N° 30 - Nova frente de luta para resgatar a política

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A reforma política voltou à ordem-do-dia e a revista Política Democrática não poderia deixar de se debruçar sobre tão decisivo tema. Afinal, trata-se de nova e promissora oportunidade de os partidos sérios e os setores mais bem informados da opinião pública desencadearem novas iniciativas em tomo de mudanças no sistema político brasileiro.

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Nova frente de luta para resgatar a política

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Política DemocráticaRevista de Política e Culturawww.politicademocratica.com.br

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Conselho Editorial

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2011.No 30, julho/2011200 p.

1. Política. 2. Cultura. I. Fundação Astrojildo Pereira. II. Título.

CDU 32.008.1 (05)

Ficha catalográfica

Ailton BeneditoAlberto Passos Guimarães FilhoAmarílio Ferreira Jr.Amilcar BaiardiAna Amélia MelloAntonio Carlos MáximoArmênio GuedesArtur José PoernerAspásia CamargoAugusto de FrancoBernardo RicuperoCelso FredericoCícero Péricles de CarvalhoCharles PessanhaDélio MendesDimas MacedoDiogo Tourino de SousaFabrício MacielFernando de la CuadraFernando PerlattoFlávio KotheFrancisco Fausto Mato Grosso

Francisco José PereiraGilson LeãoGilvan CavalcantiHamilton GarciaJosé Antonio SegattoJosé Carlos CapinamJosé Cláudio BarriguelliJosé Monserrat FilhoLuiz Carlos AzedoLuiz Carlos Bresser-PereiraLuiz Eduardo SoaresLuiz Gonzaga BeluzzoLuiz Mário GazzaneoLuiz Werneck ViannaMarco Aurélio NogueiraMarco MondainiMaria Alice RezendeMarisa BittarMartin Cézar FeijóMichel ZaidanMilton LahuertaOscar D’Alva e Souza Filho

Othon JambeiroOsvaldo Evandro Carneiro MartinsPaulo Afonso Francisco de CarvalhoPaulo Alves de LimaPaulo BonavidesPaulo César NascimentoPaulo Fábio Dantas NetoPedro Vicente Costa SobrinhoRicardo Cravo AlbinRicardo MaranhãoRubem BarbozaSergio Augusto de MoraesSérgio BessermannSinclair Mallet Guy GuerraSocorro FerrazTelma LoboUlrich HoffmannWashington BonfimWillame JansenWilliam (Billy) MelloWillis Santiago Guerra FilhoZander Navarro

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Política DemocráticaRevista de Política e CulturaFundação Astrojildo Pereira

Julho/2011

Nova frente de luta para resgatar a política

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Sobre a capa

Ilton Silva, arte que vem do Pantanal

O Estado do Mato Grosso do Sul, um dos mais ricos do país em matéria de representação plástica, é o chão natal de Ilton Sil-va, artista autodidata que vem se dedicando a retratar a bela

paisagem da região pantaneira e os costumes de seus habitantes.

Filho de uma das mais conceituadas pintoras naïfs do Brasil –Conceição dos Bugres, criadora dos chamados bugrinhos, peque-nas esculturas em madeira, ainda hoje uma referência na região –, Ilton Silva também se transformou, com o tempo, em importante referência da arte sul-mato-grossense. Uma arte que o Brasil preci-sa conhecer melhor – e cada vez mais. Afinal de contas, quadros seus já foram expostos nos Estados Unidos, em Portugal, na Alema-nha e, mais recentemente, na França. E nós, brasileiros de outros rincões, não podemos ficar para trás...

As cores são vibrantes, sensuais, intuitivas também. E figuram tanto os rostos morenos da gente trabalhadora do Pantanal – os peões – quanto o voo das garças ou a vida isolada nos ranchos, em traços e pinceladas que se aproximam muito da arte do desenho. Com efeito, a pintura de Ilton Silva como que enaltece a força de expressão dos desenhos. Dialoga o tempo todo com eles. E isso é cada vez mais raro hoje. Convém lembrar que um artista genial como Leonardo da Vinci produziu apenas 15 quadros e um afresco na vida – mas fez dezenas, senão centenas, de desenhos. É que o desenho é o que é. Ou seja, mostra o que tem de mostrar sem sub-terfúgios. Trata-se de uma arte sem retoques, conforme observou o estupendo filósofo francês Alain, um dos mais admiráveis pensado-res da primeira metade do século XX.

O pintor, entalhador e escultor Ilton Silva nasceu em Ponta Porã, em 1943, e vive hoje em Santa Catarina. Mas dele se pode dizer que traz eternamente o Pantanal dentro do peito – e na ponta do pincel, naturalmente.

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Sumário

APReSentAção

Os Editores ................................................................................................................ 11

I. temA de CAPA: RefoRmA PolítICA

ofensiva em busca de um novo sistema político

Roberto Freire ............................................................................................................ 15

em torno do sistema proporcional de eleição

Alberto Carlos Almeida .............................................................................................. 20

Reflexos da desigualdade e a reforma política

Hamilton Garcia de Lima ........................................................................................... 24

II. ConjuntuRA

Amigos, inimigos e batalhas políticas

Marco Aurélio Nogueira .............................................................................................. 31

A representação e sua surdez

Diogo Tourino de Sousa e Daniela Leandro Rezende ................................................. 34

entre Pinóquio e Hipócrates

Gil Castello Branco .................................................................................................... 40

III. obSeRvAtóRIo

O Código Florestal

José Carlos Carvalho ................................................................................................. 45

o brasil e o terrorismo

Marco Antônio Tavares Coelho ................................................................................... 53

Sofrimento, violência e loucura

Almira Correia de Caldas Rodrigues .......................................................................... 58

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Resgatando o Programa Nacional Paz na Escola

Denise Paiva .............................................................................................................. 60

Iv. bAtAlHA dAS IdeIAS

Existe uma “sociedade do conhecimento”?

Fabrício Maciel ........................................................................................................... 65

República, democracia e deslegitimação

Ruszel Lima Verde Cavalcante .................................................................................. 73

Súmula vinculante: uma nova perspectiva de Poder judiciário

Giovana F. M. Nunes Santos e Guiomar Oliveira Passos ........................................... 79

v. QueStõeS do deSenvolvImento

desenvolvimento e a perspectiva da sustentabilidade

George Gurgel de Oliveira .......................................................................................... 85

o declínio do municipalismo

Rudá Ricci .................................................................................................................. 96

Agronegócio, agricultura familiar e política

Raimundo Santos ..................................................................................................... 105

Por que precisamos reformar a previdência social?

