Música e Poder no trovadorismo ibérico do século XIII. BARROS, José D'Assunção. Temas e...

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TEMAS & MATIZES - Nº 10 - SEGUNDO SEMESTRE DE 2006 37 RESUMO: O objeto deste artigo é discutir as relações entre música, poesia e poder, examinando as tensões sociais das sociedades medievais ibéricas através da prática musical e poesia dos trovadores galego-portugueses. Depois de uma discussão inicial sobre as possibilidades de compreender as relações de poder na música medieval ibérica, são apresentados os modos de circulação e disseminação da música trovadoresca nos ambientes palacianos das cortes medievais ibéricas. O principal objetivo do texto é discutir as relações sociais envolvidas nas cantigas trovadorescas. PALAVRAS-CHAVE: Música e poder; Trovadores medievais; Tensões sociais. ABSTRACT: The subject of this article is to discuss the relations between music, poetry and power, examining the social tensions of the medieval iberian society among the troubadours musical practice and poetry. After an initial discussion about the possibilities of understands the relations of power in the medieval music and poetry, it is presented the circulation and dissemination of the troubadour’s musical poetry in the ambient of the medieval iberian courts. The principal objective of the text is to discuss the social relations involved in the troubadour’s chants. KEYWORDS: Music and Power; Medieval troubadours; Socials tensions. MÚSICA E PODER NO TROVADORISMO IBÉRICO DO SÉCULO XIII José D’Assunção Barros MÚSICA E PODER T E M A S & M A T I Z E S

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Quem eram os trovadores medievais, e como estes poetas-cantores vivenciaram as relações entre Música e Poder na Idade Média? Como esta relação se deu especificamente entre os trovadores da Península Ibérica, no período medieval? Que crítica aos poderes constituídos, à Igreja, à Realeza e à Nobreza Feudal, podia ser encaminhada pelos trovadores a partir de sua poesia satírica? Neste artigo, publicado na revista Temas & Matizes, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, José D'Assunção Barros sintetiza algumas das idéias que foram desenvolvidas em sua tese de mestrado: "A Arena dos Trovadores" (Niterói: UFF, 1995).Referências:“Música e Poder no trovadorismo ibérico do século XIII” in Temas & Matizes (Revista da UNIOESTE – Mal. Cândido Rondom, PR). Vol 10. p.37-44. ISSN: 1519-7972. julho/dez de 2006.http://e-revista.unioeste.br/index.php/temasematizes/article/download/1489/1208

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RESUMO: O objeto deste artigo é discutir as relações entre música, poesia e poder, examinando astensões sociais das sociedades medievais ibéricas através da prática musical e poesia dos trovadoresgalego-portugueses. Depois de uma discussão inicial sobre as possibilidades de compreender asrelações de poder na música medieval ibérica, são apresentados os modos de circulação e disseminaçãoda música trovadoresca nos ambientes palacianos das cortes medievais ibéricas. O principal objetivodo texto é discutir as relações sociais envolvidas nas cantigas trovadorescas.

PALAVRAS-CHAVE: Música e poder; Trovadores medievais; Tensões sociais.

ABSTRACT: The subject of this article is to discuss the relations between music, poetry and power,examining the social tensions of the medieval iberian society among the troubadours musical practiceand poetry. After an initial discussion about the possibilities of understands the relations of power inthe medieval music and poetry, it is presented the circulation and dissemination of the troubadour’smusical poetry in the ambient of the medieval iberian courts. The principal objective of the text is todiscuss the social relations involved in the troubadour’s chants.

KEYWORDS: Music and Power; Medieval troubadours; Socials tensions.

