Myriam Rugani Viana - Baldes e Fossa - Minhas Histórias_nodrm

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BALDES E FOSSA Minhas Histrias Myriam Rugani Viana Belo Horizonte 2014 Capa e Arte Grfica: Luis Claudio Rugani Vianna Edio para ebook: Anglica Vianna Reviso: Luiza de Lana Sette Lopes Ficha Catalogrfica elaborada pela Bibliotecria: Priscila Oliveira da Mata - CRB/6-2706 Viana, Myriam Rugani, 1940 V614b Baldes e Fossa : Minhas Histrias / Myriam Rugani Viana. - Belo Horizonte: Verso impressa - Imprensa Universitria da UFMG, 2014, diagramao - Luis Cludio Rugani Vianna. 140 p. : il., fots., p&b. ISBN: 978-85-7470-035-9 1. Autobiografia. 2. Msicos. 3. Biografia. I. Ttulo. CDD : 927.8 Copyright (c) Todos os direitos reservados. Nenhuma parte do contedo deste livro poder ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja ele impresso, digital, udio ou visual sem a expressa autorizao por escrito do autor sob penas criminais e aes civis. Para solicitar permisses de reproduo, escreva para o autor atravs do email: [email protected] SUMRIO SUMRIO PREFCIO INTRODUO EU SOU MUITAS MEU PAI, MINHA ME MYRIAM E EXPEDITO LUA DE MEL, NOVA FAMLIA COMEO DE UMA NOVA VIDA BAHIA MOTEL CLUBE BELO HORIZONTE BALDES E FOSSA MIOPIA APELIDOS EXPEDITO, GRANDE FLAUTISTA MURO DE PEDRA NOSSAS CRIANAS NOSSAS VIAGENS COM O FUSCA BODAS DE PRATA OCASO CONSIDERAES FINAIS FOTOS PREFCIO Myriam Rugani e Expedito Viana (in memoriam) so daquelas pessoas que jamais esquecemos. Encontraram-se na msica. Ela pianista e mais tarde harpista, ele exmio flautista e cantor. Cultivaram na vida e na arte o amor, a firmeza do carter, a bondade e a generosidade. Este legado foi transmitido famlia aos alunos e a todos que deles se aproximaram. Considero-me um privilegiado por ter convivido com eles como aluno e amigo. Creio que toda uma gerao de msicos deve a eles sua formao artstica e humana. Nem nos momentos mais difceis, Myriam e Expedito, deixaram de lado o bom humor, a profunda dedicao msica e a alegria de viver. Myriam reviveu, neste livro, os fatos pitorescos da vida do casal e os difceis momentos vividos por eles, sempre encarados com leveza e presena de esprito. Como uma viagem atravs do tempo, consegui me lembrar da casa sempre cheia de msicos, artistas e intelectuais, das traquinagens das crianas, dos banquetes preparados por Myriam, do quintal cheio de rvores e do grande nmero de amigos que ali se reunia para tocar, assistir peras na TV ou simplesmente conversar sobre os mais variados assuntos. Como narrado por Myriam, Expedito, atravs de sua maneira nada convencional de enxergar a vida nos mostrou que o normal nem sempre o certo e que nem sempre o certo ser normal. Vejo com certa tristeza a msica ser encarada por alguns como um ideal olmpico onde considerado o melhor aquele que menos erra, toca mais rpido ou, resumindo, consegue ser "perfeito". Que me perdoem os esportistas, mas no considero competir uma misso musical. Esta deve ser apenas uma contingncia passageira na vida de um msico quando luta por seu lugar ao sol. Expedito e Myriam sempre cultivaram em seus alunos a disciplina, a dedicao msica sem que isso a transformasse em uma competio gratuita. Lembro-me do mestre dizendo que nada deveria superar nossa musicalidade, a beleza do som, enfim a capacidade de expressarmos atravs da msica. O resultado disso foi o grande nmero de profissionais formados por eles, harpistas e flautistas, hoje ocupando importantes posies em orquestras e universidades de todo o Brasil. Myriam nunca escondeu seu grande amor, a profunda gratido e admirao pelo marido. Este amor incondicional esteve presente durante toda a vida e a enfermidade que, durante vinte anos, o acometeu. Acompanhei estes momentos difceis de grande sofrimento vivido por eles. Em nenhum momento ela se queixou de nada ou se deixou abater. Conciliando a difcil jornada de harpista da Orquestra Sinfnica de Minas Gerais e professora da Escola de Msica da UFMG, conseguiu dar o suporte, o amor e assistncia necessria ao marido at seus ltimos dias. Mesmo nesta fase difcil prevaleceu o bom humor de ambos. Aps dois anos de profunda consternao diante da perda, Myriam decidiu transcender o sofrimento e nos contar as boas recordaes e a grande histria de amor vivida por ela e Expedito. Quem conviveu com estes dois seres iluminados, com certeza, vai se divertir muito relembrando as estrias contatadas por Myriam com grande fluncia e seu humor peculiar. Alis, este humor inusitado era tambm uma das maiores virtudes do Expedito. Ao ler este livro quem no conheceu este divertido casal talvez entenda porque algumas pessoas ditas "normais" consideravam Expedito um sujeito meio louco. Certamente muitos vo se convencer de que loucos foram aqueles que no o levaram a srio. Fernando Pacfico Homem "No acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe, alto, com pouco caroo, querendo esquentar, demear, de feito, meu corao, naquelas lembranas. Ou quero enfiar a ideia, achar o rumorzinho forte das coisas, caminho do que houve e do que no houve. s vezes no fcil. F que no ." "Meu corao que entende, ajuda a minha ideia a requerer e traar..." Guimares Rosa (Grande Serto, Veredas) INTRODUO Experimentei uma feliz transformao ao escrever essas singelas recordaes. At ento, traumatizada pela morte do Expedito ocorrida aps longos quase vinte anos sofrendo do Mal de Parkinson, doena que se foi agravando at culminar com o seu falecimento em 22 de Janeiro de 2012, eu s conseguia recordar-me dele doente. O homem dos meus sonhos pelo qual me apaixonara como ningum jamais se apaixonou em tamanha plenitude esvara-se da minha memria e por mais que me esforasse eu s conseguia lembrar-me dele enfermo, frgil, dependente. Em vo tentava divis-lo na minha memria de outro modo, aquela figura gil, divertida, artista incomparvel. O Expedito que encantou minha vida e a transformou num sonho realizado tinha fugido de mim, por mais que o procurasse. Mas, foi atravs de ir relembrando e registrando suas estrias que ele foi aos poucos voltando para mim e hoje, ao fechar meus olhos, posso divis-lo exatamente como quando o conheci. A minha convivncia com o Expedito s me trouxe coisas boas. Foi somente graas a ele que eu, apesar de ocupar-me dos afazeres domsticos e de dar ateno a nossa famlia e filhos, ainda tive foras e incentivo para que tambm pudesse dedicar-me minha profisso, aprender um novo instrumento e tornar-me uma harpista profissional. Fogem-me as palavras para expressar a eterna gratido que sinto por esse grande homem, gigante na retido de carter, na generosidade, no afeto que to bem soube dedicar famlia, aos alunos e aos amigos. Com ele aprendi que nem sempre as decises mais previsveis, lgicas, bvias so as melhores. Ele me ensinou um modo diferente de ver a vida, completamente contrria aos modos tradicionais, mas nem por isso menos leve, divertida, exatamente como ela vale a pena ser vivida. EU SOU MUITAS Quando fao uma retrospectiva da minha vida at hoje atravs das minhas fotos, curiosamente no me reconheo em cada uma delas, mas confesso que sinto uma grande simpatia por todas. As mais remotas, as da minha infncia, me trazem recordaes espordicas dos meus quatro ou cinco anos, pouco depois de perder meu pai, das longas frias deliciosamente passadas no Rio de Janeiro com minhas primas na casa de meus avs, do "Jardim Azul do Imaculada", da minha insegurana e sentimento de inferioridade ao completar formulrios tendo que responder nome do pai, falecido, das minhas bonecas, sempre no meus braos nas fotos com a minha me... H tambm as que me trazem recordaes vivas do tempo do colgio de freiras, onde tudo era pecado. Lembro-me de que depois do recreio tnhamos que rezar o tero antes das outras aulas que se seguiam. ramos obrigadas a rezar de joelhos s as dez primeiras Ave-Marias, mas eu, um pouco para fazer bonito para as freiras e um pouco para me penitenciar dos maus pensamentos que me assolavam, fazia orgulhosamente todo o tero de joelhos. Quais pecados seriam esses? Na minha cabea eu ficava matutando coisas horrveis, inconfessveis. Ah, se as freiras pudessem ler os meus pensamentos... Pensava que sentido tinha o fato de a cruz ser um smbolo sagrado, se mataram Jesus nela? Ento, se ele tivesse sido enforcado ns teramos que nos ajoelhar e rezar diante de uma corda? A orao seria, Pelo sinal da santa corda, livrai-nos Deus... E depois, no se podia nem falar "bunda". E eu pensava, a bunda a parte mais criativa do nosso corpo, Deus pensou em tudo. Imagina se no tivssemos a bunda teramos que andar carregando duas almofadas o tempo todo para ao assentarmo-nos no furarmos as coxas com os ossos. Ento Deus nos providenciou as duas almofadas. Essa era uma. Depois observo uma outra, j adolescente, quase sempre ao lado do meu irmo. Fotos ao piano, j no mais to sorridente mas com olhos sonhadores, sempre perdidamente apaixonada pelos atores de cinema da poca, Tyrone Power, Errol Flynn, Robert Taylor. Passaram-se os anos, casei-me tornando-me uma pessoa plenamente realizada. a partir da que me reconheo. Nas fotos em que poso com meu marido, com meus quatro filhos adorados, tocando harpa em concertos, esta sim, finalmente sou eu. As outras ficaram para trs, na nebulosa passagem do tempo. MEU PAI, MINHA ME Tudo o que sei do meu pai me foi transmitido atravs das estrias dele, contadas por minha me. Aos doze anos de idade ele teve uma grave infeco que evoluiu para uma febre reumtica. Ainda no havia penicilina na poca e, consequentemente, uma doena cardaca o acompanhou por toda a sua curta existncia. Faleceu aos 34 anos. Era filho de imigrantes italianos, o primognito, e como tal no desfrutou ainda jovem das posses financeiras que meus avs foram aos poucos acumulando. Ao contrrio dos demais irmos mais novos, como o Tio Oscar, Tio Mildo e Tio Jacynto, os dois ltimos formados em engenharia, a ele foi dada apenas a condio de "guarda livros", termo que, na poca, designava a profisso de Contador, ou Escriturrio. J, minha me, ao contrrio foi criada com todo o conforto. Era filha de militar. Meu av quando morreu j havia galgado o posto de General de Diviso do Exrcito. General Jos da Costa Barboza. Minha me nasceu no ano de 1906 em Porto Alegre e morou em vrias cidades do Rio Grande do Sul, Paran, So Paulo, Rio de Janeiro e finalmente Belo Horizonte. Foi educada no Colgio Sion e, naquele tempo, s alunas s era permitido expressar-se em francs, idioma usado pelas professoras freiras em todas as disciplinas