Meiriane Nunes Amaro ............................................................................................. 110

vI. mundo

A questão chinesa – um gigante a se afirmar

Fábio Metzger .......................................................................................................... 119

vII. enSAIo

Dos programas aos sujeitos

Alfredo Reichlin ........................................................................................................ 133

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vIII. vIdA CultuRAl

Poetisas cariocas do século XXI

Maria Aparecida Rodrigues Fontes .......................................................................... 145

XI. HIStóRIA

os 120 anos da criação do distrito federal

Jarbas Silva Marques .............................................................................................. 157

Resumo histórico do PCB no Pará

Alfredo Oliveira ........................................................................................................ 165

x. HOmENAgEm – CENtENáRiO DE NElsON WERNECk sODRé

Nelson Werneck sodré, um intérprete do Brasil

Lincoln de Abreu Penna ........................................................................................... 177

o doutor Honoris Causa dirceu lindoso

Anivaldo Miranda .................................................................................................... 183

XI. ReSenHA e CRítICA de CInemA

Neorrepublicanismo, tolerância e diálogo

Ivo Coser .................................................................................................................. 189

André midani e o inconsciente coletivo na mPb

Luiz Carlos Prestes Filho.......................................................................................... 193

Tetro, o filme

Martin Cezar Feijó .................................................................................................... 197

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Apresentação

Como geralmente ocorre no Brasil, ao iniciar-se nova legislatu-ra e novo período presidencial na República, ensaia-se tanto na Câmara como no Senado, desde abril último, novo mo-

vimento em favor de uma reforma política. Sem dúvida, trata-se de nova e promissora oportunidade de os partidos sérios e os setores mais bem informados da opinião pública desencadearem novas ini-ciativas em torno de mudanças no sistema político. Mesmo diante das sucessivas e fracassadas tentativas, feitas nos últimos vinte anos, tem-se que enfrentar mais esta batalha, já que as eleições en-tre nós se vêm constituindo uma fonte de abusos crônicos, em que a esmagadora maioria dos eleitos alcança suas vitórias utilizando os processos mais abjetos, não têm nem pretendem ter nenhum com-promisso com seus eleitores nem com seus partidos, nem estão preo-cupados em servir ao seu povo e aos interesses maiores do país, mas em servirem-se única e exclusivamente do cargo em proveito próprio ou de seu grupo, desmoralizando a nobre missão da política, debili-tando o processo democrático e deformando a res publica.

Assim é que, nos vários artigos selecionados pelos Conselhos de Redação e Editorial da revista, em torno do tema de capa, assinados pelo deputado Roberto Freire, pelo pesquisador Alberto Carlos de Al-meida e pelo professor Hamilton Garcia de Lima, o leitor vai conhecer diferentes enfoques sobre o que está em jogo nos debates, iniciados em Brasília e já invadindo espaços públicos em vários estados, a fim de melhor se posicionar sobre as propostas já apresentadas e se de-finir mais convicto do que deveremos enfrentar nas escaramuças po-líticas do segundo semestre.

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Política Democrática · Nº 30

Nas seções de Conjuntura e Observatório, cada um de nós é brin-dado com ricos e diferentes enfoques sobre os fatos mais destacados do segundo trimestre do ano, tais como aqueles que envolveram o ministro Antonio Palocci, a deliberação do plenário da Câmara sobre o novo Código Florestal, novas e surpreendentes decisões do Poder Judiciário fazendo tábula rasa do Legislativo, sem falar nas questões que envolvem o terrorismo no país e a violência entre jovens e ado-lescentes. Toda uma temática delicada vista por olhos argutos, den-tre outros, do cientista político Marco Aurélio Nogueira; do ex-minis-tro do Meio Ambiente, José Carlos Carvalho; do fundador e diretor da ONG Contas Abertas, Gil Castelo Branco; da psicanalista Almira Ro-drigues e da consultora em política social Denise Paiva.

Já na Batalha das Ideias, há um provocador texto de Fabricio Maciel em torno do instigante tema Existe uma “sociedade do conhe-cimento”?, além de outros dois artigos, um do procurador Ruszel Cavalcante em que disseca aspectos da difícil realidade em que a Democracia e a República lutam para sobreviver, sobretudo em um país com a nossa tradição, e outro das advogadas Giovana Santos e Guiomar Passos, que apresentam novos ângulos do sempre polêmico instituto da Súmula Vinculante.

O geólogo e ambientalista baiano George Gurgel de Oliveira, ora na Universidade espanhola de Salamanca, nos envia um estudo so-bre a imperiosa necessidade de o Brasil incorporar a sustentabilida-de no seu processo de desenvolvimento, sob pena de perder, mais uma vez, o bonde da história. Nesta seção Questões do Desenvolvi-mento, há ainda um alerta do sociólogo Rudá Ricci sobre “O declínio do municipalismo”, tema dos mais preocupantes para quem sabe da desigual distribuição dos recursos públicos entre as várias instân-cias do Poder Público; um enfoque dos mais oportunos do professor Raimundo Santos sobre o agronegócio e a agricultura familiar; e um curioso estudo de uma das maiores especialistas quando se trata da previdência social pública no país, Meiriane Nunes Amaro.

Considerando a importância do país oriental, sob qualquer as-pecto, no tocante ao dinâmico processo de globalização porque passa o planeta, a seção Mundo traz um único artigo, o do jornalista e cien-tista político paulista Fábio Metzger, A Questão Chinesa – Um gigan-te a se afirmar. Seu relato é politicamente detalhado e suscita que sempre se considere a presença marcante e desafiadora da República

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Apresentação

Os Editores

Popular da China em qualquer análise sobre os rumos da economia e da sociedade na escala mundial.

Porém, um dos momentos maiores deste número está na seção Ensaio, com o excelente trabalho do intelectual italiano Alfredo Rei-chlin, que aprofunda o debate em torno de uma questão crucial: “o mundo pode ser governado com base num desequilíbrio tão grande entre a potência da economia globalizada e o poder da política enten-dida como liberdade das comunidades de decidir o próprio destino?”.

Nas demais seções, como Vida Cultural, temos o relato analítico de Maria Aparecida Rodrigues Fontes sobre as poetisas cariocas sur-gidas neste inicio do século XXI; na Homenagem, damos continuida-de à publicação de textos ressaltando os grandes méritos de Nelson Werneck Sodré, em seu centenário de nascimento, desta feita pelo historiador Lincoln de Abreu Penna, e reproduzimos o discurso do jornalista Anivaldo Miranda quando da outorga de Doutor Honoris Causa, da Universidade Federal de Alagoas, ao grande intelectual alagoano Dirceu Lindoso. Finalmente, na seção Resenha e Crítica de Cinema, contamos com artigos de Ivo Coser, de Luiz Carlos Prestes Filho e de Martin Cezar Feijó.

Os Editores

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I. tema de capa: Reforma Política

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Autores

Roberto FreireAdvogado, ex-senador da República, deputado federal e presidente do Partido Popular Socialista.

Alberto Carlos AlmeidaSociólogo e professor universitário, é autor de A Cabeça do Brasileiro e O Dedo na Ferida: Menos Imposto, Mais Consumo.

Hamilton Garcia de LimaSociólogo e cientista político fluminense.

