MULTIPLICIDADE DA ANALISE DO DISCURSO

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Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, n.25, p. 117-132, abril de 1999 Multiplicidades, arqueologia e análise do discurso' Rogério Christofoletti Curso de Pós - Graduação em Letras/Linguística (UFSC) Resumo Este trabalho articula alguns conceitos fundamentais da Arqueo- logia foucaultiana, da Teoria das Mul- tiplicidades de DELEUZE com a esco- la francesa da Análise do Discurso. 0 objetivo da convergência entre es- tas três perspectivas teóricas é tra- zer contribuições para o aprofunda- mento das discussões acerca dos pro- cessos de subjetivação e assujeita- mento na produção discursiva. Palavras-chave: arqueologia; mul- tiplicidade; análise do discurso; FOU- CAULT; DELEUZE. Abstract This paper articulates some fundamental conceptions of ar- chaeology (FOUCAULT) and Mul- tiplicity's Theory (DELEUZE) with the French school of Discourse Analysis. The aim in the conver- gence of these three theoretical perspectives is to promote a deeper discussion about the subject- forming process in the discursive production. Keywords: archaeology; multipli- city's; discourse analysis, FOU- CAULT; DELEUZE. ' Multiplicity's in a translingiiistic archaeology.

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Artigo sobre análise do discurso.

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  • Revista de Cincias Humanas, Florianpolis, n.25, p. 117-132, abril de 1999

    Multiplicidades, arqueologia e anlise do discurso'

    Rogrio Christofoletti Curso de Ps-Graduao em Letras/Lingustica (UFSC)

    Resumo

    Este trabalho articula alguns conceitos fundamentais da Arqueo-logia foucaultiana, da Teoria das Mul-tiplicidades de DELEUZE com a esco-la francesa da Anlise do Discurso. 0 objetivo da convergncia entre es-tas trs perspectivas tericas tra-zer contribuies para o aprofunda-mento das discusses acerca dos pro-cessos de subjetivao e assujeita-mento na produo discursiva.

    Palavras-chave: arqueologia; mul-tiplicidade; anlise do discurso; FOU-CAULT; DELEUZE.

    Abstract

    This paper articulates some fundamental conceptions of ar-chaeology (FOUCAULT) and Mul-tiplicity's Theory (DELEUZE) with the French school of Discourse Analysis. The aim in the conver-gence of these three theoretical perspectives is to promote a deeper discussion about the subject-forming process in the discursive production.

    Keywords: archaeology; multipli-city's; discourse analysis, FOU-CAULT; DELEUZE.

    ' Multiplicity's in a translingiiistic archaeology.

  • 1 1 8 -- Multiplicidades, arqueologia e anlise do discurso

    Introduo

    Nesse instante gigantesco, vi milhes de atos agradveis ou atrozes; nenhum me assombrou mais que o fato de todos

    ocuparem o mesmo ponto, sem superposio e sem transparncia. 0 que os meus olhos viram foi simultneo; o que transcreverei sera sucessivo,

    pois a linguagem o .

    (Jorge Luis Borges, 0 Aleph)

    As trs dimenses tericas presentes neste estudo surgiram na dca da de 60, na Frana. Em 1966, em seu livro sobre BERGSON,2

    GILLES DELEUZE inaugura o uso que

    far do termo "multiplicidade". Tres anos

    mais tarde, Michel Foucault lana A Arqueologia do Saber, trazendo definies acerca dos enunciados e dos

    domnios discursivos. Tambm

    de 1969 Anlise Automtica do Discurso, de Michel Pcheux, urna

    das bases fundadoras' da corrente de estudos que vai ser conhecida corno escola francesa de

    Anlise do Discurso.

    A emergncia histrica comum no traduz coincidncia ou mero acaso. Na verdade, as discusses que DELEUZE e FOUCAULT levavam na Filosofia, cada um a seu modo, divergiam das sediadas na LingUistica, mas desembocaram num caminho comum: o discurso, como elemento de prtica

    poltica (como defende PCHEUX), como terreno de manifes-

    tao das relaes de poder (segundo FOUCAULT) ou como conjunto de materialidades mltiplas (conforme DELEUZE).

    E este ponto comum que vamos trabalhar aqui, cruzando fronteiras e invadindo espaos, na tentativa de reconhecer mais afinidades conceituais nessas trs dimenses tericas. Com

    isso, acredito, auxilia-mos no fortalecimento e disseminao da arqueologia como metodolo-gia,

    contribumos para o desenvolvimento da

    Anlise do Discurso e aju-

    damos no entendimento da atmosfera mltipla dessa articulao terica, o que pode trazer

    subsdios para posteriores discusses acerca dos pro-

    cessos de engendramento de sujeitos nos discursos. Le Bergsonisme (Editions P.U.F.) 0 outro texto fundador, segundo MALDIDIER (1994:15) seria Lexicologia e Anlise de Enunciado, discurso de encerramento de Jean Dubois no Colquio de Lexicologia

    Poltica de Saint Cloud (abril de 1968).