MÚSICA E PODER NO TROVADORISMO IBÉRICO DO SÉCULO XIII

José D’Assunção Barros

MÚSICA E PODER

T E M A S & M A T I Z E S

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m um dos textos de A Gaia Ciência, ofilósofo Friedrich Nietzsche (1981:100) levanta a instigante hipótese deque a origem da poesia estádiretamente ligada ao desejo de se

exercer um poder – o que de resto, acrescentariamais tarde Michel Foucault, é também a origemde qualquer forma de conhecimento (1974: 2).Foi porque pretendia exercer um poder sobre ooutro, sobre os deuses ou sobre as forças danatureza, que o homem “fez penetrar o ritmo nodiscurso, esta força que reordena todos os átomosda frase, que compele a escolher as palavras e dánova colocação ao pensamento” (Nietzsche, 1981:100). A poesia – e na verdade a Música que se vêvinculada a ela em períodos recuados da História– é pois a mais encantadora das formas dedominação inventadas pelo homem.

Quer se concorde ou não com a hipótesede Nietzsche sobre a origem da poesia, o fato éque Poesia e Música têm sido no decurso dahistória freqüentemente apropriadas comoinstrumentos de poder; em outros casos, comoarena livre na qual forças diversas se digladiam,onde são desencadeados tanto conflitosindividuais internos ao homem como conflitossociais que o circundam. A Música e a Poesiaacolhem indistintamente os poderosos e os que aestes se opõem: a um poeta – e mais ainda quandoeste pode contar com a sedução dos sons musicais– é por vezes dada a licença para dizer, sob omanto protetor do ritmo, das sonoridadesenvolventes e das imagens poéticas, o que jamaispoderia ser dito em prosa corrente. Em outroscasos, mesmo quando um músico termina seusdias na masmorra, suas canções conseguemcircular livremente. Com a ousadia de penetrarno reino das metáforas poéticas, poderíamosacrescentar que o ‘fio da voz’ é ainda mais cortanteque o ‘fio da espada’. Enquanto esta corta amatéria, a poesia envolvida pela música corta osimbólico, invade o imaginário e o submete aopoder daqueles que detém o verso. E a partir daí– porque não ir mais longe? – estabelece tambémseu senhorio sobre a matéria. A consciência deque música é poder pode ser por vezessurpreendida nos próprios textos poéticos, ouainda nos que se propuseram, em todos os

tempos, a tentar compreendê-los. Em 1290, ointelectual citadino Jean de Grouchy descreviano seu De Musica os efeitos buscados por certas“canções de gesta”:

Este canto se destina a ser executado empresença de velhos, de obreiros e do vulgo,quando eles repousam de seu trabalhocotidiano, a fim de que a audição dasinfelicidades experimentadas pelos outrosos ajude a suportar as suas e de que cadaum deles retome em seguida, mais alerta,sua tarefa profissional. Por isso, essegênero de canto é útil à conservação doEstado (Zumthor, 1990: 156).

Nada mais explícito do que este textomedieval, denunciador da busca de poder que seinfiltra na criação musical e poética, daconsciência de um público que se pretendesubmeter pelo ritmo, da medida que se tinha dopapel da música como um instrumento decontrole social. Particularmente durante todo operíodo medieval, os exemplos se multiplicam.Não era a toa que, no século X, reis e chefesguerreiros islandeses mantinham em suas cortescírculos de músicos-poetas profissionais, osescaldos, para o seu próprio louvor eenaltecimento, e na verdade para a difusão desuas gestas em um círculo social mais amplo.Tampouco é de se estranhar que as invasõesnórdicas tenham contado também com o seuacompanhamento poético-musical, os eddas, ouque, em estilo completamente diverso, a Igrejatenha buscado exercer o domínio sobre os seusdevotos com a serenidade disciplinadora doscantos gregorianos.

