mutações - novas configurações do mundo / cultura e pensamento em tempos de incerteza

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novas configurações do mundo rio, são paulo, belo horizonte, salvador e curitiba | agosto a outubro de 2007

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O encontro com a palavra “mutações” é inusitado para o ciclo Cultura e Pensamento em Tempos de Incerteza, que começou com o seminário tematizando “O silêncio dos intelectuais”. Haveria na escolha de um nome que se circunscreve no campo bioló- gico alguma conclusão à qual se chegou? Estaríamos vivendo um novo ciclo de relações estabelecidas entre linguagem e pensamento; entre vivência e inteligência; entre fala e cultura? Se essa palavra “mutações” não é conclusiva, seu achado provisório nos leva a crer que os intelectuais estão hoje cada vez mais voltados para o que se tornou a “vida” na atualidade. A palavra “biopolítica”, inventada por Michel Foucault, tem feito muitas cabeças e confundido os campos bem estabelecidos do debate teórico e cultural. Ela provoca reflexões sobre os sentidos contemporâneos do legado civilizatório, talvez porque daqui por diante estejamos cada vez mais voltados para a consideração do “bios”. Nossas inteligências foram convocadas pelo presente a uma revisão de valores e conceitos que implica a sobrevivência da espécie tal como até aqui existiu.

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O encontro com a palavra “““““mutações””””” é inusitado para o ciclo Cultura e Pensamentoem Tempos de Incerteza,,,,, que começou com o seminário tematizando “““““O silêncio dosintelectuais”””””. Haveria na escolha de um nome que se circunscreve no campo bioló-gico alguma conclusão à qual se chegou? Estaríamos vivendo um novo ciclo derelações estabelecidas entre linguagem e pensamento; entre vivência e inteligência;entre fala e cultura? Se essa palavra “mutações” não é conclusiva, seu achadoprovisório nos leva a crer que os intelectuais estão hoje cada vez mais voltados parao que se tornou a “vida” na atualidade. A palavra “biopolítica”, inventada por MichelFoucault, tem feito muitas cabeças e confundido os campos bem estabelecidos dodebate teórico e cultural. Ela provoca reflexões sobre os sentidos contemporâneosdo legado civilizatório, talvez porque daqui por diante estejamos cada vez maisvoltados para a consideração do “bios”. Nossas inteligências foram convocadaspelo presente a uma revisão de valores e conceitos que implica a sobrevivência daespécie tal como até aqui existiu.

Os alarmes disparados pelo “aquecimento global” estão inaugurando uma novafase programática no campo político da “globalização”. Será que resistiremos ànossa compulsiva dinâmica de consumo e inverteremos as lógicas predatórias exis-tentes, ou caminharemos para a autodestruição? Há bom tempo que ambientalistasvêm batendo nessa tecla, mas ninguém deu ouvidos à questão e agora ela se tornagritante. Se luzes vermelhas estão acesas é porque o esclarecimento de geraçõesnão pode iluminar caminhos e perspectivas de futuro. Agora a sociedade vive oestado de emergência, condenada ao clima de alerta máximo. Como nossas institui-ções serão capazes de enfrentar esse sinal dos tempos? Será que o conselho desegurança da ONU que se reuniu para tratar da questão tem algum horizonte a nosoferecer? Que mudanças virão pela frente? Que novos paradigmas socioculturaissurgirão desse impasse? Como manteremos nossa diversidade ambiental e culturalnesse novo presente?

Daqui para frente, quando falamos em natureza, estaremos nos referindo aos orga-nismos e seres que sobreviveram a esse estágio gerado pelos humanos. Seria esseo destino secreto inscrito nas utopias tecnológicas de dominação da vida, nossonhos de cyborgs e mutantes? Mas, com ou sem utopias, estamos diante dastecnologias, elas é que nos trouxeram até aqui, são elas que podem nos levar daquipara outro lugar. Da nanotecnologia aos dispositivos de comunicação digital,temos que erguer uma outra tecnologia-social e restabelecer aquilo que um diafoi o domínio do “humano”. Espero que as inteligências aqui reunidas dêem vozàs mudanças que a vida nos cobra.

GILBERTO GILMinistro da Cultura

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A imagem do caos é o caosPaul Valéry

a d a u t o n o v a e s

As novas imagens do mundo convidam-nos a esquecer a noçãode crise. Pensemos, pois, na idéia de mutação.

Lemos em vários autores que toda crise é excesso, expressão dapotência de transformação do pensamento, de idéias muitas ve-zes secretas, racionais, materialistas, algumas aparentementeabsurdas, outras místicas, das quais nem sempre é fácil se desfa-zer porque, como observa o poeta Paul Valéry, só encontramosnelas aquilo que em nós já trazemos. As crises são, portanto,constituídas de múltiplas concepções que se rivalizam e que dãovigor dialógico às sociedades, excitam o sensível e o inteligível.Por isso, são elas que apontam para o novo que estava ocultopelas contradições no interior de um mesmo processo.

Mutações são passagens de um estado de coisas a outro – passa-gens muitas vezes indefinidas do ponto de vista conceitual, quenos deixam à deriva, quando as trilhas são pouco visíveis ou poucoconfiáveis, em particular se elas foram abertas, como acontece hoje,

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não propriamente pelo trabalho do pensamento, mas pela técnica, o que marca,pelo menos até agora, certa resignação do saber diante do poder da ciência. Issonão quer dizer que, antes, tínhamos muita certeza de onde estávamos e paraonde íamos. É preciso construir, pois, novo itinerário uma vez que já nãotemos nenhuma garantia de retorno aos velhos roteiros e uma vez que opositivismo da técnica só nos pode indicar caminhos falsos. Mas vejamos ovazio de pensamento com otimismo: “O que seríamos nós sem o socorrodo que não existe?” – pergunta Valéry. “Pouca coisa, e nossos espíritosbem desocupados feneceriam se as fábulas, as abstrações, as crenças e osmonstros, as hipóteses e os pretensos problemas da metafísica não povo-assem de imagens e seres sem objetos nossas profundezas e nossas tre-vas naturais. Os mitos são as almas de nossas ações e de nossos amores.Só podemos agir movendo-nos em direção a um fantasma. Só podemosamar o que criamos”.

Muitos pensadores certamente estariam de acordo com a afirmação: vive-mos uma época prodigiosamente vazia, na qual concepções políticas,crenças, idéias, sensibilidades, enfim, formas de existência e visões demundo que antes pareciam dar sentido às coisas perdem valor. Ou melhor,vemos não propriamente o desaparecimento dos valores humanos, masde certos meios de expressão desses valores, como observaWittgenstein. Alguns pensadores falam de falência da imaginação, fra-casso do entendimento, “incapazes que somos de dar-nos uma repre-sentação homogênea do mundo” que abarque os dados antigos e novosda experiência. Ora, sabe-se que são os meios da imaginação, junçãode sensibilidade e desejo, que ajudam a solucionar enigmas. O estilode vida e as concepções de mundo que hoje nos dominam são super-ficiais e mecânicas, e as antigas definições são insuficientes paraentendê-las. A este novo fenômeno pode-se dar o nome de mutação,ou de revolução não do tipo das revoluções históricas que a precede-ram, mas uma verdadeira revolução antropológica, como escreveu ofilósofo Jean Baudrillard em um de seus últimos ensaios: revoluçãoque corresponde “a uma perfeição automática do aparelho técnico euma desqualificação definitiva do homem, da qual nem ele mesmotem consciência. No estágio hegemônico da técnica, que é o dapotência mundial, o homem perde não apenas sua liberdade, mas aimaginação de si mesmo”. Estaríamos vivendo o fim de uma idéia

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de civilização, diante de um novo mundo de reprodução automá-tica, “obsolescência do homem em fase terminal, a quem seudestino escapa definitivamente (...) e inauguração de um mundosem o homem (...) capitulação simbólica, derrota da vontade, muitomais grave do que qualquer fracasso físico?”, perguntaBaudrillard. A acreditar nas suas descrições trágicas, estamosna era da capitulação do pensamento diante do seu duplo técnico,o que implica o “desaparecimento de qualquer sujeito, seja dopoder, do saber ou da história, em proveito de uma mecânicaoperacional e de uma falta de responsabilidade total do homem”.Seria ingenuidade negar o grande avanço das pesquisas científicas;mas quanto mais elas aumentam seu poder maior é o nosso senti-mento de distância do entendimento: a velocidade das transfor-mações é tamanha que “o olho do espírito não pode mais seguiras leis e concentrar-se em algo que se conserve” – observa Valéry.

Baudrillard não está sozinho neste diagnóstico: em dois livros re-centes, nos quais analisa as idéias de modernidade, progresso,declínio e fim da civilização ocidental, o filósofo JacquesBouveresse retoma algumas análises clássicas da visãoapocalíptica do mundo – nem sempre concordando com elas, écerto – a partir de Wittgenstein, Karl Kraus, Nietzsche, GottfriedBenn e Spengler, nos ensaios La “conception apocalyptique dumonde” ou Le pire est-il tout à fait sûr?; Gottfried Benn, ou Le peude réalité & le trop de raison, e La vengence de Spengler. A sim-ples retomada destes autores, alguns deles relegados ao esque-cimento, é sintomática. Em uma conferência feita durante umcongresso de médicos em 1958 com o título de “A medicina naera da técnica”, Karl Jaspers inscreve a medicina no quadro glo-bal da tecnização e mercantilização do mundo no qual “mais osaber e o poder científicos aumentam, mais os aparelhos queajudam no diagnóstico e no tratamento são eficientes, mais setorna difícil encontrar um bom médico, ou mesmo um simplesmédico”. Jaspers conclui com um diagnóstico “sinistro”, como elemesmo diz: “Nesta situação, parece objetivo perguntar-se se cami-nhamos em direção a uma existência que não é mais verdadeira-mente humana, se nos dirigimos assim ao fim da humanidade.

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Mas não saberíamos responder a esta questão objetivamente recor-rendo ao nosso saber. Para o médico, como para qualquer homem,a questão é, ao contrário, saber que decisão ele toma, por que elequer viver e agir. Esta perspectiva sinistra pode ocultar a abertura denovas possibilidades de nosso ser”.

O que há em comum entre estes pensadores? Certamente não só asidéias de progresso e a relação da ciência e da técnica com ohomem, mas também a dificuldade de o saber instituído explicar omundo. A tecnociência pede novos saberes.

As mutações de hoje são toda uma aventura que se inscreve nanossa história de maneira veloz, com deslocamentos conceituaisainda em formação pela filosofia e pela antropologia, antecipaçãode categorias ainda incertas: não sabemos ainda nomear este novoestado de coisas. Neste momento de incerteza, somos capazes dereconhecer apenas o caráter transitivo dos acontecimentos e, comisso, a primeira pergunta que nos ocorre é: vivemos a continuidadeou a descontinuidade entre o passado e o presente? É certo quetradição e antecipação são duas categorias e dois problemas queacompanham a história do pensamento. Mas duas grandes tendên-cias tentam definir hoje, em linhas gerais, este momento de passa-gem: para alguns, trata-se da morte ou do esquecimento de tradiçõesque tinham sido capazes de estabelecer concepções de mundo tidascomo claras, uma visão unitária que dava sentido às coisas; paraoutros, é o momento da insuficiência da razão, do fim da metafísicaou ainda a expressão de uma ontologia fragmentada ou fraca (GianniVatimo). Assistimos, é certo, ao enfraquecimento de uma racionalidadeque se exercia em domínios bem definidos do saber. Muitos vêemcomo virtude o esquecimento de conceitos como verdade e consciên-cia absolutas, privilégio do observador absoluto que tudo dominavacom um pensamento de sobrevôo. Este momento de passagem podeser, portanto, sedutor e perigoso ao mesmo tempo: se outros valoresganham novos meios de expressão, corremos o risco de nos perder-mos na indefinição do que acontece. Como observa Paul Valéry, aodiagnosticar a “morte da civilização” européia, nesta fase não há men-te, por mais sagaz e instruída que seja, “que possa vangloriar-se de

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dominar o mal-estar, medir a duração provável deste período deconfusão de trocas vitais da humanidade”. Um ciclo de conferênciassobre as mutações é, portanto, um irresistível convite a erros eacertos. Enfrentamos, de início, as dificuldades postas pelo pró-prio objeto e seu tempo: nem tudo pode ser descrito hoje em lin-guagem antiga e pouca coisa pode ser pensada com a ajuda deconceitos que dominaram o saber até bem pouco tempo. Muitomenos podemos recorrer a dualidades exacerbadas – a começarpela tentação de comparar o acontecido com o vir a acontecer.As mutações não só determinam o sentido do curso dos aconteci-mentos como também anunciam o declínio das formas. “O espíritode uma sociedade realiza-se, transmite-se e percebe-se através dosobjetos culturais que ela se dá e no meio dos quais ela vive. Suascategorias práticas sedimentam-se nela e, em troca, elas sugeremaos homens uma maneira de ser e de pensar”, escreve Merleau-Ponty em seu comentário ao método de Marx.

No prefácio dos ensaios dedicados à política, à liberdade e àmodernidade – La brèche entre le passé et l´avenir – , Hannah Arendtcita o poeta francês René Char: “Notre héritage n´est précedé d´aucuntestament”. René Char descrevia o sentimento dos escritores daResistência francesa do pós-segunda guerra. Hannah Arendt inter-preta o aforismo de Char como a perda do tesouro de ideais revoluci-onários que jamais se realizam completamente. Podemos dar tambémoutro sentido ao poema: Char antecipa de maneira luminosa a estra-nheza quase imperceptível ainda hoje de uma grande mutação feitacom o vazio de pensamento: pensar um mundo inteiramente novosem que este mundo tenha deixado um testamento, isto é, um mundosem a antecipação de concepções políticas e ideais, é a grande difi-culdade. Ou pelo menos mundo no qual o pensamento nas ciênciashumanas vem a reboque das invenções tecnocientíficas. O poema emprosa de Char faz parte dos textos reunidos em Furor e mistério (1938/1944), “notas” escritas, como ele mesmo diz na apresentação,“na tensão, na cólera, no medo, na emulação, no desgosto, no enga-no, no recolhimento furtivo, na ilusão do futuro, na amizade e no amor”.

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Lemos essas “notas” sobre a ilusão do futuro como uma dasúltimas resistências de um humanismo consciente de um poeta,“discreto nas virtudes, desejando reservar o inacessível campolivre à fantasia dos seus sóis, e decidido a pagar o preço porisso”. Char conclui com outro aforismo: “Esta guerra se prolon-gará muito além dos armistícios platônicos. A adoção dos con-ceitos políticos será dada contraditoriamente nas convulsões esob a cobertura de uma hipocrisia segura de seus direitos. Nãosorria. Afaste o ceticismo e a resignação e prepare sua almamortal para afrontar intramuros demônios gelados análogos aosgênios microbianos”.

Pela primeira vez na história, mergulhamos de repente em um mun-do que, se foi ao menos parcialmente concebido pelo homem, certa-mente não é regido por ele, mas pela ciência-poder. Outrospreferem dar a este novo domínio do mundo o nome de revolu-ção tecnocientífica. Assim, não sabemos dizer onde estamos epara onde vamos porque o movimento da revolução técnica es-capa ao entendimento humano. É essa a peculiaridade destamutação: se tomarmos como referência as que a precederam– o Renascimento e o Iluminismo, por exemplo – vemos que elasforam geradas não só por revolucionárias visões de mundo napolítica, nas artes, nas ciências, nas mentalidades e nos costu-mes etc. – mas também deram origem a outras revoluções.Nesse sentido, o poeta Paul Valéry recorre a um Hamlet intelectualpara mostrar a multiplicidade de pensamentos de tendências, crâ-nios ilustres que meditam sobre a vida e a morte das verdades:“Esse foi Leonardo. Ele inventou o homem voador, mas ohomem voador não tem servido precisamente às intenções deseu inventor: sabemos que o homem voador montado em seugrande cisne (il grande uccello sopra del dosso del suo magniocecero) tem, em nossos dias, outros empregos que não o de irapanhar neve no cimo dos montes para jogá-la, nos dias de calor,sobre as calçadas das cidades... E este outro crânio é o de Leibniz,que sonhou com a paz universal. E este foi Kant, Kant qui genuitHegel, qui genuit Marx, qui genuit...”.

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A partir do que acontece hoje, entendemos melhor o que Valéryqueria dizer quando escreveu “nós, civilizações, sabemos hojeque somos mortais” e, ao mesmo tempo, percebemos mais facil-mente que o homem moderno estava afastando-se da cultura aoabandonar uma das mais “extraordinárias invenções da humani-dade”, a invenção do passado e do futuro. Em síntese, “entramosno futuro de costas”, herança sem testamento. Criando o tempopassado e futuro, o homem foge do presente eterno. Ele não ape-nas constrói “perspectivas aquém e além dos intervalos de rea-ção como faz muito mais que isso: vive muito pouco apenaso próprio instante”. A civilização tecnocientífica é, de algumamaneira, a negação desses dois tempos.