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ofensiva em busca de um novo sistema político

Roberto Freire

A reforma política retornou ao centro da agenda nacional. Nos seus primeiros meses de atividades, tanto a Câmara dos De-putados como o Senado Federal constituíram Comissões Es-

peciais para tratar da matéria, assim como os partidos e seus parla-mentares começaram a se pronunciar a respeito. O debate ganha a mídia e estudiosos são chamados a abordar tão importante questão. Um democrático debate começa a ganhar espaço em várias institui-ções da sociedade civil organizada e até mesmo em grupos de cida-dãos, no seu cotidiano.

Deve-se considerar, antes de tudo, as questões de fundo que opõem os defensores da reforma aos partidários da regra vigente: o sistema eleitoral e o financiamento das campanhas. Adotamos no Brasil o sis-tema de voto proporcional, com listas abertas. Nele, recebem o voto legendas e candidatos, a proporção de votos recebidos por cada parti-do determina seu número de cadeiras e o preenchimento dessas ca-deiras é definido pela ordem de votação dos candidatos. Poucos paí-ses, além do Brasil, seguem essa regra: Finlândia, Chile e Polônia.

Diversos são os problemas que decorrem dessa opção. Em pri-meiro lugar, a personalização do voto leva ao enfraquecimento dos partidos. Candidatos de um mesmo partido concorrem entre si e, quando eleitos, consideram seu mandato uma conquista pessoal. Em segundo lugar, os eleitores se encontram diante de uma escolha cega: sabem em quem votam, mas não sabem quem elegerão. Nessa situação ficam, em cada eleição, os dois terços dos eleitores que vo-

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Tema de capa: Reforma Política

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tam em candidatos não eleitos. Em terceiro lugar, o custo das cam-panhas nesse sistema, no qual todos competem contra todos, é alto e, quando as circunscrições são extensas e populosas, como no Bra-sil, o custo das campanhas é altíssimo. As consequências são evi-dentes: partidos fracos, legislativos atomizados e dependentes do Executivo, déficit de legitimidade perante o eleitor, influência deter-minante do poder econômico. Para superar essa situação, os refor-mistas propõem, historicamente, a mudança do sistema eleitoral e o financiamento público das campanhas.

O segundo ponto a ser lembrado é o histórico da discussão sobre reforma política no país. Em 1995, o Senado Federal constituía uma Comissão Especial para discutir a questão e apresentar propostas. O relatório da Comissão, que não logrou aprovação, já apresentava o diagnóstico padrão das propostas de reforma e propunha como solu-ções aos problemas detectados a adoção do voto distrital misto e o financiamento público de campanha. Entre 1998 e 2002, o Senado Federal promoveu mais uma tentativa de reforma política. Aprovou e encaminhou à Câmara dos Deputados todas as propostas do relató-rio, exceto o voto distrital misto, substituído pelo voto proporcional com listas fechadas, considerado de aprovação mais fácil, por não demandar alteração constitucional.

Em 2002, foi a vez de a Câmara dos Deputados constituir sua Comissão de Reforma Política, que trabalhou a partir dos projetos do Senado. Seu relatório incorporou, no fundamental, as propostas do Senado, inclusive a lista fechada e o financiamento público de cam-panha. Numa manobra protelatória, o relatório dessa Comissão foi enviado à Comissão de Constituição e Justiça, onde hibernou até 2007. Nesse ano, suas propostas foram à discussão e votação, sem conseguir sucesso.

Finalmente, em 2009, o Poder Executivo encaminhou propostas à Câmara dos Deputados, reafirmando o diagnóstico da fraqueza dos partidos e as propostas de listas fechadas e financiamento público de campanha. Mais uma vez, as propostas não prosperaram.

A derrota reiterada das propostas de reforma revela a existência de um forte núcleo de parlamentares profundamente identificado com a regra atual do voto personalizado. Para eles, a lista fechada, inclusive no voto distrital misto, constituiria redução inadmissível dos poderes do eleitor, em benefício das direções partidárias. A rea-presentação seguida das mesmas propostas, por outro lado, mostra que a regra atual tem problemas, problemas esses de administração cada vez mais difícil, que se manifestam nos custos da governabili-

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Ofensiva em busca de um novo sistema político

Roberto Freire

dade e na redução da legitimidade dos partidos, dos parlamentares e dos Legislativos perante a opinião pública.

Ao longo desse processo, o Partido Popular Socialista sedimen-tou posições que fundamentam as propostas que, antes que qual-quer outro, apresentou aos brasileiros, em suas instituições públi-cas e privadas.

Primeiro, a diretriz mais ampla é uma estratégia política de cons-trução da equidade na sociedade brasileira, na perspectiva da radi-calidade democrática. Por isso, somos partidários da opção parla-mentarista, por considerar que sua dinâmica permite avanços e aprofundamento da democracia, de maneira mais completa e cabal que a alternativa presidencialista. Esse o horizonte da reforma polí-tica que pretendemos. Sabemos também, contudo, que a reforma política é um processo, no qual premissas precisam ser criadas. Não é possível repor o parlamentarismo na agenda sem o fortalecimento prévio dos partidos e do Poder Legislativo frente ao Poder Executivo. O passo inicial, portanto, no qual se concentra o embate político há quase 15 anos é a mudança do sistema eleitoral.

Segundo, o PPS nunca partilhou do diagnóstico que considera problema o número de partidos no Brasil. Conforme essa aborda-gem, popular nos partidos maiores, o grande número de partidos seria fator de desordem e de governabilidade difícil. Para nós, o pro-blema não está no número supostamente excessivo de partidos, mui-to menos nos partidos pequenos. Vemos como problema a fraqueza dos partidos e essa fraqueza transparece em partidos pequenos, mé-dios e grandes. Aliás, a postura de criar dificuldades para trocar fa-cilidades em termos de governabilidade é comum em todos os parti-dos mais interessados em apoiar governos que em governar; e entre esses, alguns são de médio e grande porte. Nossa posição, portanto, sempre foi contrária a qualquer tipo de cláusula de barreira ou qual-quer outra restrição à criação e funcionamento de partidos.

Tanto é verdade que apoiamos, em 2003, 2007 e 2009, o voto proporcional em listas fechadas. Considerando o descrédito que pesa hoje sobre os partidos, em boa parte fruto da operação da regra atual, e considerando ainda o fato de uma parte das forças reformistas ha-verem migrado do apoio à lista fechada para o voto distrital puro, estamos propondo agora o voto distrital misto, com correção das bancadas, conforme o princípio da proporcionalidade. O voto distri-tal misto combina vantagens dos dois sistemas puros: fortalece os partidos, representa as minorias, reduz a distância entre represen-tantes e representados. O seu mérito faz dele um sistema em expan-

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Tema de capa: Reforma Política

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são, no mundo, nas últimas duas décadas. Além disso, a proposta tem o potencial para a construção de um acordo entre partidários das listas fechadas e defensores do voto distrital puro. E estamos convencidos, a partir da experiência das derrotas anteriores, que, sem um acordo desse tipo, a conservação da regra atual é certa.