Mas foi entre os séculos XII e XIV que oOcidente Europeu viu florescer um de seus maisricos movimentos poético-musicais. DoMediterrâneo ao Mar do Norte, a “gaia ciência”dos trovadores foi espaço espontâneo deexpressão de uma sociedade que se via apertadapelos laços fortes do feudalismo, da realeza e dareligião oficial. Nela encontrou voz não apenas atradicional figura do trovador nobre, este mistode menestrel cavaleiro e espírito livre, comotambém toda uma dimensão popular dasociedade que, às vezes estilizada por essesmesmos trovadores nobres, era outras vezes

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trazida ao ambiente trovadoresco das cortes régiase senhoriais pelos jograis, trovadores popularesa quem também era conferido o seu quinhão delicença poética. Por outro lado, no ambientetrovadoresco medieval também encontraram voznão apenas o cristianismo oficial, como tambémo paganismo e a heresia cátara – a seu temporeprimidos – e a poesia musical insolente eanticlerical dos goliardos, clérigos errantes queenalteciam o vinho, o jogo e o amor, e quedespejavam virulentas sátiras contra asautoridades eclesiásticas.

O trovadorismo de corte foi um dossubconjuntos deste movimento poético-musical– que incluía outros ambientes que iam desde ataberna até a praça pública. Algumas cortes régiase senhoriais se conservaram como redutos de umapoesia francamente aristocrática; outras seconverteram em verdadeiros espaços decircularidade cultural e social. Tal foi o caso dascortes régias de Portugal e de Castela – estes doispólos principais do trovadorismo galego-português dos séculos XIII e XIV.

Aqui, o ambiente trovadoresco seapresentou como uma arena aberta à expressãoda pluralidade sócio-cultural, bem como dastensões sociais e individuais. Mesmo o jogralpopular de humilde condição social era livre pararivalizar e afrontar musicalmente os trovadores-fidalgos. A música, como nunca, era empunhadapor pequenos e grandes como se fosse umaespada; os combates se davam no ambientetrovadoresco do Paço e ali mesmo se resolviam,sob o olhar sábio de um rei que se colocava comoprotetor e promotor da cultura, como mediadorda diversidade social, como monarca multi-representativo e capaz de penetrar em todas asordens e circuitos culturais – do sagrado aoprofano, do popular ao aristocrático, do rural aourbano.

A pluralidade que atravessava a músicatrovadoresca galego-portuguesa adequava-se,portanto, às estratégias políticas e culturaisinerentes aos precoces projetos de centralizaçãomonárquica da dinastia de Borgonha em Portugal,e de Afonso X em Castela – projetoscentralizadores que tinham de enfrentar umprojeto oposto de autonomia senhorial, que

acabava por ter também seu espaço no disputatiopoético do Paço. Era uma pluralidade, de certomodo, relativa. Sobre a extensa distribuição dopoder em redes que se expressava na vozconcedida ao trovador-fidalgo a par dosrepresentantes reais, mas também ao jogralassoldadado, ao segrel independente, ao cavaleirovilão abastado, havia limites que não podiam sertransgredidos. Tais limites eram determinados naconfluência dos interesses palacianos com osinteresses aristocráticos, como um “campo deforça social” dentro do qual os representantes dosdemais grupos sociais podiam circular livremente.

Em todo o caso, no cancioneiro satíricoibérico, sobretudo nas tenções e nas cantigas deescárnio e de mal dizer, a música e a poesiaaproximam-se daquele estado primordial que afez filha de um desejo de afirmação do poder.Pretende-se convencer pelo ritmo, aprisionar aplatéia em um “irresistível desejo de ceder, defazer eco, não apenas os pés seguem a cadênciado compasso, a alma também...” (Nietzsche, 1981:98), e então já estão todos zombando em uníssonodo alvo do escárnio, seja ele um humilde peão ouum fidalgo abastado: ei-lo enfim derrubado poruma espada feita só de ritmos e sonoridades, acujos golpes não pode resistir nem a mais duradas armaduras medievais. Ou então o escárniocontribui para “aliviar a alma de qualquer coisaexcessiva, seja ela mania, pena, sede devingança”. Tematicamente, não conhece limites:pode alvejar um rei, papa, ou mesmo Deus.“Eleva-se ao máximo a extravagância do seudelírio e de sua paixão, o furioso torna-sefrenético, o sedento de vingança bêbado de suanecessidade” (Nietzsche, 1981: 99), e então, naconcretude da vida diária tudo se torna suave;porque as tensões se resolveram no plano lírico,podem continuar implícitas no cotidiano semafetar o equilíbrio de confrontos tãocuidadosamente cultivado pela sabedoria do rei.