Pode-se perguntar: o que gerou a revolução tecnocientífica?É certo que ela não nasceu do nada, e uma das hipóteses é quetal revolução técnica pode bem ser o destino de iniciativas huma-nas acumuladas no curso dos séculos. Ela seria um prolonga-mento técnico de outros pensamentos. Assim, o que acontecehoje não é apesar das invenções anteriores, mas graças a elas.O império da tecnociência não seria um acidente da civilizaçãoocidental, mas sua própria essência. O filósofo JacquesBouveresse afirma que Heidegger foi mais incisivo ao afirmar que,se existe uma aliança que pode ser fatal para a humanidade, é,antes, a aliança da metafísica com a ciência e a técnica, “que nãopodem ser separadas, como se faz habitualmente, uma vez que atécnica não é senão, segundo expressão do próprio Heidegger, ametafísica acabada e realizada”. Bouveresse conclui que, paraHeidegger, o problema da técnica não seria minimamente abor-dado se não fosse pensado do ponto de vista da história dametafísica, isto é, da questão do ser e do “esquecimento do ser”.Na hoje clássica entrevista a Richard Wisser, Heidegger diz: “Nãofalo de uma história decadência, mas apenas do destino do Ser,na medida em que ele se afasta cada vez mais em relação à ma-neira de manifestar-se entre os Gregos – até que o Ser torne-seuma simples objetividade para a ciência e hoje um simples fundode reserva para o domínio técnico do mundo”.

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Se levarmos as idéias de Heidegger às últimas conseqüências, po-demos concluir que esta é uma das razões pelas quais recorremossempre a velhos conceitos quando buscamos respostas para no-vos fatos, fatos postos hoje pelo desenvolvimento técnico, uma vezque, em essência, tudo tem a mesma origem. Ou então podemosoptar pelo paradoxo: não sabermos o que nos acontece porque ve-lhos conceitos jamais conseguem esclarecer os novos fatos.

Peter Sloterdijk atribui as mutações a uma ação fundamental damodernidade que é o poder-agir. A modernidade teve a audácia,afirma ele, de proclamar a organização do mundo apenas através daação: “O caráter projetivo desta nova era resulta da suposição grandi-osa segundo a qual se poderia logo fazer evoluir o curso do mundode tal maneira que apenas se moverá o que gostaríamos de racio-nalmente manter em movimento por nossas próprias atividades.O projeto da modernidade repousa, pois – e isso jamais é dito clara-mente – sobre a utopia cinética: a totalidade do movimento do mun-do deve tornar-se a realização do projeto que temos para ele.Progressivamente, os movimentos de nossa própria vida identificam-se com o movimento do mundo”. Mas, ao fim e ao cabo, a utopiacinética acaba por escapar ao controle do homem: “Inevitavelmente,tudo se passa de outra maneira, porque fazendo vir ao pensamento eprovocando aquilo que deve acontecer, põe-se ao mesmo tempo emmovimento algo que não fora pensado, querido ou levado em consi-deração. Este algo se move então inteiramente sozinho com umentêtement perigoso. Somos rodeados por uma epinatureza feita desucessões de ações, como uma segunda phisis, que escapa à nossaprática ‘que faz história’. As sucessões automáticas do processomoderno do mundo, como nós o vemos com um mal-estar crescente,atingem os projetos controlados; do coração do empreendimentochamado modernidade, da consciência de uma auto-atividade espon-tânea e conduzida pela razão, surge um fatal movimento estranhoque nos escapa em todas as direções. O que tinha ares de ser umponto de partida controlado em direção à liberdade anuncia-se serum deslize em uma heteromobilidade catastrófica e incontrolável”.

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Sloterdijk aponta quatro conseqüências decorrentes das mutações.Destaquemos apenas duas delas: estamos em plena era pós-cristãque não conta mais com os conceitos greco-judaico-cristãos parase compreender. Ele cita o “jovem conservador” Otto Petras que,em 1935, resumiu assim este estado de coisas: “ ...cristianismo,este movimento que marcou a história e que foi o mais poderosoformador de nosso planeta, esgotou sua força criadora e vivemos aera do post Christum em um sentido mais profundo do que o calen-dário”; a segunda conseqüência, segundo Sloterdijk é que amodernidade, abandonada a si mesma esgotou suas reservas mo-rais e “não é mais capaz de liberar, a partir de si mesma, contraforçaspara barrar sua deriva fatal...as coisas andam como elas querem, asintenções iniciais não têm mais importância”. Como saída para oOcidente, Sloterdijk aponta certa tendência de uma “fração sensível”de intelectuais que se volta para a civilização oriental – ou pelo menospara alguns fundamentos originários desta civilização comuns entreas correntes de pensamento da antiga Ásia que compreendem o sen-tido do ser como “ser-em-direção-à-quietude-no-movimento”, isto é,a boa mobilidade. Isso antes que o hemisfério oriental se modernizeatravés das técnicas ocidentais de mobilização.

O descontrole pode ser traduzido, pois, como a assustadora autono-mia da técnica. Como observa ainda Sloterdijk, coisas são postas emmarcha sem que isso tivesse sido planejado. Mais: duvidamos queelas possam ser retomadas pela ação humana para serem conduzidasa caminhos não-fatais – afirma ele. Seria este o destino damodernidade? Isto é, ao provocar, pela ação ilimitada, o movimentoda história, é a natureza mesma do movimento que faz história: “Quemse move, move sempre mais que a si mesmo apenas. Quem faz histó-ria, faz sempre mais que apenas história”. Isso equivale a uma visãocosmogônica, tentativa de definir as coisas a partir das propriedadesintrínsecas, visão que nos aproxima da proposição de Edgar AllanPoe no capítulo oitavo de Eureca: “Cada lei da natureza depende, emtodos os pontos, de todas as outras leis”. Sloterdijk segue aqui asidéias de Heidegger para quem a técnica, na essência, é algo que ohomem não pode controlar. Ela corresponde – diz Heidegger em umaentrevista a Spiegel – “a uma exigência mais potente que qualquer

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determinação de fins pelo homem... Uma exigência que se situaalém do homem, de seus projetos e atividades”. A técnica, con-clui Jacques Bouveresse em comentário às reflexões de Heidegger,não é um processo que podemos submeter a restrições e exigên-cias vindas de fora: “... é inicialmente uma exigência ilimitada eincondicional à qual estamos submetidos. A técnica não está emnosso poder; somos nós que, sem nos darmos conta, estamosem poder dela. Acreditar no contrário é ser vítima de um precon-ceito e de uma ilusão antropológica”.

Estas observações nos põem diante de outro paradoxo: a veloci-dade das mutações e o acúmulo desmesurado das novas cria-ções – que também são o resultado do trabalho do pensamento -retiram do pensamento o tempo necessário à reflexão, o loisir demûrir como diz o poeta, uma vez que as coisas se apresentamcomo velozes, voláteis e principalmente mecânicas. Mais: cria-ções acumuladas, resultado do trabalho do nosso próprio espírito,elas são artefatos mecânicos que, se de um lado são fáceis deserem manipulados, de outro dispensam e dispersam nossa aten-ção e, portanto, o trabalho “paciente e difícil do espírito”. Porfim, acabamos por nos acostumar, preguiçosamente, com neces-sidades inéditas e desnecessárias, com tudo o que nos é dado,repondo o velho axioma de Marx: o capital cria não apenas obje-tos para o sujeito, mas também o sujeito para os objetos. Ou, emoutras palavras, como escreve Valéry, “como se, tendo inven-tado alguma substância, se inventasse também, segundo suaspropriedades, a doença que ela cura...”. É este novo sujeitoque é preciso entender.

Seja na versão do “esquecimento do ser” de Heidegger ou na“mobilização infinita” de Sloterdijk, a revolução tecnocientífica,feita no vazio de pensamentos novos, conduz à era dos fatos, fatoscientíficos, que passam a dominar toda a vida social e política,abolindo, na prática, a ordem das ficções, entendendo por ficçõeso trabalho do espírito – essa “potência de transformação”, com oseu cortejo: o pensamento, as teorias, a metafísica, as artes, tudoaquilo que Valéry chama de “Coisas vagas”: “Se uma sociedade

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tivesse eliminado tudo o que é vago ou irracional para entregar-se aomensurável e ao verificável, ela poderia sobreviver?” – pergunta Valéry.Ele conclui com um exemplo irônico: “Um tirano de Atenas, que foium homem profundo, dizia que os deuses foram inventados para puniros crimes secretos”. Isso porque, para Valéry, toda sociedade que seconstrói sobre o fato é bárbara, sociedade da desordem, uma vez que“não existe potência capaz de fundar a ordem através apenas do inter-dito dos corpos sobre os corpos. Forças fictícias são necessárias...A ordem exige, pois, a ação de presença de coisas ausentes”. É, por-tanto, sobre “Coisas vagas” que repousa toda civilização: “o mundotranscendente, não existindo, suporta, entretanto, pirâmides e cate-drais”, mas, em contrapartida, é o espírito livre, puro, rigoroso que fazfigura de “inimigo principal da civilização”.

Ao tratar de um mundo dominado pelos fatos científicos, Valéry remete-nos à grande questão da atualidade, que é a distinção que ele faz entreciência-saber e ciência-poder. As inquietações suscitadas no homemhoje pelas transformações espetaculares dos progressos da ciência eda técnica impostos ao universo natural e ao mundo humano podemser resumidas neste axioma de Valéry: “Pode-se dizer que tudo o quesabemos, isto é, tudo o que podemos, acabou por opor-se ao que somos”.Isto é, saber e poder tornam-se uma única coisa; a ciência-poder opõe-se hoje ao humano. Mas isso só foi possível a partir do momento emque a ciência transformou-se em “vontade de potência”.

No plano da organização social, as idéias de ciência-poder e de“mobilização total” (acrescentemos também a “mobilização infinita”de Sloterdijk) são vistas por Valéry como os maiores perigos, triunfosdefinitivos da organização que corresponde ao advento do Estado-formigueiro: “Reina ainda certa confusão – escreve Valéry –; ainda maisum pouco de tempo e tudo será esclarecido e veremos, enfim, surgiruma sociedade animal, um perfeito e definitivo formigueiro”.

Muitos comentadores tendem a uma nova leitura de O declínio dacivilização do filósofo alemão Spengler. É dele a idéia de saber comopoder, vinculada ao sentido de progresso que a civilização ocidentaltanto cultiva; uma idéia de progresso que está tão intimamente ligada à

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de progresso do conhecimento que é extremamente difícil, hoje como ontem– escreveu Bouveresse –, “não perceber como intrinsecamente reacionáriatoda iniciativa intelectual que tente contestar radicalmente ou simplesmenterelativizar seriamente o interesse de um acréscimo ilimitado do conheci-mento”. Bouveresse cita ainda Nietzsche: “... nossa pulsão de conhecimentoé muito forte para que sejamos capazes de apreciar a felicidade sem conhe-cimento ou a felicidade de uma forte e sólida ilusão. O simples fato de ima-ginar estados desse gênero leva-nos ao suplício... Se a humanidade nãomorre de uma paixão, então ela morrerá de uma fraqueza; o que preferir?Eis a questão. Desejamos para ela um fim no fogo e na luz ou na areia?”.Esta ambivalência em relação à idéia de progresso ilimitado é inevitável e éassim sintetizada por Spengler: “Somos a primeira civilização que está emcondições de saber com certeza o que a espera, e não há outra escolhaentre desejar o que nos vai acontecer inapelavelmente ou nada querer”.

Observação final: se vivemos a era do esquecimento das Coisas vagas –isto é, as idéias, o logos, os fundamentos, a substância, o espírito, a esté-tica, a ordem, a política... – e se é correto dizer que estamos em uma fasede mutação obscura e confusa, podemos concluir que isso decorre da nãodiferenciação entre espírito e realidade, vida real e pensamento. Seria cor-reto postular uma nova metafísica – isto é, novas harmonias e novas abs-trações – fundada em novas experiências? Indicar à vida confusa dosfatos caminhos em direção a certa ordem? Buscar naquilo que é excessi-vamente visível e grosseiramente turbulento uma aparência oculta nova?Em síntese, que não vejamos na ausência de respostas imediatas apenasum nada ou o refúgio ao niilismo. Para tanto, saiamos do domínio datecnociência e retomemos o caminho do pensamento em direção aocampo próprio da razão.

Estas novas evidências nos legam novas questões: se as Coisas vagasganharam expressão e forma nas construções de pedra, catedrais emonumentos, onde a própria física adquiriu conteúdo metafísico, comonos diz Valéry, hoje, que forma “imortal” adquire o que, além de mortalé também virtual, isto é, “catedrais” construídas virtualmente que de-saparecem de maneira veloz no momento seguinte?

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j o s é m i g u e l w i s n i k

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Se o estado de mutação deflagra a não-correspondência escancarada entrecategorias de pensamento vigentes e o estado atual de coisas, proponho umavisita a casos de pensamento heterodoxo, na intenção de testá-los como pen-samento constituído sobre a mutação – heterodoxos na própria medida emque o princípio de mutação lhes é inerente. [Pudores bem pensantes serãoabandonados ao longo da empreitada, sem prejuízo, espera-se, do exercíciodo pensamento crítico, que também estará passando por sua prova.]

1. Na construção de uma Nova Psicanálise, que se pretende um terceiro pas-so além de Freud e Lacan, MDMagno postula a teoria d’Os Cinco Impérios[o tema do Quinto Império, tomado aqui como mote, está em Fernando Pessoa,remete ao profetismo de Antonio Vieira, ao sebastianismo português e re-monta ao sonho bíblico de Nabucodonosor]. Na versão de MDMagno,Os Cinco Impérios são A Mãe, O Pai, O Filho, O Espírito e Amém.1 Tentouma paráfrase livre e super-sintética. O vínculo com a mãe/mater/matéria[A Mãe], que se inscreve no corpo, que se guarda nos animismos, no seulastro tectônico e esfingético, e numa herança primária de fundo, é recobertopela invenção do monoteísmo judaico [O Pai], que projeta para o céu, aocusto da lapidação das mulheres, um Deus masculino sob o qual o reco-nhecimento do vínculo primário com a mãe só se faz pela intervenção sim-bólica do Pai. Num terceiro passo, esse vínculo secundário ganha autonomiaem relação ao primário na figura do Filho criado ex-nihilo, sem vinculaçãocom descendências carnais, primárias, fazendo do filho direto do Pai, semcópula com a Mãe, um correspondente da especificidade puramente simbó-lica do humano [O Filho]. É no passo seguinte que se coloca a vicissitudeda mutação contemporânea: o processo da modernidade pressiona poruma passagem inédita do secundário ao originário [O Espirito], em que ohumano tem que se haver com a loucura fundamental da espécie e com ooriginário puro que pivoteia entre haver/não-haver (haver desejo de não-haver, que não há) [Amém]. Em outros termos, trata-se do desafio a umahumanidade não apoiada sobre a trindade familiar Mãe, Pai e Filho, masnuma arreligião do originário puro (o Haver com’Um e sua fractalidade).2

Nada garante a consumação dessa passagem, que, no entanto, está emcurso em toda a sua tragicidade, tracionada pelos fundamentalismos reli-giosos, dissipada pela banalização midiático-mercadológica, elevada aolimite do psicologicamente insuportável etc.

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2. Luiz Sérgio Coelho de Sampaio postula um esquema simples nosseus elementos constitutivos e complexo nos desdobramentos, noqual Sérgio Paulo Rouanet identificou “um substrato lógico, uma cons-trução antropológica e uma filosofia da história”.3 As culturas nãooperam sem lógicas subjacentes, que basicamente são duas – a daidentidade [I] e a da diferença [D] – das quais derivam a lógica dialética[I/D] e a lógica clássica ou da dupla diferença [D/D]. No paradigmareligioso, a lógica do monoteísmo é a da identidade [I], a do politeísmoda diferença [D], a do cristianismo é a da dialética e das vicissitudesdo sujeito dividido [I/D], e a da ciência moderna é a lógica relacional,diacrítica, do terceiro excluído [D/D] (a dimensão religiosa está ausentedesta, com a omissão do traço identitário e a potencialização dife-rencial da diferença). Em termos filosóficos, se o cogito e a lógicafenomenológica partem de I, o significante, o inconsciente, o lapsoremetem a D, a dialética a I/D, e a redução tecnológica de todos osprocessos à sua digitalização e redução à distinção mínima 0/1 é obrade D/D. (I e D/D, associadas, são as lógicas dominantes do mundo daempresa e da tecnociência, instrumentalizando o desejo D a seu favor;D e I/D são lógicas dominadas, nesse contexto).

É tentador relacionar as lógicas de Sampaio com os Impérios deMDMagno. Nesse caso, o Primeiro Império [A Mãe] é o da Diferençaperante o Segundo [O Pai], que é o da Identidade, o Terceiro [O Filho]o da a dialética, sendo o quarto novamente o problema. Por um lado,ele é a realização da lógica clássica nas suas conseqüências de domí-nio tecnocientífico de todas as esferas [D/D], esvaziando as lógicasidentitárias (esvaziamento frente aos quais os fundamentalismos sãouma reação e uma revanche). Por outro, ele suscita a passagem a umalógica “quinquitária”, mutante, que subsumiria todas as outras, e que,como a própria capacidade de linguagem, definidora do humano, é aomesmo tempo identidade e diferença, dialética e dupla diferença [I/D/D].