Apoiamos também o financiamento público, embora não exclusivo, das campanhas eleitorais. Nossa proposta permite a contribuição de pessoas físicas, até o limite de dois mil reais por pleito. Consideramos que as eleições dizem respeito aos cidadãos, todos eles pessoas físicas, e não às empresas. O limite de contribuição que a lei estipula hoje é um percentual dos rendimentos do ano anterior. Quem tem mais, con-tribui com mais recursos para seus candidatos. O critério do percen-tual renda como teto de contribuição consagra a diferença de renda nas eleições. O limite absoluto, por sua vez, equaliza os eleitores, já iguais no voto, também na possibilidade de contribuição.

Propomos, além disso, proibir que parlamentares ocupem cargos no Poder Executivo. No presidencialismo, deve valer o princípio da separação de poderes. No momento em que deputados e senadores podem ser ministros, sem renunciar a seus mandatos, a função fis-calizadora do Congresso Nacional fica comprometida.

Também apoiamos o fim das coligações, considerando que elas distorcem a operação do princípio da proporcionalidade, uma vez que partidos, com o mesmo percentual de votos, podem obter um número diferente de cadeiras. Violentam também o princípio da so-berania popular, uma vez que votos dados a candidatos de um parti-do podem vir a eleger legisladores de outro partido.

Somos favoráveis, contudo, à modificação da regra de partilha das sobras. Hoje, dela participam apenas partidos que tenham atin-gido o quociente eleitoral. O quociente é hoje a verdadeira cláusula de barreira, cláusula que os partidos menores evitam com a coliga-ção. Consideramos preferível pôr fim à coligação e alterar a regra das sobras. Dessa forma, a pluralidade partidária na representação polí-tica fica assegurada, sem sacrifício dos princípios da proporcionali-dade e da soberania popular.

Apresentamos proposta de emenda à Constituição que permite o registro de candidatos sem partido. O Brasil é um dos 14 países do mundo que não permitem candidatos sem partido em eleição algu-ma. Ampliar o leque de possibilidades dos eleitores, além de expandir a democracia, estimula a dinâmica das mudanças internas nos par-tidos existentes. O monopólio dos partidos sobre a representação po-

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Ofensiva em busca de um novo sistema político

Roberto Freire

lítica induz à acomodação, ao distanciamento dos eleitores, ao escle-rosamento das organizações partidárias.

Para nós, a experiência da reeleição deixa como legado a desigual-dade que introduz na disputa eleitoral. O candidato mandatário de-monstrou uma vantagem competitiva quase insuperável nas eleições. Propomos, portanto, o retorno ao texto original da Carta de 1988.

O segundo turno nas eleições para o Poder Executivo, contraria-mente, mostrou na prática suas virtudes democráticas. De um lado, por dar oportunidade de competição eleitoral a partidos menores que, em situação de turno único, tenderiam a uma composição com os can-didatos dos partidos maiores. Fez, portanto, aumentar a oferta política à disposição dos eleitores e compensou, em parte, as tendências à re-dução do número de partidos. De outro lado, por gerar governos legi-timados pelo apoio da maioria absoluta dos eleitores. Propomos a ado-ção do segundo turno nos municípios com mais de 50 mil eleitores, ao invés do limite atual de 200 mil eleitores. Na prática, a proposta impli-ca aumentar o número de municípios com segundo turno em dez ve-zes, de cerca de oitenta para aproximadamente oitocentos.

No que se refere à suplência dos senadores, propomos a realiza-ção de nova eleição, em caso de vaga, concomitante à eleição seguin-te à vacância.

Finalmente, consideramos que a decisão a respeito de prazo de filiação e de domicílio eleitoral dos candidatos é matéria pertinente apenas aos estatutos de cada partido. A legislação optou, nas últi-mas décadas, por usar esses prazos como remédio para a infidelida-de partidária que a regra eleitoral enseja. O remédio revelou-se arti-ficial e ineficaz. Com o entendimento recente do Judiciário sobre o pertencimento dos mandatos aos partidos e, mais ainda, em caso de aprovação de mudança no sistema eleitoral, o problema da fidelidade partidária perde muito de sua gravidade e a matéria deve retornar à livre deliberação dos partidos.

Para o êxito deste novo movimento em favor de uma real mudança na forma de disputar espaços de poder no país, conclamamos todos os interessados em aperfeiçoar nosso sistema político que estejam aber-tos e se dediquem à discussão, à mobilização e à manifestação pública em favor da reforma política, no rumo da expansão e aprofundamento da democracia entre nós. Conquistemos a aprovação deste imprescin-dível câmbio, com a certeza de que se constitui um primeiro e decisivo passo para reformas futuras, como marco inicial do processo da refor-ma democrática do Estado brasileiro.

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em torno do sistema proporcional de eleição

Alberto Carlos Almeida

Há reformas que levam o nome de refor mas. Existem muitos exemplos dessa modalidade de mudança na agenda de privatizações do governo Fernando Henrique. FHC disse que iria fazer reformas e as fez. Há também aquelas reformas que são profundas, mas não levam o nome de reformas. Foi assim com a aprovação da reeleição. O instituto da reeleição, já está muito bem provado por vários estu-dos acadêmicos, fez com que nossos governantes se tornassem mais responsáveis do ponto de vista fiscal. O PT passou por uma enorme reforma interna, que não levou esse nome, mas teve um formidável impacto no funcionamento do sistema político brasileiro. Tanto que, já no primeiro mandato de Lula, deixou de ser um partido obreirista e radical para ser um moderado partido social-democrata.

Estamos agora diante de propostas de reforma que são, na reali-dade, antirreformas. Elas significam mais um passo para trás do que para frente. São várias as propostas na direção de mexer naquilo que vem funcionando razoavelmente bem nos últimos anos. Uma dessas é a ideia não testada do distritão. Aliás, que nome infeliz! Distritão rima com mensalão. O tal distritão não é adotado em nenhum país do mundo. Se não me falha a memória, foi o nosso sistema no Brasil Império, quando não tínhamos partidos políticos. A proposta básica é que os estados sejam distritos eleitorais e os candidatos mais vota-dos sejam eleitos deputados. Feito isso, de fato poderemos abolir os partidos políticos. Se um estado elege 50 deputados estaduais, tere-mos 50 minigovernadores que para ser eleitos dependeram apenas de seu esforço.

A minha principal crítica a propostas dessa natureza é uma críti-ca tipicamente conservadora, inspirada em Edmund Burke, o grande pensador conservador que escreveu o famoso livro Reflexões sobre a Revolução em França. O argumento conservador é muito simples. Nós, individualmente, quando cuidamos de nossa vida, tendemos a ser conservadores. Tomem-se as nossas relações pessoais e de ami-zade. No decorrer dos anos, elas mudam, porém de maneira incre-mental. Nós não trocamos, de um ano para o outro, todo o nosso

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Em torno do sistema proporcional de eleição

Alberto Carlos Almeida

conjunto de amigos e conhecidos. Isso não é feito porque causaria uma enorme disrupção, de consequências imprevisíveis, em nossa vida. Mais ainda, caso quiséssemos voltar atrás, seria muito mais difícil do que se a mudança tivesse sido incremental.