Por fim, teríamos as tenções, que permitemque um humilde jogral – que na vida correnteteria que se curvar ao nobre – agora o enfrenteem pé de igualdade, combatendo-o com as únicasarmas não negadas a ninguém. Entoa um verso:atira-o, pedra, contra o ponto fraco do adversário;este se defende, contra-ataca com novo verso que

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expõe publicamente as feridas do inimigo; aplatéia assiste a esta sucessão de golpes econtragolpes, a esse “jogo partido” que por vezestermina com um vencedor e um vencido. Pode sedar que o mais hábil no manejo das sonoridadese rimas seja este que no imaginário esquema datrifuncionalidade ocupa a posição maissubalterna, o cantinho mais insignificante da basedo triângulo. O jogral, que sem o verso não eracoisa alguma, com o verso tornava-se quase umdeus.

Antes de examinarmos como as relaçõesmedievais de hierarquia e poder atravessavam apoesia e prática musical galego-portuguesa, seráparticularmente oportuno lançarmos um olharsobre o ambiente externo a que se ligavam estamúsica e esta poesia. O palco da músicatrovadoresca galego-portuguesa, e também omaterial humano do qual ela se nutre, é aprincípio própria sociedade medieval do ocidenteibérico – com toda a sua diversidade interna eriqueza de espetáculo.

Cenários os mais diversos percorrem acítola trovadoresca: desde o ambiente rural – bemretratado por boa parte das cantigas de amigo oumesmo escarnecido por algumas cantigassatíricas – ao ambiente urbano, tão multifacetadoque comporta desdobramentos que vão da rua,do mercado, da taberna, das residênciasburguesas e aristocráticas, do pregão religioso,da universidade, até por fim o Paço – este centrode gravidade multipotente que pretende projetarsua luz não apenas para a sociedade que regecomo também para outras. Centro de gravidadecultural, o Paço irá selecionar a música quecircula em seu interior, mas não reprimir a quecircula fora do âmbito palaciano. A praça públicaainda será um espaço da diversidade, quesomente nos alvores do Renascimento começaráa ser disciplinado, até ter sua pluralidadepretensamente contida pela estética unificadoradas monarquias absolutistas.

O mundo trovadoresco mais amplo – esseque não é apenas o dos trovadores da corte mastambém o de todos os demais jograis e poetascantores – é portanto aquele em que toda asociedade canta e é cantada: heróis e princesas,mas também meretrizes, ébrios, maridos traídos,

impotentes, charlatões – todas as possibilidadesindividuais percorrem a gama de cantigastrovadorescas; mas mais ainda: todos ossegmentos sociais – assoldadados, peões,cavaleiros vilãos, burgueses, infanções, ricos-homens – atravessados por nuanças que vão dariqueza à penúria, todos os segmentos sociais sãocantados e decantados uns pelos outros, o queainda potencializa o número de combinaçõespossíveis, já que o cavaleiro vilão visto por simesmo não é aquele visto pelo jogral assoldadadoou pelo infanção empobrecido, pelo rei ou pelotrovador da nobreza tradicional. Fora isso sagradoe profano, rural e urbano, e tantas outrasdicotomias possíveis se combinam e seentrecruzam nesse mundo onde texto e cenáriopor vezes se confundem, por vezes se contradizem.

É essa imensa diversidade a que bate àporta do Paço para ser “filtrada”, como se toda amúltipla poesia que emana da sociedade tivesseque passar pelos “porteiros-reais” antes de seapresentar no requintado palco dos sarauspalacianos. É a poesia musicada que passou poressa primeira filtragem aquela que chegou até

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nós sob a forma de um cancioneiro galego-português.

