Myrna Coelho
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Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil.
9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9
ARTE E LOUCURA:
alguns fundamentos clínico-estéticos
Myrna Coelho 1
Resumo: O presente artigo trata da interface arte-loucura. Esse tema será problematizado a
partir dos resultados de uma pesquisa sobre a experiência de criação coletiva de um grupo de
dança-teatro chamado “Cia. Experimental Mu...Dança” formado por militantes da Luta
Antimanicomial em seus quatro segmentos: usuários dos serviços de saúde mental, seus
familiares, profissionais e estudantes. Essa pesquisa foi realizada entre os anos de 1999 e 2006 e
sistematizada na dissertação de mestrado “’das loucuras Da História’: dança -teatro, sofrimento
psíquico e inclusão social.”, apresentada ao Programa de Pós Graduação Interunidades em
Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (USP) .
Muitos têm sido os esforços dos pesquisadores antimanicomiais em teorizar sobre suas
práticas, na tentativa de rumar a reforma psiquiátrica brasileira para um terreno de
transformação de paradigmas. Esse modo diferente de relação com o fenômeno da loucura é
conceitualizado na reforma psiquiátrica a partir de quatro dimensões inter-relacionadas,
salientando a relação da arte neste campo.
Conceitualizaremos, primeiramente, os fundamentos da Reforma Psiquiátrica para
posteriormente compreendermos a inserção das artes no campo da saúde mental, exemplificada a
partir dos achados teóricos da pesquisa referida. Abordamos a interface arte-loucura discutindo
esta experiência como criação de um espaço de participação política . Palavras-Chave: Arte-Loucura. Reforma Psiquiátrica. Oficinas Artísticas. Fenomenologia.
Dança-teatro.
Introdução
A discussão sobre loucura não é nova, Foucault (2000) traz uma dimensão deste
fenômeno pensando na divisão incessante entre razão e loucura e na interdição que a
indicação do rótulo “loucura” contém. No Brasil essa discussão ganhou maior destaque,
inclusive acadêmico, com a criação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, em
1987, e posterior aprovação da Lei 10.216 em 2001, e com toda a construção das práticas em
saúde mental desenvolvidas pelos profissionais ligados ao pensamento desse movimento, que
versa sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por uma rede de saúde
mental inserida em equipamentos de saúde e cultura no território. A partir daí, também se
passou a inserir artistas como trabalhadores na rede de saúde mental, produzindo um novo
desafio na consolidação dessas equipes interdisciplinares.
A metodologia de construção das oficinas artísticas no campo da reforma psiquiátrica
deve se fundamentar na possibilidade de sair de um lugar de troca-zero – como o lugar da
loucura – para um lugar de criação, abre caminho para que outras potencialidades sejam
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exploradas pelos usuários. Sair do papel social do louco é a possibilidade de ocupar múltiplos
papéis sociais. A apropriação de uma nova linguagem, a vivência de uma construção grupal, a
ampliação da percepção sobre ser-no-mundo-com-os-outros e lutar pela mudança do
imaginário social da loucura é o que possibilita ao grupo a vivência do trabalho como
ressignificação do ser-louco.
Ressaltamos que o trabalho é, também, pensado com Hannah Arendt em sua
distinção entre trabalho e labor, distinção esta gerada por uma sociedade de consumo. A idéia
de trabalhar está relacionada hoje com o suor, a supressão, mas Arendt chama nossa atenção
para quanto estes aspectos relacionam-se com a idéia de labor. Labor pensado como ciclos
repetitivos, de longa duração. É a diferença entre fabricar bens duráveis e não duráveis,
produzir fruição de beleza e produzir escravidão (Arendt, 2003).
Mas para fechar os manicômios não basta derrubar seus muros, mas os muros
daquilo que Peter Pal Pélbart (Pélbart, 1990) chama de “Manicômio Mental”, ou seja, da
significação do imaginário social da loucura. O autor mostra que uma sociedade não pode
erradicar seus loucos e sua loucura. Precisamos do direito à liberdade de desarrazoar, ou seja:
“(...) uma dimensão essencial de nossa cultura: a estranheza, a ameaça, a alteridade radical,
tudo aquilo que uma civilização enxerga como seu limite, o seu contrário, o seu outro, o seu
além” (Pélbart, 1990).