com exceo da de Portugus. O aprendizado deste idioma lhe valeu muito pois, ao ficar viva, ainda jovem, pode completar o rendimento da casa ministrando aulas particulares de francs. Ela sempre foi muito gentil com todos, teve uma educao refinada. Os dois se conheceram num cinema, no Rio de Janeiro onde moravam. Meu pai se interessou por ela nesse mesmo dia. Amor primeira vista. A mame, meio cabreira, deu-lhe um nome falso, Maria Lucy. Acrescentou um Lucy ao seu simples nome de Maria. Tenho ainda bastantes fotos da poca com dedicatrias dele para a Maria Lucy. Logo comeou um namoro s escondidas, porque o General jamais permitiria que ela viesse a se casar com um rapaz pobre, desconhecido, filho de imigrantes. Nessa poca meu pai era mesmo muito pobre e meu av sabia das necessidades pelas quais a minha me teria que passar, tendo sido acostumada a uma vida de luxo, cercada de empregadas. Moravam na Rua Marqus de So Vicente, no bairro da Gvea. Ela contava que jamais entrara na cozinha da sua casa. Para as refeies tinha que estar toda bem vestida, maquiada e muito bem penteada e tambm os irmos s podiam apresentar-se mesa de terno e gravata. Mas o amor venceu e meu av, de desgosto, mudou-se para Curitiba s para no estar presente ao casamento indesejado, deixando a mame aos cuidados de sua madrinha, Dona Bibina. Assim minha me se casou, longe do pai e da madrasta e veio morar em Belo Horizonte, numa casinha humilde alugada no at ento incipiente bairro do Prado. Imagino o que deve ter passado, mas nunca se queixou do meu pai e dizia que durante os poucos anos em que viveram juntos jamais tiveram uma discusso. Primeiro nasceu meu irmo Leo Lucas e depois eu. Ela contava que, passados uns dois anos seu pai arrependeu-se e, pouco antes de falecer fez-lhe uma visita de reconciliao, tendo chorado muito ao v-la. Cinco anos aps terem se casado meu pai morre de infarto do miocrdio. Minha me faleceu aos 81 anos, depois de um longo perodo de achaques da terrvel demncia senil, mas nunca deixou de conservar a sua elegncia, bondade e delicadeza para com as pessoas, resultantes da educao recebida. Quando j no podia mais andar e passava o dia todo ou assentada numa poltrona ou deitada na cama, costumava nos pedir gentilmente: - Por favor, vocs no poderiam me trazer um copo de gua? A casa era um sobrado de dois andares e tnhamos que descer at a cozinha. Assim o fazamos e ao lhe dar o copo ela retrucava: - Seria possvel espremer um limozinho na gua? A essa altura j sabamos que o que ela queria era tomar uma limonada, mas constrangia-se em pedi-la, pois no queria nos dar trabalho. O tempo foi judiando muito dela at que restou bastante ausente, j quase no falava, e quando o fazia era para ns motivo de satisfao e, muitas vezes de constrangimentos, como no dia em que foi submetida a uma delicada cirurgia ortopdica. Devido sua avanada idade e ao fato de sua sade j estar bastante fragilizada ficamos muito preocupados temendo que ela no sobrevivesse operao. Mas quando, finalmente, a vimos sair de maca do bloco cirrgico, j em direo ao quarto, ela, ao passar por ns, ouvindo as nossas vozes, abriu os olhos, nos viu, e antes que pudssemos dizer qualquer coisa foi logo perguntando: - Quando vai ser servido o caf? J no quarto, o mdico cirurgio, muito simptico, todo gentil, veio ter com ela e lhe fez algumas perguntas para saber se realmente ela j se recuperara da anestesia. Pegou suas mos num gesto muito carinhoso e perguntou-lhe: - Dona Maria, a senhora est bem? Est me vendo bem? Ela aquiesceu com um aceno. Mas ele, querendo saber mais sobre o seu estado ps-operatrio, perguntou-lhe: - A Senhora sabe quem sou eu? Ao que ela, para constrangimento geral falou em alto e bom som: - Sim, o senhor Pedro lvares Cabral. Do meu pai, quanto mais avano em idade mais sinto a sua falta. Dele nada me lembro, pois ainda ia fazer trs anos quando se foi. Ah, mas as fotos, elas me aproximam dele cada vez mais. Adivinho o som da sua voz, tento inutilmente lembrar-me do sentir seus abraos e beijos que incansavelmente observo nas fotos, que emoo e orgulho me invadem ao saber que aquele homem maravilhoso me amava, um amor paternal do qual no cheguei plenamente a conhecer, desfrutar. Costumam me dizer que pelo menos eu, muito criana no sofri a perda de um pai, como os adultos lastimavelmente esto sujeitos. Tal argumento no me convence. No tenho o consolo das lembranas do seu convvio, isto irremedivel. Estranho que s agora me bate uma saudade imensa dele. Mas, como, saudade? Saudade no. Que sentimento ento esse que ainda no existe em qualquer idioma uma palavra que o traduza? Saudade se tem de alguma lembrana vivida no passado. Quem sabe talvez uma doce tristeza em sab-lo alto, belo, de uma bondade apregoada por todos os que o conheceram e, mais do que tudo isso, ter os seu sangue correndo nas minhas veias? Eu sou um pouco ele. Ser que agora eu me vejo de uma outra forma? Ele esteve sempre comigo e como no me dei conta disso? MYRIAM E EXPEDITO Existem relatos histricos que contam paixes avassaladoras, amores impossveis, quase todos terminando em tragdias. Romeu e Julieta, Abelardo e Heloisa, Tristo e Isolda, Francesca da Rimini e Paolo Malatesta, esses, dolorosamente imortalizados por Dante Alighieri em sua "Divina Comdia", no Quinto Crculo do Inferno. Sculos depois serviram de inspirao para Riccardo Zandonai compor sua belssima pera "Francesca da Rimini". Costuma-se, numa atitude meio desrespeitosa, ou mesmo pretensiosamente engraada, cogitar como seria se, em vez do final trgico, esses heris tivessem um desfecho favorvel, diferente do que realmente aconteceu, e se tivessem seguido a sua vidinha corriqueira, sem grandes emoes. Comigo as coisas funcionaram um pouco s avessas, pois no meu caso podemos acompanhar o seu desenrolar por mais de 50 anos e tambm porque a paixo avassaladora no foi recproca. Apaixonei-me pelo Expedito de uma forma muito mais imediata e intensa do que Romeu se apaixonou por Julieta. Experimentei um momento mgico, inexplicvel, maravilhoso, transcendental! Foi s um primeiro olhar e, pronto: o meu destino estava traado. Era ele, s podia ser ele e mais ningum nesse mundo! Havia, no entanto, um pequeno detalhe: eu estava noiva de outro, com casamento marcado. Perodo difcil da minha vida... O sentimento de culpa por estar comprometida com um e amar loucamente outro se abateu sobre mim, e s no me causou maiores traumas porque me dediquei o tempo todo a arquitetar um plano para conquistar o Senhor Expedito; tudo o mais ficou relegado a um segundo plano. De princpio assim o tratava, com cerimnia, porque ele era 12 anos mais velho do que eu. Mas a situao chegou num ponto que no dava mais para contemporizar. Desfiz o noivado. Expedito era um artista talentosssimo, e sua personalidade era repleta de todas as excentricidades que isso normalmente acarreta. A primeira delas era a sua averso ao casamento. Declarava franca e categoricamente sempre que no tinha inteno de casar-se jamais. Era um excelente flautista e aproveitei essa chance para acompanh-lo ao piano. Assim formamos um duo, Piano e Flauta. J era um bom comeo... Depois de uns dois anos j ramos bastante amigos. Ele costumava levar-me casa de seus irmos aos domingos, e assim fiz amizade com seus sobrinhos, irmos, pai e me. Eu sentia que ele tambm gostava de mim, mas nunca deixou transparecer qualquer sentimento de responsabilidade quanto a casar comigo. Num belo dia, almoando na casa de um dos seus irmos mais velhos, esse, aproveitando a ausncia momentnea do Expedito na sala, me saiu com essa: - Myriam, ns sabemos que voc gosta muito do Expedito e temos certeza de que ele tambm gosta muito de voc. Ento, no gostaria de ficar noiva dele? O Expedito precisa tomar jeito na vida. - claro que sim, respondi de imediato. - Ento essa noite ns vamos sua casa pedir a sua mo Dona Maria. De fato, l pelas tantas apareceram solenemente l em casa o Dr. Walter e o Maestro Sebastio Viana, seus irmos mais velhos. Como acredito ser costume de suas cidades, eram do interior, marcava-se a data do casamento no dia do noivado. Eu, sem titubear, disse que gostaria de me casar no dia do meu aniversrio! Seria da a um ms e dezoito dias. Finalmente o compromisso ficou selado, assim mesmo, sem a presena do noivo. Tardo da noite me aparece o Expedito l em casa e eu fui logo avisando; - Ficamos noivos e vamos nos casar daqui a um ms e meio. Ele arregalou os olhos, assustado, dizendo que no podia, que no tinha dinheiro, s ganhava um pequeno salrio trabalhando no arquivo da Prefeitura, na poca ainda no fazia parte de nenhuma orquestra, ao que retruquei que para as alianas a gente podia derreter o ouro de alguns anis que eu tinha e tambm uns dentes de ouro da mame guardados depois que passou a usar uma prtese dentria. Casa eu tinha uma, de herana do meu av paterno, que por acaso estava convenientemente desalugada. Os mveis eu j os tinha ganhado de presente do antigo noivado, o enxoval tambm j estava pronto. Enfim, no tinha desculpa... O meu vestido de noiva foi emprestado da minha prima La, cujo casamento se realizara uns seis meses antes, aqui mesmo, em Belo Horizonte. S o que fiz foi acrescentar um lao de fita rosa cujas pontas desciam quase at a bainha. O fato de estarem quase todos os mesmos convidados na igreja e certamente reconhecendo que o vestido era o mesmo no me constrangeu em nada. O tio do Expedito, Tio ureo, era um alfaiate famoso no Rio de Janeiro e confeccionou um terno alinhadssimo para ele, e nem tivemos dificuldade em achar vaga na igreja numa data to prxima, pois caa num domingo. E foi assim que nos casamos, exatamente como o combinado, no dia do meu 23 aniversrio, s 4 horas da tarde de um domingo, o mais feliz domingo de toda a minha vida. LUA DE MEL, NOVA FAMLIA Nossa lua-de-mel foi passada no stio em Visconde do Rio Branco, onde moravam os pais do Expedito. Sua me, Dona Alzira, apelidada de Catucha no veio para a cerimnia do nosso casamento. Ficou no stio para nos receber. Isso quer dizer que passei a minha lua-de-mel com meu marido e minha sogra. Depois da cerimnia religiosa, todos os parentes foram celebrar l em casa, menos o Expedito, que teve que ficar plantado em frente ao nosso novo lar espera da cama de casal que ele tinha demorado em mandar fazer e ia finalmente ser entregue pelo marceneiro s naquele dia. Terminada a festa e o Expedito tendo voltado da nossa nova casa com a cama de casal devidamente instalada, fomos para a casa dos irmos que estavam