Como somos conservadores e prudentes quando o que está em jogo é cada um de nós, o que dizer então quando se trata de coisas que têm impacto sobre a vida de milhões de pessoas. As instituições políticas, em particular as de representação, têm um enorme impac-to sobre a vida de 135 milhões de eleitores brasileiros habilitados a votar. Mexer em tais instituições é mexer com a vida de todas essas pessoas. A ideia de reformar inteiramente um sistema eleitoral, abandonando o já testado sistema proporcional e adotando o distri-tal (com ou sem distritão) é resultado do espírito de inovação. É re-sultado não de um saber coletivo e social, mas de um saber egoísta e intelectual.

Alguns intelectuais leram alguns livros e aprenderam que há países que adotam o sistema distrital. Além disso, tais intelectuais pressupõem que o sistema brasileiro funciona mal. Nem sequer in-vestigaram quais são as críticas em seus respectivos países ao siste-ma distrital. Há atualmente na Grã-Bretanha, que deu origem ao sistema distrital, uma grande discussão para que haja algum tipo de voto proporcional. Ou seja, tais intelectuais querem adotar aquilo que os seus criadores estão pensando em modificar. Continuando o raciocínio, tais defensores do voto distrital idealizam positivamente o que acontece nos países que adotam esse sistema e idealizam nega-tivamente o que acontece no Brasil com o voto proporcional. Aí é fácil concluir que nós precisamos adotar o sistema distrital.

É preciso deixar as idealizações de lado. Elas levam com muita frequência a propostas mirabolantes que desconsideram o saber prá-tico já acumulado nas instituições existentes. É preciso admitir que há alguma boa razão para o Brasil adotar o sistema proporcional, senão ele não seria tão longevo em nosso país. Aliás, cabem aqui os parênteses: o que realmente importa na discussão sobre a reforma de nosso sistema eleitoral é se queremos um sistema proporcional, tal como é hoje, ou se queremos um sistema não proporcional, o que é o caso do distrital. Devemos saber as consequências dos dois siste-mas. Quando se adota o sistema distrital, caminha-se para uma dis-puta somente entre dois grandes partidos. É comum também que o partido mais votado, caso fique com 40% dos votos, eleja 55% ou mais dos deputados. Se quisermos isso, então devemos modificar nosso atual sistema.

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Tema de capa: Reforma Política

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Mais interessante ainda foi o que aconteceu com a maior parte dos países do mundo. É extremamente comum que um país inicie sua jornada pelo mundo democrático com o voto distrital, mas de-pois de alguns anos reforme o sistema caminhando para o sistema proporcional. Ou seja, abandonar o distrital e adotar o proporcional é muito comum. Não se pode afirmar o mesmo da trajetória inversa. São muito raros os casos de países que tinham sistemas proporcio-nais e passaram para o sistema distrital. O motivo é simples: como há uma grande redução do número de partidos importantes, há um poderoso veto a uma reforma nessa direção. É justamente isso que estamos vendo no Brasil. Caso o nosso sistema se transforme no distrital, devemos dar adeus o quanto antes ao PDT, PSB, PCdoB, PV, PPS e muitos outros partidos que têm poucos deputados. O dis-tritão provavelmente teria o mesmo efeito.

O mais interessante é analisar a lista de países que adotam o sis-tema distrital. Na sua forma pura, os países que o adotam são Grã-Bretanha, Estados Unidos, Canadá, Índia, Paquistão, Bangladesh, Nepal, Malaui e Zâmbia. Desnecessário mostrar que há uma forte correlação entre influência anglo-saxã e adoção do sistema distrital puro. Os outros países que adotam esse sistema com algumas varia-ções são França, Mali, Austrália, Tailândia e Filipinas. No total, 14 países optaram, baseados em sua história, seus costumes, suas in-fluências coloniais, pelo sistema distrital.

A lista de países que optaram pelo sistema proporcional é muito mais longa. Além do Brasil, ela conta com África do Sul, Argentina, Áustria, Bélgica, Bulgária, Colômbia, Costa Rica, Dinamarca, Espa-nha, Finlândia, Grécia, Holanda, Israel, Madagascar, Moçambique, Noruega, Paraguai, Peru, Polônia, Portugal, República Tcheca, Sué-cia, Suíça, Turquia, Uruguai e Irlanda. São 27 países. Quase o dobro da primeira lista dos países de voto distrital.

O mais interessante diz respeito aos países que adotam os siste-mas batizados de mistos, isto é, combinam características do siste-ma eleitoral distrital e do proporcional. São 13: Coreia do Sul, Equa-dor, Japão, Rússia, Taiwan, Ucrânia, Alemanha, Bolívia, Hungria, Itália, México, Nova Zelândia e Venezuela. A Nova Zelândia, apesar da influência anglo-saxã, abandonou o sistema distrital puro que adotava no passado.

A Alemanha é sempre mencionada no Brasil como um grande exemplo de sistema eleitoral. Há aí mais uma idealização. Em que pese o nome de sistema misto, no sistema alemão a proporção ou número de cadeiras no parlamento que vai para cada partido é de-

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Em torno do sistema proporcional de eleição

Alberto Carlos Almeida

finido pela regra da representação proporcional. Os nomes de quem ocupa as cadeiras são distribuídos 50% para políticos eleitos em distritos e 50% para políticos eleitos na lista partidária. Isso signi-fica que o sistema eleitoral alemão é, em seu espírito, um sistema proporcional, repito, o tamanho de cada partido é definido pela re-gra proporcional.

Os argumentos a favor da representação proporcional que adota-mos são os seguintes: é o sistema que vem sendo utilizado no Brasil em todos os períodos democráticos que vivemos, ele está baseado na nossa experiência social e na demanda de nossos representados e representantes e, ainda que tenha muitos defeitos, a sua mera lon-gevidade indica que tem alguma funcionalidade no nosso contexto. Além disso, a maioria das democracias utiliza o sistema proporcio-nal. Mais ainda, é comum que um país mude do sistema distrital para o proporcional, mas não o inverso. Isso também diz alguma coi-sa: a pressão por proporcionalidade é sempre mais forte do que pelo seu oposto.

O argumento a favor do sistema distrital, com distritinho ou dis-tritão, se resume a afirmar (mas não necessariamente a provar em-piricamente) que o nosso é ruim, que ele é um desastre e que precisa ser modificado para algo realmente diferente. Convenhamos, trata-se de um argumento muito fraco. Melhor do que uma proposta mirabo-lante para nosso contexto histórico e social é simplesmente fazer mu-danças incrementais em nosso sistema: proibir coligações, criar al-gum tipo de cláusula de barreira e até mesmo fazer uma lista fechada permitindo ao eleitor alterar a ordem da lista. Essas seriam propos-tas realistas que provavelmente resultariam em uma efetiva melhora de nossa representação. Caso isso não acontecesse, teríamos como voltar atrás sem grandes consequências negativas para o sistema. O mesmo não se pode dizer, infelizmente, do sistema distrital.