1. Reforma Psiquiátrica
O conceito de loucura na dinâmica da reforma psiquiátrica é entendido não como uma
doença que necessita de cura e que, portanto, pede remédio, mas sim a partir de uma tentativa
de colocar a doença entre parênteses, que é muito bem definida por Paulo Amarante:
Esta atitude epistemológica de colocar a doença entre parênteses não
significa a negação da doença no sentido de não reconhecimento de uma
determinada experiência de sofrimento ou diversidade. Em outras palavras, não
significa a recusa em aceitar que exista uma experiência que possa produzir dor,
sofrimento, diferença ou mal-estar. Significa, isto sim, a recusa à explicação
oferecida pela psiquiatria, para dar conta daquela experiência, como se esta pudesse
ser exp licada pelo simples fato de ser nomeada como doença.
(...) A doença entre parênteses é, ao mesmo tempo, a denúncia social e
política da exclusão, e a ruptura epistemológica com o saber da psiquiatria que
adotou o modelo das ciências naturais para objetivar conhecer a subjetividade. (...) O
1 Psicóloga, mestre em Estética e História da Arte – USP, doutora em Integração da América Lat ina – USP,
integrante da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo – CRP-06,
integrante da Associação Brasileira de Daseinsanalyse – ABD.
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resultado prático desta psiquiatria, ao considerar que a loucura é doença, no sentido
do erro, fo i criar para o louco um lugar de exclusão, um lugar zero de trocas sociais,
que é como Rotelli se refere ao manicômio.
(...) É necessário estabelecer rupturas – com conceitos tais como o de
doença, de terapêutica, de cura, de ciência, de técnica, de verdade! (...) pois a relação
a ser estabelecida não é com a doença, mas com o sujeito da experiência . (Amarante,
2003, p. 56 - 61).
Quando colocamos a loucura entre parênteses estamos lançando mão da postura
husserliana da Époché (Husserl, 1952), implicando-nos com o compromisso de deixar de lado
os psicologismos envolvidos nos pensamentos que se ocupam da saúde mental, fundados no
dualismo cartesiano.
Esse modo diferente de relação com o fenômeno da loucura é conceitualizado na
reforma psiquiátrica a partir de quatro dimensões inter-relacionadas.
A primeira dimensão refere-se ao campo teórico-conceitual, ou epistemológico. Aqui,
ressaltamos o conceito de desinstitucionalização como um processo ético-estético de
reconhecimento de novas situações que produzem novos sujeitos de direito, e novos direitos
para os sujeitos. Também submete o conceito de doença a uma desconstrução, supondo que
as relações entre as pessoas envolvidas também serão transformadas, assim como os serviços,
os dispositivos e os espaços. O sujeito, não mais visto como alteridade incompreensível
possibilita outras formas de conhecimento, as quais produzirão novas práticas clínicas e
sociais. Na dimensão epistemológica, busca-se estabelecer uma relação entre a transição
paradigmática das ciências e a ruptura epistemológica em relação à psiquiatria tradicional,
presente nos fundamentos da invenção da loucura como doença mental.
A segunda dimensão seria a técnico-assistencial, donde emerge a questão do
modelo assistencial. O modelo psiquiátrico é calcado na tutela, na custódia, na disciplina e na
vigilância, legitimando a institucionalização, expressando-se no manicômio. Enquanto
alienado, o louco estaria incapaz de decidir pelo seu tratamento e o asilo seria o local ideal
para o exercício do “tratamento moral”, da reeducação pedagógica, da vigilância e da
disciplina. O conceito de alienação se oporia, então, ao conceito de cidadania, pois o alienado
não pode exercer sua cidadania por sua condição de ausência de Razão. Na dimensão técnico-
assistencial propõe-se realizar uma analise dos principais conceitos que norteiam a produção
de cuidados na rede substitutiva, entendida não apenas como um conjunto de serviços, mas
como uma estratégia que produz uma ruptura com o modelo assistencial hegemônico.
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Uma terceira dimensão da Reforma Psiquiátrica diz respeito ao campo jurídico-
político, onde importa rediscutir e redefinir as relações sociais e civis em termos de cidadania,
de direitos humanos e sociais, pelo fato da psiquiatria ter instituído uma série de noções que
relacionam loucura à periculosidade, irracionalidade, incapacidade e irresponsabilidade civil.