hospedando os que vieram de Visconde do Rio Branco, e l ficamos rindo e conversando at tarde da noite, quando retornamos nossa residncia para estre-la. Ela ficava na Rua Aimors, entre a Rua Mato Grosso e a Avenida Amazonas, quase em frente ao Colgio Santo Agostinho. A casa era a mesma em que havia exatos vinte anos morrera meu pai. Minhas tias contam que, aproveitando a nossa ida casa dos irmos do Expedito, foram finalmente preparar a nossa cama de casal com os lenis do enxoval, ocasio em que repararam que no virol estavam bordadas as iniciais do antigo noivo. Rapidamente trocaram para um mais apropriado, pois em quase todos eu tinha feito uma gambiarra puxando trs perninhas de um S para se transformar em E, de Expedito. Logo esse me escapara, mas por sorte elas viram ainda a tempo da providencial troca. A ida para Visconde do Rio Branco foi no dia seguinte, s 6 horas da manh, de nibus, e j na rodoviria comearam os meus constrangimentos. Deparamo-nos com um antigo professor do Expedito, muito querido, e que tnhamos cometido uma gafe ao esquecermo-nos de convid-lo para o casamento. Ele, muito feliz em rever o Expedito, que de pronto me apresentou como sua esposa, retrucou: - Oh! Que bom, no sabia que voc estava casado! Quando foi isso? E o Expedito morrendo de vergonha respondeu; - Ontem tarde! Chegamos ao stio tardinha, exaustos e, depois de um bom banho, nos foi servida, cerimoniosamente, uma lauta refeio na mesa da sala de jantar. Mais tarde fiquei sabendo que essa regalia era reservada s para as pessoas de fora; o uso dirio era comer agradavelmente na cozinha, ao p do fogo lenha. Era costume, em 1963, sculo passado, s fazer sexo, acreditem, depois do casamento. A minha ainda pouca e recente experincia adquirida na noite anterior me fez passar pelo segundo constrangimento quando Dona Catucha, ao nos recolhermos aos nossos aposentos nupciais, que consistia no melhor quarto da casa, antiga, de fazenda, mas o mais longe do nico banheiro, veio-me com uma pequena bacia e uma jarra cheia de gua morna e, enigmaticamente, me disse: - Isso para voc, minha filha. Ai... pensei: e agora? Estou perdida, no ouso perguntar, mas no sei se para usar "antes ou depois". Aps o "depois", comeamos a ler juntos na cama um artigo da antiga revista Reader's Digest que narrava as peripcias de um casal de caadores no norte do Canad. Para ns, foi muito hilariante pois, por ser um resumo meio mal planejado, se concentrava quase que s nos trechos em que a mulher s ficava pensando em comer. Era s avistarem um biso e j o marido corria com uma garrucha e ela atrs com a frigideira na mo. Riamos sem parar, as nossas gargalhadas sonoras invadiam toda a casa por causa do teto de esteira. Infelizmente o quarto da minha sogra era contguo ao nosso. Hoje conjecturo o que ela deve ter pensado de mim (essas moas de cidade...) e se escandalizado em ouvir tantas gargalhadas na nossa "primeira noite", mas eu me encontrava num tal estado de felicidade que nem me dei conta disso. Sentia-me vivendo um "Conto de Fadas" por j pertencer famlia do Expedito. Foram sete dias em que pude conhecer os outros irmos que moravam na cidade e os primos, tios, amigos de infncia e as ex-namoradas, todas mais velhas do que eu, matronas respeitveis com filhos j crescidos, ocasio em que tinha a oportunidade de me fazer bastante simptica, sem contudo deixar de exibir um sorrisinho maldoso, retrato da vitria no preo da minha grande conquista. Casando-me com o Expedito, ganhei cinco irms e nove irmos. Tenho uma afetuosa e sincera amizade para com todos. Meus sogros tiveram dezenove filhos, fato raro, mesmo naquele tempo de famlias numerosas. O Expedito bem que tentou repetir a faanha comigo, dizia que era pobre, e s o que podia deixar para os filhos era irmos. A vida nos ensinou o contrrio, e creio que com quatro filhos a famlia j ficou de bom tamanho. COMEO DE UMA NOVA VIDA De volta a casa, logo se instalou uma rotina nova, agradvel, diferente de tudo at ento, exatamente como eu tinha sonhado. Eu saa todas as manhs bem cedo para ir ao mercado comprar as verduras frescas, pois no tnhamos geladeira. Depois passava no aougue e comprava dois bifes. A casa estava muito bem mobiliada com os mveis novos e o Expedito podia ir a p para o trabalho na Prefeitura. Tudo perfeito. Nesse mesmo ms dei-me conta de que estava comeando uma gravidez. Foi ento que recebemos uma carta dos amigos msicos do Expedito chamando-o para juntar-se a eles em Braslia. Na poca o Expedito recebia 16 mil cruzeiros por ms, e estava sendo convidado para ser professor de msica no Ensino Mdio em Taguatinga, municpio de Braslia, com um salrio de 160 mil cruzeiros. Oferta irrecusvel. Acrescente-se ainda o fato de lhe terem garantido que ele j estava nomeado h uns trs meses, que tinha muito dinheiro atrasado para receber. Coisas de Braslia, na antevspera da revoluo de 1964. Expedito, tendo aceitado uma pequena soma de dinheiro emprestada pelos irmos, se mandou para Braslia s, a fim de sondar a situao e j ento, l deixou reservada para ns uma casa linda, espaosa, cujo aluguel era de 35 mil cruzeiros por ms. Voltou para me buscar, mas por precauo s levamos na mala um pouco do meu enxoval, umas panelas e umas roupas dentro das panelas. Deixaramos para trs a nossa casinha, caprichosamente mobiliada, a nossa vida tranquila, harmoniosa, perto dos nossos parentes, as noites quando, aconchegados na nossa cama confortvel, dormamos abraados. Isso seria em meados do ms de setembro, um ms e meio de felicidade plena aps nosso casamento. Lembro-me de que, na nossa partida para Braslia, na rodoviria, a minha Tia Geny, s escondidas do orgulhoso Expedito, bondosamente me ps nas mos algo como uns 30 mil cruzeiros. Era presente dela, aceitei comovida. Logo mais esse dinheiro nos serviu para pagar o que se chamava de "luvas", taxa cobrada como garantia na hora de assinar o compromisso do aluguel da casa. Assim, despedi-me, com o corao apertado e lgrimas nos olhos, de Belo Horizonte, da minha me e irmo, das minhas tias e primas queridas e da minha casinha to aconchegante e l fomos ns, rumo a uma aventura nova e desconhecida. Foi mal. As coisas no eram bem como os amigos do Expedito acreditavam ser. Na poca reinava em Braslia uma desordem poltica e social catastrfica. Ficamos sem receber, desde que chegamos, literalmente, nenhum tosto at o ms de dezembro. Os professores eram, na sua maioria, simpatizantes do comunismo. Organizavam listas de pessoas que durante a noite, em grupos, invadiam apartamentos novos quebrando os vidros com cadeiras e tomando posse dos imveis. Soubemos que os nossos nomes j constavam desta lista fatdica. Apavorados e, desaprovando totalmente essa atitude exigimos que fossem imediatamente retirados os nossos nomes. Eu, ento, sendo neta de General do Exrcito, corria um risco enorme de ser considerada uma "reacionria", termo que sempre entendi errado. Pensava que reacionrios eram os comunistas. Em Taguatinga, na linda casa que alugamos, a gua s chegava s 3 horas da madrugada numa torneira do jardim, e assim mesmo s por pouco tempo. A sua presso era to pouca que no tinha fora para subir at a caixa d'gua. Todas as noites colocvamos o relgio para despertar-nos nesse horrio a fim de que, com um caneco, enchssemos algumas panelas para os banhos do dia seguinte. Com a casa completamente vazia, sem qualquer moblia, eu estendia meus lenis, caprichosamente bordados por mim, novos, engomados, e dormamos no cho duro. Dias depois, uma vizinha ficou com pena de mim ao saber que eu estava grvida e me emprestou uma cama de solteiro azul, daquelas que abrem e fecham. Mas eu me recusava usar a cama vendo o Expedito dormindo no cho. Mais tarde conseguimos uma lata de tinta de vinte litros vazia e ela, devidamente emborcada, serviu-nos de banco, pois era insuportvel no ter onde sentar. No me esqueo do barulho que ecoava na casa toda vazia, quando a gente se levantava da lata, e das risadas nossas por causa disso, que igualmente repercutiam em todo o ambiente. Tempos depois conseguimos outra lata vazia e assim pudemos mobiliar a casa com mais um banco improvisado. O conforto passou a ser mtuo. Uns dias depois, no aniversrio do Expedito, sete de outubro, recebemos de Belo Horizonte a nossa cama de casal e o fogo. No mesmo dia em que a cama chegou, um dos seus ps se quebrou ao passar pela porta. Ficou to desnivelada que no se podia deitar-se ou assentar-se nela. Hoje fico pensando que no seria to difcil assim achar uns tijolos, tocos de madeira, ou qualquer coisa que pudesse ser posta no lugar do p quebrado, mas acho que at isso no nos foi possvel na poca. Foi exatamente a que tomei conhecimento da inabilidade do Expedito em consertar qualquer coisa em casa. A gambiarra que ele inventou no ficou nada perfeita, mas acabamos nos acostumando a dormir naquela cama ainda que meio desnivelada. O Expedito, sempre muito orgulhoso, nunca deixou que a nossa situao transparecesse para a sua famlia. Eu tambm no queria preocupar a mame, e, mesmo que quisesse falar com ela, no tinha dinheiro para fazer um interurbano. Naquela poca ter um telefone em casa era um luxo. A Escola onde o Expedito dava aula fornecia almoo para os professores. Eu, sem nenhum trabalho profissional oferecido, estava sempre com ele aonde quer que ele fosse e filava o almoo todos os dias. At hoje me lembro com uma grata recordao de uma salada que serviam e que tinha um sabor todo especial para mim. Era evidente o motivo de julg-la to saborosa: estava grvida e o apetite era enorme. O restaurante da Escola ficava muito longe da nossa casa, tnhamos que percorrer dezenas de quarteires debaixo do sol inclemente no clima rido de Braslia. Sem saber que ficaramos sem receber tantos meses, passamos a comprar numa mercearia que vendia fiado, de acordo com o costume de antigamente. Tudo o que se comprava ficava escrito numa caderneta e ao final do ms pagava-se a conta. tardinha passvamos l para comprar leite, po, biscoitos para passar a noite. No me lembro como conseguimos afinal um botijo de gs, e a a festa estava feita. Tnhamos um fogo que funcionava, e ento eu passei a trazer da mercearia ovos e pacotes de sopa instantnea para o nosso delicioso jantar. Os meses foram passando e ns sem podermos pagar a conta que se acumulava na mercearia. Depois de certo tempo o Expedito no tinha mais coragem de entrar l e, covardemente, comandava que eu fizesse as compras e ele ficava esperando-me do lado de fora. A nossa sorte que o dono do