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    Anlise do discurso

    A Anlise do Discurso trances& urna abordagem lingbistica que se serve tambm de noes extra-linguisticas, advindas principalmente do materialismo histrico, da psicanlise, e de uma teoria das ideologias. Surgida num momento em que alguns lingUistas apontavam para a ne-cessidade de se levar em conta o contexto histrico e as condies em que eram produzidos os discursos, a Anlise do Discurso (doravante AD) se apresentou como uma alternativa de estudo do lingstico de maneira descentrada do ncleo rgido da Linguistica, mais preocupado com o cdigo e suas leis.

    PCHEUX, no trabalho clssico An lise Automtica do Discur-so, 5 percorre os diversos

    mtodos de anlise de texto (da contagem das palavras ao conteudismo, passando pelas categorias temticas), apon-tando para a importncia do plano social no discurso - seja como fala, como enunciado ou texto. E necessrio notar que o objeto da AD que PCHEUX prope o discurso e no a lingua, como at ento se trabalha-va na LingUistica. E a noo de discurso - efeito de sentido entre locu-tores - vai deslocar a dicotomia lingua-fala, apresentada por SAUSSURE na fundao da Lingii istica 6 . Para SAUSSURE, a lingua um sistema de convenes necessrias para a comunicao e que apresenta duas di-menses: um produto social (a lingua) e sua parte individual na lingua-gem (a fala). Assim, em situaes cotidianas de comunicao, o falante opera com relativa autonomia sobre o cdigo formal que a lingua, sub-metendo-se s suas regras. A AD rompe com essa dualidade lingua/ fala, ao afirmar que o sujeito no uno, que a relao mundo-linguagem no direta, e que o sentido no estvel nem imutvel.

    Para lanar tais postulados, a AD vai buscar na psicanlise lacaniana a noo de sujeito fragmentado, no materialismo histrico a relevncia das condies de produo discursiva, e ainda o conceito de ideologia (num aporte althusseriano), entre outros conceitos. A noo foucaultiana defor-

    A distino se faz necessria por existirem diversos outros estudos lingsticos que tam-bm se autodenominam como anlise do discurso. Podem ser citados os trabalhos ligados ao distribucionalismo (a exemplo de Z. Harris), os ligados oralidade, numa perspectiva anglo-saxnica, e outros, como a Anlise de Discurso Politico empreendida por ZIMMERMANN, relatada por FANTINATI (1990).

    ' Cuja verso brasileira pode ser encontrada em Por uma anlise automtica do discurso ( UN1CAMP).

    6 De maneira formal, a Lingstica como cincia surge em 1916, com a publicao do Cows de Linguistique Generale, de Ferdinand de Saussure.

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    inao discursiva, mais tardiamente, tambm absorvida. Dessa forma, para os analistas de discurso, o sujeito no um ser transcendental, nem tampouco entidade

    nica de subjetividade, mas

    uma forma-sujeito,

    uma funo vazia a ser exercida; os discursos nunca so desprovidos de ideo-logia, e so as condies scio-histricas que determinam a emergncia dos enunciados. Fato que, para a AD, s refora a relao constitutiva do discurso e sua exterioridade, e desmitifica a idia de que a lingua trans-parente e os sentidos mantm uma relao

    unvoca com as palavras.

    Prxima de uma hermenutica, e de uma semntica,

    a AD uma abordagem mais preocupada no com a fixao de urn significado para um discurso ou com a

    anlise formal linguistica desse discurso. A AD vai

    se preocupar com o funcionamento da lingua: como os sentidos se fazem entre os interlocutores, quais so as estratgias de montagem dos discur-sos, e como os discursos desenham os perfis dos sujeitos discursivos. Uma teoria critica da linguagem, a AD "trata

    dos processos

    de constituio do fenmeno lingustico,

    enquanto a Linguistica visa oproduto dessa consti-tuio", lembra ORLANDI (1986:114). A AD 6,

    ento, a

    anlise dos efeitos

    de sentido que se engendram entre os sujeitos dos discursos. Urn exemplo pode ilustrar essas explicaes de maneira

    esclarecedora. Tomem-se os seguintes enunciados' do ento presidente da repblica Joo Figueiredo ao longo de 1984, nas vsperas de sua su-cesso presidencial:

    (1) Quem ganhar a conveno ser o candidato do partido e ter o meu apoio.

    (2) 0 Tancredo um nome confidvel e aceitvel para a conciliao.

    (3) No tenho nada a opor candidatura Paulo Maluf.