3. Em texto recente sobre a propriedade intelectual, mas que acabaincidindo diretamente sobre a questão da mutação, Laymert Garcia dosSantos (comentando Deleuze/Foucault)4 observa o horizonte contem-porâneo de um lançar-se além do par Deus/homem que não se regulamais pela elevação ao infinito (como nos séculos 17 e 18), nem à finitude

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(como no 19), mas que instaura um “finito ilimitado – se assim denominarmostoda situação de força na qual um número finito de componentes produz umadiversidade praticamente ilimitada de combinações”. É estimulante pensar,no entanto, que esse “finito ilimitado” é o próprio princípio que funda aexistência da linguagem verbal (combinação ilimitada de um número restritode unidades distintivas), que a invenção da escrita alfabética é adecodificação do DNA dessa linguagem, e que as técnicas de reprodução,culminando na digitalização, são uma potencialização extrema desse mes-mo princípio. Que se descubra o código genético como regido ainda peloprincípio do “finito ilimitado” (quatro elementos químicos regendo toda acadeia do código), o mesmo princípio que rege a linguagem e as máquinasdigitais, nos coloca no cerne da questão da mutação, em que biologia,trabalho e linguagem participam do mesmo processo em que a sua curva-tura avança em direção ao originário. Dominar esse dominó indominávelpassa a ser uma disputa feroz do imaginário (a suposta obtenção da chave-mestra do segredo humano) inseparável do poder real que ele representacomo domínio de todas as esferas pelo capital. A questão se coloca, pois,entre a afirmação de uma lógica tecnocientífica generalizada e acopladaaos interesses de megaempresas [I + D/D], que impede a realização daspotencialidades que ela mesma desencadeia, e o salto para uma lógicaintegradora mais complexa [I/D/D], que inclui as demais e as transforma –exposta, no entanto, nas contingências históricas, à mesma fragilidadecom que se montam os estágios mais altos de um castelo de cartas.

1 Baseio-me na série de seminários de MDMagno, em especial Pedagogia freudiana,Rio de Janeiro, Imago, 1993, Velut Luna: a clínica geral da nova psicanálise, Rio,

UniverCidade de Deus (publicação provisória), 1995 e no livro de Maria Luiza Furtado

Kahl, A interpretação do sonho de Freud, Santa Maria, Editora UFSM, 2000.

2 Kahl, op. cit., p. 160-162.

3 Rouanet, em Luiz Sergio Coelho de Sampaio, Filosofia da cultura – Brasil: luxo ouoriginalidade, Rio, Editora Ágora da Ilha, 2002. Baseio-me também em Sampaio,

A lógica da diferença, Rio, UERJ, 2001.

4 Laymert Garcia dos Santos, “Paradoxos da Propriedade Intelectual” , Mesa “The

effects of intellectual property on cultural creation and diffusion” / “Intellectual

Property: Tensions between the Logic of Capital and Social and Developmental

Demands” – IEEIBR, São Paulo, 8 e 9 de Março de 2007.

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f r a n c i s c o d e o l i v e i r a

Por qualquer ângulo que se observe, há poucas dúvidas de que nossaépoca é uma daquelas curvas em que a história dobra e muda de rumo.Há, certamente, muito de um processo cumulativo que faz com que essa“curva” não seja inteiramente um “raio num dia de céu azul”. Melhordizendo: os processos cumulativos explicam quase inteiramente nossaépoca, com a diferença talvez de que seu rosto é que resultou imprevisível.

O acento de uma mudança desse porte, freqüentemente classificado norol das mutações biológicas ou genéticas, é posto prioritariamente naexplosiva combinação da ciência e processos produtivos, isto é, natecnologia como uma força produtiva. Marx apontou esse caminho esobretudo, para nossos próprios fins, extraiu-lhe as conseqüências maisradicais exatamente no campo do trabalho.

Aqui é que a intensificação da acumulação produz uma verdadeira muta-ção: o trabalho produtivo como consumo do trabalho vivo reduz-se aínfimas porcentagens do produto total, e no entanto o redefine comple-tamente, e com ele toda a trama das relações sociais e da sociabilidade.De fato, qual é a contribuição do trabalho vivo para um software saídodos laboratórios da Microsoft? E no entanto, o conjunto dos trabalhosvivos em escala planetária foi redefinido a partir daquela ínfima partici-pação, e paradoxalmente é essa soma de trabalhos vivos parciais, quejá não têm o condão de determinar os rumos e ritmos da acumulação decapital, que sustenta, lá na ponta, o essencial e insubstituível ainda queínfimo trabalho vivo do software de Bill Gates.

Mas ainda não estamos no terreno de uma total mutação, pois o queessa revolução sem paralelo ainda reproduz continua sendo capital etoda sua coorte, surpreendentemente amplificada de miséria e desi-gualdade. Eis o nosso problema, eis o enigma.

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Avaliando, em “Aceleração, progresso e experimentum humanum”, os estu-dos que vêm sendo realizados sobre a temática da aceleração na civilizaçãotecnológica, o sociólogo Hermínio Martins observa que a “elite de digerati”preconiza uma mutação inédita, “que se poderia denominar ontológica (oudes-ontológica)”, para um futuro pós-humano, pós-biológico, expresso pelotermo “Singularidade”. Como escreve o sociólogo: “A escola da acelera-ção-para-a-Singularidade, do aceleracionismo escatológico (alguns deleschamam-se a si próprios Singularitarians) pelo menos dá um sentido detranscendência potencial e uma direção privilegiada bem definida paraos processos tecnoeconômicos em curso, e de toda a História, porémmais que um significado histórico-mundial, uma viragem para uma novacivilização, um sentido ainda mais profundo, ontúrgico e cosmogônico,um salto para um novo modo de existência.”1

Ora, em que consiste essa aceleração para a Singularidade? J. VonNeumann teria cunhado o termo “Singularidade” nos anos 50, paradesignar uma mutação absolutamente extraordinária; mais tardecientistas, entusiastas da tecnociência e autores de ficção científicadele se apropriaram para nomear a passagem para o pós-humanoou transhumano. “Hoje, escreve o sociólogo, o projeto transhumanistaestá essencialmente vinculado aos avanços da tecnologiacomputacional do ponto de vista prático, à extensão das ciên-cias ciberneticizadas da vida, da mente (...) e do cérebro, e àpermeação do nosso modo de pensar por uma metafísicainformacionista do ponto de vista teorético. No entanto, o es-sencial da visão trans-humanista, no mínimo a perspectivaçãodo sucessor legítimo do homo sapiens como sumidade

l a y m e r t g a r c i a d o s s a n t o s

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cognitiva, cujo veículo seria um ente pós-biótico, realizado através deuma auto-evolução, por uma série de transformações endosomáticasou endopsíquicas, aproveitando a tecnociência disponível a cada mo-mento, foi formulado antes do grande surto das máquinas inteligentesdepois de 1945, e mesmo sem a antecipação clara desta linhagemtecnológica.”2 É que Martins identifica no ensaio de John D. Bernal,The world, the flesh and the devil – Three enemies of the rational soul,publicado em 1929, a matriz do pensamento da Singularidade: “a pers-pectiva era da constituição de que se poderiam chamar hoje ciborgsepistêmicos, e em particular para tornar os humanos mais aptos paraas viagens espaciais.” “A motivação essencial parece ter sido a neces-sidade de pensar a melhor maneira de superar os limites do progressodo conhecimento científico que decorrem das nossas característicascontingentes de meros primatas inteligentes, das nossas ‘formas deintuição sensorial’, da nossa Umwelt e Wirkwelt, como diria um autorcoevo, o biólogo neokantiano J.V. Uexkül.”3

Como bem observa Martins, tratava-se, portanto, de um projeto de supe-ração dos limites do humano com vistas a realizar a “Tarefa Comum”,entendida como a maximização do conhecimento tecnocientífico comofim último e exclusivo. Mas se a intenção foi mantida e alimentada aolongo de todo o século XX, o foco, todavia, mudou. Hoje a ênfase des-locou-se das viagens espaciais e do cosmos para os microcosmos,centrando-se na mente e no indivíduo, entendidos sob a ótica dastecnologias da informação. É por aí que se acredita ser possível operara Singularidade.

Há muita discussão sobre o caráter utópico ou realista dessa empreita-da que mais parece literatura de ficção científica, e chovem argumentosdos dois lados. De todo modo, no entender de Martins, está colocada a“Grande Questão”: “A nova Questão, que poderia ter definido tambémuma época, mas já será tarde demais para isso, seria a Questão doHomem, da antropodicéia, da apologia do humano, ou pelo menos doseu epitáfio e do seu testamento.”4

A Questão do Homem, no caso, não vem a ser propriamente a elabora-ção de uma nova resposta para a pergunta “O que é o Homem?”, nem

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mesmo a tentativa de se considerar o Homem-como-Experimento, istoé, como ser lançado numa grande aventura: “Mais propriamente, po-deríamos dizer que surgiu o projecto do “Experimento-sobre-o-Homem”, pelo Homem, sobre o seu próprio ser ou natureza (...), queocupa enfim um lugar cada vez mais saliente na agenda tecnológica,especialmente no projecto tecnocibernético trans-humanista.”

Para muitos críticos, o problema político da genética exige a discus-são e o estabelecimento de limites que impeçam o advento do Experi-mento, na medida em que este pressupõe a superação do humano e adesconstrução da natureza humana, conduzindo à abertura de umasegunda linha de evolução da espécie. Por isso, nos últimos anos temcrescido nos países do capitalismo avançado o coro dos que alimen-tam o debate visando, seja uma intervenção dos governos seja umamobilização da sociedade civil, em favor de uma regulação do quepode e deve, ou não, ser tolerado.

Parte das manifestações favoráveis ao estabelecimento de limites aoprogresso da engenharia genética vem de autores humanistas que arejeitam pura e simplesmente. Porém, não me parece interessante ten-tar problematizá-las porque elas soam irrealistas e, de certo modo,muitas vezes retóricas, tendo em vista sua obstinação em ignorar oterreno, as condições e as forças que tornam o Experimento factível.Minha intervenção procurará privilegiar a confrontação do pensamentode Martins e de autores da Singularidade, como Vernor Vinge e RayKurzveil, com as perspectivas de Francis Fukuyama (Our post-humanfuture), Jürgen Habermas (Die Zukunft der menschlichen Natur – O futuroda natureza humana), Peter Sloterdjik (Regeln für den Menschenpark –Regras para o parque humano) e Slavoj Zizek (Organs without bodies).

1 MARTINS, H. “Aceleração, progresso e experimentum humanum”, in

Martins, H. e Garcia, J.L. (org.) Dilemas da civilização tecnológica, Lisboa: Im-

prensa das Ciências Sociais, 2003, p. 7.

2 Idem, p. 29.

3 Idem, p. 29.

4 “Aceleração...”, op. cit.p. 36.

José M. M. Monteiro
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O anti-humanismo moderno não somente se funda na rejeição doantropocentrismo e na contestação do especismo. Inclui também o dis-curso segundo o qual a única possibilidade do homem escapar de suaincompletude, de sua natureza animal, seria pôr em prática as técnicasque ele aprendeu a dominar para projetar-se num futuro pós-humano.Tal seria a condição para que possa usufruir de uma verdadeira digni-dade. Francis Fukuyama anunciava tal coisa em 1999, quando escrevia:“O caráter aberto das ciências contemporâneas da natureza nos permitesupor que, daqui a duas gerações, a biotecnologia nos dará os instru-mentos que permitirão finalizar o que os especialistas de engenhariasocial não conseguiram fazer. Neste estágio, teremos definitivamenteterminado com a história humana porque teremos abolido os sereshumanos enquanto tais”1. A atualidade é rica hoje de evocações detentativas mais ou menos reais, mais ou menos fantasmagóricas, e,em todo caso, de aspirações de alguns de aí chegar através de meiosdiferentes, quer se trate de clonagem, de aperfeiçoamento genéticogerminal ou da criação do cyborg híbrido entre o homem, a máquina eo computador. Neste campo, os incondicionalmente favoráveis e osdetratores do Progresso rivalizam em imaginação e em previsõesque aparecem, segundo o campo em que se agrupam seus autores,

A x e l K h a n *

* conferência em francês com tradução simultânea

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luminosos ou baços2. Ainda que estejamos aqui cheios de delírio, a impor-tância da produção literária, de comentários e debates dedicados às pers-pectivas alegadas testemunham a consistência, ao menos psicológica esocial, de tais aspirações ou repulsas.

Em resumo, as duas raízes do anti-humanismo moderno, opostas mas con-vergentes, são as seguintes: para uns, a animalidade do homem (ver a‘humanidade’ de certos animais) não justifica esta pretensão a um direitoexclusivo dos seres de nossa espécie à dignidade. Para outros, sem dúvidasensíveis a esta argumentação, esta reivindicação só se tornaria legítimase o homem chegasse a superar-se pela aplicação de seus próprios artifí-cios científicos e técnicos.

Penso, de fato, que animalidade, humanidade e superação de si ou sobre-humanidade são facetas indissociáveis da natureza humana. Elas constitu-em as condições do surgimento das origens de nossa espécie, e com asquais será necessário ainda contar para que possamos nos engajar sempremais distante no futuro. É graças a tais qualidades da natureza que o ho-mem soube criar este mundo de cultura e de conhecimentos, ao contato doqual se forja a personalidade de cada um. Graças ao saber cumulativo dogênio humano, sabemos que não estamos fora da natureza, nem no centrodo Universo, nem no cume do mundo dos vivos, nem mesmo, desde Freud,plenamente conscientes das razões psicológicas de todas as nossas ações.Em contrapartida, a evolução biológica dotou-nos desta duvidosa proprie-dade de nos reivindicarmos livres, e, conseqüentemente — qualquer queseja, entretanto, o caráter às vezes ilusório desta reivindicação — de nossabermos responsáveis por nossas ações. Lá — e apenas lá, mas isto mudatudo — encontra-se esta assimetria de situação, fundando a evidência deum pensamento humano renovado, assimetria entre um ser responsávelpelas conseqüências do exercício de seu poder sobre um mundo de natu-reza que em nada é responsável, nem por ela nem por nós.

1 FUKUYAMA, Francis. La fin de l’Histoire, diz ans après.

Le Monde, 17 de julho de 1999.

2 LECOURT, Dominique. Humain, post-humain. PUF, Paris, 2003.

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Os futuros historiadores da nossa contemporaneidade provavelmenteterão que renunciar a fazer uma história de longa duração, aquela emque o devir se mostra – nas palavras de Foucault – como um “declivesuave”. Vivemos aquilo que se tem designado como a aceleração dotempo histórico, em que a experiência da sucessão é marcada maispelas rupturas do que pela continuidade. O caráter abrupto das mu-danças, o paradoxo dos pequenos intervalos vividos como longas dis-tâncias, a rapidez das superações que ocorrem por via do esquecimento,tudo isso aparece como um testemunho tardio de que o tempo, comodizia Agostinho, é distensão subjetiva e não o transcurso das coisas.Por outro lado, ao experimentar essa velocidade, sentimos que tudo

f r a n k l i n l e o p o l d o e s i l v a

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depende dos acontecimentos que se dão na dimensão objetiva de uma redede determinações históricas que dominamos cada vez menos. Assim, o fe-nômeno que Husserl chamou de “consciência íntima do tempo” manifesta-setambém como estranhamento já que, no próprio ato de representar o tempo,parece que ele nos escapa, menos pela sucessão do que perdemos devidoao caráter efêmero das coisas, do que pelo acúmulo do que nos é trazidopelas transformações, e que mal podemos compreender ou controlar.Assim, a compreensão do tempo histórico fica como que suspensa numahesitação entre a pretensão subjetiva de dominar o tempo através da liber-dade de vivê-lo e a necessidade que nos arrasta num fluxo de mutaçõesmais rápido do que o ritmo de nossa experiência da temporalidade.

Daí deriva a ambigüidade que afeta o significado das mutações. Elas pro-vêm da história que fazemos, mas também daquilo que a história vemfazendo de nós. E aí estaria a raiz do drama contemporâneo enquantotensão entre um sujeito exacerbadamente ativo e ao mesmo tempo intei-ramente passivo quanto à recepção do resultado de suas ações. Em ou-tras palavras, o sujeito é agente de uma história que, por se revelar numfluxo acelerado de mutações, lhe escapa, frustra suas intenções e o desti-tui de sua autonomia. Há que se observar ainda um paradoxo decorrentede que o acúmulo das mutações e a multiplicidade dos conteúdos daexperiência temporal não a torna mais densa e sim, pelo contrário maisfluida, pela impossibilidade de que essa experiência se dê rente ao tem-po real, de modo que o sujeito pudesse vivê-lo plenamente. Tudo se passacomo se a quantidade das mutações nos impedisse de experimentar aqualidade de um tempo vivido como transformação. O que se reflete nadificuldade de se apreender o significado do devir histórico: por quemudamos e para onde nos levam tantas mudanças. Por um lado, apreci-amos a extensão e o alcance das mudanças, que nos revelariam o “pro-gresso”; por outro lado, recuamos perplexos diante da intensidade comque deveríamos vivê-las. Como não apreendemos inteiramente o signifi-cado do devir histórico, resignamo-nos a tomar esse fluxo acelerado comoum fim em si mesmo. A conseqüência dessa perda do horizonte dasmutações é um certo empobrecimento existencial e histórico que nos fazviver o efêmero como o descartável e a facilidade com que transitamosentre essas duas significações implica a banalização da experiência.

José M. M. Monteiro
José M. M. Monteiro
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o s w a l d o g i a c o i a j ú n i o r

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Nietzsche é conhecido sobretudo pelo ímpeto disruptivo de sua crítica:

“Conheço a minha sina. Um dia, meu nome será ligado à lembrança dealgo tremendo – de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da maisprofunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo oque até então foi acreditado, santificado, requerido. Eu não sou um homem.Sou dinamite.” 1

Contudo, há também um lado positivo e afirmativo em sua filosofia, que sem-pre empalidece, se contraposto à de seus ataques arrasadores contra todosos bastiões que protegem as principais esferas da cultura, da religião à polí-tica, da moral à economia, da educação à estética. Com a morte de Deus,Nietzsche anuncia a mais radical e profunda crise da razão na modernidadee, com sua reflexão sobre o niilismo, a derrocada, o esgotamento, a perda desentido e contingência por parte dos supremos valores que até agora deter-minaram o curso do processo civilizatório no Ocidente; e, ao fazê-lo, proveramuma perspectiva de sentido para a existência e para a história humana.