estabelecimento esperou pacientemente at que, s em dezembro, foi-nos possvel saldar a dvida com ele. Era muito difcil achar a nossa casa quando voltvamos da Escola, noite. As ruas ainda no eram caladas, quase todos os lotes ainda estavam vagos e no existiam ali postes de iluminao. Nossa casa era realmente muito longe e sempre errvamos o caminho de volta. Numa noite, o despertador tocou na hora da coleta da gua. Ainda sonolento, Expedito dirigiu-se porta da cozinha onde se assustou ao deparar-se com a mala onde guardvamos toda a nossa roupa plantada em frente porta que dava para o quintal totalmente escancarada. Mais tarde me contou que, na hora, ainda sonolento, meio dormindo, meio acordado, pensou que eu estava querendo abandon-lo. Ento, j totalmente desperto, ao voltar ao nosso quarto, sentiu um alivio ao ver-me levantando para ajud-lo na coleta da gua. O que aconteceu que um ladro tinha entrado na casa e j ia levando a nossa mala exatamente na hora em que o relgio despertou e ele deve ter-se assustado e bateu em retirada, sem lev-la. No dia seguinte, quando o Expedito se preparava para sair para dar as aulas foi que percebeu que levaram a sua flauta de prata. Essa ele nunca mais a teve de volta. Foi a que conseguimos emprestada uma bicicleta para facilitar a nossa locomoo at a Escola. S que o Expedito era muito ineficiente na arte de pedalar e, para ele manter o equilbrio, eu tinha que ir assentada no quadro da bicicleta, e no atrs como se costuma levar um carona. E tem mais. Para comear a andar ele precisava de uma pedra da qual dava o impulso inicial. Essa bicicleta no tinha farol e, voltando s escuras para casa, foram incontveis os tombos que levamos. Para mim, que estava, a essa altura, grvida de uns trs meses, tudo isto foi fatal. Eu fui ficando num estado lastimvel. Meus sapatos j no cabiam mais nos meus ps. Passei a usar um par de chinelos que uma das alunas do Expedito me deu. Aos poucos minhas roupas comearam a no caber direito no meu corpo, que j evidenciava a caracterstica transformao, tomei muito sol e fiquei com manchas horrveis no rosto, comecei a me cansar em demasia, j no conseguia mais nem erguer meus braos altura dos cabelos para pente-los. Para culminar a situao, fui acometida de uma terrvel infeco de ouvido. Por causa dessa infeco eu fiquei meio surda, e no podia nem aguentava mais acompanhar o Expedito nas noites em que cantvamos num coral em Braslia. Ento ele, para minha proteo, pediu um revlver emprestado a uma professora e o deixou comigo, que ficava sozinha em casa esperando que ele chegasse. Lembro-me de que eu permanecia o tempo todo assentada na lata olhando para a porta, com o revlver na mo, pois se virasse as costas, com minha surdez momentnea, podia no ouvir o suposto ladro entrando. Uma vez, isso j em dezembro, fomos convidados a jantar na casa de um casal que cantava no coral. O marido trabalhava no Banco do Brasil e moravam em Braslia, num apartamento muito confortvel. No me esqueo desse dia. A dona da casa nos recebeu muito gentilmente, e, quando me viu, olhou bem para mim, e bondosamente me perguntou: - Voc no gostaria de tomar um banho? Respondi muito sem graa, que no, no queria dar trabalho, e ela insistiu que no, no seria trabalho algum, que fazia questo. Entrei no banheiro e, depois de quase quatro meses sem me ver no espelho, levei um susto terrvel. Meu rosto estava todo manchado, a viso da minha barriga em toda a sua plenitude, de frente, redonda, desconhecida para mim, porque at ento eu s a via de cima, me deu uma impresso estranha. H quatro meses eu s tomava banho de caneca. Do que comi naquela noite, tambm, jamais me esqueo. Havia um espaguete sequinho, com bastante queijo parmeso, com um sabor que jamais experimentei novamente, nem nos melhores restaurantes que j frequentei. Mas a essa altura eu j estava muito doente. Dores intensas em todo o corpo, um cansao enorme, j um incio de hemorragia se fazendo presente. Estava perdendo nosso primeiro filho. Meu irmo, aqui em Belo Horizonte, ia formar-se em engenharia e a solenidade de sua formatura seria quase no Natal. Foi s ento que, diante da gravidade da minha situao, pagaram tudo o que deviam ao Expedito e ele pode quitar todas as suas dvidas com a mercearia, o aluguel da casa e comprar uma passagem de avio para mim, que vim s, pois ele tinha um famigerado concerto Coral das Mil Vozes prximo ao Natal. Foi a conta de comparecer solenidade de formatura e correr para o Hospital e abortar o Leopoldo, que, se fosse menino, j tinha at esse nome, resultado de uma promessa que fiz a Frei Leopoldo, um frade que estava para ser canonizado na poca, e eu pensei: ele est precisando produzir um milagre para virar santo. Quem sabe no comigo? No foi. Depois do aborto tive Pelviperitonite, em seguida perdi totalmente a fora muscular, e ainda sofri com febres altssimas durante seis meses. Fiquei internada no Hospital Felcio Roxo, tive Endocardite, os mdicos nunca souberam diagnosticar minha doena. Seria Lpus? Doena ainda pouco conhecida pelos mdicos na poca. S voltei a ter foras para ficar de p e conseguir andar novamente um ano e meio depois. Fizeram bipsia no meu brao e passei a tomar cortisona. Aos poucos fui sarando. Expedito, logo depois do aborto, desistiu de Braslia. Com o tempo voltei a ter sade, e tive os quatro filhos de parto normal. O Expedito e eu nos tornamos msicos da Orquestra Sinfnica de Minas Gerais e Professores, ele de Flauta e eu de Harpa na Escola de Msica da UFMG, mas isso j uma outra estria. BAHIA A Bahia foi um pequeno captulo do nosso ainda conturbado incio de vida como casados. Estando eu praticamente recuperada da terrvel doena que me paralisou por quase dois anos, agora, no comeo de uma segunda gravidez, recebemos uma oferta de trabalho para o Expedito em Salvador, onde, ainda solteiro, tivera a oportunidade de morar e estudar flauta no ento "Seminrios Livres de Msica", sob a direo do maestro e compositor alemo Hans Joachim Koellreutter. Seu antigo professor de flauta, o tambm alemo Armin Guthmann aposentara-se e retornara Alemanha e o Expedito foi convidado para assumir o seu lugar, como professor. Diante de tal honroso convite nem pensamos em recusar, e para l ns fomos. O Expedito sempre me contava seus casos quando estudante na Bahia, e eu tinha uma curiosidade imensa de conhecer Salvador. A cidade, com sua beleza natural, no me decepcionou em nada. De imediato me apaixonei pelo seu clima, pela aragem fresca da brisa do mar, pelo colorido de sua exuberante vegetao, pelo aroma do dend dos acarajs vendidos pelas baianas nas ruas, pelas suas praias lindssimas. Primeiro ficamos alojados numa penso, a "Anglo Americana", que ficava perto do Campo Grande, no Corredor da Vitria. Tempos depois, l retornando, verificamos que tinha sido demolida e seu espao cedido para a construo de um prdio. Na primeira vez em que fui levada a conhecer o local onde o Expedito ia lecionar acontecia uma celebrao ou um recital, agora no me lembro mais, mas foi l que eu, encantada, fui conhecendo um por um os personagens das divertidas estrias que to bem conhecia atravs do relato minucioso e pitoresco feito pelo Expedito. Dos inmeros casos que o Expedito me contava, o melhor de todos era, sem dvida, sobre o Z Galheiras, muito conhecido de todos e, creio, o pai de uma das alunas da Escola. Finalmente chegou a vez de conhecer o tal Z Galheiras, e, quando eu ia justamente pronunciar o clssico "muito prazer em conhec-lo, Senhor Jos...", no sei por que milagre, lembrei-me dos casos das constantes traies de sua mulher, e conclu que o seu sobrenome provavelmente deveria ser outro. Galheiras era um apelido jocoso que circulava no meio de todos, mas de que obviamente ele mesmo no suspeitava e foi na ltima hora que a minha memria e meu bom senso me salvaram de uma situao desastrosa. Foi l em Salvador que nasceu a nossa primeira filha, de parto normal, no requintado Hospital da Beneficncia Portuguesa. Mas, infelizmente, l tambm os pagamentos comearam a atrasar e isso foi deixando o Expedito num estado de irritao tal que quase adoeceu. Estava com os nervos flor da pele, situao plenamente justificvel, pois agora a famlia estava maior, e tnhamos um beb para proteger e as costumeiras peripcias do nosso passado recente no podiam mais se repetir. Expedito tinha um revlver e um dia resolveu vend-lo para garantir a subsistncia do ms at recebermos o pagamento atrasado, mas antes tinha que ir para o ensaio da orquestra. Ps o revlver no bolso de dentro do palet e l foi ele para o ensaio. Acontece que, durante o ensaio, o Expedito comentou alguma coisa com um colega e um dos msicos estrangeiros da orquestra, um senhor at muito gentil e bem educado, cometeu o deslize de virar para o Expedito e sonorizar um chiii... reprovador. Foi o bastante. Expedito, calmamente, s o que fez foi abrir uma nesga do palet e exibir o cabo do revlver para ele, numa suposta ameaa. Esta foi a fagulha do estopim que acendeu um tumulto geral na orquestra. A esposa de um dos msicos que tambm tocava na orquestra, e estava grvida, desmaiou, prevendo uma tragdia. O maestro Sergio Magnani na mesma hora encerrou o ensaio e dirigiu-se imediatamente Reitoria para fazer uma denncia formal. Mas a essa altura o Expedito j havia at redigido uma carta pedindo o seu afastamento pois no mais nos interessava permanecer l. A volta tambm foi muito conturbada. Mudar de cidade, com uma criana de poucos meses, e tendo que embalar todos os pertences no uma tarefa fcil para ningum, principalmente para ns, confesso, meio desorganizados. Naquela poca as companhias de aviao costumavam passar com uma Kombi, recolhendo os passageiros que assim o solicitassem para lev-los at o aeroporto. Nossa casa ficava bem no caminho e ns seramos os ltimos a serem pegos. A madrugada anterior foi extremamente cansativa, j estvamos exaustos e ainda faltava muita coisa para ser embalada. Resolvemos ir dormir e acabar o servio bem cedo no dia seguinte, pois a Kombi s passaria s 10 horas da manh. Perdemos a hora e s acordamos com a buzina da Kombi, j na nossa porta. Esta , sem dvida, a recordao mais traumtica por que j passei em toda a minha vida e de que consigo lembrar-me. Havia ainda roupa estendida no varal, muita coisa espalhada ainda sem ser devidamente acondicionada nas malas, mamadeiras por fazer, um verdadeiro caos. Mas o pior de tudo foi, sem dvida, depois de muita correria e de ter deixado muita coisa para trs, ter que enfrentar os olhares frios e