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Reflexos da desigualdade e a reforma política

Hamilton Garcia de Lima

A radical desigualdade brasileira tem, como não poderia deixar de ter, reflexos sobre a dinâmica política.

Negar este fenômeno pode ser uma tomada de posição ideológica – pós-moderna, de centro ou esquerda, tanto na busca da melhoria do ambiente social quanto empenhada em manter o poder de forma demagógica –, mas não científica, pois implicaria negar seus reflexos sobre todo o sistema social (saúde, educação etc.), inclusive na eco-nomia (produtividade, empregabilidade etc.). A rigor, do ponto de vis-ta humanista, são esses efeitos que se quer elidir quando se combate a extrema desigualdade, e não apenas a dificuldade de acesso aos bens de consumo no mercado, como na ótica capitalista.

Na política local, sua pior consequência é a irresponsabilidade eleitoral, plasmada no político superficial-bonachão e no eleitor des-politizado-esperto que vende o voto por necessidade ou o concede em proveito de algum benefício privado – imediato, diante de uma emer-gência médica ou uma churrascada, ou mediato, no caso de uma expectativa de emprego –, não importando que a fonte de tal regalia tenha origem no desvio de recursos públicos.

Ao par das carências materiais, que são a origem primária dessas práticas entre os cidadãos, a desigualdade nos enlaça também atra-vés da cultura, como cristalização de vivências passadas e reprodu-tora de práticas tradicionais. Em nossa história colonial-nacional, o público nasceu do privado e foi aprisionado por ele até o Estado se fortalecer a ponto de cobrir, com sua autoridade, todo o território nacional – processo ainda não completamente concluído em função da crise de autoridade que vivenciamos. Restou disso a confusão entre a fronteira do público e do privado.

Os tentáculos da desigualdade são também manipulados por eli-tes dominantes que se apropriam privadamente do excedente públi-co quer como forma de maximizar suas vantagens competitivas no mercado, de acumular patrimônio ou mesmo para se cacifar finan-ceiramente no jogo político-eleitoral. A forma democrática deste últi-

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Reflexos da desigualdade e a reforma política

Hamilton Garcia de Lima

mo tipo de dominação (arcaica) implica a redistribuição de parte dos excedentes politicamente apropriados para os setores sociais subal-ternos ávidos de participação no butim e sem condições ou predica-dos para a auto-organização, estabelecendo desse modo a roda-viva da reprodução do atraso.

A questão a responder é se a democracia poderá superar esta heran-ça maldita, e seus atuais interesses cruzados, ou se está fadada a per-petuá-la, num círculo vicioso, até um novo impulso autoritário, prus-siano ou popular, se apresentar para dar conta do desafio. A resposta está na capacidade dos próximos governos em derrubar os dois grilhões básicos do atraso político brasileiro, que movem a roda-viva: a depen-dência econômica e a incompetência educacional – dois fatores associa-dos à pobreza, mas que afetam também os estratos médios do país.

Tanto os conservadores quanto os progressistas sabem da perda de terreno do país nestes 26 anos de estagnação econômica e que nela os problemas nacionais não terão solução, mas ambos não parecem capa-zes de reunir as forças suficientes ou dispostos a afrontar as conveniên-cias imediatistas para romper com a economia política das três refei-ções por dia – cuja fórmula se mostra eleitoralmente exitosa desde 1994.

Sem superar este problema-chave, é pura bazófia afirmar que a democracia é vitoriosa apenas porque nos propicia espetáculos elei-torais bienais. Qualquer sistema político só se estabiliza se for capaz de dar conta de suas “tarefas históricas”, ditadas por suas necessida-des sociais. Entre nós, o sistema democrático depende do fim da ro-da-viva da desigualdade para alçar voo estável, e a condição sine qua non para isso é uma significativa e sustentável aceleração do PIB com o resgate de nossas dívidas sociais.

Aliás, nossa democracia foi restabelecida, em 1985, em nome desta meta básica, mas acabou se acomodando aos pequenos avan-ços paliativo-incrementais estimulada por uma cidadania que per-deu a capacidade de pressionar por soluções radicais.

As elites virtuosas do país, conscientes desta terrível realidade, precisam se articular para desmontar a armadilha político-eleitoral que nos enredou, antes que ela nos acabe conduzindo à terrível con-clusão de que a democracia, tal como nos diziam os teóricos do auto-ritarismo instrumental, tem entre nós apenas o papel de legitimador da ordem dominante, e que, para progredirmos, precisamos de ata-lhos não tão belos porém mais eficazes, capazes de quebrar a inércia do já estabelecido.

Um passo nesta direção pode ser dado, agora, com a reforma po-lítica e novas regras para a criação de partidos disciplinadores e pro-

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gramáticos, que coíbam os apetites demagógico-patrimonialistas da classe política e dê alguma direção profícua à massa de eleitores.

Accountability e reforma política

Quanto se trata de discutir a reforma política, a crítica mais ouvida à proposta de institucionalização da lista fechada no sistema propor-cional vigente no país é a de que esse procedimento enfraqueceria o vínculo entre os candidatos e os eleitores, levando à “ditadura das cú-pulas partidárias” em detrimento do direito de escolha do eleitor.

A crítica é fraca sob variados aspectos; vejamos alguns. Uma das razões para que a reforma política não saia da agenda do país, ape-sar da contrariedade da classe política, é precisamente o fato de que o modelo vigente (proporcional de lista aberta) levou, ao longo dos anos, o vínculo entre parlamentares e eleitores aos piores patamares da história republicana – ao contrário do juízo de muitas autoridades acadêmicas, que, nos anos 1990-2000, prognosticavam o amadure-cimento desse modelo.

Os motivos para essa deterioração crescente são muitos, mas de-ve-se destacar, em particular, a opacidade do método de distribuição das cadeiras legislativas pelo coeficiente partidário-coligacional, que faz a “mágica”, aos olhos dos eleitores, de eleger candidatos com os votos dos não eleitos, de tal modo que nem os políticos, em sua esma-gadora maioria, sabem exatamente de onde vêm os votos que os elege-ram, nem os eleitores a quem seus votos efetivamente consagraram, pois a grande maioria votou em candidatos que não se elegeram.

Não bastasse isso – em si já suficiente para explicar o descontro-le do eleitor sobre seu representante e o desarranjo do sistema como um todo –, a dinâmica eleitoral que vigora no país reforça a cultura do eleitor individual que supostamente, como vimos, escolhe o can-didato individual, usando para tal seu discernimento natural. A fá-bula abstrata da razão individual, descolada de contextos (interes-ses), estruturas (instituições) e tradições (cultura), só serve para encobrir o mal-entendido acerca do direito de escolha do eleitor, sen-do, portanto, igualmente mau paradigma filosófico-científico.