Com tudo isso, sugiro que o pensamento de Nietzsche é, em seu estratomais fundamental, uma filosofia da mutação, justamente porque é capaz depensar a catástrofe até suas derradeiras conseqüências. E, nesse sentido, ocurso da história se desvela, para ele, a partir de duas mutações epocais,que assentaram os trilhos para a marcha da história universal.

Uma primeira mutação ocorre na antiguidade clássica e dá início a umlongo e ainda em curso processo de decadência - a perempção da culturatrágica na antigüidade grega, dá lugar ao processo de decadência culturalque culmina na modernidade. Esse ocaso pode ser simbolizado na figurade Sócrates, como o signo maior do otimismo ínsito à essência da lógicae da dialética, otimismo que anima a crença na onipotência da razão; esta,guiada pelo fio condutor da causalidade, colocar-se-ia na condição dedecifrar todos os enigmas do universo - e não somente solucioná-los, mastambém de corrigi-los.

Assim, uma grande mutação dá origem à cultura científica do Ocidente ese reflete na figura de Sócrates - o mestre supremo do logos científico.“Quem alguma vez tornou visível para si como depois de Sócrates, o

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mistagogo da ciência, uma escola filosófica é substituída pela outra,como a onda pela onda; como, nos mais remotos domínios do mundocultivado e como a autêntica tarefa para toda aptidão mais elevada,uma universalidade da ânsia de saber, nunca suspeitada, conduziu aciência ao alto mar, do qual, desde então, ela jamais pôde ser de novocompletamente removida; como, primeiramente por meio dessa uni-versalidade, uma rede comum do pensamento foi estendida sobre oconjunto do globo terrestre, sim com vistas à legalidade de um sistemasolar inteiro; quem tornou presente para si mesmo tudo isso, juntocom a surpreendente pirâmide de saber da atualidade - esse não podese recusar a ver em Sócrates o ponto de inflexão e o vértice da assimchamada história universal” 2.

Por outro lado, a conseqüência e o aprofundamento dessa mutaçãodeu gerou a confluência helenística entre a racionalidade socrática ea religiosidade cristã. Esta, depois de avatares e peripécias culturais,lastreada numa cumplicidade velada com a ciência moderna, engen-drou a situação crítica que, em nossos dias, se abisma numa espéciede catástrofe dos valores superiores.

Mas, como a catástrofe trágica, ela é também prenúncio de nova muta-ção: a transvaloração de todos os valores, a auto-supressão da moralcristã atualmente secularizada no idealismo da vontade de verdade.E assim, a catástrofe da razão, que constitui o autêntico significado doniilismo, entendido como lógica da decadência, é também o anúncioe aurora de uma nova mutação – aquela que se instituirá como o resgateda inocência do vir-a-ser, para além de toda culpa e de toda necessidadede expiação. Sob tal perspectiva seria necessário repensar temas como oAlém-do-Homem, a avaliação da gênese dos valores culturais dominan-tes, bem como o imperativo de instituição de novas tábuas de valor.

1 NIETZSCHE, F. Ecce Homo Por que sou um Destino, 1. Trad. Paulo César de

Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 109.

2 NIETZSCHE, F. Die Geburt der Tragödie, parágrafo 15. In: Sämtliche Werke

Kritische Studienausgabe (KSA) Ed. G. Colli und M. Montinari, Berlin, New

York, München: de Gruyter, DTV. 1980, vol. 1. p. 99s.

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Os homens sonham com a ciência antes de fazê-la. No pano de fundo detodo programa de pesquisa científica ou tecnológica, segundo Karl Popper,encontram-se visões de mundo, respostas às grandes questões sobre oser, o tempo ou o homem que o positivismo chama de “metafísicas” paramelhor esvaziá-las, porque nada há a dizer sobre esse assunto, que, naverdade, jamais poderá ser eliminado.

Os discursos visionários ou ideológicos que acompanham o desenvol-vimento das tecnologias de ponta têm, pelo menos, o mérito de noslembrar que os cientistas fazem metafísica, quase sempre sem o saber.Um papel modesto e, entretanto, essencial que pode e deve representaro filósofo, consistindo em evidenciar e sistematizar esta metafísica im-plícita, para apreciar sua coerência e, sobretudo, submetê-la à críticada Cidade. É inútil esperar uma democracia científica sem este traba-lho. Mas é igualmente assim que o filósofo poderá, talvez, responder aesta questão fundamental: a ciência e a técnica, que dominam nossassociedades, podem ajudar a preencher o vazio de sentido que pareceafetá-las? Ou, ao contrário, não seriam elas as principais responsá-veis por este vazio?

Faz agora alguns anos que eu trabalho como filósofo sobre a ética dasnanotecnologias - a “nanoética” como a chamam agora - ou, maisprecisamente, sobre a ética da denominada “convergência NBIC”, que

j e a n - p i e r r e d u p u y *

* conferência em português

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é a convergência entre Nano, Bio, Infotecnologias e Ciências Cognitivas.É a propósito desta convergência que eu gostaria, em minha confe-rência, de tentar responder às questões que acabo de apresentar.

O componente mais visível do sonho nanotecnológico é o de tomar olugar da bricolagem, que constituiu até agora a evolução natural e bio-lógica para substituir o paradigma da concepção (design). DamienBroderick, um dos mais influentes visionários neste domínio, falou sobretodo o desprezo que lhe inspirava a natureza tal qual o homem a encon-trou: “Não se pode pensar que nanosistemas, concebidos pelo espíritohumano, venham a dar um curto-circuito em toda esta idéia erráticadarwiniana, para precipitar-se diretamente rumo ao sucesso do design?”É fascinante ver a ciência americana, que teve que levar um embate duropara expulsar do ensino público todo vestígio de criacionismo, inclusiveem seus avatares mais recentes, como a inteligência design, reencon-trar através do programa nanotecnológico a problemática do design, como homem doravante no papel do demiurgo.

O filósofo poderia se encontrar em terreno conhecido. Encarnaria aqui odesenho que Descartes confere ao homem graças à intermediação daciência: tornar-se mestre e possuidor da natureza, inclusive da naturezahumana. A natureza torna-se artificial, o homem rebela-se contra o insti-tuído, e, antes de tudo, contra tudo o que constitui sua finitude: sua mor-talidade, mas também o fato de que nasça do ventre de uma mulher e,pois, não seja mestre de seu processo de fabricação.

Seria deixar de lado o essencial. Outro visionário influente, Kevin Kelly,disse o seguinte: “Foi necessário um longo tempo para compreender que opoder de uma técnica era proporcional à sua falta intrínseca de controle, àsua incapacidade de nos surpreender, engendrando o radicalmente novo. Naverdade, se nós não sentimos inquietude diante de uma técnica, é porque elanão é revolucionária o suficiente”. O “nano-sonho” estando, em última ins-tância, por provocar na natureza processos complexos irreversíveis, o enge-nheiro de amanhã não será um aprendiz-feiticeiro por negligência ouincompetência, mas por desenho (design). O verdadeiro design, hoje, não é ocontrole, mas o seu contrário.

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A história dos povos e dos indivíduos flui, muda sempre, como umcurso d’água em caudal contínuo. Ninguém vive duas vezes os mes-mos eventos. “Não é possível mergulhar duas vezes no mesmo rio”,escreveu o filósofo grego Heráclito no final do século VI a.C.

Todavia, o sentido da mutação é embaciado pelo peso das tradições,pela contingência dos fatos e pela abrangência das rupturas. Refle-tindo sobre estes temas, Fernand Braudel, num texto que se tornouum dos clássico das Ciências Humanas contemporâneas, distingueos três arcos concêntricos do tempo histórico.1

No arco de fundo desenrola-se o tempo longo, “uma história lenta,quase imóvel, a história do tempo geográfico onde vem se inscreveras sociedades e as civilizações brevemente agitadas pelas oscilaçõescurtas da história dos acontecimentos”. No arco ou na cena medianasucede o tempo social composto por “uma história lentamente ritmada,...uma história dos grupos e das comunidades”. Enfim, na cena deprimeiro plano corre o tempo curto ou tempo individual. É o tempoda história tradicional, na dimensão do indivíduo e não do homemprovido de sua consciência coletiva. Aqui intervém uma história dosacontecimentos (événementielle) ... marcada por “uma agitação desuperfície, pelas ondas que as marés levantam no seu possantemovimento; uma história de oscilações breves”.

l u i z f e l i p e d e a l e n c a s t r o

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Na concepção braudeliana, o historiador – envolvido pela movimentocurto dos eventos cotidianos – procura divisar o tempo social medianoe, mais além, o tempo longo, para compreender a verdadeira dimen-são da temporalidade histórica.

Há acontecimentos da atualidade brasileira que ilustram a mutação nocontexto da concentricidade temporal explicada por Braudel. Assim, osucesso do agronegócio e, em particular, da agroindústriasucroalcoleira, remete a um tempo longo que incorpora o tempo socialmediano e também o tempo curto dos eventos imediatos.

No tempo longo, os fatos são conhecidos. A colonização portuguesanasceu em torno do engenho de açúcar. O Brasil entrou no mapa domundo porque exportava açúcar. Tido como a mais importantecommodity da época, o açúcar sustentou a colônia nos dois primeirosséculos. Mesmo no século XVIII -, o século das Minas Gerais –, a pro-dução açucareira proporcionou maiores rendimentos do que a produ-ção de ouro, como demonstrou Stuart B. Schwartz. Gilberto Freyre vaimais longe em suas análises para situar as relações sociais engendra-das nos engenhos no cerne da sociedade colonial e imperial.

Agora, embalado pela baixa das tarifas de importação na União Européiae nos EUA, e pelo consumo crescente de biocombustíveis, a culturacanavieira ganha de novo grande destaque. Lula vê no etanol a salva-ção da lavoura, do Brasil e do mundo.

Quem conhece a história do Brasil sabe como a grande lavoura açucareiracarrega uma tradição de escravismo, de trabalho compulsório, de explo-ração de assalariados, de miséria social e de ruína do meio ambiente.Sabe também como esta atividade deu lugar às oligarquias mais atrasa-das de nosso país e a um mandonismo regional autoritário e tinhoso.

Os estragos sociais não cessaram. Pago pela quantidade de cana cor-tada, o trabalhador rural se submete a uma forma precária deassalariamento. Como no início da Revolução Industrial oitocentista, oaumento da produtividade intensifica a cadência do trabalho. Segundoos especialistas, nos anos 80, um trabalhador cortava quatro toneladas

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e ganhava o equivalente a R$9,09 por dia. Hoje, corta na média 15 toneladase ganha cerca de R$6,88 por dia. Um milhão de homens, mulheres e criançastrabalham no corte de cana no Brasil.

Neste contexto, o passado mal sarado de três séculos de escravidão de voltaà tona. No mês de março, quando Lula saudava os usineiros como “heróisnacionais e mundiais”, o Ministério do Trabalho descobria cortadores de canasubmetidos a uma situação sub-humana numa grande usina paulista.De quebra, o Ministério Público do Trabalho, afirmou que esta situação é co-mum em São Paulo, estado de onde sai 60% da produção nacional de etanol.

Por detrás do sucesso do agronegócio prenuncia-se o espectro davulnerabilidade econômica do país, de novo fascinado por sua “vocaçãoagrícola”. Regressão ou progresso? Mutação ou continuidade? Trazendopara o presente cinco séculos de história, a agroindústria açucareira serve deilustração para pensar o Brasil na nova divisão internacional do trabalho.

1 Fernand Braudel, Ecrits sur l’histoire, éd. Flammarion, Paris, 1969, rééd. 1977.

Ver ainda a este respeito, Gérard Noiriel, “Comment on récrit l’histoire. Les

usages du temps dans les Écrits sur l’histoire de Fernand Braudel”, na Revue

d’Histoire du XIXème. Siècle, n. 25, 2002. Número dedicado ao tema “O tempo e

os historiadores”.

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As neurociências cognitivas exploram as propriedade psicológicas eas bases cerebrais dos processos mentais os mais diversos, utilizan-do uma abordagem dinâmica que conjuga o estudo de pacientes comlesões cerebrais, a psicologia experimental e as imagens cerebraisfuncionais. No campo da consciência e do inconsciente esta aborda-gem permitiu, no espaço de uns quarenta anos, transformar a con-cepção científica da vida mental inconsciente através de três grandesresultados experimentais. Falemos primeiro sobre a definição funci-onal e descritiva do que se entende por “consciente” e “inconsciente”a fim de dissipar todo mal-entendido. Assim como Freud o formulavadesde 1912, em Nota sobre o inconsciente em psicanálise, é possívelpartir de uma definição descritiva, em negativo, do que se entende

l i o n e l n a c c a c h e *

* conferência em francês com tradução simultânea

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por inconsciente: “Chamemos agora de ‘consciente’ a representação queestá presente em nossa consciência e da qual temos conhecimento, edigamos que é o único significado do termo ‘consciente’. Quanto àsrepresentações latentes, se nós temos qualquer razão para supor queelas existem no espírito - como era o caso da memória - elas serãodesignadas pelo termo ‘inconsciente’ (Freud, 1991). À luz deste critériode “capacidade de relação mental”, torna-se possível pesquisardissociações entre quaisquer performances cognitivas (perceptivas,motoras, emocionais, categorização semântica, operações lingüísticasetc.) que surgem inconscientemente, quer dizer, na ausência de umarelação consciente. A neuropsicologia cognitiva contemporânea teveaqui um papel particularmente original, revelando tais dissociaçõessob formas muito variadas.

O primeiro resultado experimental maior neste campo de pesquisa dizrespeito à diversidade e à riqueza das operações mentais realizáveisinconscientemente. Longe de serem reduzidas a processos arcaicos,simplórios, automáticos, rígidos, inexpressivos, estas operações extre-mamente variáveis chegam a ser altamente complexas como a repre-sentação inconsciente de certos atributos semânticos de palavrasescritas. O significado de uma palavra não percebido conscientementepode ser inconscientemente representado. A este princípio de diversi-dade e de riqueza psicológica da vida mental inconsciente faz eco aausência de setorização anatômica estrita dos correlatos cerebrais dosprocessos cognitivos inconscientes. Este segundo resultado pulveri-zou, definitivamente, as diferentes concepções anatomicamentecompartimentadas da vida mental consciente e inconsciente. As repre-sentações mentais inconscientes não estão imprensadas nos andares“inferiores” do sistema nervoso, mas se pode encontrá-las virtual-mente dentro de qualquer região neo-cortical: o inconsciente é‘corticado’! Enfim, o terceiro resultado importante, cujo alcance nóssó conseguimos entrever, se dirige às relações entre nossa atividademental consciente e os inconscientes multicoloridos que nos habitam.Alguns desses processos inconscientes não se desdobram de maneiraindependente de nossa atenção e de nossas estratégias conscientes,mas eles são, ao contrário, muito sensíveis ao nosso comportamentoconsciente. Quer dizer, nós agimos sem o conhecimento sobre alguns

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de nossos processos cognitivos inconscientes. Esta plasticidade eesta sensibilidade de certos aspectos de nossa vida mental inconsci-ente poderiam conduzir a alguns progressos terapêuticos eergonômicos interessantes.

Estes três avanços maiores devem ser confrontados a dois outros resul-tados particularmente importantes: essas representações inconscienteplurais não são em nada comparáveis a nossos pensamentos consci-entes. Existem propriedades que parecem exclusivamente reservadas anossas representações mentais conscientes: a capacidade de manterativamente uma representação por um tempo virtualmente ilimitado pre-cisa de um modo de tratamento consciente. O conjunto de situações decognição inconsciente revela o caráter muito evanescente das repre-sentações mentais inconscientes, que desaparecem em algumas cen-tenas de milésimos de segundos. A segunda grande limitação trata doque se chama a dinâmica do controle estratégico: a adoção de umanova estratégia de tratamento da informação, a invenção de um novomodo de tratamento, a modificação do nível de controle executivonecessitam da tomada de consciência do parâmetro que justifica essasmudanças (Dahaene e Naccache, 2001).

Quando se relê os escritos de Freud sobre o inconsciente, levando emconta a evolução própria de seu pensamento (exemplo: através dos doistópicos), é possível destacar os pontos de convergência, mas igual-mente os motivos de divergência, por exemplo a oposição radical entreo “sistema Ics” e o conjunto dos processos cognitivos inconscientesobjetivados pelas neurociências contemporâneas.

Sem entrar aqui nos detalhes desta confrontação, eis que o modelofreudiano do inconsciente apresenta uma incompatibilidade maior comnossa concepção contemporânea. Para além das intuições geniais (elasexistem, evidentemente) de Freud sobre o conteúdo de nossa vida mentalinconsciente, a pedra angular do edifício freudiano, que é o conceitode recalque, parece consciente demais! Exercer o controle cognitivosobre as representações inconscientes a fim de impedir o acesso aosistema preconsciente-consciente, à imagem destes “guardiões da pazmental”, descritos por Freud em sua conferência de Worcester, proferi-

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da em 1909, exige a consciência. Numerosas experiências implacáveis eelegantes da psicologia cognitiva contemporânea nos ensinaram de fatoque sem consciência do estímulo a controlar, o controle estratégico nãopode ser exercido. O recalque de Freud não é um mecanismo de nega-ção consciente. O segundo problema diz respeito à duração de vida des-tas representações mentais inconscientes, representações que parecem,segundo Freud, deslizar imperturbavelmente, tais como os cisnes majesto-sos e atravessar a existência de um indivíduo desde a sua primeira infância:a eternidade deste inconsciente contrasta de maneira palpável com a inelu-tável evanescência mencionada anteriormente. Como decorrência destacomparação parece assim que Freud provavelmente não descobriu o in-consciente, mas antes de tudo o inventou: o inconsciente freudiano vistocomo uma ficção consciente de Freud (Naccache, 2006).