reprovadores de todos os passageiros da Kombi at chegarmos ao aeroporto. E assim Expedito e eu nos despedimos da Bahia e voltamos para a nossa Belo Horizonte mais tranquila, onde permanecemos para sempre, onde nasceram os nossos outros trs filhos e continuamos muito unidos, at o seu falecimento, em 2012. MOTEL CLUBE BELO HORIZONTE Quando os meninos eram bem pequenos, o Expedito adquiriu uma cota do Motel Clube Belo Horizonte. Na poca, isso significava para ns um investimento muito elevado. A renda da casa era pequena e morvamos num barraco alugado, mas para ns era a nica possibilidade de sairmos de frias com as crianas, j que, pagando como scios, podamos reservar hotis ou campings em lugares tursticos por alguns dias do ano. Muito bem, s que para viajar tambm se gasta muito dinheiro e assim ficamos por muito tempo sem poder desfrutar das regalias oferecidas pelo plano. Vai que, no sei como, o Expedito ficou sabendo que com nossa nica cota no podamos viajar com a famlia inteira. Uma cota s dava para quatro pessoas, e ns ramos seis! Precisvamos de mais uma cota. Ponderei ao Expedito que ainda faltavam alguns dias para o fim do ms e pelo visto o dinheiro que tnhamos no ia dar at o prximo pagamento, e, lembrando-me da fatdica cota do Clube que vnhamos pagando inutilmente, j que no podamos viajar com ela, que tal vend-la? Seria um dinheirinho a mais que ia chegar em muito boa hora. Surpreendentemente ele concordou sem questionar. Maravilha! O ms estava salvo. E l foi o Expedito. Eu pensei com meus botes: timo, no que o Expedito est tomando juzo e aceitando minhas sugestes? Como de costume ele demorou muito a voltar para casa. Bem mais tarde, quando finalmente chegou, corri ansiosa para saber quanto ele tinha apurado com a venda da cota. - E a, conseguiu vender a cota? Ao que respondeu, - No, comprei mais uma! Era de um velhinho que lhe deu muita pena. Resolveu ajudar o pobre homem que estava muito precisado e disps-se a vender a cota por um preo mais barato. Tivemos o maior prejuzo, pois havia vrias parcelas em dbito e fomos obrigados a gastar o que no podamos para quitar a dvida do velho. Anos mais tarde pudemos finalmente desfrutar das nossas duas cotas. Foram frias maravilhosas com as crianas e uma certeza para mim de que o Expedito era realmente a pessoa iluminada que me fascinou desde o primeiro dia em que o conheci. BALDES E FOSSA O sol j estava a pino e o calor que vinha do quintal prenunciava uma trgua na terrvel tempestade da noite anterior. Senti-me particularmente aliviada, aquele seria o dia em que, se no todas, a maior das minhas preocupaes seria sanada. At nem me importei com o constante barulhinho irritante que vinha do meu quarto dos ltimos pingos que ainda caam do teto batendo nos diversos baldes e que o Expedito insistia em dizer que produziam uma melodia singela e agradvel, um verdadeiro privilgio para ns, msicos. Era evidente que essa sua percepo nada mais era do que uma desculpa esfarrapada por nunca tomar providncias quando necessrias. Mas at que no me importava tanto, diante da real ameaa que pairava sobre nossas cabeas: a fossa. Essa, sim, me tirava o sono e, tenho certeza, o dele tambm. Com quatro crianas pequenas, agitadssimas, que passavam o dia todo brincando no quintal, uma fossa de banheiro muito funda e com a tampa em frangalhos constitua um pesadelo constante e um perigo iminente. Havia urgncia em repor uma tampa nova, bem assentada por algum pedreiro experiente. A estava o problema: urgncia. Isso nunca funcionou com o Expedito. E assim os dias iam passando, e nada de providncia. Tomar providncia nunca fora o seu forte. Sua relutncia em tomar atitudes urgentes foi para mim uma de suas qualidades ao me apaixonar perdidamente por aquele ser to diferente, e um relativo perigo domstico quando, enfim, triunfalmente me casei com a figura mpar que se tornou meu marido. Sem sombra de dvida, Expedito era diferente, e por razes desconhecidas, foi justamente isso que me atraiu nele. Os baldes, por exemplo. Eram tantas as goteiras que cheguei a contar doze baldes no nosso quarto. Apesar de j terem passado muitos anos, sei que no estou enganada quanto ao nmero deles, mas por vezes me furto em relatar a verdade, que aos ouvidos das pessoas normais certamente soaria um exagero de retrica. Doze, doze baldes devidamente comprados medida que as goteiras se multiplicavam. Era quando o Expedito se fazia mais rpido, providente ao sair para comprar mais um balde sem me dar chance de reclamar. Lembro-me de certa noite chuvosa, ns dois bem acomodados no conforto das nossas cobertas, ouvindo a graciosa melodia dos pingos. Plim, plim, plim, ... Plim, plim,... Lindo, mgico, delicado, relaxante, sons que pareciam brilhar como estrelas cadentes. Mas eis que, do nada, ouvimos um "pc" intercalando os plins, um som intruso, feio, rouco como um contrabaixo desafinado na regio grave. A melodia no condizia com a partitura. No demorou muito para percebermos que aquele som intruso eram as gotas que caam sobre o nosso cobertor. Naquela noite, por fora das circunstncias, tivemos que recorrer a um guarda-chuva aberto sobre os ps da cama. De outra feita, ns j devidamente acomodados na cama para dormir, comecei a sentir uns pingos batendo no meu rosto. Reclamei que assim estava difcil, ao que Expedito respondeu: - Que nada, reclama no, chega mais pra c, veja o lado pitoresco. E eu respondi: - Ento voc passa para o lado pitoresco que eu fico no seu lado! Cenas passadas, recordadas com nostalgia e muitas saudades... Mas voltando ao caso da fossa, o meu alivio se dera devido ao fato de que, naquela manh, logo ao acordar, o Expedito quase que de um pulo assentara-se na cama. - Hoje eu resolvo o problema da fossa. Saiu sem tomar caf e sem dizer mais nada. timo, pensei eu, at que enfim! Mas depois fiquei meio preocupada pois ele no tinha tirado medida da tampa, no disse para onde ia... Naquele tempo no havia celular para dar as coordenadas do endereo de algum pedreiro. Mas tudo bem, ele j devia saber tudo isso. Esperei pacientemente nas primeiras duas horas, preocupada nas duas horas seguintes e j estava desesperada pensando o pior, quando ele me aparece com um grande embrulho debaixo do brao. - Ah, que bom que voc chegou; contratou o pedreiro? A areia e o cimento vm amanh? Ele me olhou com uma expresso de no estar entendendo nada e disse: - Myriam, j resolvi tudo. Abra o embrulho. Assim o fiz e, estarrecida, deparei-me com vinte metros de corda! No dia seguinte fui ao quarto de despensa e vi uma das extremidades da corda amarrada a um balde. A partir daquele momento, se uma criana casse l na fossa, o desastre no seria fatal: J tnhamos como i-la. Simples assim... MIOPIA Acho que sempre fui mope. Esta uma caracterstica que herdei dos Ruganis, dos quais me orgulho profundamente. Uma vez ouvi dizer que o mundo dos mopes. Penso que tal observao s pode ter partido de um deficiente visual. Mas foi justamente por causa dessa miopia que j passei por momentos desconcertantes e de ter ganhado dos meus filhos o carinhoso apelido de toupeira, muito provavelmente incitados pelo Expedito que no perdia oportunidade de fazer uma graa. Minha me sempre me contava que eu, aos trs anos incompletos, tendo recentemente perdido meu pai, certa vez confundi um vizinho que vinha se aproximando do quarteiro seguinte ao da nossa casa, e que sa correndo em sua direo para abra-lo, pensando que fosse o meu pai. Cena pattica, tragicamente dolorosa, que imagino ter marcado tanto a minha me quanto o vizinho amigo. Felizmente dessa eu no me recordo, mas em compensao h outros eventos dos quais no gosto nem de lembrar-me, de to constrangedores. Um, quando fui tirar uma verruga no rosto e tive que ficar esperando numa antessala do hospital, eu, e vrias outras pessoas j devidamente paramentadas, com uma espcie de sapatilhas, um avental at a metade da canela e uma touca, todos assentados num semicrculo aguardando para serem chamados para as respectivas intervenes cirrgicas. Haviam-me tirado os culos e por causa disso eu via muito embaadas as pessoas minha frente. Mas, como no sei ficar calada, danei a entabular uma conversao com as pessoas minha volta: - A senhora vai se operar de qu? E a pessoa respondia, um pouco constrangida, mas eu no me dava por satisfeita e assim prosseguia: - E a senhora? Mais uma resposta lacnica. Assim foi at que eu perguntei para a ltima: - E a senhora? Dessa vez, silncio total. Nenhuma resposta. Fiquei envergonhada da minha indiscrio e me recolhi ao silncio nervoso do ambiente. Foi a que chamaram por um senhor Fulano de Tal de cujo nome no me lembro, e justamente a ltima pessoa que no me dera resposta se levantou, e quando passou na minha frente, pude ver um homenzarro muito branco, com um bigodo mais que branco e que me fuzilou com os olhos numa atitude to ameaadora que nem coragem tive de desculpar-me. De outra feita tive que renovar minha carteira de habilitao para dirigir, e coincidiu a data ter sido logo aps a da minha cirurgia de catarata e eu ainda no estava com a viso totalmente recuperada. Mas l fui eu, toda confiante. Sabendo da minha condio, a oftalmologista examinadora me fez olhar, primeiro com o olho esquerdo. Aps alguns desconcertantes segundos de silncio, eu gentilmente lhe disse que j estava pronta e que j podia botar as letras para eu ler. - J esto l h muito tempo, respondeu. - Ento vamos passar para o olho direito, ela disse pacientemente. Dessa vez eu via as letras, mas sem conseguir distingui-las. - A doutora poderia aument-las um pouco? Esto muito pequenas. E ela: - Estas so as maiores, minha senhora. E foi assim que renovei minha habilitao para dirigir. Cito ainda outra passagem inesquecvel. Chovia copiosamente e eu tinha ido dar aula sem levar um guarda-chuva. Na hora de sair, para no me molhar muito, peguei umas folhas dos jornais j lidos que ficavam na portaria da escola. Sa protegendo-me como pude at chegar no ponto do meu nibus. O jornal ficou molhado, mas nem tanto, graas s providenciais marquises do trajeto. At agora, fora o frio enregelante que fazia, tudo bem, pensei, mas ainda vou conservar esse jornal para usar na descida da parada at a minha casa. O nibus, como de costume, chegou lotado, com mais gente em p do que assentada. Eu costumava pensar: considerando uma academia de ginstica grtis, se seguro nas barras em cima, estou fazendo alongamento; se assentar-me, o trepidar constante do pssimo estado de conservao dos amortecedores me faz uma massagem