Neste momento, podemos passar aexaminar as tensões sociais presentes nassociedades ibéricas do século XIII que seexplicitam através de sua poesia. Neste artigo,nosso intuito será apenas o de exemplificaralgumas destas tensões através da análise dealgumas cantigas escolhidas. Interessa-nos,particularmente, chegar até a participação dojogral – mostrar como este jogral que era vistopela nobreza como oriundo de um extrato socialinferior era aceito, não obstante, no palcotrovadoresco. Tal como se disse, eram comuns,nestas arenas trovadorescas ibéricas, cantigassatíricas que podiam ter como alvo mesmo o rei,o que demonstra a relativa liberalidade dos paçostrovadorescos. É o caso da cantiga abaixo, movidapelo fidalgo Gil Peres Conde contra o rei Afonso Xde Castela, que também era, aliás, um dos maishábeis trovadores:

Os vossos meus maravedis, senhor,que eu non ôuvi, que servi melhorou tan ben come outr’a que os dan,ei-os d’aver enquant’eu vivo for,ou a mia mort’, ou quando mi osdaran?

A vossa mia soldada, senhor Rei,que eu servi e serv’e servirei,com’outro quen quer a que dan ben,ei-a d’aver enquant’ a viver ei,ou a mia mort’, ou que mi faran en?

Os vossos meus dinheiros, senhor,nonpud’eu aver, pero servidos son,Come outros, que os an de servir,ei-os d’aver mentr’eu viver, ou pon-mi-os a mia mort’ o a que os voupedir?

Ca passou temp’ e trastempadosson,ouve an’e dia e quero-m’ en partir.

(Gil Pérez Conde, CBN 1523).

A cantiga é das mais engenhosas docancioneiro escarninho. O fidalgo português

Gil Peres Conde, que servira o rei de Castelana guerra da Andaluzia, queixa-se dedificuldades em obter as soldadascorrespondentes aos serviços prestados. Emoutras palavras, acusa o rei de “mau pagador”– o que neste caso significa acusá-lo de maucumpridor das obrigações geradas pelosvínculos de vassalidade. Os artifícios poéticosencontrados pelo nobre são engenhosos e bemhumorados. Joga com o duplo uso de pronomespossessivos, “vossos” e “meus”, referindo-se aosmaravedis que estavam de posse do rei masque por direito deveriam ser seus. “Os vossosmeus maravedis”, “A vossa mia soldada”, “Osvossos meus dinheiros” – o trovador perguntase os receberá durante a vida ou somente àhora da morte.

O “duplo possessivo” aqui empregado,com originalidade absoluta, é um exemplonotável daquela capacidade de trazer oconfronto para dentro de uma única expressão.Tornada ambígua, e provavelmenteacompanhada de uma entonação irônica noplano da oralidade, a palavra poética expressaaqui o entrechoque de dois interesses. O domonarca, que naqueles tempos perturbados ede dificuldades econômicas acabava por vezesatrasando as soldadas, e o do vassalo, exigindoo pagamento imediato, já veremos que porconsiderá-lo uma obrigação suserana.

Brigam os dois possessivos, “meus” e“vossos”, disputando o espaço com que secolam ao substantivo que para o fidalgorepresenta um “direito”, mas para o monarcase insinua como uma “obrigação”. Oentrechoque poético e inusitado entre os doispossessivos é desta forma o entrechoque entreum direito e uma obrigação, entre o vassalo eo suserano, entre uma necessidade e outra.Quantas disputas secretas não se insinuamneste torneio imaginário que se celebra nointerior de uma única palavra poética!

Além de uma queixa contra a dívida nãopaga, deve-se buscar nesta cantiga o texto sobo texto: ela invoca indiretamente o próprioconjunto de instituições feudo-vassálicas, ecoloca o monarca na posição de um senhorque se beneficiou dos serviços do vassalo mas