O que resulta deste exercício de exegese? Basta destacar essas con-clusões, ou podemos tentar propor uma nova interpretação do discursofreudiano sobre o inconsciente, distinguindo claramente os “incons-cientes contemporâneos”? A tese que eu sustento visa a defender aidéia de que, atrás deste “erro de Freud”, nós descobrimos a propri-edade fundamental não de nosso inconsciente mas de nossa consciência:a necessidade vital que nós temos de inventar conscientemente asficções mentais para chegar a existir. O inconsciente freudiano sóexiste como uma crença fictícia que permite à nossa consciência encon-trar um significado para os acontecimentos de nossa vida psíquica.Ainda que sendo construções fictícias, essas construçõesinterpretativas conscientes não deixam de guiar o rumo de nos-sas ações e acabam, pois, por inscreverem-se em nossa realidade.A psicanálise freudiana é a primeira tentativa séria e capaz de inte-ressar-se por ficções mentais, e de reconhecer sua importância vitalem nossa existência. Suas afirmações teóricas sobre a natureza denosso psiquismo (em particular de nosso “inconsciente”) são, elastambém, altamente fictícias, mas o trabalho muito específico queela põe em marcha desenvolve-se diretamente a partir do interiordo sujeito em nível pertinente à sua economia psíquica. A leitura deFreud que proponho aqui me parece estar de acordo, em relação aeste ponto, com certas idéias desenvolvidas por Paul Ricoeur emsua obra sobre a psicanálise freudiana, Da interpretação, na qual

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há o seguinte subtítulo: A psicanálise não é uma ciência de observação.O conteúdo desta passagem soa harmoniosamente com nossa propo-sição de que a psicanálise freudiana é uma abordagem imediatamenteinterpretativa e não precedida de uma fase descritiva dos fenômenospsicológicos (Ricoeur, 1995).

Assim Freud abriu, sem dúvida de maneira intencional, as portas dasneurociências da arte da ficção, faculdade fundamental de nossaatividade mental consciente, arte da ficção que nós apenas come-çamos a explorar nos laboratórios das neurociências cognitivas.

Referências bibliográficas

DAHAENE, S.; NACCACHE, L. Towards a cognitive neuroscienceof consciousness: basic evidence and a workspace framework. Cognition 79 (1-2): 1-37, 2001.

FREUD, S. Métapsychologie. Paris : Gallimard, 1991.NACCACHE, L. Visual phenomenal consciousnes : a neurological

guided tour. Prog Brain Res 150C : 185-195, 2005.NACCACHE, L. Le nouvel inconscient, Freud, Christophe Colomb

des neurosciences. Paris : Odile Jacob, 2006.RICOUER, P. De l’interprétation. Paris : Seuil, 1995.WEISKRANTZ, L. Consciousness lost and found : a neuropsychological

exploration. New York: Oxford University Press, 1997.

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Nosso ciclo de palestras parte do pressuposto de que estamos vivendouma época de mutação. Mas mutação é passagem de um a outro estadode coisas, e toda a questão se resume em saber se nosso presente éfruto de uma mutação já consumada, ou se é transição para uma muta-ção ainda por vir.

No primeiro caso, o conceito de mutação está associado a uma visãopessimista da história. Para ela, somos vítimas de uma mutação ocor-rida com o advento da modernidade, cataclismo histórico que des-truiu valores e referências fixas, e nos expôs à anomia, à desorientaçãoexistencial, à incapacidade de pensar o homem e seu futuro. Ficamosentregues a uma tecnociência cega, que se desprendeu do humanismoda Renascença e do Iluminismo, e nos deixou órfãos de sentido,num mundo privado de certezas. Para essa concepção, somos todosmutantes, frutos lamentáveis de uma corrupção que já aconteceu,tristes descendentes de uma humanidade perdida para sempre.

s é r g i o p a u l o r o u a n e t

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No segundo caso, a mutação ainda não se deu, o que justifica um certootimismo. Mesmo que nosso presente seja tão assustador quanto odescrevem os partidários da versão pessimista, ele nos oferece os ins-trumentos para preparar uma verdadeira mutação, em que o homemrecupere a capacidade de pensar o ser e programar seu destino, emvez de ser arrastado por uma tecnociência que lhe tira a visão do todoe o arrasta, como um turbilhão, em direção a um futuro não desejado.

Num caso, a mutação é um fato, realidade já dada, ou, se me permitemum jogo de palavras, um Fado, um Fatum latino, decreto do destino, decuja redação o homem não participou; no outro caso, é utopia, algo aser construído pelo homem, no bojo de uma teologia da história quenão perdeu inteiramente o contato com a idéia messiânica.

Gostaria de explorar a segunda concepção, mostrando que grande par-te de nossa sensação de impotência diante do desdobramento aparen-temente incontrolável da técnica vem do fato de que a extremafragmentação do saber nos impede de aceder a uma visão clara doprocesso de conhecimento como um todo. O progresso da ciência sóse tornou possível graças à divisão intelectual do trabalho, mas essamesma divisão bloqueou a possibilidade de qualquer sobrevôogeneralista, sem o qual não temos como dar sentido e direção ao de-senvolvimento científico-tecnológico. Mas a perda de sentido geradapelo desaparecimento da visão de conjunto não foi o efeito de umamutação trágica, e sim uma conseqüência natural da extrema complexi-dade e diversificação alcançada pela ciência pelo menos desde Galileu.Os resultados são terríveis, mas não foram gerados por nenhuma gran-de mutação. A mutação está à nossa frente. É agora que ela se impõe.É preciso que haja uma inflexão, a passagem para uma etapa em que ohomem volte a ser sujeito do processo de geração e aplicação do conhe-cimento. A mutação que pretendemos deverá devolver ao homem a ca-pacidade de ter uma visão de conjunto das atividades técnico-científicas,sem o que a democracia seria substituída pela logocracia. Sem dúvida,a obsessão com o todo não deve levar o homem a subestimar o conhe-cimento do particular. Segundo Adorno, totalidade e totalitarismo sãotermos correlatos. Mas o desejo de vislumbrar o conjunto não deve serconfundido com a aspiração fáustica de aceder ao saber soberano,

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cujo verdadeiro nome é poder. Ele exprime, simplesmente, a vontade denão se resignar à impotência, de não abdicar diante de um processo quese passa à nossa revelia, de não aceitar passivamente um sacrificiumintellectus que nenhuma divindade impôs, de não aceitar a interdiçãoimposta à razão humana de compreender o movimento do todo. A muta-ção que queremos é a que foi prenunciada na Encyclopédie, que reco-nhecia as fronteiras disciplinares, mas procurava facilitar a comunicaçãoentre as várias áreas do conhecimento. É também em parte a que foiimaginada pelo Círculo de Viena, que partindo do princípio da unidadeontológica do real, defendia, na Encyclopaedia of Unified Science, aidéia de uma unidade da linguagem científica, mesmo que não se alcan-çasse a unidade das leis. Mas é sobretudo a que foi antevista por Pascal,ele próprio pensador sem fronteiras, inventor, matemático, filósofo eteólogo. “Todas as coisas sendo causadas e causantes”, escreveuPascal, “e todas elas se comunicando por um laço natural e insensívelque liga as mais afastadas e as mais diversas, considero impossívelconhecer as partes sem conhecer o todo, ou conhecer o todo semconhecer particularmente as partes.”

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Foucault dizia que o poder no mundo contemporâneo deixou de operarsegundo os velhos cânones da modernidade, quando se constituiu numbio-poder, cuja finalidade passou a ser a administração da vida biológicados homens, visados como corpos naturais e não mais como animaispolíticos. Essa mutação do poder foi acompanhada pelo surgimento denossas formas de dominação, diferentes daquelas às quais estávamos acos-tumados, quando estudávamos os regimes ditatoriais e tirânicos. Os regi-mes totalitários não foram, nessa perspectiva, um acidente histórico, mas,como afirma Giorgio Agamben, a realização plena de um novo paradigmada contemporaneidade.

n e w t o n b i g n o t t o

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Essa nova configuração da política operou uma mutação da pró-pria investigação sobre a condição humana. Em plenoRenascimento, o filósofo italiano Pico della Mirandola afirmou queo homem é o único animal capaz de criar sua própria condição.Servindo-se de sua liberdade, pode realizar obras extraordinárias ecom isso se igualar aos deuses, ou pode mergulhar no horizontesombrio da desmedida e igualar-se às bestas. A modernidade seapresentou para muitos filósofos como o momento históricono qual o homem se lançou na busca de sua vertente solar,através do uso sistemático da razão, para a busca de conheci-mentos que o libertassem das muitas amarras que o prendiamao passado de trevas.

O século XX viu essas trevas ocuparem o centro da cena mundial eenterrou para sempre a idéia de que o progresso da civilização irianos livrar de nossas fraquezas e defeitos. O século da técnica e dosavanços espetaculares da ciência foi também o século dos massa-cres e do aparecimento da morte em escala industrial. O surgimentodas sociedades totalitárias mudou nosso modo de ver a condiçãohumana e seus caminhos. Tudo se passa como se a partir de agoranão pudéssemos mais esquecer da besta, que Pico della Mirandolavia como uma das possibilidades de nossa natureza.

Essa nova realidade, que teimosamente alguns insistem em escon-der, como se os regimes totalitários fossem apenas equívocos deum percurso destinado ao sucesso, descortina dois horizontesde investigação, que mudam o mapa de nossas inquietações.O primeiro diz respeito àqueles que praticam atos bárbaros res-paldados pelo poder de Estado. Trata-se aqui de pensar a barbárie,que nasce no seio das organizações destinadas a ordenar a vidaem comum dos homens. Nessa perspectiva, o velho problemado mal, que faz parte da tradição filosófica desde a antiguidade, érevisitado à luz de um conjunto de práticas, que não podem sercompreendidas apenas com um desvio do bem. A crueldade doscarrascos contemporâneos deve ser olhada pelo prisma de umarazão que, aceitando suas limitações, evita a armadilha da indi-ferença e da nostalgia.

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Os regimes totalitários nos forçam também a buscar compreender oterritório ético surgido com a narração das experiências daqueles queforam vítimas das políticas de extermínios dos regimes extremos.A palavra dos sobreviventes abre um campo de investigação, quenão pode ser demarcado pelas fronteiras de uma moral convencio-nal, que se limita a nos ensinar a compaixão pelos que sofrem.A verdadeira descida aos infernos dos que foram internados noscampos de concentração nos obriga a pensar os limites de umanatureza submetida ao quase aniquilamento. Essa nova fronteira dador abre a possibilidade de explorar uma dimensão de nossa hu-manidade, que não podia ser antevista pelos viajantes literáriosque, como Dante, procuraram explorar os reinos infernais. A partirdos relatos dos que voltaram, nos defrontamos com uma viagemque não possuía um guia genial e não termina com a libertação doúltimo círculo de provações. O mundo contemporâneo nos ensi-nou a viver sem a expectativa do paraíso e com limites que amodernidade lutou para afastar.

Nossa tarefa será a de acompanhar alguns passos da descidaaos infernos, que os regimes totalitários nos obrigaram a fazer, apartir da obra de alguns sobreviventes como Primo Levi, JeanAméry e Jorge Semprun. Com esse passo, pretendemos escla-recer os problemas éticos que surgem com a produção de umlugar de existência nas fronteiras do humano. Antes, porém,vamos tentar compreender, com Hannah Arendt, as mutaçõesocorridas nas sociedades políticas, que forjaram as condiçõespara que a experiência radical do degredo pudesse existir nointerior da contemporaneidade.

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O destino da poesia nas sociedades avançadas contemporâneas éontológico e temático. Passado por esta prova, em breve nem mesmode Dante restará grande coisa. Ora, a partir do momento em que umasociedade avança ou, se preferirmos, sobe no vagão do trem capitalistada mundialização, a poesia se extenua, seu valor mercadoria baixa, sua“influência”desaparece.

Pode a poesia tornar-se outra coisa?

Penso em uma entrevista dada por Eduardo Kac à revista Critique, nonúmero sobre “Mutants”. O que muda na poesia? Qual sua mutação?Eis o que diz Kac quando teoriza sobre “o uso artístico da mutação”:

“Foi a poesia que me levou a usar os novos mídia a partir dos anos 80”... “...somos naturalmente seres trangênicos”... “A bio-arte é uma artein vivo”... “Não existem normas. Só existem mutantes. O que importa éo que vocês sentem em vida”... “A mutação é inicialmente um médiumda mesma maneira que o óleo para a pintura”.

Trata-se nada menos que da expulsão da poesia para fora da esfera dológico, tomado no sentido arcaico grego, da palavra (logos), dolinguageiro e lingüístico (logikon), ou ainda daquilo que Barthes (noúltimo curso no Collège de France) chamava a frase. Ou seja, do poemaenquanto proposição, julgamento, articulação gramatical e lógica interes-sada em verdades e na verdade.

Podemos (nós, herdeiros da poesia ocidental) confiar o destino da poesiaa outro médium diferente do seu, ou seja, a linguagem da palavra?Não. Porque a língua não é “um médium”.

m i c h e l d é g u y *

* conferência em francês com tradução simultânea

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Se há uma relação humana e social que a maioria dos indivíduospensa ser imutável, é exatamente a das relações afetivas essenciais:o amor e a amizade. O sucesso sempre atual dos textos antigos quetratam desta questão, de Sêneca a Stendhal ou a Simmel, são teste-munhos eloqüentes disso. As pessoas referem-se freqüentemente aesses escritos canônicos, que parecem ter abordado todos os aspec-tos destas relações e cobrir todo o leque de respostas possíveis.

E, entretanto, nada há de mais diferente e mais oscilante no tempo eno espaço. Atualmente, constata-se que a amizade transformou-seprofundamente, e que o amor adquiriu cores novas, percebidasquase sempre como inquietantes. Não poderia ser diferente, uma

e u g è n e e n r i q u e z *

* conferência em francês com tradução simultânea

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vez que os laços sociais, que favoreciam um mínimo de coe-são entre os diversos grupos sociais e lhes permitia perdurar,parecem esgarçar-se e produzir uma fragmentação, e, até mes-mo, um deslocamento da sociedade, em que, de um modo ge-ral, tudo parece menos sólido e menos duradouro. Ora, oslaços sociais estabelecem-se não somente no trabalho emcomum e na confrontação não violenta dos interesses, mas,como Freud o demonstrou, na força da libido (libido sexualencarnada por Eros [amor] e libido sublimada [amizade], queunem os indivíduos e os faz entrar progressivamente nas“unidades cada vez maiores” [Freud], tais como cidades,regiões, nações, conjuntos internacionais ou mundiais).

A conferência terá por objetivo sublinhar as transformaçõesprofundas que afetam as “afinidades eletivas” e as suas ra-zões que têm a ver com a aparição de uma nova economiapsíquica e também com a evolução da dinâmica social. Não épossível, sem deixar de caricaturá-los, indicar os traçosmarcantes desta mutação. Digamos somente que a palestrainsistirá sobre o lado efêmero (líquido, diria Bauman) das rela-ções instauradas, sobre sua diversidade, sobre seus aspectosproblemáticos, sobre a busca do prazer imediato que elas mani-festam, sobre a perversão que as caracterizam mais de umavez, sobre a ausência de engajamento e de responsabilidadeque as acompanham, sobre a incomunicabilidade que elaspromovem (uma vez que elas exigem comunicação autêntica),sobre a tristeza, a solidão ou o cinismo aos quais elas acaba-rão por chegar. Elas têm dificuldade de manifestar-se de ou-tra forma – ainda que aspectos antigos e contraditóriossubsistam – de uma sociedade que proclama o “cada um porsi”, a luta de todos contra todos, o desprezo pelo mais fraco,a desigualdade generalizada, a injustiça e a insegurança social,apesar dos esforços meritórios desenvolvidos por numerosaspessoas para manter a solidariedade entre os seres queformam a espécie humana.

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Trata-se de compreender as mutações contemporâneas do tempo,com sua transformação de qualitativo em quantitativo, com aespacialização da duração, a perda da experiência e da qualidadedialética do vivido. Na época de sua aceleração e contração, o tempotem impacto na constituição das subjetividades modernas, na consti-tuição de personalidades desengajadas, pois juramento e promessadiziam respeito ao tempo longo e à longa duração. Em suasPassagens, Walter Benjamin indica, em fragmentos e citações, umdiagnóstico do tempo homogêneo e vazio que inviabiliza criar oureconhecer valores, constituindo uma patologia da experiênciaaxiológica e da liberdade. Da akedia grega à acídia medieval, da melan-colia barroca ao tédio baudelairiano, dá-se o confisco da dimensão dofuturo, instalando-se a Langeweile, a monotonia vinculada, esta, estri-tamente à repetição no processo produtivo (de um mesmo gesto, o dotrabalhador com a máquina), na produção em massa (circulação deprodutos padronizados), no consumo anômico, no capitalismo que nãosatisfaz necessidades nem desejos, mas os multiplica ao infinito. Aosespectros barrocos – cujo fantasma hamletiano é o emblema – suce-dem as fantasmagorias do capital, ao medo o pânico. Benjamin os ana-lisará referidos à vida política e às formas de bastilização da cidade, dapólis grega à Paris urbanizada por Hausmann, do espaço comum com-partilhado ao cinturão vermelho operário e suas barricadas.

o l g á r i a m a t o s

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Em uma referência à Grécia clássica, Benjamin enfatiza a impor-tância do tempo na democracia, tempo dedicado ao debate públi-co e ao pensamento: “[nos povos da Grécia] os espíritos estavamsempre em atividade, a coragem sempre excitada; As luzes do pensa-mento cresciam a cada dia” (Turgot, apud Benjamin, Passagens,trad. Irene Aron (alemão) e Cleonice Mourão (francês), ed. UFMG,2006, p. 520. “Arquivo N, “Teoria do Conhecimento, Teoria doProgresso”, N 12,3). Com isso, o mal-estar na temporalidade con-temporânea resulta em uma inatividade de pensamento, pois acultura capitalista produz arcaísmos e regressões,na fusão entreeconomia de mercado e sociedade de mercado. Neste horizonte,amonotonia se expressa na “consciência sonolenta” e no desejode “matar o tempo”.