facial. E foi com esse esprito de "me engana que eu gosto" que consegui, com muitos empurres subir no nibus, mas sempre atracada ao meu jornal. E no que, l no meio, havia um assento completamente vazio, e todos em p ao seu redor... Foi a que me lembrei do bendito jornal. O banco deve estar molhado. Mas eu posso enxug-lo e milagrosamente vou assentada at a casa. Olhei com um olhar de superioridade para todos os incautos sofredores que estavam amontoados, em p, pedi licena e, triunfalmente, enxuguei o banco e assentei-me. Experimentei uma grande sensao de alvio. Na viagem at a casa, pensei: eu poderia inclusive tirar um cochilo... Mas foi justamente quando o nibus comeou a andar que percebi que o problema era que a janela estava sem o vidro, e a, fui recebendo fustigantes aoites de vento e chuva por mais de quarenta e cinco minutos, tentando proteger-me com um pedacinho de jornal, j em frangalhos. Mas no dei o brao a torcer. No arredei o p do meu lugar, s de vergonha da minha burrice, ou melhor, da minha miopia que no me permitiu ver de longe a falta do vidro. Quando finalmente eu me levantei para descer, encharcada, tiritando de frio, uma mulher que estava em p dirigiu-se a mim dizendo: - N, dona, para viajar assim era prefervel ficar em p. E naquele momento s me ocorreu: - No, dona, eu sou doente, no posso ficar em p. APELIDOS costume em Visconde do Rio Branco dar apelido s pessoas. Da famlia do Expedito, Culim era o Joaquim, Dico, o Sebastio, Nininha, a Catarina, Milinho, nomeado como o pai, Waldemiro, Tito, o pai, Catucha, Alzira, a me e Pato Engomado, esse obviamente no usado na famlia, inventado, creio eu, por algum desafeto, dado ao Walter, porque gostava de andar muito bem vestido e com ternos impecveis. Dos sobrinhos, Piu para o Herbert, Lence para a Florence, Ferro para a Virgnia, Tuia para a ngela, Taleco para o Tales, a quem o Expedito apelidara de "Homem Lixa", porque, quando criana, desenvolveu uma alergia nos braos, que coavam muito. Dos tios, Piquin era o Tio ureo, Tato, o Tio Sebastio, e finalmente o curioso apelido de Pipi, para sua irm Alzira que fora nomeada como a me. Pipi, uma senhora elegantssima, muito bem relacionada na cidade teve dez filhos. Os oito primeiros nasceram homens e ela e o marido continuaram tentando at que as duas ltimas gestaes foram meninas. Esse apelido da minha cunhada rendeu, certa vez, uma surra bem dada pelo Expedito no nosso filho mais que encapetado, o Joo Maurcio. Ele teria apenas uns seis anos, e, tendo a Pipi chegado nossa casa para uma visita cordial, no que ele vem correndo receb-la, exclamando todo animado: - Tia Urina! De outra feita ele tambm se aventurou na mesma inconvenincia e igualmente levando outra sova, desta vez chamando a Tia Nininha, apelido de Catarina, de Tia Catarrina! Este era o Joozinho Maurcio, que quase nos levou loucura de tantas artes que aprontava. Mas os outros tambm no ficavam atrs. Hoje, saudosamente recordando este tempo que j vai longe, reconheo-o atribulado, mas muito feliz. O Expedito, curiosamente, foi dos que no tiveram um apelido que pegasse, fora um, "padre capeta", que ganhou quando, ainda criana e por insistncia da me, cujo sonho seria ter um filho padre, esteve por um ano no Seminrio de Mariana. Ele tambm gostava de pr apelido nas pessoas. Quando j estava bem doente, mas ainda numa fase consciente, se constrangia com a filha e eu prestando-lhe os devidos cuidados. Apelidou-a maldosamente de Merzegunda Merdi, e eu de Nefertiti, a Gorda. Ela uma vez perguntou-lhe o porqu desse apelido, porque, segundo se sabe, Nefertiti no era gorda, ao que ele respondeu: - Ela no era gorda, mas sua me ! EXPEDITO, GRANDE FLAUTISTA O Expedito foi um msico de rara competncia. Seu som na flauta era elogiado por todos. Sempre pesquisou muito sobre a sonoridade do instrumento e seus alunos so todos reconhecidos como timos flautistas e, tambm, todos, sem exceo, nutriam por ele uma slida e sincera amizade. Fernando Pacfico, excelente flautista e um dos seus alunos, escreveu uma dissertao de Mestrado sobre ele intitulada "Expedito Viana, um Msico frente do seu Tempo". verdade, ele se preocupava muito com a sonoridade. Antes de nos casar, passvamos horas num exerccio mgico para mim em tentar ouvir os harmnicos das notas que ele emitia na flauta ou cantando determinadas notas. Sempre me fazia identificar quais harmnicos ele conseguia produzir e, para provar, eu tinha que cant-los. Vale dizer que, conforme a posio da embocadura, ele propositalmente produzia os harmnicos que queria. "A beleza e a riqueza do som esto na quantidade dos seus harmnicos" dizia ele, e todo o esforo tcnico para adquirir o som ideal estava na busca desses harmnicos. Lembro-me de que, para certo constrangimento meu ou talvez por cimes, ele costumava ensinar para os alunos homens que o toque dos lbios na embocadura da flauta deveria ser como se estivessem beijando uma linda mulher. Expedito sempre foi fascinado pelas mulheres morenas ou negras. Certa vez parei o carro em frente a uma padaria e ele desceu para fazer nossas compras. Atravs da janela eu conseguia v-lo rindo muito com uma atendente, uma moreninha jovem e muito bonita. Eles conversavam e riam muito, sempre olhando para o carro, na minha direo. Quando voltou, eu perguntei do que eles tanto riam. E ele: - Eu falei que eu sempre sonhei com a cor dela mas, e apontando para mim dentro do carro, olha a cor que Deus me deu. Expedito nunca foi bom em se lembrar dos pequenos detalhes que cercavam o nosso dia-a-dia e isso por vezes nos gerou vrios constrangimentos. J esqueceu a flauta para tocar num recital em Itabira, os culos para outro recital em Ouro Preto, trocou a partitura num recital que demos no "Instituto de Educao", em Belo Horizonte, dessa vez acontecimento traumtico, pois ataquei no piano uma introduo e ele seguiu tocando outra pea. Mas a melhor de todas foi mesmo o esquecimento dos culos. Neste dia, j depois das habituais palmas da plateia, devidamente assentado na cadeira com a estante das partituras aberta sua frente e j com a flauta em punho, Expedito se deu conta de que esquecera seus culos. No se deu por vencido. Serenamente levantou-se e, dirigindo-se plateia, perguntou quem teria uns culos para emprest-los. A foi um tal de culos sendo passados de mo em mo at chegarem ao palco e o Expedito, muito seletivo, experimentando uns, recusando-os, depois outros e outros at se satisfazer com uns que lhe serviram. No dia seguinte, aps minuciosas buscas por todos os cantos da casa, constatamos que seus culos estavam perdidos. Expedito vivia perdendo os seus culos. No s os perdia como tambm, estando em posse dos mesmos, exercia uma capacidade formidvel em assentar-se ou deitar-se em cima deles, fech-los dentro de pastas com parte deles para fora, enfim, transformando-os em objetos esquisitssimos, sempre remendados com esparadrapos, arames, barbantes ou o que lhe estivesse mo. Lembrei-me providencialmente de que ele tinha estado no seu Banco no dia anterior. Muito provavelmente ns os encontraramos l. J no banco, fomos atendidos por um funcionrio muito solcito que se disps a ir consultar os objetos "perdidos e achados". Retornou com uma sacolinha cheia de culos e os despejou nossa frente. - A esto, Senhor Expedito, espero que seja um desses. E foi ento que o Expedito, num misto de surpresa e satisfao, respondeu: - Oh, achei... So esses aqui... e mais esses tambm... e mais esses... Estavam ali quase todos os que havia perdido l, guardados a salvo. E assim voltamos para casa com uma penca de culos estropiados e o Expedito feliz em t-los de volta. Outro fato ocorrido, desta vez enquanto flautista da Orquestra Sinfnica da UFMG. Eu ainda no tocava nessa orquestra, portanto ficava sempre em casa tomando conta dos meninos. Eram quase oito horas da noite, dia de concerto e nem vi quando o Expedito saiu. L pelas tantas me bate porta o gerente da orquestra, afobado, mas cauteloso, a perguntar pelo Expedito. - Mas como, ele no foi tocar? perguntei eu. - No, Myriam, agora o intervalo, sua presena imprescindvel e ele ainda no apareceu. Qualquer esposa se apavoraria traumatizada, pensando o pior, mas eu, conhecendo o marido que tinha, s o que fiz foi pegar o carro e sair percorrendo cinema por cinema atrs dele. Pedia gentilmente ao porteiro se podia entrar, e percorria toda a sala no escuro da plateia, fileira por fileira, procura do flautista faltoso. Isso demorou bastante. Naquele tempo havia muitas salas de cinema na cidade. Sem lograr xito, finalmente, voltei para casa e encontrei o Expedito calmamente tomando um caf na cozinha. - Expedito onde voc se meteu? Hoje era dia de concerto! E ele: - Oh, no que me esqueci! Fui ao cinema. Prefiro acreditar na hiptese de ter-nos desencontrado. J tive a oportunidade de mencionar a extrema generosidade do Expedito. s vezes isso constitua uma srie de problemas domsticos relacionados minha pessoa. Obras, por exemplo. Compramos uma casa que tinha de ser reformada para adequar-se s nossas necessidades. Para isso contratamos um pedreiro muito bem recomendado. Desconfio de que foi devido ao fato de o Expedito decretar para ele, peremptoriamente, que ia assentar-se mesa conosco, nada de trazer marmita, que aos poucos foram aparecendo um a um outros ajudantes at chegar ao nmero de oito. Mais oito comensais mesa. Eu no tinha empregada domstica e me virava como podia para fazer comida para toda essa leva de trabalhadores assduos. Nunca faltaram um dia sequer. At nos domingos eles apareciam, com desculpa de terem vindo pescar na lagoa da Pampulha e dar uma passadinha l em casa. Isso sempre na hora do almoo. O problema que a obra no acabava nunca, ficamos vrios meses nessa lida. A obra s acabou quando o nosso dinheiro acabou, e o resto ficou para ser feito sabe Deus quando. O resto era uma grande porta de vidro na sala. Segundo o Expedito, o vidro dessa porta ia ficar muito caro, mas a abertura j estava feita, ento o jeito foi botar um imenso tapume de madeira tampando a entrada da casa. No nos restou alternativa seno a de termos de entrar e sair de casa pulando pela janela da sala, que era bem baixa e dava para uma varanda. Isso durou tantos meses, que acabamos nos acostumando a esse modo bizarro que para ns virou rotina. Outra coisa, o Expedito nunca se furtou a dar uma esmola. Se ele no tinha trocado, ele dava uma nota de um valor alto e pedia troco. Era muito divertido v-lo dialogando com os pedintes na rua. Invariavelmente era ele quem