Na dimensão jurídico-política, através de uma análise do percurso histórico da Reforma
Psiquiátrica, propõe-se destacar as tensões e conflitos decorrentes das ações dos diferentes
atores sociais que provocam e interrogam a relação entre Estado e Sociedade.
A quarta dimensão seria a sociocultural, que expressa o objetivo maior da Reforma
Psiquiátrica, ou seja, a transformação do lugar social da loucura, pois o imaginário social –
decorrente da ideologia psiquiátrica tornada senso-comum – relaciona loucura à incapacidade
do sujeito em estabelecer trocas sociais e simbólicas. Nessa dimensão, muitos trabalhos e
pesquisas foram realizados a partir de experiências artísticas, o que trouxe – desde Nise da
Silveira – um novo campo de formulação e debates na saúde mental. Esses debates
polemizam a arte como objetivo x a arte como método, trazendo embates profícuos para
profissionais tanto do campo da saúde mental como do campo das artes, agora comungando
novas possibilidades e potencialidades de encontros.
Desta forma, o aspecto estratégico desta dimensão diz respeito ao conjunto de ações
que visam transformar a concepção de loucura no imaginário social, transformando as
relações entre sociedade e loucura.
É a partir dessa quarta dimensão que podemos pensar modos de produzir oficinas
artísticas como um olhar para a loucura que não parte das dicotomias de um paradigma
cartesiano, da divisão corpo-mente, sujeito-objeto, mas através da experiência.
Todo o conjunto de transformações e inovações (...) contribuem para a
construção de um novo imaginário social em relação à loucura e aos sujeitos em
sofrimento, que não seja rejeição ou tolerância, mas de reciprocidade e
solidariedade. (Amarante, 2007, p. 73)
Assim, na reforma psiquiátrica, as transformações devem transcender à simples
reorganização do modelo assistencial e alcançar as práticas e concepções sociais, intervindo
não apenas no funcionamento dos serviços e na formação profissional dos técnicos
envolvidos, mas no profundo e complexo fenômeno da representação social da loucura.
Devemos pensar o campo da saúde mental não como um modelo, mas como um processo, e,
para isso, a dimensão sociocultural é fundamental.
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2. Arte e Loucura
Com o advento e a proliferação, especialmente nas duas últimas décadas, de serviços
substitutivos ao manicômio no Brasil, as práticas artísticas passaram a ser amplamente
utilizadas e, com isso, pesquisadas. Inclusive, a legislação brasileira que regulamenta o
funcionamento dos Centros de Atendimento Psicossocial insere a prática de oficinas
terapêuticas como “uma das principais formas de tratamento oferecido nos CAPS”
(Ministério da Saúde, 2004, p. 20). Essas práticas se baseiam, especialmente e inicialmente,
na experiência paradigmática de Nise da Silveira no Museu de Imagens do Inconsciente. Para
tanto, faz-se necessário um breve histórico da relação arte- loucura.
No século XVIII, quando os asilos eram visitados pela população, os artistas se
interessaram por fazer desenhos de observação de dentro dos asilos e também pelos desenhos
dos loucos, pendurados, muitas vezes, nas paredes das celas.
Mas é a partir da segunda metade do século XIX que se pode datar a utilização das
artes no âmbito da psiquiatria e psicologia, tendo sido as primeiras pesquisas realizadas por
Max Simon, no final do século XIX, inaugurando um tema que despertou a curiosidade
científica de diversos autores, inclusive de Charcot, que se interessou pelas produções
artísticas dos pacientes psiquiátricos com objetivos nosológicos e diagnósticos.
Em 1906, Mohr realizou um estudo comparativo de produções de doentes mentais,
pessoas ditas normais e grandes artistas no qual percebeu a manifestação de histórias de vida
e conflitos pessoais que originaram, posteriormente, a formulação de diversos testes
psicológicos de investigação da personalidade.
Em 1922, o trabalho de H. Prinzhorn veio a público inaugurando a visada estética
sobre as produções dos doentes mentais, opondo-se ao uso de seu modo de leitura para o
diagnóstico de pacientes e rotulagem de uma obra nos moldes da psicopatologia. Em 1917, no
Brasil, Monteiro Lobato criticou duramente uma exposição de Anita Malfati, comparando a
Arte Moderna, depreciativamente, à arte dos loucos.