Benjamin analisa o mal-estar da temporalidade aproximandoBlanqui e A eternidade pelos astros, o Eterno Retorno deNietzsche, o spleen baudelairiano e o fetichismo de Marx com osquais reflete sobre a Langeweile, monotonia que corresponde aotempo plasmado no presente, dominado pelo poder da contin-gência sobre a vida de cada um. Cultura do medo e do pânico, amodernidade substitui o tema metafísico das incertezas da vida e dahistória, pelo culto da insegurança. O capitalismo é, para Benjamin,o “ estado de exceção” em permanência, produz obsolescência naprodução e insegurança jurídica na vida política e social. Proce-dendo a uma heurística do medo, a teoria crítica benjaminianarevela a identidade contemporânea da economia e do tempo, dapolítica e do mercado, tempo fetichizado preenchido por esportesradicais, terrorismos, guerras, obesidade mórbida, anorexia, todosos descontentes da civilização.

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Desde a década de 1990, dados da OMS indicam um crescimento ex-pressivo dos casos de depressão nas sociedades ditas desenvolvidasdo Ocidente. As depressões representam, hoje, a manifestação predo-minante de expressão do “mal-estar” no mundo industrializado, alia-das a novas formas de sofrimento mental como as anorexias, asdrogadições e as manifestações delinqüenciais aparentemente gratui-tas. “Mal-estar” foi o termo designado por Freud para referir-se aocusto subjetivo das condições da vida em sociedade.

Penso que uma das causas mais significativas das depressões na soci-edade contemporânea – uma sociedade aparentemente “antidepressiva”– tenha sua origem na sedução exercida pelas formações imaginárias

m a r i a r i t a k e h l

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do estágio atual do capitalismo. Nas sociedades industriais do séculoXXI, o Outro, em sua face imaginária, manifesta-se através do espetáculo,cuja oferta de imagens recobre quase toda a face do planeta1. A tal abun-dância de ofertas não corresponde, como seria de se esperar, uma diver-sidade de sentidos. A onipresença da indústria do espetáculo emite umarepetição coerente de mensagens, que aparentemente se diversificam pararepetir sempre o mesmo mandato. Este mandato advém de formações doimaginário produzidas pela indústria das chamadas comunicações, o queimplica que seus enunciados deixem de ser inconscientes. Eles partemda esfera pública, cujos principais arautos são as mensagens publicitáriasemitidas pela televisão. De certa forma, é como se o fantasma, que situa osujeito junto ao Outro, deixasse de ser inconsciente – e as respostasfantasmáticas à pergunta “o que o Outro quer de mim?” já não estivessema cargo dos neuróticos.

O que o Outro exige do sujeito contemporâneo é que ele goze. Muito.Que esta seja uma das faces contraditórias do imperativo superegóico– “goze!/não goze!2” só faz tornar esta exigência, promovida a condi-ção organizadora do laço social, ainda mais angustiante e opressivapara os sujeitos.

Há que se levar em consideração, ainda, o modo como o imperativo dogozo se articula aos ideais de eficácia econômica. Tal articulação subverteuos ideais de renúncia pulsional que oprimiam os contemporâneos deFreud, convocados a sacrificar seu gozo a favor da produtividade na fasede consolidação do capitalismo industrial. O gozo, na sociedade contem-porânea, não se obtém nos intervalos de tempo roubados ao trabalho alie-nado. Na sociedade de consumo, gozar é a forma mais eficaz de trabalharpara o Outro. A dimensão subjetiva dos prazeres, das pulsões, dos afetos,transformou-se em força de trabalho na sociedade regida pela indústria daimagem3. O que este trabalho produz? Nada menos do que os sujeitos deque o atual estágio do capitalismo necessita: sujeitos esvaziados do quelhes é mais próprio, portanto disponíveis para os objetos e imagens queos convocam. Isto gira no vazio, na mesma velocidade em que se produ-zem as concentrações do capital virtual na bolsa de valores: um dinheiro aque não corresponde nenhuma produção de riquezas.

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Ao apropriar-se dos signos de gozo circulantes no imaginário social,os valores da eficiência econômica estendem-se a todos os âmbitos davida, numa escala sem precedentes na história. A afirmação de FredericJameson, para quem “o capitalismo colonizou o inconsciente”, deveser complementada com a advertência de Tomás Abraham4: “uma soci-edade sem valores extra-econômicos tende a uma deriva perigosa”.

A articulação entre angústia, servidão e fatalismo, que se escuta na clíni-ca dos depressivos, fala por si mesma: o nó que amarra esses três com-ponentes das depressões é o sentimento de superfluidade dos sujeitos,tomados tanto em sua singularidade desejante como em sua dimensãocriativa, de agentes capazes de produzir transformações na vida social5.

Podemos nos referir, sem pudor, a uma possível ressonância cínica dapredominância do econômico sobre o político, sobre o moral, sobretantas outras dimensões da vida social: se o mercado é a medida detodas as coisas, a condição do sujeito contemporâneo pode ser resumi-da em: tem valor porque se vende. O reconhecimento buscado é dovalor de venda de cada um. Só que já não é mais o trabalho alienadoaquilo que se vende. Nas condições atuais do mercado de trabalho talvalor é cada vez mais supérfluo. O que se vende, no estágio atual docapitalismo, é a dimensão mais íntima dos sujeitos, seu próprio valorde gozo6. O sujeito não vende seu tempo de trabalho; vende a si mesmocomo objeto de gozo para o Outro.

Gozar para se fazer instrumento do gozo do Outro e, dessa forma, gozarainda mais: trata-se de um imperativo verdadeiramente irrecusável. Nuncaa frase de Adorno esteve tão certa: “divertir-se é estar de acordo7”.As obras da cultura do divertimento já não disfarçam seu caráter de docu-mentos da barbárie. Sua função é instaurar o eterno presente da vida espe-tacular, para a qual todo passado é remoto e toda a experiência, supérflua.Assim se produzem os sujeitos expropriados da experiência do inconsci-ente e do desejo, ávidos pelo consumo de imagens8 que lhes indiquemquem eles são. Se não há como divergir de tal demanda-oferta de gozoproposta pelos “vencedores de turno”, é inevitável que a banalidade seimponha no campo das ações humanas, privadas de valor.

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Tais considerações atestam a atualidade da proposta de Walter Benjamin,desenvolvida desde A origem do drama barroco alemão até as Teses sobreo conceito de história, articulando a melancolia ao sentimento de fatalidadeque se produz quando a vida social transcorre em um mundo vazio dovalor da ação humana.

1 Ver Guy Débord, A sociedade do espetáculo (1967). Rio de Janeiro:

Contraponto, 2002. Tradução de Estela dos Santos Abreu. À p.17: “O espetáculo é

o sol que nunca se põe no império da passividade moderna”.

2 Para uma boa discussão do imperativo superegóico do gozo, ver Ricardo

Goldenberg (org.): Goza! Salvador: Ágalma, 1996.

3 Ver Maria Rita Kehl, “Três observações sobre os reality shows” em: Eugênio

Bucci e M.R.Kehl, Videologias . São Paulo: Boitempo, 2004, p. 173.

4 Tomás Abraham, “O neoliberalismo quer ser sociável e se maquia” em:

Goldenberg, Goza! cit., p. 55.

5 Hanna Arendt insiste nesta dimensão humana pouco contemplada pela

psicanálise: a capacidade de criar o novo a partir da ação, ou do trabalho.

Ver Arendt, The Human Condition. Chicago: The University of Chicago, 1958.

6 O conceito de valor de gozo é de autoria de Eugênio Bucci, em

Televisão objeto... .(cit).

7 T. Adorno, “A indústria cultural” (1947) em: Adorno e Horkheimer,

Dialética do Iluminismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. Tradução de Guido

Antonio de Almeida. À p 135: “Mas a afinidade original entre os negócios e

a diversão mostra-se em seu próprio sentido: a apologia da sociedade.

Divertir-se significa estar de acordo”.

8 Embora poucos possuam recursos para consumir os bens em oferta,

as imagens que ocupam a esfera pública são acessíveis a todos.

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Desde que Aristóteles identificou o acaso com a operação de causas efici-entes indeterminadas, ou seja, em menor ou maior grau desvinculadasdas correspondentes causas finais, e as classificou segundo as figuras detyché e automaton, o Ocidente buscou capturar e confinar a casualidadeatravés de três figuras redutoras: eventos imprevistos, ou fortuitos, ouacidentais - sintomas ou máscaras do casual - sucederiam quer por des-conhecermos causas indispensáveis para a correta descrição da origemde um acontecimento, quer pela convergência fortuita de séries causaisindependentes, quer, enfim, por desvios, transgressões, na aplicação deregras de outro modo plenamente determinadas. O acaso como ignorância,como coincidência, como variância. Algo, porém, acabou de mudar.

De fato, um dos avanços mais significativos das Matemáticas no séculoXX se deu com o estabelecimento das chamadas Teorias do Caos: resu-midamente, a realização de que diferenças minúsculas na configuraçãoinicial escolhida para a evolução de um sistema dinâmico podem conduzira estados finais vastamente distintos, o que implica que a longo prazo ocomportamento do sistema se torna rigorosamente impredizível – ou“caótico”. A razão é que, mediante a reiteração, acumulação e amplifica-ção dessas flutuações ao longo de um período suficientemente largo,pequenas causas podem dar lugar a grandes efeitos, e logo a umaimprevisibilidade radical, a uma genuína aleatoriedade: desde um estadopassado, abrem-se numerosos, incalculáveis estados futuros. Mesmoprocessos estritamente deterministas, descritos por relações em que cau-sas e efeitos estão univocamente relacionados, podem exibir essa sensi-bilidade não-linear a flutuações das condições iniciais. Talincomensurabilidade entre passado e futuro é especialmente importanteno caso de sistemas complexos, ou seja, compostos por muitos elemen-tos capazes de fazer muitas ligações entre si, e que podem exibir diver-sos níveis de organização, hierarquicamente estruturados - como osorganismos vivos e os agentes econômicos.

l u i z a l b e r t o o l i v e i r a

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A razão é que sistemas complexos são caracterizados por uma mediação– realizada pela hierarquia de modos de organização – entre o todo(o sistema) e a parte (os elementos); assim, ademais das ações que exer-cem e sofrem sobre e desde o meio externo, esses sistemas podem auto-afetar-se, ou seja, seu comportamento pode alterar sua própria estrutura eremodelar sua própria evolução. Ora, se uma espécie adquire a capacidadede manipular as cadeias moleculares que constituem os genomas dosorganismos, surge a possibilidade - ou tendência - de substituir-se a sele-ção natural como o operador da evolução biológica das espécies; umaneofinalidade tecnicamente administrada envida deslocar a casualidadedarwiniana. Ora, se o conjunto das atividades produtivas dessa espéciealcança uma escala planetária, a economia passa a ter por horizonte aecologia, a produção torna-se contexto para a própria produção; o mercadotem como limite a continuidade dele mesmo. Duplo dobramento, duplaindeterminação: a microinerência da técnica visando assegurar a realiza-ção da finalidade, a macroabrangência do capital visando assegurar aconversão do horizonte em contexto. Em ambos os casos, por ambas asvias, apresentam-se as condições para um desenvolvimento caótico.

Talvez se possa antecipar, acompanhando esta caotização da civilizaçãocontemporânea, a coexistência de dois movimentos díspares: por um lado,o engendramento técnico de entidades pós-humanas, através dasbiotécnicas e da nanotrônica, rumo à prevista Singularidade – o surgimentode uma inteligência não-humana, um alienígena terrestre, artificial; poroutro, o concomitante esforço de se administrar a sobrevivência – ou odestino final – de uma humanidade excessiva, obsoleta, quiçá dispensável.Recordemos que três séculos antes de Platão anatemizar a figura do caoscomo extremo absoluto da desordem, isto é, destruição última de todofundamento, Hesíodo nos apresentava a origem do Cosmos a partir de umChaos que é fenda, abertura, fundação. Em A loteria em Babilônia, Borgesnos sugere que um sistema de acasos suficientemente complexo – comprêmios, castigos, e sorteios de sorteios – seria indistinguível da vida, davida quotidiana de sempre. Ao que tudo indica, um novo tipo de acaso,uma nova errância fundadora, uma Fortuna que é também Parca, nos brin-dará em breve com uma visita. Que seja, então, profunda o bastante.

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f r é d é r i c g r o s *

* conferência em francês com tradução simultânea

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A violência hoje mudou de cara: atentados terroristas queatingem o coração das grandes cidades do mundo ocidental,“intervenções “ militares de altíssima tecnologia, decididas ecoordenadas por grandes potências em lugares longínquos,massacres e predações praticados por “senhores da guerra”nos países dilacerados à beira do Golfo... Novos personagenssurgiram: a criança-soldado, o terrorista, o engenheiro calcu-lando o trajeto de mísseis teleguiados... Estas grandes violên-cias coletivas e armadas aparecem sempre mais irredutíveisao modelo clássico da guerra. Fala-se sempre de reviravoltaspolíticas e econômicas resultantes da “mundialização”. Mas,poder-se-ia questionar também sobre a mudança profunda dosregimes de violência em nosso mundo “global”.

Para refletir esta mutação em toda a sua amplitude, é necessárioretornar, num primeiro momento, ao que a cultura ocidental cons-truiu sob o nome de “guerra”, como forma ética, política e jurí-dica da violência, como invenção cultural.

A filosofia moral sempre encontrou na guerra um lugar privilegi-ado de exemplos. Numerosas virtudes éticas, de Platão a Hegel,foram construídas a partir de uma idealização da figura do guer-reiro. Porque o modelo clássico da guerra supunha, para o sol-dado, um confronto com o inimigo em que se teria de manter-sefirme diante de uma ameaça de morte. Ora, a ética foi definidapor muito tempo como a capacidade de afirmar valores superioresà vida simplesmente imanente. É assim que a coragem em Platão,o sacrifício em Hegel, a obediência em Maquiavel, a superaçãode si em Nietzsche problematizam-se a partir da experiência deguerra como troca regulada pela morte.

A Europa moderna por outro lado foi construída, depois do fim daIdade Média e do desaparecimento do sonho do Império, comoum espaço político constituído por uma pluralidade de Estadossoberanos. Cada Estado devia definir seu lugar numa relação de

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forças permanentemente em movimento. A guerra foi então ampla-mente definida na filosofia política (de Bodin a Spinoza, de Hobbesa Schmitt) como uma necessidade: ela era o que deveria permitiraos Estados sobreviverem uns perante os outros. Só um estadode guerra permanente em suas fronteiras permitiria a um Estadoassegurar a paz civil interna. Além disso, a ameaça de um inimigocomum permitia ao Estado consolidar sua unidade interna.

Enfim, a guerra construiu-se amplamente como uma relação deviolência permeada por uma dimensão jurídica. Em uma con-cepção arcaica, a guerra é concebida como julgamento de Deus:ela dita o direito, separando o vencedor do vencido. Os teólogos,de Santo Tomás a Vitória, tentaram mais tarde definir as justasrazões que podiam permitir a um príncipe declarar guerra. Enfim,os teóricos dos direitos humanos quiseram editar, em nome dosEstados, regras que os beligerantes deviam respeitar em momen-tos de conflito (necessidade de uma declaração, respeito aos pri-sioneiros e às populações civis, etc).

A guerra definiu-se pois amplamente, na tradição ocidental, comouma reação de violência permeada por uma tensão ética (os valoresmarciais), uma afirmação política (manter a soberania do Estado-nação) e um quadro jurídico (o modelo das guerras justas). Pode-se encontrar aqui a estrutura de uma das mais antigasdefinições da guerra, a de A. Gentilis: “A guerra é um conflitoarmado, público e justo”.

Mas hoje tudo se transformou. A introdução da bomba nucleartornou, há mais de 50 anos, improvável um conflito clássicoentre as grandes potências. Para tanto, ao longo da Guerra Fria,a ameaça nuclear simplesmente favoreceu as guerras de baixaintensidade. Mas depois da queda do Muro de Berlim é a formada própria violência que se transformou. É quase impossívelhoje em dia falar de “guerra” para designar as novas formasque não se enquadram mais no conceito clássico.