    Diante de tais fragmentos, um analista de discurso iria se deter sobre a superfcie linguistica em busca de marcas formais que auxiliassem seu exame. Tais marcas podem ser pronomes, figuras de linguagem, constru-96es sintticas e expresses, at mesmo recursos de pontuao. Todas essas pistas lingsticas se somariam

    s informaes coletadas sobre as condies de produo (quando, em que circunstncias, para quem...) que possibilitaram que o ex-presidente enunciasse daquela forma. So levadas em considerao ainda contradies, jogos politicos, desditos, ambigida-

    ' Fragmentos recolhidos em edies da revista Veja no ano de 1984. As formulaes fazem parte do corpus da dissertao de mestrado 0 discurso da Transio, a ser apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Letras e LingUistica da UFSC.

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    des, opacidades, en fim, todas as pistas scio-histricas que contribussem

    de alguma forma para engendrar sujeitos de discurso. E o plural em sujei-tos de discurso na frase anterior no apenas um recurso de generaliza-o, j que a polifonia discursiva mais do que evidente em nossos exem-plos. Em outros termos, e de acordo corn a AD, os sujeitos da enunciao em (1), (2) e (3) no ocupam a mesma posio, e parece ter havido urna clivagem no sujeito, um deslocamento de postos. Como isto se d, quais as artimanhas linguisticas para operar dessa forma, e o que isso acarreta so as razes que movem o analista do discurso.

    Arqueologia foucaultiana

    "Meu objetivo [nos ltimos vinte anos] foi criar urna histria dos dife-rentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos", esclarece FOUCAULT num tom quase confessional. 8

    E em A Arqueologia do Saber, tal preocupao tambm se apresenta, como possvel

    observar nos ttulos

    dos captulos e sees: unidades do discurso, formaes discursivas, enunciados, arquivos e funes enunciativas.

    Para FONSECA (1995:14 - 17), o que FOUCAULT promove nesta ar-queologia uma verdadeira "desconstituio da noo de sujeito como um dado preexistente, como uma essncia perene e portadora de um sentido, presente indefinidamente na histria". E o objetivo que norteia FOUCAULT uma espcie de "libertao da histria do pensamento de sua sujeio transcendental". Essa operao estaria assentada na cren-a de que as modalidades enunciativas no seriam

    ligadas a urna unida-

    de de sujeito, mas sim se constituiriam numa prova de sua disperso.

    Assim, o sujeito do enunciado no coincide corn o autor de urna dada formulao, 9 mas o lugar do sujeito urna funo vazia, posio que varia ao longo de uma estruturao de espaos. Dessa forma ainda, "descrever uma formulao enquanto enunciado", para FOUCAULT,

    "no

    consiste em analisar as relaes entre um autor e aquilo que ele disse (ou quis dizer ou disse sem querer)", mas "determinar qual a posio que pode e deve ocupar todo

    indivduo para nela ser o sujeito". Como da metodologia foucaultiana explicar os objetos a partir de

    suas prticas [cf. TRONCA (1987:9)], FOUCAULT se volta para as prticas

    FOUCAULT (1995: 231). 9 0 sujeito dividido no seu interior e em relao aos outros (FOUCAULT; 1995:231).

  • 122 Multiplicidades, arqueologia e anlise do discurso

    que vo constituir os sujeitos, sendo a discursiva apenas mais uma delas. Noes

    como enunciado, discurso e arquivo vo ento merecer

    conceituaes mais detalhadas e cuidadosas. Enunciado, por exemplo, difere da frase, da proposio, do ato de

    fala. No uma estrutura, mas uma "funo que cruza urn domnio de estruturas e de unidades

    possveis e que os faz aparecer no tempo e no espao com contedos concretos"(FOUCAULT, 1971:105 - 115). 0 enunciado pertence a uma formao discursiva, que a instncia promotora de sua regularidade. E sendo elemento de uma dada formao discursiva, o enun-ciado deve obedecer regras de formao, que, como o nome j indica, funcionam corno as normas de sua condio de existncia. 0 enunciado tambm a unidade minima discursiva, e por conseqncia, um conjunto de enunciados soma um discurso. Ciente de que tais explicaes podem sus-citar equvocos tericos, FOUCAULT adverte (idem: 61-62):

    O discurso, assim Concebido, no a manifestao majestosamente desenvolvida de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: , ao contrrio, um conjunto em que podem ser determinadas a disperso do sujeito e sua descontinuidade em relao a si mesmo. um

    espao de exterioridade em que se desenvolve uma rede

    de lugares distintos.

    Um conjunto de regras histricas, determinadas espao-temporal-mente e annimas definem as condies de exerccio

    da funo enunciativa, e para o exerccio de tal funo so necessrios:

    a) um referencial, que mais um principio de diferenciao do que propriamente um fato ou objeto; b) um sujeito, que uma posio, uma funo a ser ocupada; c) um campo associado, que diferente de um contexto ou de uma situao/conjun-tura, e funciona mais como um terreno de coexistncia de outros enunciados; d) uma materialidade, que no apenas matria ou suporte de articulao

    lingus-tica,

    mas possibilidades de usos. "Ela constitutiva do prprio

    enunciado: o enunciado precisa ter uma substncia, um suporte, um lugar e uma data. Quando esses requisitos se modificam, ele prprio muda de identidade" (ibidem: 1 1 6).

