente para ter sucesso no tratamento do idoso.”
--
caso, interessa saber se usa o telefone, faz compras, prepara as refeições, faz alguma atividade doméstica, como lavar suas roupas, se usa meios de transporte, tem responsabilidade sobre suas medicações e admi-nistra suas economias independentemente.
-
Acesso em: 24 nov 2011.
-leira da escala de atividades instrumentais da vida diária. Bras
O baixo nível de escolaridade dos
idosos, a falta de orientação
adequada sobre as medicações, a polifarmácia
e o uso de fitoterápicos,
geralmente não informado ao
médico, são fatores que contribuem para o risco
de interações medicamentosas
CLÍNICA GERIÁTRICA: DOENÇAS CRÔNICAS
12752 miolo.indd 22 16/12/11 17:26