Na verdade, ao contrário do que propõe esse tipo de perspectiva individualista debruçada sobre a cena brasileira, em nosso caso o indivíduo eleitor encontra-se perdido num cipoal de siglas e nomes que pouco significam e que o impedem de ter a visibilidade mínima para qualquer escolha razoável, mesmo que apenas em termos de seu interesse individual. Sendo obrigado a votar – obrigatoriedade que, por isso, se torna o principal esteio do atual sistema político –,

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Hamilton Garcia de Lima

o eleitor tenta se safar escolhendo estrelas-guia (outsiders) do tipo candidatos-celebridades, que se destacam naturalmente no cenário de nulidades políticas individuais, ou por alguma materialidade ime-diata, individualmente significativa, como as ofertas de vantagens ou acesso ao sistema de poder, tudo isso sem maiores considerações acerca dos efeitos colaterais de tais opções políticas.

Na cabeça de importantes segmentos do eleitorado, a oferta de serviços públicos pelos canais privados da clientela eleitoral, em de-trimento do contribuinte-eleitor genérico, aparece como um ganho desconectado das causas da má qualidade do setor público em geral, sendo mesmo uma forma de remediá-la.

Esse descaminho do Estado, todavia, não produz efeitos apenas sobre as políticas públicas, mas igualmente sobre o processo demo-crático, atingindo de modo devastador a relação eleitor/eleito, sem que a abordagem individualista disto tenha a menor ideia. Trata-se aqui de um poderoso fetiche político nacional que, à semelhança do fetiche da mercadoria discutido por Marx em O capital, transforma, por meio da gratidão, o eleitor de portador da soberania do voto em devedor de um patrono que lhe concede, sob a forma de favor, aqui-lo que formalmente está estabelecido como um direito, distorção esta tão ou mais grave como aquela ensejada pelo poder econômico privado e seus enlaces de privilégios e superfaturamentos com a classe política.

Toda essa realidade fere de morte o direito de escolha do eleitor nas eleições proporcionais com lista aberta e deveria ser objeto de reversão na atual reforma política em discussão no parlamento, por parte da-queles que enxergam a responsabilização como o eixo saneador da vida pública no Brasil.

É sob esse prisma que se colocam no tabuleiro outros instrumen-tos para a reforma política, como o financiamento público de campa-nha, que responsabiliza o partido pelos gastos eleitorais, e mesmo a Lei da Ficha Limpa, que responsabiliza os gestores pelo desvio de fi-nalidade do Estado.

Entre todas estas formas, a mais abrangente e profunda é, sem dúvida, a responsabilização do político pelo eleitor, sem perda da pluralidade político-ideológica duramente conquistada nos anos 1970-80, o que só é possível pela implantação da lista fechada no modelo proporcional em vigor, de modo a fortalecer o partido naquilo que ele tem de melhor: formador de elites políticas genuinamente li-gadas aos interesses sociais que o lastreiam e, como indicava Weber em Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída, consti-tuem a alma da democracia parlamentar.

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II. Conjuntura

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Autores

Marco Aurélio NogueiraProfessor de Teoria Política da Unesp, autor, dentre outros, dos livros Em defesa da polí-tica e Um Estado para a sociedade civil.

Diogo Tourino de SousaProfessor Assistente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Viçosa (DCS/UFV), mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ) e pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES/PUC-RJ). ([email protected]).

Daniela Leandro RezendeProfessora Assistente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Viçosa (DCS/UFV), mestre e doutoranda em Ciência Política na Universidade Federal de Minas Gerais (DCP/UFMG) e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gê-nero (NIEG/UFV). ([email protected]).

Gil Castello BrancoEconomista e fundador da organização não governamental Associação Contas Abertas. ([email protected]).

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Amigos, inimigos e batalhas políticas

Marco Aurélio Nogueira

“Um amigo deixa o governo e uma amiga assume seu lugar”, de-clarou a presidente Dilma Rousseff na cerimônia de posse da nova ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann. Frase bonita e emble-mática, capaz de mostrar que nas relações políticas também há lugar para o afeto, a lealdade, a cooperação desinteressada – em suma, para a amizade.

Dirigida ao ex-ministro, a declaração soa protocolar. Afinal, se amizade intensa houvesse, ele teria ponderado que seu acumulado de problemas implicaria risco para o governo e não teria insistido em nele permanecer. Em relação à ministra Gleisi, porém, a frase é per-feita e tem tudo para ser o anúncio de uma nova era na Casa Civil da Presidência. Agora, ela está nas mãos de uma mulher jovem, dinâmi-ca, tecnicamente bem preparada, com uma bela trajetória política e que, se não bastasse, se destacou nos últimos tempos pela defesa aguerrida da candidatura Dilma, primeiro, e depois da presidente Dilma. A nova ministra chega com o propósito de somar, não de ser a integrante mais forte do governo; seu objetivo é “cuidar da gestão e do acompanhamento de projetos”. São coisas que indicam uma rela-ção diferenciada, promissora.

Foram tantas as demonstrações de afeto recíproco naquela ceri-mônia que seria o caso de perguntar se não teriam sido elas a mani-festação de que a Presidência da República também é um ambiente infestado de inimigos, produzidos inevitavelmente pela dinâmica mesma do poder e da luta política. Se a pergunta faz sentido, quem estaria a atravancar o caminho de Dilma, a assoberbá-la com pres-sões, a esparramar pedras pelos tapetes do Planalto para retardar

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Conjuntura

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suas decisões ou induzi-la ao erro? Seriam esses “inimigos” os res-ponsáveis pelo tão falado imobilismo da presidente, pela dificuldade que teria tido de cortar o mal pela raiz ao saber da delicada situação de Palocci?

É razoável que se pense assim. Por estar obrigada a agir num ambiente contaminado, a presidente não tem como se conduzir de modo destemido. Precisa contemporizar, ouvir, ponderar. Parece não ter muita paciência ou jeito para isso. Conta com poucos auxiliares desinteressados e descobre que muitos de seus amigos, aliados ou companheiros são, na verdade, protagonistas ativos de uma opera-ção dedicada a cercá-la, a pressioná-la, a roubar-lhe autoridade. No caso Palocci, não demorou em agir. Simplesmente fez o que pôde na hora que pôde.