    FOUCAULT, ento, desenha as regras que fazem de urn enunciado,

    reformula o conceito de arquive - agora pensado corno "sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares" (1971:150) -, abandonando a noo acumulativa (sorna de textos)

    empre - 10

    essa razo, DELEUZE (s/d) vai anunciar a chegada de -um novo arquivista na cidade".

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    gada na maioria das vezes pelos historiadores. Assim, o arquivo ganha novos contornos e se transforma no jogo das dizibilidades do sistema da discursividade.

    Corno 'lei do que pode ser dito', corno 'sistema que rege o aparecimento dos enunciados enquanto acontecimentos singulares o arquivo, diz FOUCAULT 'define um nvel

    particular', qual seja, o de uma 'prtica que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como outros tantos acontecimentos regulares, como outras tantas coisas oferecidas ao tratamento e a manipulao'. Diferentemente da lingua (que 'define o sistema de construo das frases possveis) e do corpus (que 'recolhe passivamente as palavras pronunciadas), o arquivo, entendido corno 'sistema geral da formao e da transformao dos enunciados', aquilo que faz aparecer as regras de uma

    prtica' na qual os enunciados podem `ao

    mesmo tempo subsistir e modificar-se regularmente' (ORLANDI: 1987:28).

    Diante de todos esses dados lanados, o mesmo ORLANDI quem frisa no papel de uma teoria-metodologia como essa arqueologia criada por FOUCAULT: ela no uma hermenutica, nem mesmo

    anlise simbli-ca ou causal. Bem mais fundo, a arqueologia quer determinar formas es-pecificas de articulao, no dizer foucaultiano, entre as formaes discursivas e os

    domnios no-discursivos. Mesmo porque o que interessa a FOUCAULT no o discurso em si, mas as condies de

    possibilidade do

    discurso, cuja configurao resulta na noo de formao discursiva. Ela [a arqueologia] quer situar-se num 'outro nvel', aquele no qual ela consiga mostrar 'como e a que titulo' certo sistema no discursivo, certa 'prtica politi-ca', por exemplo, faz pane das condies de emergncia, de insero e de funcio-namento de determinada formao discursiva. Em contrapartida, com a explo-rao desse nvel pela anlise arqueolgica,

    podero ser 'percebidos, situados e

    determinados' os fenmenos privilegiados pelas outras anlises, as simbolizaes, os efeitos" (idem: 32).''

    A arqueologia quer descobrir o terreno de existncia/funcionamento das prticas discursivas, suas maquinaes, tarefa que exige ateno para

    uma disciplinahistrica, j que o objetivo encontrar todo um si ste-ma de instituies, de relaes e processos sobre os quais pode se arti-cular urna dada formao discursiva. Por essa razo, TRONCA (1987:8) " Uma declarao do prprio

    FOUCAULT refora esse pargrafo:

    Sem dvida, os mecanismos de sujeio no podem ser estudados fora de sua relao com os mecanismos de explorao e domina-gdo. Porm, no constituem apenas o 'terminal' de mecanismos mais fundamentais. Eles mantm relaes complexas circulares COM outras formas' (1995: 236).

  • 124 -- Multiplicidades, arqueologia e anlise do discurso

    afirma que a histria vai servir a FOUCAULT no mais para narrar os fatos, mas como suporte de demonstrao das prticas engendradoras dos objetos de anlise

    escolhidos. FOUCAULT adverte que o ponto nevrlgico simultaneamente

    discernir os acontecimentos, "diferenciar as redes [discursivas] e os ni-veis a que pertencem e reconstituir os fios que ligam e que fazem corn que se engendrem, uns a partir dos outros" (1979:5). Por isso, ele rechaa as anlises

    de outro tipo que passam pelo terreno do simblico e pelas estruturas significantes. A opo foucaultiana vai ser operar com urna anlise

    que faa urna genealogia das relaes de fora, e a referncia que se precisa ter para tal oficio no modelo lingilistico, mas o da guerra, do jogo e do confronto de foras.

    Multiplicidade deleuzeana

    0 conceito de multiplicidade em DELEUZE remonta ao casamento de noes vindas da cincia (via RIEMANN) e da filosofia (atravs de BERGSON), e o prprio DELEUZE quem aponta para essas raizes conceituais. Dessa forma, e nessa forma, o mltiplo deixa de ser adjetivo - que qualifica o urn - para ganhar corpo corno substantivo (e geralmente ser usado no plural) para tambm receber substancialidade. A partir da bifurcao da

    multiplicidade bergsoniana - multiplicidade de termos jus-tapostos no espao e multiplicidade dos estados que se fundem na

    dura-co -, e do apoio da

    fsica relativista de Reimann, DELEUZE parte para urna terminologia prpria: chama de virtual, a multiplicidade marcada pelo tempo universal, e de atual, a multiplicidade invadida por vrios tem-pos, sendo que cada tempo destes uma partcula da durao. Somadas as duas noes, tem-se um sistema-multiplicidade: 2