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recusa-se a cumprir suas obrigações desuserano. Competem, desta forma, o modelodo “bom vassalo” e o contramodelo do “maususerano”. Vejamos agora que por trás destescombates se dá um outro. É o próprio “embatecentralizador” que produz sua centelha a partirdo entrechoque destas muitas espadas. O “reicentralizador” é muitas vezes um “maususerano”. Nos tempos mais difíceis a suanecessidade o leva a unilateralizar umaobrigação que, no ponto de vista estritamente“feudal”, deveria carregar a inseparável sombrada reciprocidade. Vista pelo circuito dos ideaisvassálico-cavaleirescos, a expressão “senhor”repetida em cada uma das três estrofes (porexemplo, “senhor rei”) assume desta forma umsentido a mais além do vocativo respeitoso,remetendo às obrigações de senhor (suserano)que o rei teria descumprido. Por tudo se vêque, dentro de um contexto político de embateentre o projeto régio centralizador e uma“contratendência feudalizante” de parte danobreza do reino, a cantiga aqui discutidacompõe com outras cantigas análogas domesmo trovador uma defesa dos direitossenhoriais. Trata-se de um exemploparticularmente interessante de como astensões de ordem política podiam se projetarnos ambientes trovadorescos.

Da mesma forma que ocorria para o casodas cantigas de escárnio, os conflitos de todaordem também se projetavam em outroconhecido gênero poético do cancioneiro satíricoda medievalidade ibérica. É preciso ressaltar queas tenções punham freqüentemente em confrontopoetas-cantores pertencentes a distintascategorias sociais. Este gênero era já conhecidonas cortes provençais e na minnesang. A formaera constituída de uma alternância de estrofes,onde um trovador respondia ao outro àmaneira de um desafio. O dado fundamental éque, nas cortes feudais européias, mesmo queestes disputatios líricos envolvessem trovadoresaristocratas e menestréis de categoria socialinferior, o tema central da tensó jamais envolviauma questão de fundo social. Discutia-se emtorno da “amatória” (questões relativas ao amorcortês), ou então sobre “estilística”. Ao

contrário, na “tenção” ibérica, era muitocomum.dois tipos sociais antagônicos, o jogralassoldadado e o trovador fidalgo, duelaremliricamente com conotações sociais:

“— Juião, quero tigo fazer,se tu quiseres, ua entençon:e querrei-te, na primeira razon,ua punhada mui grande poereno rostro, e chamar-te rapazmui mao; e creo que assi fazboa entençon quena quer fazer.

— Meen Rodriguez, mui sen meuprazera farei vosc’, assi Deus me perdon:ca vos averei de chamar cochon,pois que eu a punhada receber;des i trobar-vos-ei mui mal assaz,e atal entençon, se a vós praz,a farei vosco mui sen meu prazer.

— Juião, pois tigo começarfui, direi-t’ ora o que farei:ua punhada grande te darei,des i querrei-te muitos couces darna garganta, por te ferir peor,que nunca vilão aja sabordoutra tençon comego começar.

— Meen Rodriguez, querrei-m’ enparar,se Deus me valha, como vos direi:coteife nojoso vos chamarei,pois que eu a punhada recadar;des i direi, pois so os couces for:‘Le[i]xade-m’ ora, por NostroSenhor’,ca assi se sol meu padr’ a en parar.

— Juião, pois que t’ eu [for] filharpelos cabelos e que t’ arrastrar,que dos couces te pès eu creerei.

— Meen Rodríguez, se m’ euestropiar,ou se me fano, ou se m’ entortar,ai, trobador, já vos non travarei.”

(Meen Rodríguez Tenoiro e JuiãoBolseiro; CBN 403).

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A estrutura de tenção é típica: atravésdela, os dois trovadores se ocupam de depreciarum ao outro em estrofes alternadas. Nestesentido, ao invés da tenção girar em torno deuma questão genérica, o que se vê é umasucessão de ataques pessoais que oculta umverdadeiro conflito de categorias sociais. MemRodrigues Tenório pertencia a uma das maisilustres famílias galegas e à melhor nobrezada Península. Quanto a Juião Bolseiro, era umjogral que também atuava com sua margemde atrevimento, embora muito menos queLourenço, mas que aqui aparece curiosamentecomedido diante das ameaças de Tenório.