No Brasil, em 1925, Osório César escreveu sobre os trabalhos dos pacientes do
Juqueri, no primeiro registro brasileiro sobre o tema, o qual despertou o interesse dos
modernistas; posteriormente, organizou a primeira exposição de arte do Juqueri no MASP (de
10 de outubro à 19 de dezembro de 1948). Nesses registros é possível percebermos a
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preocupação de Osório César com o profissionalismo do fazer artístico no manicômio,
salientando para que este trabalho contasse com instrutores capacitados.
Em 1933, Flávio de Carvalho organizou em São Paulo uma exposição com desenhos
de crianças e loucos, questionando o academicismo da Escola Nacional de Belas Artes e o
gosto artístico da classe média. Em 1947 ocorreu a primeira exposição de pinturas dos
internos do Centro Psiquiátrico Nacional, no Ministério da Educação, no Rio de Janeiro.
Mas o grande marco da discussão brasileira a respeito de trabalhos artísticos com
loucos se deveu, sobretudo, ao trabalho pioneiro de Nise da Silveira (1905-1999). De 1946 a
1974 ela dirigiu a seção de terapia ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de
Janeiro, utilizando métodos e teorias que contrariavam a ordem imposta pela psiquiatria
tradicional. A partir da teoria de Carl Gustav Jung ela tentava compreender os delírios, as
alucinações e os gestos através das imagens pintadas ou modeladas por pessoas ditas
esquizofrênicas. As pesquisas realizadas pela psiquiatra abriram aos loucos a possibilidade de
ocuparem o espaço destinado aos artistas: o atelier, um lugar onde suas obras nunca seriam
interpretadas do ponto de vista psicanalítico, já que Nise preocupava-se em observar, facilitar
e acolher a expressão dos pacientes.
Em 1949, no MAM do Rio de Janeiro, ocorreu a exposição “Nove artistas do Engenho
de Dentro”, com a participação de Nise da Silveira. Nesta época, artistas e críticos
posicionavam-se contra o intelectualismo e a favor do informalismo nas artes. Em 1950,
Mário Pedrosa, opondo-se a um determinado preconceito com relação às expressões plásticas
dos esquizofrênicos, escreveu a favor do que denominou “arte virgem”, conceitualizando-a
como uma arte que não leva em consideração as convenções acadêmicas estabelecidas. Este
conceito é, em grande parte, parente do conceito “art brut”, criado por Jean Dubuffet, também
no pós-guerra.
A partir deste olhar muitas modificações ocorrem no âmbito do tratamento em saúde
mental. Como exemplo, podemos citar a descoberta de Arthur Bispo do Rosário (1911-1989)
como artista, confinado por 50 anos na Colônia Psiquiátrica Juliano Moreira. Inicialmente,
Bispo utilizava em suas obras apenas fios de linha azul que tirava de seu uniforme de paciente
e de velhos lençóis para bordar e recriar, com palavras e imagens, o mundo a que tinha acesso
dentro do hospício. Depois, passou a juntar canecas, sapatos, garrafas e toda espécie de
objetos, reunindo-os em painéis e mantos que são fantásticas obras de arte (Silva, 1998).
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Nos últimos anos, nota-se uma valorização destas manifestações, em exposições
como, por exemplo, a Bienal de Arte Incomum, realizada na XVI Bienal Internacional de
Arte de São Paulo, em 1981 (Frayze-Pereira, 1995). Temos também a exposição de Arthur
Bispo do Rosário no MAC 1990 e a exposição de Arte e Loucura realizada em 1987 também
em São Paulo, pelo Instituto Psiquiátrico Juqueri na ocasião da defesa do doutorado de Maria
Heloisa Correa de Toledo Ferraz (1998). Hoje, temos uma sala dedicada a obra de Arthur
Bispo do Rosário sendo apresentada na 30ª. Bienal Internacional de Arte de São Paulo.
Vale a pena ressaltar que quando falamos de arte e loucura adentramos um território
problemático, pois estamos falando de manifestações que possuem suas raízes numa
segregação historicamente pontuada, ou seja, aquela que se designou chamar doença mental e
todo seu aparato tecnológico e institucional que o Ocidente vivenciou desde o surgimento do
período que Foucault (2000) chamou de “Grande Internação”.