    Mais pragmaticamente, poder-se-ia avanar na conceituao, dei-xando de lado os microdesdobramentos internos da teoria e apontar para o conceito de multiplicidade como um sistema de Werenas. A atitude ga-nha ressonncia quando se traz A. tona um pouco da obra que DELEUZE comungou com GUATTARI, e que bem mais prxima historicamente do que os estgios iniciais. Assim, pode-se recuperar "multiplicidades" como

    12 CARDOSO JNIOR (1996: 151-157) lembra que esta discusso acerca da multiplicidade no livro de DELEUZE sobre BERGSON

    est mais ligada problemtica da durao, mas DELEUZE ainda

    avanaria na busca conceitual em livros como Diferena e repetio e Lgica do sentido, onde a questo se expande e adquire alcance ontolgico "ao mesmo tempo em que o conceito de multipli-cidade ganha uma definio isenta de dualismos."

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    sua forma de realizao,

    nas palavras de DELEUZE-GUATTARI: o rizoma. Metfora elaborada habilmente contra o sistema arbreo, radicu lar e hie-rrquico, o rizoma uma espcie de raiz que no se expande para baixo reproduzindo o movimento do caule, de forma verticalizante, mas se esten-de em rede, em teias de sindpses, dando a materialidade ideal do que vm a ser as multiplicidades.n Urn rizoma feito de plat/6s, que nada mais so do que multiplicidades conectveis "com outras hastes

    subterrneas su-perficiais de maneira a formar e estender um rizoma" (1995:33).

    No s a metfora, como o projeto como um todo, levado to

    a srio que Mil Plats

    ser construido de maneira mltipla

    tambm, COMO

    frisa o prefcio de sua edio italiana: o livro "6 urna teoria das multipli-cidades por ela mesma, no ponto em que o mltiplo passa ao estado de substantivo". E prossegue:

    As multiplicidades so a prpria realidade, e no supem nenhuma unidade, no entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito. As subjetivaes, as totalizaes, as unificaes so, ao contrrio, processos que se produzem e aparecem nas multiplicidades

    (1995:8).

    No primeiro texto do titulo - que no Brasil foi editado "multiplicita-riamente" em cinco volumes-, RIZOMA, DELEUZE & GUATTARI partem para uma senda que j havia sido sinalizada por FOUCAULT, o caminho do funcionamento. No se deve perguntar o que um livro quer dizer, mas "com o que ele funciona (...), em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua". As multiplicidades no so estruturas, mas pon-tos de encontro, plats que convergem, divergem, se cruzam, estabele-cem relaes. Nos rizomas, no h pontos, h linhas apenas. E como o rizoma a forma de

    realizao das multiplicidades, necessrio mostrar sob quais

    princpios ele existe. So eles:

    a) e b) princpios de conexo e de heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve s-lo; c) principio de multiplicidade: somente quando o mltiplo efetivamente tratado como

    substantivo, multiplicidade, que ele no tem mais nenhuma relao coin o uno como sujeito ou como objeto; d) principio de ruptura a-signficante: um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e tambm

    retoma segundo uma ou outra de suas linhas e

    Na natureza, por exemplo, os cogumelos se apoiam em teias rizomaticas, no possuindo raizes convencionais. 0 sistema botnico aproveitado por DELEUZE e GUATTARI para a montagem da

    metfora desestruturante.

  • 126 Multiplicidades, arqueologia e anlise do discurso

    segundo outras linhas; e) e f) princpios de cartografia e de decalcomania: um rizoma no pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo (idem: 15 -21)

    Esses princpios do as linhas gerais de corno se tece o rizoma, no corno decalque, como fazem

    questo de distinguir DELEUZE & GUATTA-RI, mas como mapa, como cartografia mesmo de mltiplos, de diferen-as." E por ser esse complexo de multiplicidades que o rizoma possui linhas de segmentaridade, que lhe permitem ser recortado, significado, conectado, mas h tambm linhas de fuga, que lhe possibilitam ser desterritorializado. Ele opera por

    expanso, por captura, vai se constru-

    indo, se alterando. 0 rizoma - como forma de realizao das multiplici-dades - confronta regimes signicos diversos, inclusive no-signicos; no vai ao Uno nem ao mltiplo, no feito de unidades, mas de dimenses, plat6s,' 5 "ndo tem comeo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda"(32); no comea nem finaliza, mas est no entre-meio, por entre as coisas: Estar entre no localiza um

    domnio, mas

    condiciona um movimento perpendicular, transversal - numa terminolo-gia mais guattariana. Por fim, se o modelo arbreo hierarquia e filiao, "o rizoma aliana" (37).

    particularmente caracterstica

    de DELEUZE essa metodologia de trabalho sobre a forma, sobre a imagem do objeto. MACHADO (1990:9) qualifica a trajetria deleuzeana mais como uma geografia do que urna histria do pensamento. No se faz ali uma histria linear e progressiva, mas uma constituio de espaos, de modo que para essa geografia, o pensamento, do ponto de vista do conteildo e de sua prpria forma, "em vez de constituir sistemas fechados,

    pressupe eixos e orientaes pelos

    quais se desenvolve". Assim, segue Machado na definio deleuzeana de enunciado, segundo a qual uma funo que "cruza as diversas uni-dades lingUisticas (...), traando uma diagonal, uma transversal"; "uma funo primitiva annima, uma multiplicidade topolgica que atravessa os diversos

    nveis" (185).