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O que é de fato uma guerra, em que o comando de mísseis teleguiadosé feito a partir da tela de computador? Onde o homem se faz explodirno meio de uma multidão de passantes desarmados? E sobretudo:o que é uma guerra sem exércitos confrontando-se para batalhas deci-sivas, sem vitória nem derrota, sem começo nem fim, sem separaçãoentre o criminoso e o inimigo, o interior e o exterior? Nós entramos naidade dos “estados de violência”. O que pode haver de comum entreum ato terrorista no coração de uma capital do mundo ocidental, umaintervenção decidida por grandes nações visando estabelecer a ordemem um país longínquo, e operações selvagens conduzidas por bandosarmados contra populações civis desarmadas? É que são todas elasirredutíveis ao modelo clássico da guerra, com seus exércitos conven-cionais e suas batalhas decisivas, nascidas de um novo regime: o dos“estados de violência”. Estes estados de violência estruturam-sesegundo as novas linhas de força que desenham a nervura de nossomundo contemporâneo: reino da imagem, ‘aparição’ das vítimas, fluxomundializado das riquezas e das populações, multiplicação das violên-cias unívocas e unilaterais. Eis o que é preciso pensar atualmente:o fim da guerra não significa a instituição de uma era eterna de paz,mas o advento do tempo indefinido da segurança.

A guerra como ‘conflito armado, público e justo’ apaga-se lentamente,com suas mentiras e gentilezas, suas atrocidades e reconfortos.O futuro dos estados de violência, regulados por processos de segu-rança permitindo diminuir os riscos, abre-se diante de nós, exigindoque o pensamento inspire novos vigilantes e invente novas esperanças.

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1. Althusius disse, certa feita, que os seres humanos nascem como náu-fragos que atendem às ilhas nus, sem qualquer proteção ou inscrição pré-via no mundo. Há, decerto, um forte eco aristotélico na imagem: Althusiusfala de seres cuja viabilidade existencial decorre do natural ímpeto àsociabilidade. O animal que fala é um ser cuja identidade é dada pelosseus nexos, pelo que retira e acrescenta ao mundo. O laço social é o antí-doto dos naufrágios.

2. O sentido de tomar a questão brechtiana como mote deriva da sensaçãode que, ao ouvi-la, não estamos diante de uma pergunta ordinária. Ao con-trário, trata-se de uma indagação matricial e compulsória a toda filosofiapolítica e moral. É dos predicados atribuídos aos humanos e da definiçãode requisitos para sua duração e persistência que modelos de ordem e desociabilidade podem ser imaginados. A pergunta “o que mantém umhomem vivo?” é a mãe de todas as perguntas.

r e n a t o l e s s a

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3. Em uma fase menos do que larvar, julgo ser relevante pensar a res-peito de algumas transfigurações do humano. Falo de transfiguração enão de dessubstancialização, para não incorrer no pecado, com certosabor straussiano, de supor que há substâncias originais, erodidaspelo tempo e pelos azares da história.

4. A idéia inicial é operar a partir das imagens contrapostas do naufrágioe do acolhimento como antípodas lógicos e como indicadoras de pa-drões distintos de sociabilidade. A definição do que é humano depen-derá da gravitação exercida sobre nossas crenças por esses pólosopostos. Por certo, na metáfora de Althusius, o acolhimento é comple-mentar ao naufrágio: ali não se vislumbra a hipótese da terminalidadedo naufrágio absoluto. A salvação é, dessa forma, um corolário do nau-frágio. Há, pois, otimismo na coisa.

5. A macro hipótese do acolhimento constitui o mito de origem comumde toda filosofia política. A razão é simples: por ser ela uma tradição inte-lectual constituída por diversas imagens de vida social, a hipótese donaufrágio incurável é logicamente inconsistente. A diversidade no campoda filosofia política diz respeito – para retermos a metáfora – a formasdistintas de erradicar ou, ao menos, mitigar a condição náufraga. Hobbes,mais do que todos, demonstrou o parentesco entre vida náufraga e impos-sibilidade da própria vida, pela operação do espectro da morte violenta.

6. O século XX exige que pensemos a hipótese do naufrágio como umadefinição terminal possível da condição humana. Há sinais eloqüentes nahistória daquele século que desafiam o conforto da macro metáfora doacolhimento: holocausto, genocídios em geral, guerra aérea, predomíniode padrões sociais crescentemente inóspitos. E mais, talvez seja impor-tante pensar a respeito de uma condição híbrida e liminar, que acabou porse impor como marca da normalidade, algo entre o naufrágio e opertencimento. Um espaço eminentemente confuso e avesso à inscrição.

7. Como no grafite escrito no acesso ao elevador da Bica (Lisboa): “Já nãohá drama, tudo é intriga e trama”.

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Pensar a mutação é pensar a imponderabilidade do futuro. Emboraseja impossível determinar precisamente o futuro, não deixamos deestabelecer prognósticos, sempre destituídos, no entanto, do cará-ter assertivo da evidência. Razão do descrédito em que caiu essafábrica do otimismo conservador dos anos 1960 que foi a futurologia(lembremo-nos de Herman Kahn, fonte do personagem do filme deStanley Kubrick, Dr. Fantástico [Dr. Strangelove, 1964]). Estes prog-nósticos constituem modelos de coisas não-existentes, que trans-cendem o mundo conhecido, e têm como horizonte a possibilidadevirtual, por mais remota que seja, de sua realização. O prognósticoé sempre um “mundo possível”.

j o ã o c a m i l l o p e n n a

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O procedimento aqui resumido, moldado a partir do movimentodas evoluções científicas, descreve precisamente a operação daficção científica, segundo o escritor polonês Stanislaw Lem. Trata-se, conforme escreve o crítico croata Darko Suvin, de construir um“mundo possível”, entendido como uma pequena ilha de espaço-tempo, completa e fechada em si mesma, jogada contra outrosmundos possíveis, inclusive o nosso, ou o do autor. A partir doestabelecimento de um certo padrão do estado de coisas no pre-sente, projetá-lo linearmente como evolução no futuro. O cômicoinvoluntário da projeção das tecnologias futuras na ficção científicado passado – basta lembrarmo-nos, por exemplo, de filmes de ficçãocientífica dos anos 1950 ou 1960 – reside precisamente nisso:a tecnologia (como o futuro, ou a mutação em geral) não evolui segun-do padrões lineares. Sabemos que as modificações verdadeiramentedeterminantes da ciência são em geral surpreendentes, i.e.,imponderáveis. A tecnologia do futuro, já passado, revela ao mesmotempo algo sobre o tempo em que esse padrão de representação foiestabelecido, e o seu erro. O que não impede que a ficção científicaacerte: as representações que produz, não nos cansamos de dizer, con-têm elementos às vezes proféticos. A ficção científica consiste assim,ao mesmo tempo, em uma teoria sobre o futuro e em um ponto de vistaexterior para observarmos o presente (ou o passado). Em exemploscontemporâneos, a fronteira que separa o “mundo possível” do queconhecemos torna-se cada vez mais permeável, a diferença reduzin-do-se a certos traços sutis, radicalizações mais ou menos perceptí-veis de modelos extraídos do mundo conhecido, que reconhecemoscomo o nosso mundo.

Os estudos já clássicos sobre ficção científica, “romance científico” (H.G.Wells), ou “romance especulativo”, identificam a Utopia de Thomas Morus(1516), e a fábula utópica como um todo (As viagens de Gulliver de JonathanSwift [1726] etc.) como, ao mesmo tempo, uma das fontes do gênero e umde seus subgêneros praticados até hoje. Daí seu status didático, moralizante.As utopias hoje são escritas como ficções científicas e consistem basica-mente em programas negativos, contra-projetos, que diagnosticam o caosmoral e/ou material em volta do autor, invocando uma ordem alternativa.Assim também a sua inversão, a “distopia” (ou antiutopia) – Nós de Yevgeny

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Zamyatin (1921); O admirável mundo novo de Aldous Huxley (1932);1984 de George Orwell (1949) — críticas ao “totalitarismo” datecnociência, que sempre pressupõe implicitamente a sua própria utopia.Recentemente a ficção científica tornou-se mais e mais distópica ousimplesmente heterotópica, i.e. propondo uma alternativa diferente aomundo que conhecemos.

Frankenstein, ou o Prometeu moderno (1818) de Mary Shelley funda ogênero, extraindo o romance gótico da referência arcaizante, e intro-duzindo a proposição científica iluminista da tecnologia como possi-bilidade do futuro. Surge basicamente aí a ficção protagonizada pelocientista mais ou menos “louco”, assombrado pela húbris prometéicade haver almejado igualar-se aos deuses, criando homens – a “criatu-ra”, o “monstro” – cujo destino irônico será ser conhecido pelo nomedo criador que o rejeitara. A fábula contém, no entanto, uma duplamoral: junto com a crítica à tecnologia, e a leitura do desenlace trági-co como punição pela desmesura do cientista, fica claro que a “cria-tura” – encarnação do bom selvagem de Rousseau – só virou omonstro destrutivo em que se tornou por que a sociedade, a começarpelo seu criador, se recusou a aceitá-lo pelo que é. Por detrás domonstro há um pedido de aceitação do desigual e uma recusa dasociedade que só se explica, no interior do romance, pelo preconcei-to cruel. Além da interpretação mais conhecida da “revolta dasmáquinas”, o romance abre, portanto, uma segunda: a “culpa”seria uma construção social, e não estaria contida na máquina.Ao se rejeitar o pedido da criatura de ser tratada como humana,teríamos renegado os princípios iluministas (“Os homens nas-cem e permanecem livres e iguais em direitos” diz a Declaraçãodos direitos do homem e do cidadão de 1789) que governam oprojeto “blasfemo” de desmistificação científica que está na ori-gem da experiência de Frankenstein.

É essa mesma dupla moral que receberá, adiante, diferentes trata-mentos nas representações clássicas da tecnologia em ficção cien-tífica: a robótica, a inteligência artificial, os andróides. A máquina éao mesmo tempo o objeto utópico por excelência, e o pesadeloantiutópico; o perfeito escravo e o possível revoltado, que se

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autonomiza, cria vontade própria, e se volta contra o seu senhor e criador.Ele é o policial que nos vigia no estado de exceção em que se torna-ram não mais as sociedades “totalitárias” das antigas distopias, masas “democráticas”. O robô é o escravo ideal em Isaac Azimov, ou osupertripulante, ultra-eficiente que se insurge contra o homem, comoem 2001: uma odisséia no espaço (1968) de Stanley Kubrick (e Arthur C.Clarke). A máquina contém em suma a pergunta sobre o humano: o quede fato o define, qual é a sua diferença específica com relação à máquina?A resposta, no entanto, é ambiguamente humanista. É a tecnologia futuraque permite que a diferença humana se identifique, já que o humano é,acaba-se por descobrir, antes de mais nada, tecnologia. Em O caçadorde andróides (Blade runner, de Ridley Scott [1982], baseado no romancede Philip K. Dick, Os andróides não sonham com ovelhas elétricas?[1968]), andróides são tão humanos ou mais humanos que os humanos,que humanizaram suas máquinas, mas as caçam quando estas rei-vindicam serem tratadas como humanas. À humanidade, portanto, odestino de ser depositária da fraqueza humana, em comparação com araça de super-homens-escravos que produzimos. Em Neuromancer (1984)de William Gibson, o cientista será transformado na figura desviante dohacker ciberpunk e, mais adiante ainda, na trilogia Matrix dos irmãosWachowski (1999, 2003, 2003), no hacker, crístico, guerreiro da resistên-cia humana. A hipótese sobre a construção virtual da realidade, formuladapor Jean Baudrillard, configurada como fábula medieval sobre a sobre-vivência do humano em um mundo controlado, contém a moral distópicado estado de exceção contemporâneo, a que se opõe um humanismoregressivo. O humano afinal se define por oposição às máquinas dasquais no entanto mal se diferencia. Ou se diferencia projetando nelas o“mal” do futuro que está nele próprio.

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p a u l o s é r g i o d u a r t e

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As peças íntimas das relações entre arte e mercado:o novo vestuário do meio de arte

São muitas as transformações que ocorreram desde que, em meados dadécada de 1960, começou a ser constatada uma reviravolta no campo dasartes visuais que indicaria se não uma ruptura ao menos uma disjunçãocom o campo da grande arte do século 20: aquele que tinha se constituídode Cézanne até o expressionismo abstrato norte-americano. Eram dadosclaros sinais de o fim de uma era sem que necessariamente pudessem serdetectadas com clareza as características do novo território em formação.

Em primeiro lugar, andando no compasso do mundo, cresceu muito a impor-tância das leis do mercado no meio de arte. O meio artístico acompanha amercantilização generalizada de todos os processos sociais, políticos eculturais. Mais do que isso, a interação entre mercado e instituições, parti-cularmente, os museus, no campo da arte contemporânea passou a sermais direta, queimando muitas instâncias mediadoras antes existentes.

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Por exemplo: o planejamento de prioridades de aquisições parapreencher lacunas de coleções, cuidadosamente traçadas porcuradores-pesquisadores à luz da história, para posterior apre-sentação a mecenas e patrocinadores, hoje é privilégio de algu-mas raras instituições de alguns países avançados. Em boa partedos casos, o crescimento dos acervos se dá pela intervençãodireta de marchands e mecenas oferecendo obras de determina-dos artistas. A instituição fica exposta a essas investidas em faceda retração dos fundos disponíveis capazes de dar autonomia deescolha às equipes de curadores e pesquisadores.

Vou mais longe: instituições nos países mais ricos estão expostasàs decisões de proprietários de coleções que cedem em comodatosuas peças, as valorizam pela permanência num museu públicoe, mais que isso, negociam com os artistas preços privilegiadospelo seu destino original e depois as destinam ao mercado.O que estou narrando é um fato. Trata-se de algo que se passouno Museu de Frankfurt. Uma coleção ficou sediada no museu, foivalorizada e foi adquirida a preços baixos aos artistas que acredi-tavam que suas peças eram destinadas a um museu público, edepois vendidas a preços altos valorizadas pela sua estada nomuseu. Seu diretor jura que nunca mais aceitará coleções emcomodato. Outro exemplo poderia ser o que não está descartadona Hamburger Banhof que abriga igualmente uma coleção privadanum espaço público.

O raciocínio, no início dessa nova conjuntura, era “melhor istodo que nada”. À força da permanência dessa situação ao longodos anos perde-se a memória de como as coisas se passavamantes da vigência da clara hegemonia das forças do mercado nocampo da arte. Seria longa a lista de exemplos desse tipo derelação às vezes agressiva, às vezes promíscua, entre mercado einstituição no campo das artes visuais.

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Novos regimes de visibilidade, novos regimes de fruição

Mas desde os anos 1960 detectou-se uma transformação de maiorvulto na produção artística que parecia destituir os parâmetrosmodernos que estabeleciam os princípios da autonomia da arte,como um campo cognitivo específico submetido a princípios deordem formal para constituição e ancoragem de suas poéticas.É preciso lembrar a progressiva constituição dessa autonomia quese identifica em grande parte com o que chamamos de crise da re-presentação. Esta é a própria emergência da arte moderna durante asegunda metade do século XIX e início do século XX. Ela se confundecom o crescente declínio dos temas ou motivos a favor de uma maiorforça dos elementos estruturais da forma da obra na sua constituição.

Se antes uma série de convenções formais estava submetida aostemas, como aqueles na pintura religiosa regendo a hierarquia dosanjos, a representação de figuras mitológicas, ou a estatuáriaeqüestre, por exemplo, as questões de linguagem da obra, a partirde Manet, se despregam claramente dessa subordinação. Os temas,quando são significativos, se ordenam, digamos, de dentro para fora,a partir de necessidades internas da obra de arte e não mais se im-põem de “fora para dentro” como na arte pré-moderna. Essas trans-formações culminam na segunda década do século passado com aarte abstrata e o surgimento da fruição estética visual completamentedesprovida de vínculos temáticos tal como já acontecia na fruiçãomusical. Paralelamente a essa vertente que atinge seu ponto culminanteno Expressionismo Abstrato norte-americano do segundo pós-guerra,desenvolvem-se correntes críticas como o dadaísmo e o surrealismo.

A conquista da autonomia da arte não é nenhuma invenção perversado formalismo como pode levar a crer certas leituras excessivamentesociológicas da cultura. A autonomia da forma na arte moderna derivado processo histórico mais geral que decorre do progresso da ciênciae da técnica e o conseqüente advento das especialidades, da revolu-ção industrial, do acelerado deslocamento da importância da vida domeio rural para o urbano, e da cada vez mais complexa divisão sociale técnica do trabalho. A figura social do artista, sua prática e sua

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produção, não estão imunes e impermeáveis a todas essas mudanças.Desaparece a figura dominante desde o Renascimento do artista da cortee surge o profissional liberal cuja produção não está mais dependentediretamente da nobreza ou da igreja e passa a ser mediada pelo mercado.A pintura, e logo a escultura, passam a campo de investigação específi-cos a partir de sua lógica interna na produção de sensações como clara-mente já demonstra a obra de Cézanne que prepara a revolução cubista.

Todas essas obras, mesmo depois da conquista da verdade planar napintura pelo cubismo e das aventuras do plano no espaço iniciadaspor Tatlin, continuavam submetidas ao regime da contemplação parasua plena fruição.

Nos anos 1960 esse modo de “consumir” a obra de arte sofre múlti-plas transformações. Em primeiro lugar é introduzido o observadorparticipante que inicialmente altera a configuração da obra com suaintervenção, para logo se transformar em parte indispensável da pró-pria realização da obra. São exemplos pioneiros dessas manifesta-ções os “bichos” de Lygia Clark e os “Parangolés” de Hélio Oiticica.A obra não está no mundo para ser objeto do juízo estético e alcançaro “subjetivo universal” pensado por Kant na sua terceira Crítica atra-vés da contemplação. Agora é objeto que só se completa quando osujeito da fruição se investe em “co-autor” e parte da obra.