Assim como a doença mental passou por uma profunda revisão de seus postulados
nosográficos nos últimos anos, o mesmo se delineou nas artes, pois vivemos uma
desterritorialização da instituição arte. Contudo as constantes apologias a curadorias e
exposições sobre o tema Arte e Loucura suscitam, entre outras coisas, à pergunta do que é arte
e do que não é arte, encaminhando-nos ao confronto direto entre limites (Valero, 2001).
O trabalho e a arte têm a função de inserção no mundo da coletividade e de
rompimento do isolamento que caracteriza a vivência subjetiva contemporânea não apenas
para os pacientes psiquiátricos. E a questão das oficinas se reveste de um caráter
essencialmente político porque o desejo é por si mesmo revolucionário, por ser um produtor
não apenas de fantasias, mas de “mundos”. As oficinas serão terapêuticas ou funcionarão
como vetores de existencialização caso consigam estabelecer outras e melhores conexões que
as habitualmente existentes entre produção desejante e produção da vida material, caso
consigam conectar-se com o plano de imanência da vida, o mesmo plano com base nas quais
são engendradas a arte, a política, o amor. Essa prática consiste não apenas numa prática de
reinserção social, mas numa reestruturação do mundo, já que ele tem que ser recriado, um
tecido cultural tem que ser produzido. Quando desejamos, por meio da arte ou do trabalho,
produzir territórios existenciais cresse que está se falando não de adaptação à ordem
estabelecida, mas de fazer com que trabalho e arte se reconectem com o primado da criação,
com o desejo e com o plano de produção da vida (Rauter, 2003).
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Podemos dizer que a obra de arte vale por si mesma, independentemente da pessoa
que a produziu. Se as pessoas criativas não são necessariamente loucas, também os loucos não
são necessariamente pessoas criativas (Valero, 2001).
As preocupações, tais como de Osório César, com a qualidade artística do que se faz
em saúde mental continuam, mas não em todos os projetos. Na Cia. Experimental
Mu…Dança esta preocupação era uma constante, pois entendíamos que, se a arte pedia o
reconhecimento de um público, esta deveria ser reconhecida pela sua qualidade, e não de
outra forma (Coelho, 2007).
As oficinas em saúde mental trilham o caminho de flexibilizar a identidade do louco
com a loucura. No caso da oficina de dança-teatro da Cia. Experimental Mu...Dança, encarnar
um papel significava descolar-se de uma representação de si para poder experimentar uma
outra. Esse distanciar-se, particularmente difícil, acabou sendo feito de modo que não
precisasse suprimir o ator, de modo que suas características, dificuldades ou estigmas
pudessem ser construídos como estilo da personagem a ser incorporada na atividade (Coelho,
2007).
Flexibilizando-se essa identidade do louco ele pode como dançarino, cantor, ator,
pintor, deixar a unicidade de ser louco, para a qual convergem todos os aspectos de sua vida a
partir do momento do diagnóstico, ocupando outro lugar no mundo, que, como qualquer lugar
artístico, pressupõe o reconhecimento de um público (Valero, 2001).
Entretanto, o fato de inserirmos práticas artísticas em saúde mental não garante que
elas sejam antimanicomiais. Muitas práticas, infelizmente, acabam por corroborar o
pensamento manicomial, reforçando preconceitos e prestando um desserviço à população. Por
isso torna-se tão necessário que possamos discutir tais práticas contemporâneas.
Figura 1 – apresentação da Cia. Experimental Mu...Dança no vão livre do MASP, 18 de maio
de 2004.
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3. Cia. Experimental Mu...Dança
A Cia. Experimental Mu...Dança (FIG. 1) foi um grupo de dança –teatro formado no
Centro de Atenção Psicossocial Integral (Capsi) de Diadema (grande São Paulo) e trabalhou
entre 1999 e 2006 e teve como participantes militantes do Movimento nacional da Luta
Antimanicomial (MNLA) representados pelos seus quarto segmentos: usuários do sistema de
saúde mental, seus familiares, profissionais e estudantes, assim como também a comunidade
em geral. A dimensão sociocultural implica que todos os participantes são iguais,
horizontalizados pela própria atividade o que implica que a posição de poder/saber circula.