    Ento, um enunciado ou um grupo deles, ou ainda uma formao discursiva, so multiplicidades. E mais especificamente, os enunciados ca-

    14 por essa razo que "as multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de

    fuga ou desterritorializao segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem As outras" (1995:17).

    '' Em entrevista ao Lib ration,

    na ocasio em que lanava Mil Plats, Deleuze define: "0 que Guattari

    e eu chamamos de rizoma precisamente um caso de sistema aberto" (DELEUZE: 1992, 45).

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    ractersticos de FOUCAULT so enunciados diagramticos, porque eles fa-zem emergir enunciados dominantes de um dado tempo em estreita relao com o que produzido neste mesmo tempo. Para desvendar esses diagra-mas,

    imprescindvel estar inserido num regime enunciativo distinto. Nas

    palavras econmicas de ORLANDI (1987:41):

    "0 novo arquivista vem a ser um novo cartgrafo por fora de urn diagramatismo que tematiza o proble-ma de multiplicidades distintas estarem em pressuposio reciproca." 16

    Quando os plats

    se cruzam

    Muito provavelmente, a articulao entre as trs dimenses teri-cas - a

    Anlise do Discurso, a Arqueologia foucaultiana e a Teoria

    deleuzeana das Multiplicidades que anunciei na introduo deste arti-go, j se tenha desenhado no horizonte de entendimento do leitor. No entanto, a titulo de

    concluso, quero alinhavar alguns pontos que mere-

    cem destaque e, em certos momentos, repetio. A comear pelas afinidades tericas dos autores aqui citados, que

    se deram em mais de um momento em suas trajetrias. DELEUZE j disse, e na verdade ao prprio FOUCAULT (1979:69), que "as relaes teoria-prtica so muito mais parciais e fragmentrias", e anos mais tar-de, que a arqueologia foucaultiana era "o passo mais decisivo de urna teoria-prtica das mu ltipl icidades" (s/d: 34). FOUCAULT, por sua vez, j afirmara que

    "talvez um dia, o sculo seja deleuziano"(1997:46). Indepen-dente de qualquer troca de elogios intelectuais ou de algum deslumbre de amizade, a afinidade entre ambos - e tambm de GUATTARI - se d

    numa perspectiva essencialmente conceitual. Em entrevista sobre o Ian-amento com GUATTARI de 0 Anti-tdipo, DELEUZE (1992:34) aponta muito brevemente o que os diferencia de FOUCAULT:

    Nosso mtodo no o mesmo, mas temos a impresso de que nos encontramos com ele em diversos pontos, que nos parecem essenciais, caminhos que ele .foi o primeiro a tragar.

    E aqui, temos o ponto de articulao entre a empresa foucaultiana, os mil plats de DELEUZE & GUATTARI e a AD, pois no se trata de serem as

    trs a mesma coisa. Seus mtodos no so coincidentes e as trs pers-

    Evidentemente, aqui, as remisses so aos termos usados por DELEUZE em FOUCAULT, livro que publica aps a morte do amigo-filsofo.

  • 128 Multiplicidades, arqueologia e anlise do discurso

    pectivas no se reduzem a si mesmas atendendo a uma sinonimia reduto-ra. Enquanto DELEUZE & GUATTARI trabalham numa direo mais metafisica, com tangentes esquizoanaliticas, FOUCAULT tambm conduz suas pesquisas por um vies mais filosfico mas diferenciado. A

    Anlise do

    Discurso, por sua vez, apenas bebe na fonte da filosofia alguns conceitos que possam contribuir para sua empreitada

    lingustica. Enquanto DELEUZE & GUATTARI desenham novas cartografias para os fenmenos, FOUCAULT persegue o entendimento dos processos de subjetivao e assujeitamento e a AD busca a

    anlise da superficie linguistico-histrica dos discursos. Sao devires distintos, com metodologias diferenciadas, mas com pontos de convergncia e interligao. Como os

    plats. Como as multiplicidades.