Estamos aqui diante de uma tençãoproposta em termos de rara agressividade.Quase que toma a forma lírica de uma “brigade rua”, não fosse que, à total agressividadede Tenório, Juião Bolseiro replica com certocomedimento. Enquanto o fidalgo principia pordizer que sua primeira razão é um murro norosto (v. 4/ 5), Juião no máximo o respondecom alguns insultos (“cochon”, por exemplo, éexpressão pejorativa normalmente dirigida poraristocratas a vilãos). Talvez que, sem quererpartir para o que poderia descambar para umconfronto físico, ou então extrapolar a tensãotrovadoresca apresentada liricamente, o jograltenta responder com mais dignidade e astúciapoética. Apropria-se então das própriaspalavras injuriosas que os nobres costumavamdirigir aos vilãos e procura voltá-las contra ofidalgo agressor, talvez a insinuar algo sobrequem se comporta como um verdadeiro“cochão” (v. 10), ou ainda um “coteife nojoso”(v. 24). Tenório, por sua vez, continua ao longode todas as estrofes a desfechar suas ameaçasfísicas, como por exemplo na terceira estrofe,onde afirma que “irá lhe dar muitos coices nagarganta, para feri-lo tanto que desde entãonenhum vilão mais se atreverá a entençoar comele” (v. 18/21). É a demarcação social levada aseu extremo, com rara agressividade em umatenção trovadoresca neste meio em que tudoparece se resolver liricamente.

Significativo nos parece o contrasteentre a agressividade do nobre e o comedimentodo jogral, pois nos mostra que os limites de

um não são iguais aos limites do outro. Emtodo o caso, o exemplo acima fica apenas comoum registro extremo desta oposição entre doisrepresentantes de segmentos sociais que seantagonizam através da sátira trovadoresca.Oposição que, na maior parte das vezes seconcentra na disputa estritamente lírica, nadesmoralização pelo riso, no rebaixamento pelapalavra. O “combate corpo a corpo” assumeem quase todos estes casos a forma de um“combate verso a verso”, e se voltafundamentalmente para o campo da “violênciasimbólica”.

Embora a tenção acima discutida tenhatrazido à tona o limite entre dois grupos sociaisbem definidos, por outro lado eram igualmentecomuns as tenções nas quais rivalizavam semmaiores entraves um poeta-cantor fidalgo e umjogral de menor categoria, mostrando que porvezes na “arena trovadoresca” mostravam-secomo que suspensas as regras que fora regiamas relações sociais. O estudo destas tensões,significativo para avaliar o encontro entre aHistória Cultural e a História Política, abre-se aanálises já empreendidas em outra oportunidade(Barros, 1995).

Texto recebido em junho de 2006.Aprovado para publicação em setembro de 2006.

T & MT & MT & MT & MT & M

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SOBRE O AUTOR

José D´Assunção Barros é Doutor em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em Históriada Universidade Federal Fluminense. Endereço eletrônico: [email protected].

REFERÊNCIAS

a) Fontes

Cancioneiro da Ajuda. ed. Carolina Michaëlis de Vasconcelos. Halle: 1904. 2 v.

Cancioneiro da Biblioteca Nacional. Elza Paxeco; José Machado (Orgs.). Lisboa: Ocidente, 1949-1964.

Cancioneiro Portuguez da Vaticana. Edição de Teófilo Braga. Lisboa: 1878.

Carmina Burana. São Paulo: Ars Poética, 1984.

b) Bibliografia Consultada

BARROS, José D’Assunção. A arenas dos trovadores – as representações das tensões sociais nocancioneiro medieval ibérico (séculos XIII-XIV). Niterói: UFF, 1995.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: PUC, 1974.

—. A arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes, 1972.

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Hemus, 1981.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

BARROS, José D’Assunção. “Música e poder no trovadorismo ibérico doséculo XIII”. Revista Temas & Matizes - Unioeste - Pró-Reitoria de Pesquisae Pós-Graduação - Vol. 5 - Nº 10 - 2º Semestre de 2006, p. 37-44.

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