Os objetivos eram: criar coreografias, espetáculos, performances ou happenings
pautados no estudo da dança-teatro, em pesquisas sobre os processos de enlouquecimento e
nos sentidos da militância antimanicomial a partir das histórias propostas pelos bailarinos na
metodologia de construção coletiva; militar no movimento nacional da luta antimanicomial a
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fim de ressignificar o lugar social da loucura; criar um espaço político onde a existência da
ação ocorra (Arendt, 2003).
Os resultados deste trabalho estão na dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP intitulada:
“„das loucuras Da História‟: dança-teatro, sofrimento psíquico e inclusão social” (Coelho,
2007).
No caso específico do grupo apresentado, utilizamos a técnica da dança-teatro. A
dança-teatro é um conceito formulado no decorrer da história da dança a partir das danças
corais desenvolvidas por Laban. Nos aproximamos da definição de dança-teatro a partir da
obra de Pina Bausch, ela revela o cansaço dos coreógrafos com os gestos teatrais heróicos e
tem seu foco no movimento de pedestres, nas relações humanas básicas, nas pessoas comuns.
Ela é compreendida como “Experimentação, contato consigo mesmo, com o corpo, com os
outros e com os fatos e acontecimentos presentes em nossa cultura. Significa a possibilidade
de colocar em gestos, os sentimentos, os pensamentos, as idéias, as emoções e cenas vividas”
(Castro, 1992).
(é) Uma dança altamente autobiográfica, com sua força na
intensidade da experiência e em sua expressão. Sua limitação está em sua
subjetividade. Não oferece soluções, mas articula os problemas. Seus
dançarinos dirigem-se diretamente para a platéia, e falam sobre si mesmos.
(Partsh-Bergsohn, 2004).
Assim, durante todo o processo as preocupações coreográficas centraram-se na
valorização e reapropriação da própria gestualidade individual, construindo pontes destas com
o grupo, ampliando as possibilidades criativas (Castro, 1992).
Altamente autobiográfica, a dança-teatro tem sua força na intensidade da experiência,
não oferece soluções, mas articula os problemas. Faz uma arqueologia dos modos de vida,
busca uma nova percepção em oposição aos mundos de imagens pré-concebidas. Ela é fruto
da busca por uma linguagem para aquilo que não se pode expressar de outra forma,
explorando a lacuna entre a dança e o teatro num nível estético, psicológico e social. Dessa
forma, os bailarinos são a metáfora da sociedade tendo a condição humana como matéria
prima. São guiados na manipulação e transformação de sua história de vida.
No início do grupo nossa maior dificuldade foi justamente fazer a palavra circular. Os
bailarinos chegavam para um encontro onde o produto já era conhecido, não se permitiam
lançar a uma diferente possibilidade, não se permitiam encontrar com diferentes, e tão pouco
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nós terapeutas que, apesar de sabermos da importância daquela atividade, tínhamos que nos
deparar inúmeras vezes com a prática de criticá- la, de repensá- la e de cuidar constantemente
dos objetivos e dos papéis daquele grupo, já que na condição de louco a submissão torna-se
automática.
Percebemos que, para construirmos juntos, é necessário pensarmos juntos, partindo do
problema da desigualdade. Encontrar-se com a loucura pode ser encontrar-se com o diferente,
como são todos os encontros, mas também é encontrar-se com os desiguais. A história da
loucura como doença mental construiu uma visão de homem embotada e, nas relações em
saúde mental contemporâneas, faz-se necessário que esse engano seja retomado, que o outro
deixe de ser reificado pelos estudos dos sintomas e torne-se visível, desfazendo em nós o
sentimento de que o louco é alguém que perdeu seus direitos, parecendo-nos desprezível e
repugnante, cuja última atitude sã resultaria em submeter-se completamente ao saber psi.
A desigualdade não pode nunca dispensar os homens para que se mantenha. O
problema da loucura, tal qual o problema da desigualdade, é problema humano, problema
tornado visível pelo fato de carecermos de igualdade e liberdade em nossas relações. E a
experiência estética, a criação artística, pode trazer a essas relações a possibilidade de se
ressignificarem se forem vivenciadas num espaço de igualdade política, um espaço onde se
possa construir o entendimento dos campos da iniciativa e da palavra.
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