    E porque no so iguais, em Mil Plats, as diferenas entre as trajetrias retornam: "0 rizoma uma antigenealogia" (1995:20). Mas no que contradissesse tudo o que j havia sido posto, mas porque o rizoma a forma de realizao das multiplicidades, no se configura como uma estrutura, mas uma rede de dimenses, no se preocupa corn a escanso genealgica, com os estratos das relaes de poder que FOU-CAULT busca''. No h contradio, afinal o rizoma um mapa das multiplicidades, enquanto que a geneaologia e

    tambm a arqueologia so

    metodologias operatrias para a prospeo das relaes de poder nos saberes e nos discursos. Mas apesar disso, o leitor no se deve iludir achando que FOUCAULT esteja seduzido por um fazer estruturalista. FOUCAUL'T vai atrs das prticas "constituidoras" de sujeio, dos mo-dos de subjetivao, das formas de assujeitamento, do funcionamento e no da maquinaria estrutural. Segundo ele (1996:30), alguns de seus con-temporneos tm trajetrias paralelas a sua:

    Nem DELEUZE, nem LYOTARD, nem GUATTARI, nem eu nunca fazemos anli-

    se de estrutura, no somos absolutamente estruturalistas

    (..)fazemos pesquisas

    de dinastia (..) procuramos fazer aparecer (..) as relaes de poder.

    este tipo de compromisso politico-intelectual que tambm aglutina as

    trs dimenses tericas corn as quais trabalho aqui. Se por sua vez, as preocupaes foucaultianas so com a totalizao e com a individualiza-

    isto que eu chamaria de genealogia, isto , uma forma de histria que d conta da

    constituio dos saberes, dos discursos, dos domnios

    de objeto, etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relao ao campo de acontecimentos, seja perse-guindo sua identidade vazia ao longo da histria (1979:7).

  • Revista de Cincias Humanas, Florianpolis, n.25, p. 117-132, abril de 1999 129

    o extremada, DELEUZE & GUATTARI se digladiam contra a repetio, apontando para a diferena, para o mltiplo como uma saidai 8 . De urna outra forma, a

    Anlise do Discurso (AD) por ser um espao critico den-

    tro dos estudos da linguagem, e por se constituir na contradio da rela-o entre outras disciplinas (cf. ORLANDI: 1996, 23), instaura problemti-cas na

    Lingstica, quando traz a exterioridade do discurso para dentro

    da pesquisa da linguagem.

    Ao importar, por exemplo, a noo foucaulti-ana de formao discursiva, a AD traz para dentro do terreno linguistic() a exterioridade constitutiva do discurso, desestabilizando a noo de trans-parncia da linguagem e fazendo com que os usurios dessa mesma linguagem

    atentem para as condies de produo discursiva que permi-tem (e determinam) seu uso:

    Se a lingstica deixa de fora a exterioridade (que o objeto das cincias sociais) e as cincias sociais deixam para fora a linguagem (que o objeto da

    lingstica.), a AD coloca em questionamento justamente essa relao excludente, transfbr-mando, por isso mesmo, a prpria noo de linguagem (em sua autonomia abso-luta) e a de exterioridade

    (histrico-emprica) (ORLANDI: 1996, 26).

    O compromisso terico-politico citado anteriormente

    tambm tem

    sua edio na AD, principalmente no fato de possibilitar a emergncia de novos sentidos nos enunciados. Quer dizer, s de o sentido ter sua univocidade questionada j abre espao para novas significaes, dife-rentes articulaes, outros efeitos de sentido. E mesmo a preocupao de se voltar alvo sobre as formaes discursivas, na tentativa de mapear os movimentos de funcionamento discursivo (e no pensar foucaultiano, desvendar os processos de assujeitamento e modos de subjetivao) tam-bm uma amostra desse compromisso tico. SILVA (1997:747) enxerga "na deteco e na potencializao das resistncias e dos desafios ao impulso totalizante do poder" o lugar e a

    razo de ser da AD. SOUZA

    (1997:12) aponta ainda a "estreita relao" que a AD mantm com FOU-CAULT, o que me leva a pensar, por extenso, que ambas as dimenses tericas compartilham pontos desse compromisso tico.

    Se formos encarar a questo

    por este prisma, podemos tranqila-

    mente considerar a AD como uma arqueologia de enfoque translingiiistico.

    No se quer dizer que a arqueologia iniciada por FOUCAULT no seja

    18 "t isso que nos interessa: a esquize

    revolucionria por oposio ao significante desptico", respondem em unssono em entrevista a L'Arc, em 1972 (DELEUZE, 1992:36).