pedia que lhe dessem mais, que queria mais troco e o pobre esmoler ia lhe passando as moedas e notas menores que porventura tivesse. Ele tambm nunca deixou de, ao descer do nibus, dar uma gorjeta ao motorista, e quase sempre deixava de aceitar o troco do cobrador. Quando ele combinava um oramento para algum servio, ele sempre pagava adiantado e mais do que era pedido. A justificativa dele aos meus apelos de bom senso era de que assim o servio ficaria mais bem feito. Fez isso com um eletricista, que logo nas vsperas do Natal nos cobrou um absurdo para fazer a instalao de toda a parte eltrica da casa. O Expedito pagou-lhe a mais e adiantado e esse homem e o nosso dinheiro nunca mais apareceram. MURO DE PEDRA Por vrios anos mantivemos a casa em que criamos nossos filhos desde pequenos sem muro e sem porto. Naquela poca ainda podamos dar-nos esse luxo. Era uma grande extenso de terreno, ao todo mais de dois mil metros quadrados, compreendendo dois lotes, um para a casa e outro para o quintal. Expedito nunca admitiu viver atrs de muros, como um condenado. Mas com o tempo as coisas foram mudando e, sentindo a nossa segurana ameaada, ele finalmente admitiu que um muro deveria ser construdo ali sim, mas esse no seria um muro qualquer. Queria-o todo de pedras. Mas s valia se fosse feito por ele mesmo, nada de pedreiro. Tambm no cogitou em comprar as pedras, j que no tnhamos recursos para faz-lo dada a grande extenso do empreendimento. A soluo veio num piscar de olhos. No final do nosso bairro havia uma pedreira e, todos os dias, l pelo meio dia, passava um caminho vindo da pedreira carregado de pedras. A nossa casa era de esquina, e sempre, numa curva acentuada, bem em frente nossa casa, costumavam cair algumas pedras do caminho. A partir da instalou-se uma rotina. O Expedito esperava o caminho de pedras passar, dirigia-se esquina e, com uma perseverana admirvel, recolhia todas as pedras que porventura houvessem cado no local. E assim ele foi, pacientemente, construindo o muro, pedra sobre pedra, artisticamente encaixadas conforme o tamanho e formato de cada uma, assentadas sem qualquer massa ou cimento, uma obra artstica digna de ser exposta em um museu. Ponderei-lhe que, apesar de vir a ser uma obra sem precedentes nos dias atuais, ele no a acabaria nunca, dada a lentido com que ela vinha sendo realizada. Ele retrucou que isso no importava, o que ele queria era deixar um exemplo de persistncia para os filhos. Como esse muro no terminava nunca, e na poca das frutas, tnhamos vrios ps de jabuticaba, manga, abacate, caju, caqui, acerola, carambola, o nosso quintal se via povoado de moleques que entravam facilmente e se fartavam escalando as rvores at as suas copas. Expedito no gostava dessa violao dos nossos domnios, e assim que percebia a presena deles, corria ao nosso quarto, pegava umas bombinhas de festas juninas, e comeava a exercer uma ameaa falando bem alto, bem devagar, da porta da cozinha; -Estou pegando o revlver... vou atirar... estou engatilhando a arma... Era quando se ouvia o riscar do fsforo. Ento ele acendia a bombinha e, com o barulho, s se via a molecada correndo em disparada. Mais tarde, ele j doente, mas ainda andando pela casa e exercendo o papel de guardio do nosso quintal, mas a essa altura j no com tanta lucidez, precisou fazer uso de supositrio. Procurei a caixa do medicamento por toda a casa at encontr-la. Ao abri-la, surpreendi-me: ela estava cheia das bombinhas que ele usava. Era precisamente l que ele, perigosamente as guardava. Finalizando, quanto ao muro, devo dizer que, infelizmente, anos depois, ainda incompleto, sendo uma obra em que ele j no trabalhava mais, teve que ser demolido e deu lugar a um muro slido, mas no muito alto, finalizado com uma tela, esta, sim, bem alta, para que o Expedito pudesse ver alm dos nossos domnios. NOSSAS CRIANAS No me lembro de jamais ter levado uma surra da minha me, quando criana. Desde cedo meu irmo e eu sempre fomos por ela tratados como adultos, participando ns trs juntos das decises financeiras da casa. Minha me, viva, no dispunha de muitos recursos para nos educar e ao mesmo tempo levar uma vida social plena, nem para ela nem para seus dois filhos. Todos os seus recursos foram direcionados para a nossa educao. Pde, com muito custo, manter-nos nos melhores colgios da poca em Belo Horizonte. Para o meu irmo Leo, o Colgio Loyola, de padres Jesutas, e para mim, o Colgio Imaculada Conceio, de freiras espanholas. Acho que, devido a esse meu modo de ter sido sempre uma criana "adulta", responsvel, julguei que tambm meus filhos agiriam da mesma forma. S que eles, ao contrrio, foram as crianas mais deliciosamente arteiras, insubordinadas, irrequietas, com a melhor das caractersticas que uma criana inteligente e saudvel possa ter: a capacidade de nos surpreender a todo o momento com uma nova peraltice. Hoje tenho uma enorme saudade desse tempo atribulado, em que, como costumava dizer na poca, elas eram a maioria na casa, e se superavam na arte de aprontar suas artimanhas. A essa altura, j morvamos numa casa com um quintal muito grande, cheio de rvores, e os quatro viviam se cortando, se machucando, se despencando dos galhos mais altos a que se aventuravam. Os plantonistas do Pronto Socorro at j me conheciam de tanto que eu os frequentava para as suturas que se faziam necessrias constantemente. Por sorte, nunca de grande gravidade. Compramos essa casa com o dinheiro que herdei do meu av italiano, o vov Ernesto, aps a sua morte. Era uma casa muito grande, a sala de visitas era muito espaosa, a cozinha tambm, mas isso trazia uma dificuldade para mim. A mesa da sala onde fazamos as refeies era muito longe da cozinha, o quarto das crianas, da mesma forma, longe da sala e, na hora de dar os banhos, de servir a mesa, de ir ao quarto pegar os respectivos uniformes, de ajuntar os respectivos materiais escolares, com todos matriculados no mesmo turno, era quase uma misso impossvel para mim. S saamos s pressas, sempre na ltima hora, mas a tempo de pegar os portes das escolas abertos. Lembro-me de que os cabelos dos quatro eram penteados um a um, medida que iam saindo do carro. A certa altura, lembrando-me da minha infncia, tive uma ideia luminosa. Comprei um par de patins e a pude, deslizando rapidamente pela casa, dar conta de perfazer em tempo recorde toda a minha corrida desenfreada, e assim, num segundo, j estava com a mesa posta, depois de um piscar de olhos j estava no quarto recolhendo os uniformes e os "deveres de casa" de todos, retornar cozinha para pegar as merendas, tudo muito mais facilitado. Hoje, quando vejo esses funcionrios em Lojas de Departamentos ou Supermercados usando patins, lembro-me de que eu, h quase quarenta anos passados, j fazia o mesmo. Como demoraram a adotar uma soluo to simples. Ns sempre levvamos nossos filhos onde quer que fssemos. Ir ao Mercado Central de Belo Horizonte, cidade onde, desde ento, sempre moramos, era ao mesmo tempo uma grande diverso para eles e um tormento para mim e para o Expedito. Constantemente um deles se perdia de ns. O mercado era muito grande, lotado de gente, cheio de esquinas tortuosas, e conseguir achar o perdido e manter os outros trs sob controle era tarefa que exigia de ns uma habilidade de estratgia digna do melhor oficial em campo de batalha. Nunca me acostumei a esses acontecimentos que se repetiam com frequncia, e lembro-me de certa vez, aps infrutferas buscas desesperadas, eu aos prantos, resolvermos voltar s com os trs, deix-los em casa, e retornar ao mercado para acabar de procurar o que faltava. Depois disso resolvemos com muita imaginao o problema que, desde ento, nunca mais se repetiu. Foi uma brilhante ideia do Expedito que funcionou perfeitamente. Compramos para os quatro uns apitinhos de barro com formato de passarinho que eram vendidos numa das bancas, e eles com todo aquele entusiasmo prprio das crianas em fazer barulho no paravam de apitar o tal assobio. A, ficou fcil. A cada um que se perdia, amos atrs do som do seu apito. Houve uma poca em que toda a famlia do Expedito se reunia sempre aos domingos, ocasio em que cada um levava um prato anteriormente estipulado. Certa vez coube a mim fazer o arroz de forno. Pois bem, estava eu muito concentrada tentando finalizar a receita, com todos os quatro ao meu redor, na mesa, se divertindo e acompanhando meus movimentos rpidos e precisos de uma grande "chefe". O arroz, j devidamente cozido, se interpunha em camadas que se sucediam de frango e queijo ralado. Estavam todos os ingredientes mo em volta da travessa, e a crianada parecia divertir-se grande, acompanhando-me nessa tarefa. J quase terminada a minha "obra prima", descuidei-me um pouco e, quando voltei s camadas, para o meu desespero, constatei uma farta e generosa camada de sabo em p em cima da ltima, de arroz. Eu, descuidadamente, havia deixado o sabo num vidro perto dos demais ingredientes. Nenhum deles admitiu ser o autor da faanha, mas eu pensei comigo que a intenso poderia at ter sido a de me ajudar e, convenhamos, at que o queijo ralado se parecia mesmo com o sabo em p. s pressas, tive que desprezar tudo no lixo, fazer mais arroz e comear tudo de novo, e quando chegamos casa dos parentes estvamos to atrasados que j tinham acabado de almoar. Dos prximos encontros em diante me foi dada sempre a opo de levar a sobremesa. Era costume nosso levarmos nossas crianas desde pequenas aos concertos em que no estvamos tocando. Estando com elas na plateia podamos vigi-las e assim iam se acostumando ao bom hbito de ouvir msica clssica. Lembro-me de que houve uma vez em que s conseguimos lugares no balco do teatro. Confesso que deveria ser um concerto longo, bem cansativo. Quando terminou, j voltando para casa, ainda no meio do caminho, demos pela falta do Luis Cludio. No que o tnhamos esquecido l no teatro? Voltamos s pressas, pedimos ao porteiro, que j estava querendo fechar as portas, para subirmos ao balco, e ento nos deparamos aliviados com o Luis Cludio, no escuro da plateia, teatro completamente vazio, dormindo um sono profundo na sua cadeira. As estrias dos nossos queridos filhos quando crianas s por si renderiam um compndio pesadssimo, cheio de fatos divertidssimos. At aqui foi s uma pequena amostra que quis deixar registrada. NOSSAS VIAGENS COM O FUSCA O Expedito nunca quis tirar carteira de motorista e de dirigir s sabia as primeiras noes, isso mesmo porque eu, sob relutantes protestos, consegui passar para ele o bsico s para