Outra mudança importante ocorre no próprio conceito de espaço paraa produção artística. Toda obra de arte moderna, salvo murais, eraconcebida para o espaço idealizado por Platão: aquela entidade neu-tra, vazia, extensa e a mesma em qualquer de seus pontos. Agorasurgem as obras in situ (site specific). As obras são produzidas paraum lugar específico, sua presença não apenas altera o lugar como oincorpora como parte da obra.

Desdobram-se daí as experiências que, nos anos 1960, eram chama-dos ‘ambientes’ e que vieram a ser chamados, posteriormente, de‘instalações’. Aqui também obras como a “Tropicália”, “Ninhos” e“Penetráveis” de Hélio Oiticica estavam desbravando trilhas aindapouco conhecidas na arte do século 20.

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Três outras mudanças precisam ser sublinhadas: o fenômeno defi-nido por Lucy Lippard como “desmaterialização da obra de arte”que coincide com a emergência da arte conceitual na qual o modocomo a arte é pensada se sobrepõe à sua própria evidência plástica,chegando até mesmo ao seu apagamento no mundo substituído porreflexões teóricas como no caso do movimento inglês Art & Language.

O ressurgimento dos temas como núcleos centrais das própriasobras é outra profunda modificação em relação ao passado moderno.Nestas manifestações a política e a arte de gênero (arte feminista,arte gay) restauram o conteúdo de modo tão ou mais intenso que opróprio investimento formal. Por fim, a referência ao medium(pintura, escultura, gravura, desenho) perde o valor arquetípicoque possuía na história da arte.

Em torno dessas transformações que apontam um período de apa-rente declínio da qualidade artística podemos detectar manifesta-ções de elevado teor poético que se desenvolvem em torno de doispólos na arte contemporânea: a ‘estratégia do espetáculo’ e as‘manobras da delicadeza’. Ambos operam nos interstícios deixadospelas metamorfoses da visibilidade na arte contemporânea e pare-cem manter uma relação positiva com o legado moderno da primeirametade do século passado. Algo como se o pai moderno não preci-sasse ser assassinado para viabilizar a passagem dessas novasinvestigações. Fazendo interagir a herança da grande arte modernacom experiências do presente, constituem a produção mais instigantepara a arte do novo século.

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Adauto Novaes é jornalista e professor, foi diretor durante 20 anos do Centrode Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Arte/Ministério da Cultura.Em 2000, fundou a empresa de produção cultural Artepensamento.Organizou, entre outros, os seguintes ciclos de conferência, que depoisviraram livros, a maioria editada pela Companhia das Letras, nos quaispublicou ensaios: Os sentidos da paixão, O olhar, O desejo, Ética, Tempo ehistória (Prêmio Jabuti), Rede imaginária – televisão e democracia,Artepensamento, A crise da razão, Libertinos/libertários, A descoberta dohomem e do mundo, A outra margem do Ocidente, A crise do Estado-nação(Civilização Brasileira), O avesso da liberdade, O homem máquina, Civilizaçãoe barbárie, Muito além do espetáculo (Editora Senac São Paulo) e Poetas quepensaram o mundo.

José Miguel Wisnik é professor de literatura na USP. Publicou Coro doscontrários – A música em torno da Semana de 22 (Duas Cidades) e O nacionale o popular na cultura brasileira – Música, com Ênio Squeff (Brasiliense, 1982).Pela Companhia das Letras, lançou O som e o sentido (1989; reeditado com CDem 1999) e teve ensaios publicados em Os sentidos da paixão, O olhar e Ética.

Francisco de Oliveira é doutor pela USP, professor titular de sociologia doDepartamento de Sociologia da FFLCH-USP e ex-presidente do Cebrap-SP(1993-95). Publicou, entre outros, os livros: Os sentidos da democracia(organizado com Maria Célia Paoli, Vozes, 1999), A economia da dependênciaimperfeita (Graal, 1995), Collor, a falsificação da ira (Imago, 1993),A economia brasileira: crítica à razão dualista (Vozes, 1990), Elegia parauma religião (Paz & Terra, 1988), O elo perdido (Brasiliense, 1986). Participoudo livro A crise do Estado-Nação (Record, 2004).

Laymert Garcia dos Santos é professor Titular do Instituto de Filosofia eCiências Humanas da Unicamp. Doutor em Ciências da Informação pelaUniversidade de Paris 7 em 1980, ensina Sociologia da Tecnologia. Em 1992-93 foi Professor Visitante do St. Antony’s College, Universidade de Oxford.Publicou, entre outros: Desregulagens - Educação, planejamento e tecnologiacomo ferramenta social (1981); Alienação e capitalismo.(1982); Tempo deensaio (1989); Politizar as novas tecnologias – O impacto sócio-técnico dainformação digital e genética (2003). Seus ensaios foram publicados eminglês, francês, árabe, espanhol, alemão e português, em revistas como ThirdText, Parachute, Via Regia, Zehar, Nada e outros periódicos.

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Axel Kahn é médico, geneticista, especialista em biotecnologias, membro doComitê consultivo nacional de ética francês. Publicou Et l’homme dans tout ça?;e (com a colaboração com Fabrice Papillon) Copies conformes (os dois livrospela Nil Editions, de Paris).

Franklin Leopoldo e Silva é professor do Departamento de Filosofia da USP.Publicou: Descartes, metafísica da modernidade (Moderna) e Bergson:intuição e discurso filosófico (Loyola). Tem ensaios nos livros A crise darazão, Tempo e história, O avesso da liberdade, editados pela Companhiadas Letras, e Muito além do espetáculo (Editora Senac São Paulo). Oswaldo Giacoia Júnior é professor do Departamento de Filosofia daUnicamp. Doutor em Filosofia com tese sobre a filosofia da cultura deFriedrich Nietzsche na Universidade Livre de Berlim, publicou, entre outros:Os labirintos da Alma (1997); Nietzsche como psicólogo (2004) e Sonhos epesadelos da razão esclarecida (2005).

Jean-Pierre Dupuy é professor na Escola Politécnica de Paris e naUniversidade de Stanford, da qual é também pesquisador e membro doPrograma de Ciência-Tecnologia-Sociedade e do Forum de SistemasSimbólicos. Publicou: The mechanization of the mind – on the origins ofcognitive science (Princeton University Press), Self-deception and paradoxesof rationality (C.S.L.I. Publications), La Panique (Les empêcheurs de penseren rond), Pour un catastrophisme éclairé (Seuil), Avions-nous oublié le mal?Penser la politique après le 11 septembre (Bayard), Petite métaphysique destsunamis (Seuil) e Retour de Tchernobyl (Seuil)

Luiz Felipe de Alencastro é professor titular da cátedra de História do Brasilna Universidade de Paris 4 Sorbonne. Além de artigos no Brasil e no exteriore do ensaio A economia política do descobrimento em A descoberta dohomem e do mundo (Companhia das Letras), publicou O trato dos viventes:formação do Brasil no Atlântico Sul (Companhia das Letras). Organizou ovolume 2 da coleção História da vida privada no Brasil: Cotidiano e vidaprivada no Império (Companhia das Letras).

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Lionel Naccache é neurologista do hospital de La Pitié-Salpêtrière emParis e pesquisador em neurociências cognitivas.Publicou, entre outros,Le nouvel inconscient – Freud,Christophe Colomb des neurosciences(Odile Jacob,Paris, 2006)

Sérgio Paulo Rouanet é doutor em ciência política pela USP, é autor de Édipoe o anjo, A razão cativa, As razões do Iluminismo e O espectador moderno.Publicou ensaios nos livros Os sentidos da paixão, O olhar, A crise da razão,Brasil 500 anos: a outra margem do Ocidente e O avesso da liberdade, todoseditados pela Companhia das Letras.

Newton Bignotto é doutor em filosofia pela École des Hautes Études enSciences Sociales, Paris, e ensina filosofia política na UFMG. Além de ensaiosnos livros Ética, Tempo e história, A crise da razão, A descoberta do homem edo mundo, O avesso da liberdade, Civilização e barbárie, editados pelaCompanhia das Letras, e A crise do Estado-nação (Civilização Brasileira),publicou: Maquiavel republicano (Loyola), O tirano e a cidade (DiscursoEditorial), Origens do republicanismo moderno (Editora da UFMG),Maquiavel (Zahar) e Republicanismo e realismo. Um perfil de FrancescoGuicciardini (Editora da UFMG). Eugène Enriquez é professor de sociologia de Paris 7 - Denis Diderot.Foi presidente do Comitê de pesquisas de sociologia clínica da AssociaçãoInternacional de Sociologia. Publicou, entre outros livros: De la horde àl’État (Gallimard, 1983), traduzido no Brasil pela Jorge Zahar em 1990;As figuras do poder (Via Letteras, São Paulo, 2007); Le goût de l’altérité( Desclée de Brouwer, 1999); La face obscure des démocraties modernes (com Cl. Haroche, ERES, 2002) e Clinique du pouvoir (ERES, 2007). Olgária Matos é doutora pela École des Hautes Études, pelo Departamento deFilosofia da FFLCH-USP. e professora de Filosofia da UNIFESP(UniversidadeFederal de São Paulo). Publicou, entre outros: Rousseau, uma Arqueologia daDesigualdade, Os arcanos do inteiramente outro - a Escola de Frankfurt,a melancolia, a revolução (ed Brasiliense), A Escola de Frankfurt - sombrase luzes do Iluminismo, Discretas esperanças? reflexões filosóficas sobre omundo contemporâneo. Colaborou na edição brasileira de Passagens deWalter Benjamin e elaborou a apresentação em Aufklârung na Metrópole –Paris e a Via Láctea.

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Maria Rita Kehl é psicanalista, doutora em psicanalise pela PUC de SP eescritora. Autora de varios artigos na imprensa brasileira desde 1974.Publicou ensaios em diversas coletaneas, entre as quais varias organizadaspor Adauto Novaes. Seus ultimos seus livros sao: Sobre ética e psicanálise(Companhia das Letras), Ressentimento (Casa do Psicologo), Videologias(em parceria com Eugenio Bucci, ed. Boitempo). No momento escreve umnovo livro sobre as depressões, intitulado O tempo e o caos, a sair em 2007pela ed. Boitempo. Luiz Alberto Oliveira é físico, doutor em Cosmologia, pesquisador doLaboratório de Cosmologia Física Experimental de Altas Energias,e professor de História e Filosofia da Ciência do Centro de PesquisasFísicas – CBPF/CNPq. Da série publicada pela Companhia das Letras,tem ensaios em Tempo e história, Crise da razão, O avesso da liberdadee O homem máquina. Frédéric Gros é professor da Universidade de Paris-XII e editor dos últimosCursos de Michel Foucault no Collège de France. É autor de livros sobre ahistória da psiquiatria e filosofia penal. Estabeleceu, com Arnold Davidsonuma antologia de textos de Foucault, Philosophie (Folio essais 443,Gallimard, 2004). Publicou ainda: États de violence – Essai sur la fin dela guerre (Éditions Gallimard, 2006). Renato Lessa é professor titular de Teoria Política do Iuperj e da UFF edesde 2003 presidente do Instituto Ciência Hoje. Formou-se em ciênciassociais pela UFF e obteve seus títulos de mestre e doutor em ciênciapolítica pelo Iuperj. Entre os livros e ensaios sobre filosofia política quepublicou, destacam-se: Veneno pirrônico: ensaios sobre o ceticismo(Francisco Alves), Agonia, aposta e ceticismo: ensaios de filosofia política(Editora da UFMG), Ceticismo, crenças e filosofia política (Gradiva), Pensara Shoah (Relume Dumará). Seu livro mais recente – Presidencialismo deanimação e outros ensaios sobre a política brasileira (Vieira & Lent) –reúne um conjunto de ensaios sobre “filosofia pública” em torno da políticabrasileira contemporânea.

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João Camillo Penna é professor de Literatura Comparada e Teoria Literária daUFRJ. Co-organizadou e co-traduziu, com Virgínia de Figueiredo, Imitação dosmodernos de Philippe Lacoue-Labarthe, (Paz e Terra, 2000); escreveu: “Estecorpo, esta dor, esta fome: notas sobre o testemunho hispano-americano”, inSELIGMANN-SILVA, Marcio (org.). História, memória, literatura.O testemunho na era das catástrofes (UNICAMP, 2003); “Marcinho VP:estudo sobre a construção do personagem”, in DIAS, Ângela e GLENADEL,Paula. Estéticas da crueldade (Atlântica, 2004). Paulo Sérgio Duarte é crítico, professor de História da Arte e pesquisador doCentro de Estudos Sociais Aplicados – CESAP da Universidade CândidoMendes. É autor, entre outros, dos livros Anos 60 – transformações da arteno Brasil (Rio de Janeiro: Campos Gerais, 1998); Waltércio Caldas (São Paulo:Cosac & Naify, 2000); Carlos Vergara (Porto Alegre: Instituto SantanderCultural, 2004). Entre seus ensaios e artigos destacam-se: A trilha da trama(em: Antônio Dias. Rio de Janeiro: Funarte, 1979); O que Seurat será? (em: Oolhar. Organização: Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998);Amílcar de Castro ou a aventura da coerência (em: Novos Estudos CEBRAP.No. 28. São Paulo: outubro de 1990); A dúvida depois de Cézanne (em:Artepensamento. Organização: Adauto Novaes. São Paulo: Companhiadas Letras, 1994).

Michel Déguy é filósofo, poeta e ensaísta. Professor de literatura francesa naUniversidade de Paris 8, é redator-chefe da revista Poésie (Éditions Belin),membro do comitê de leitura da Editora Gallimard, da comissão de redaçãodas revistas Critique e Temps Modernes e do periódico Temps de Réflexion(Gallimard). Desde 1990, é diretor do programa Collège International dePhilosophie. Fundou La Revue de Poésie, que dirigiu de 1964 a 1968 e na qualpublicou, em colaboração, traduções de Dante, Gôngora, Hölderlin, Kleist,entre outros.

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RJ BH SPheterodoxa mutaçãoJosé Miguel Wisnik 20 ago 21 ago 22 agorevoluções, mutações...Francisco de Oliveira 21 ago 22 ago 23 agohumano, pós-humano, transumanoLaymert Garcia dos Santos 22 ago 23 ago 24 agoanti-humanismo e pós-humanidadeAxel Kahn 27 ago 28 ago 29 agodescontrole do tempo históricoe banalização da experiênciaFranklin Leopoldo e Silva 28 ago 29 ago 30 agoas duas mutações de NietzscheOswaldo Giacoia Júnior 29 ago 30 ago -a fabricação do homem e da naturezaJean-Pierre Dupuy 03 set 04 set 05 setos três tempos da mutaçãoLuiz Felipe Alencastro 04 set 05 set 06 seto novo inconscienteLionel Naccache 05 set 06 set -por um saber sem fronteirasSérgio Paulo Rouanet 10 set 11 set 12 setas mutações do poder e os limites do humanoNewton Bignotto 11 set 12 set 13 setpoesia sem palavras?Michel Déguy 12 set - - novas afinidades eletivasEugène Enriquez 12 set 13 set 14 setmetamorfoses do tempoOlgária Matos 17 set 18 set 19 setdepressão e imagem do novo mundoMaria Rita Kehl 18 set 19 set 20 setsobre o caos e novos paradigmasLuiz Alberto Oliveira 19 set 20 set 21 setfim da guerra clássica - novos estados de violênciaFrédéric Gros 24 set 25 set 26 seto que mantém o homem vivo: devaneiossobre algumas transfigurações do humanoRenato Lessa 25 set 26 set 27 setmáquinas utópicas e distópicasJoão Camillo Penna 26 set 27 set 28 setmetamorfoses da visibilidadePaulo Sérgio Duarte 02 out 03 out 04 outas duas mutações de NietzscheOswaldo Giacoia Júnior - - 05 out

12 de set. duas conferências no mesmo dia no RJ : 17h Michel Déguy e 18h30 Eugène Enriquez

www.cultura.gov.br/culturaepensamento

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As conferências do Rio de Janeiro serão transmitidas ao vivo,na forma de videoconferência, para as principais universidades do país.Curso de extensão universitária reconhecido pelo Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, UFBA e UNICURITIBA

CURITIBAheterodoxa mutaçãoJosé Miguel Wisnik 23 agoo que mantém o homem vivo: devaneiossobre algumas transfigurações do humanoRenato Lessa 24 agohumano, pós-humano, transumanoLaymert Garcia dos Santos 27 agometamorfoses da visibilidadePaulo Sérgio Duarte 28 agosobre o caos e novos paradigmasLuiz Alberto Oliveira 30 agoas duas mutações de NietzscheOswaldo Giacoia Júnior 31 agometamorfoses do tempoOlgária Matos 03 setdescontrole do tempo históricoe banalização da experiênciaFranklin Leopoldo e Silva 04 set

SALVADORheterodoxa mutaçãoJosé Miguel Wisnik 10 seta fabricação do homem e da naturezaJean-Pierre Dupuy 11 seto que mantém o homem vivo: devaneiossobre algumas transfigurações do humanoRenato Lessa 12 setrevoluções, mutações...Francisco de Oliveira 13 setsobre o caos e novos paradigmasLuiz Alberto Oliveira 14 setdescontrole do tempo históricoe banalização da experiênciaFranklin Leopoldo e Silva 18 setas mutações do poder e os limites do humanoNewton Bignotto 19 setas duas mutações de NietzscheOswaldo Giacoia Júnior 20 setmetamorfoses da visibilidadePaulo Sérgio Duarte 21 setmáquinas utópicas e distópicasJoão Camillo Penna 24 set

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