  • 130 Multiplicidades, arqueologia e anlise do discurso

    "trans", muito pelo contrrio. Mas esta AD constitutivamente trans-cendente do campo lingUistico, sem ao menos se eximir de tal tarefa. PCHEUX & FUCHS (1990:188) atentam para o fato de que apesar de o objeto de estudo da AD - o discurso - ser de natureza scio-histrica, o lingUistico se apresenta como pressuposto, e por isso a prtica de

    anlise lingilistica imprescindvel,

    embora de forma isolada se demonstre insu-ficiente. Na comparao entre as duas arqueologias, a superposio de suas definies no causaria maiores transtornos guardadas as devidas propores de cada urna delas. 19

    Em outros termos: a AD, como a arqueologia foucaultiana, se de-brua sobre os enunciados [que so multiplicidades, conforme DELEUZE (s/d:33)] na tentativa de aclarar os mecanismos de seus funcionamentos. Urna das diferenas mais notveis que distingue a primeira da segunda o fato de trabalhar tambm sobre o lingUistico, operando categorias sin-tticas e outros elementos do ncleo

    rgido da lingua. E claro que em

    operaes como essa, a busca da subjetividade e dos modos de sua constituio so caminhos naturais e incontornveis. Os pontos de dis-persdo de enunciados, as singularidades discursivas, os agenciamentos coletivos de enunciao, as transversalidades, enfim, os substantivos maltiplos so estratos de uma escavao

    ilimitada.

    As trs perspectivas tericas aqui revisitadas tm outro ponto de articulao: o sujeito. Enquanto FOUCAULT busca ao longo de sua obra os processos de assujeitamento e subjetivao, responsveis pela inser-o de um sujeito em determinada situao (o preenchimento desta po-sio vazia, como est na Arqueologia do Saber), a

    Anlise do Discur-

    so tambm se preocupa corn este trao de identidade. 0 conceitual te-rico da AD, atendendo a uma orientao lacaniana, entende que o sujei-to no centrado e sequer fonte dos sentidos que enuncia. No final das contas, pode-se considerar o sujeito no plural, como uma dessas multipli-cidades a que DELEUZE apontava em seus escritos. 0 sujeito acaba se revelando mais uma encruzilhada dos

    plats. A esquina terica entre as trs perspectivas torna o resultado

    desta convergncia no apenas a soma de trs

    vertentes diferenciadas e muito complementares. A absoro pelos analistas do discurso da noo foucaultiana de formao discursiva conceito que a AD no

    ' 9 A definio de PCHEUX (1990: 60) ajuda na comparao com a arqueologia foucaultiana: "A

    anlise do

    discurso, tal como ela se desenvolve atualmente (...) se d precisamente como objeto explicitar e descrever

    montagens, arranjos scio-histricos de constelaes

    de enunciados."

  • Revista de Cincias

    Humanas, Florianpolis, n.25, p. 117-132, abril de 1999 131

    pode mais prescindir-, e a utilizao da Multiplicidade deleuzeana para a compreenso

    de tpicos como enunciado, discurso e mesmo formao discursiva do sustentao conceitual

    s trilhas analticas da AD. Isso

    porque a articulao entre FOUCAULT e DELEUZE traz AD elementos no tab prprios aos estudos lingsticos, devido as suas atuais orientaes de foco. 0 entendimento formal do que vm a ser os discursos (teias rizomticas e, portanto, mltiplas), como se formam estes discursos (no por meros enunciados, mas por multiplicidades) e de que forma eles se relacionam (nas secantes dos rizomas), tudo isso pode se valer de heranas de fora da Linguistica, de uma outra ordem do pensamento. Eis pelo menos um motivo que justi fica esta convergncia terica.

    Para os que se localizam na AD, algumas das direes apontadas por DELEUZE e FOUCAULT servem de luz de farol para novas pesquisas 110 campo terico, respostas que possivelmente ainda no foram suficientemente buscadas. FOUCAULT preocupou -se com os aspectos no-linguisticos/extra-discursivos das prticas discursivas, DELEUZE centrava seu foco no jogo das diferenas, na oposio ao modelo arborescente chomskiano hoje quase um paradigma totalitrio e total izante na LingUistica. A articulao deste olhar para fora (FOUCAULT) com este olhar para si e para os lados, perdendo de vista a

    extenso e os limites (DELEUZE), do ao

    analista de discurso uma

    amplido maior no

    trato de seu objeto, no encontro de suas questes. No outro extremo, para os foucaultianos, tomar contato com a AD

    vai permitir uma retomada de uma trilha fechada e esquecida pelo prprio FOUCAULT em seus escritos: a materialidade

    lingustica, superfcie da prtica

    discursiva que ainda reserva muitos elementos preciosos para o trabalho arqueolgico. J para os deleuzeanos, a interface AD-FOUCAULT positiva porque possibilita enxergar a interpretao de enunciados enquanto uma prtica de leitura criativa de mundos, de realidades, de significados, como a prtica-processo de criao de conceitos, devir do filsofo.

    Se de fato a teoria no totaliza,

    mas se multiplica e multiplica, con-forme pensa DELEUZE, "6 preciso continuar as sries, atravessar os ni-veis, transpor os

    limiares" e "formar uma transversal, uma diagonal m-vel onde deve mover-se o arquivista arquelogo". 20

    Quem sabe assim, no cruzamento dos

    plats, as multiplicidades nos paream

    to mais estd-veis e seguras quanto nos so perturbadoras.

    20 DELEUZE (s/d: 42).

  • 132 Multiplicidades, arqueologia e anlise do discurso

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