um caso de emergncia. No mais, era eu que exercia o papel de motorista da famlia. Isto era particularmente penoso para mim, principalmente nas viagens, pois, como se costuma dizer, era "tudo eu". Levar o carro para uma reviso na oficina, fazer as malas, preparar a merenda, retirar das malas do Expedito uma quantidade enorme de livros e partituras musicais desnecessrias pois ele no costumava levar a flauta, e tambm o terno completo que ele insistia em levar, mesmo quando amos para a praia, e, finalmente, a maior das faanhas: dar banho nos quatro filhos conseguindo manter o primeiro que tomou o banho ficar limpo at eu dar banho no ltimo. s vezes eu conseguia. Nossos filhos nasciam todo ano, com diferena em mdia de um ano e pouco para cada um, porque o Expedito se equivocou quanto a tal da tabela, e parece que considerou por algum tempo os dias frteis como no frteis. S depois do terceiro beb nos demos conta do erro e o corrigimos para um longo espao de dois anos e meio para a caula. O percurso das viagens era sempre um tormento. Normalmente comeava com muita birra, choro, gritaria e reclamao at ficar estabelecido a quem caberia o privilgio de se assentar perto das janelas, problema resolvido quando trocamos o fusca por uma Kombi. A ento era a hora do Expedito estabelecer as regras: - Se passar dos 60 eu deso. Essa era a regra ptrea. O pior que, quando havia uma placa para reduzir a velocidade, ele me fazia obedecer, e a era um tal de carro buzinando atrs da gente, enfim, um perigo que o Expedito nunca admitiu. Depois de umas tantas horas ele sempre cismava que eu poderia estar cansada e insistia em trocar de direo comigo, sob violentos protestos da meninada, morrendo de medo, para no dizer eu, sabendo da precariedade dos seus conhecimentos. Invariavelmente ele olhava para trs, encarava as crianas e ordenava: - Segurem os chapus! E l amos ns, protegidos pelas mos de Deus. Assim viajamos para Guarapari uma dezena de vezes, Visconde do Rio Branco, Niteri, Poos de Caldas, e muitos outros lugares, sem nenhum acidente nas estradas. Certa feita voltvamos de Poos de Caldas, dessa vez, j numa Belina, com as quatro crianas, o Expedito, eu, minha me e mais um casal de gansos adultos que ganhamos l, fora a bagagem de todos. Essa volta foi particularmente penosa, porque o Expedito teimou em fazer uma parada num hotel para que eu descansasse, pois o percurso, segundo ele, era muito longo, e tivemos a maior dificuldade em encontrar um hotel que aceitasse acomodar os dois gansos. Depois de vrias tentativas encontramos um hotelzinho de beira de estrada que tinha um quintal, onde os novos componentes da famlia pudessem ser alojados com segurana. A generosidade do Expedito era um trao forte de sua personalidade. Nunca deixou de levar a minha me em todas as viagens que fizemos. Devo isso a ele, de corao. Lembro-me especialmente de uma viagem que fizemos a Visconde do Rio Branco. Ao passarmos perto de Barbacena a Belina comeou a soltar fumaa. Peguei uma vicinal e parei o carro, no meio do nada. Abrimos o cap, o carro estava fervendo e tambm no saa do lugar apesar dos meus esforos em lig-lo repetidas vezes. O negcio agora era arranjar um mecnico. Mas onde? S se via estrada e mais nada. Foi ento que o Expedito saiu para tomar "perdo da m palavra, uma providncia". O dia foi passando, e nada de o Expedito aparecer. J estava comeando a anoitecer, mame e eu preocupadas com a nossa segurana, custando a controlar as crianas que, a essa altura j estavam cansadas e com sono, quando finalmente avistamos ao longe o Expedito chegando, mas sozinho, sem um mecnico. No tive pacincia de esper-lo e corri at ele, perguntando ansiosa: - E a, tomou alguma providncia? - Tomei, trouxe um frango assado. BODAS DE PRATA Nem o Expedito nem eu nunca fomos de festejar datas comemorveis. Enquanto as crianas eram pequenas ainda ramos obrigados a promover festinhas infantis, mas com o passar do tempo fomos deixando de lado essa obrigao social. Sempre gostvamos muito de receber os amigos em nossa casa, mas festa para mim sempre foi um terror. Preocupava-me o fato de ter que conciliar pessoas desconhecidas umas das outras numa conversao agradvel, tambm o receio de no ter o suficiente para servir com fartura e, principalmente, o de esquecer-me de convidar algum amigo. Chegamos ao ponto de esquecer os nossos prprios aniversrios, que s vezes passavam em branco. No meu caso essa falha era mais grave, pois, tal comemorao era dupla. Pois bem, uma vez o Expedito e eu fomos dar um curso de frias em Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul a convite do Maestro portugus Vitor Manuel Marques Diniz, que l regia um belssimo coro e Orquestra Clssica. O encerramento do curso era um concerto nosso, de Flauta e Harpa. Esse concerto era bem na vspera do meu aniversrio, mas nem eu nem o Expedito nos demos conta desse detalhe. Quando acabou o concerto, j bem tarde, quase meia noite, todo o coral se reuniu atrs do palco e ento cantaram para mim o Parabns. Eu achei aquilo muito estranho e pensei comigo: que hbito engraado os portugueses tm de mostrar apreo quando se toca bem! Foi s aps alguns minutos que me dei conta de que era por causa do meu aniversrio. No dia em que completamos 25 anos de casados foi a mesma coisa. Simplesmente me esqueci desse dia to simblico para os casais em que celebram suas Bodas de Prata. Nessa tarde fui dar minhas aulas como de costume sem nem me lembrar da importncia daquele dia. Estava muito concentrada ouvindo um aluno de harpa em sua aula semanal quando a Ana Anglica, minha filha caula, abre a porta de supeto e me pergunta: - Me, a que horas a Missa? A minha reao foi imediata. Pensei logo num esquecimento meu e perguntei muito assustada: - Nossa, quem morreu? E ela: - Me, o papai disse que vai ter uma missa para ns por causa das Bodas de vocs! No que dessa vez ele se lembrou? Encerrei a aula antes da hora e l fui eu para a Igreja da Boa Viagem, onde o Expedito j estava me esperando. S o Joo Maurcio, outro filho, ainda no tinha chegado. Entramos na Igreja, lotada de gente, e a missa comeou. L pelas tantas minha filha Maria Luiza me cutucou perguntando baixinho: - Me, o padre no falou o nome de vocs. Era claro que no podia faz-lo. Era uma missa de stimo dia da morte de uma velhinha. Na verdade o Expedito s queria que estivssemos juntos nesse dia. Depois que a missa acabou que o Joo Maurcio apareceu. Ento o Expedito nos fez entrar de novo na igreja, e a, com a famlia completa, assistimos a mais outra missa. Quando, enfim, acabou a segunda missa, o Expedito falou: - Agora vamos para casa. Protestos veementes! - Nada disso, agora que estamos aqui queremos ir a um restaurante. Ento fomos at a Escola de Msica e convidamos o cantor e professor Amim Feres, grande amigo nosso, para juntar-se a ns numa churrascaria. Foi assim a comemorao das nossas Bodas de Prata. OCASO Alguns poucos anos depois das nossas "Bodas de Prata", o Expedito comeou a manifestar os primeiros sinais da doena que o acompanharia pelo resto de seus dias. De incio ele, estranhamente, passou a modificar o dedilhado nas suas partituras e a sua sonoridade comeou a mudar, pois sua embocadura na flauta j estava tambm comeando a ficar comprometida. At ento no tnhamos conhecimento da gravidade dessa situao que se desenhava diante de ns. Graas boa sade e disposio fsica do Expedito, o mal foi-se agravando muito lentamente, quase que imperceptivelmente para ns. Lembro-me de que foi a partir do ano de 1992 que, aps diagnstico confirmado pelos exames mdicos, comeamos a trat-lo com os medicamentos especficos para o Mal de Parkinson. No me recordo de v-lo jamais queixar-se da sua sorte ou de seu estado de sade, cada vez um pouco mais debilitada. Como estava aposentado, passava os dias tranquilamente em casa, ouvindo msica, assistindo a concertos e peras na televiso. Gostava muito de passar horas capinando o nosso extenso quintal, atividade essa que desempenhou galhardamente at no conseguir mais fora nem equilbrio para pr-se de p. Confesso que essa nova fase da nossa vida no foi to trgica como possa parecer. Enquanto ainda conseguia falar, divertamos muito com a sua conversa e seu jeito peculiar de ver a vida. Mais tarde, numa fase ainda lcida, mas sem a capacidade de articular sons, passou a comunicar-se s por gestos ou atravs de recados escritos, e depois, dada a sua dificuldade em precisar os movimentos das mos, atravs de desenhos. Eu, em compensao, o tinha o tempo todo presente em casa, e a sua presena sempre me bastou para iluminar meus dias. Assim como, depois de um dia claro e luminoso, um belo pr do sol aos poucos nos vai prenunciando a noite que se aproxima, a sua vitalidade foi-se extinguindo lentamente. Deixou-nos no dia 22 de janeiro de 2012. CONSIDERAES FINAS medida que fui escrevendo essas minhas recordaes, senti que no s o Expedito, mas todos, todos do meu passado iam chegando ao meu redor. Minha me, agora mais nova de quando se foi, alegre, contando os casos de sua infncia e rindo a mais no poder, os nossos filhos, tornados crianas novamente, brincando e fazendo uma algazarra danada, e meu pai, mais ao longe, um pouco afastado de todos, mas sorrindo orgulhoso da famlia que no chegou a conhecer. Passado, Presente, Futuro. O que representam nas nossas vidas? O Presente to efmero que quase no existe. Um lapso de segundo, e, pronto, j passado. O Futuro, no entanto o que ainda no , portanto no existe. Ento o que s nos resta, imutvel, eterno, cravado no nosso ser? O Passado que se apresenta na sequncia dos fatos cada vez mais ntido e expressivo. E esse passado que pretendi trazer tona, pois ele ser eternizado em nossas memrias para as geraes futuras da minha famlia. FOTOS Famlia Rugani. Em p, Tio Oscar, Vov Luiza, Vov Ernesto, Tia Geny, Tio Jacynto, Papai Maurcio. Assentados: Tio Mildo e tia Nomia. Dedicatria do meu pai para a minha mame no verso do retrato. Meus pais, noivos. Eu, minha me e meu irmo Leo. Eu e meu pai Meu primo Marcos, Tio Oscar, Leo e eu, 7 dias aps o falecimento do meu pai. Expedito quando seminarista. Dia do casamento - 4 de agosto de 1963 Dia do casamento Famlia do Expedito: 1 fileira, no alto, da esquerda para direita: Joaquim, Walter, Sebastio e Jos, 2 fileira, Waldemiro, Joo, Expedito, Norma, Alzira, Maria e Catarina, 3 fileira, Tereza, Tarcsio, assentados Dona Catuxa e seu Tito e em p, o Tito. Com as crianas, Ana Anglica no colo, assentados, Maria Luiza, Joo Maurcio e Luis Cludio. Mame com as crianas.