Os “inimigos” do bom governo no Brasil compõem um elenco ex-tenso e difícil de ser administrado. O principal deles é o próprio sis-tema com que se governa, o assim batizado “presidencialismo de co-alizão”, brilhantemente dissecado pelo cientista político Renato Lessa na edição anterior do caderno Aliás.1 Trata-se de um sistema de coa-lizões, ao qual se superpõe um conjunto de fraquezas, idiossincra-sias, ausências e excessos. Sem ele, não se governa, mas com ele se governa mal. Para se equilibrar e ganhar “governabilidade”, a Presi-dência é obrigada a compensar a falta de base parlamentar leal com a entrega de cargos e espaços a diferentes grupos parlamentares, convertidos em aliados. Ganha apoio para aprovar determinados projetos, mas perde capacidade de coesão e gestão. Recebe mordidas por todos os lados, convive diariamente com o inferno das demandas e das chantagens.

O sistema poderia funcionar – e ser, assim, mero arranjo para aco-modar as coalizões inevitáveis – caso a chamada “classe política” tives-se melhor qualidade e fosse capaz de se autocoordenar. A má qualida-de dos parlamentares tem a ver tanto com o despreparo político de muitos deles, quanto com os compromissos que mantém com interes-ses espúrios ou com setores sociais mais atrasados, fato que transfere para o Parlamento uma demanda de teor verdadeiramente explosivo. Mas também retrata a inexistência de mecanismos que eduquem os políticos, que os façam agir de modo mais coordenado e menos corpo-rativo, mais de acordo com o interesse público do que com interesses privados. Os partidos políticos deveriam ser essas escolas de política, mas não o são. Nenhum deles. Estão todos ou acomodados na tradi-cional posição de fazer o cerco (e a corte) ao poder, ou às voltas com

1 Jabuticaba institucional, 05/06/2011.

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Amigos, inimigos e batalhas políticas

Marco Aurélio Nogueira

problemas internos recorrentes ou à espera das próximas eleições. Não se afirmam nem no Legislativo nem na sociedade.

Emergiu desse vácuo outro “inimigo” de Dilma nesses seus pri-meiros meses de governo. Sentindo que a casa ameaçava pegar fogo, aliados e petistas chamaram um bombeiro conhecido por suas habi-lidades de negociador. Lula irrompeu em Brasília e trouxe consigo os ventos da inconveniência. Com ou sem intenção, passou a imagem de que é mais forte do que a presidente e de que deseja convertê-la em refém. Enfraqueceu-a perante a opinião pública, sugerindo que se alguém pode de fato coordenar o governo esse alguém está fora, e não dentro, do Palácio do Planalto. Desse ângulo, não admira que tanta atenção tenha sido dada à amizade na última semana.

Um último círculo precisaria ser lembrado. Ele tem a ver com algo que se espalha pelo mundo como um furacão. É que a política se dissociou da sociedade e perdeu o respeito dela. Não dialoga mais com ela, nem como “opinião pública”, nem como sociedade civil, nem como estrutura social. O sistema político se isolou, vive encas-telado, concentrado em seus próprios interesses. Não se reforma nem se deixa reformar. Produz inúmeros problemas e quase nenhu-ma solução. Permanece como que acorrentado a um tempo pretéri-to, ao passo que a sociedade avança pelas ondas líquidas e digitais da vida hipermoderna.

Esse conjunto de “círculos inimigos” é mais ameaçador do que qualquer deslize ético, político ou moral de um ou outro ministro. Está na origem desses deslizes. E será contra ele que o governo Dil-ma, fortalecido pelo início de recomposição da Casa Civil, terá de travar suas mais importantes batalhas.

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A representação e sua surdez

Diogo Tourino de Sousa e Daniela Leandro Rezende

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da união civil homoafetiva, reconhecendo como legal a união estável para ca-sais do mesmo sexo, manifesta uma tendência de longa duração na democracia brasileira. A despeito do ganho implicado na decisão, não é de hoje que aquilo que a literatura especializada denominou como “judicialização” da política e das relações sociais emerge em diferentes episódios e ocupa, cada vez mais, a percepção da opinião pública em geral, distorcendo papeis constitucionais e confundindo princípios democráticos.

O fenômeno, talvez diagnosticado desde a década de 1980, traduz entre nós certa passividade do Legislativo, por um lado, e um super-dimensionamento da atuação dos operadores do direito, por outro, sem que tenhamos nitidez acerca das suas causas. Certo é, no en-tanto, que sentimos suas consequências no decorrer dos anos, observando “arriscadas” experiências institucionais, ousadas mani-festações de opinião e mesmo precedentes na interpretação da Cons-tituição, todos responsáveis pelo acirramento dos ânimos da socie-dade contra a política.

Aliadas a isso, as tensões entre o Poder Legislativo e o Executivo no Brasil, caracterizadas por alguns pesquisadores como uma rela-ção de delegação ou usurpação de competências, concorrem para configurar um cenário perigoso descrito, em geral, pela alcunha de presidencialismo de coalizão. Sem entrar no debate sobre qual des-ses conceitos – se delegação ou usurpação – seria mais adequado, ambos remetem a certa inatividade do Legislativo: seja porque o Exe-cutivo centraliza as decisões e se utiliza de recursos para pautar aquele – como o controle da agenda pelas lideranças, ou mesmo o propalado instituto da Medida Provisória –, seja porque os atores que compõem o Poder Legislativo se abstêm ao avaliar os custos da opo-sição à iniciativa do Executivo – medidos em ganhos orçamentários ou posições ministeriais.

O fato é que ao declinar do seu papel constitucional, pela judicia-lização da política ou pelo presidencialismo de coalizão, o Legislativo

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A representação e sua surdez

Diogo Tourino de Sousa e Daniela Leandro Rezende

abre mão do lugar no qual a luta pela democracia na história do Oci-dente o colocou. A produção legal, associada ao processo de fiscali-zação do Executivo, sobretudo pelo controle orçamentário, consti-tuem tarefas que deveriam resultar da escuta da sociedade, em seus anseios e demandas, elevando o Parlamento ao posto de “represen-tante”. Rótulo que envolve o inescapável embate de propostas, bus-cando consensos, contrariando interesses, desafiando, quando ne-cessário, o que está estabelecido em nome da mudança. No limite, o Congresso deve ser capaz também de dar respostas à sociedade no que ela questiona a partir das inevitáveis transformações do tempo, em consonância com a própria ideia de representação, conceito por vezes repetido, mas pouco refletido.

Hanna Pitkin, no seu já clássico The Concept of Representation, descreve a representação a partir de dois momentos centrais: o da autorização, em que os eleitores estabelecem uma relação com aque-les que representarão seus interesses, definindo que, por um deter-minado período de tempo, esses podem agir em seu nome; e o da responsabilização, em que os representantes devem prestar contas de suas ações aos representados. A representação política seria pen-sada, então, por esses dois marcos, não sendo possível definir como o representante deveria agir entre esses momentos, dado que é ne-cessário que esse possua autonomia para debater temas emergentes no cenário político e na agenda pública. Assim, o momento da res-ponsabilização tornar-se-ia, segundo Pitkin, uma espécie de avalia-ção das ações dos representantes e garantiria a continuidade do vín-culo entre representantes e representados para além do momento eleitoral, que concretiza a ideia da autorização.

Ainda que representantes tenham certa liberdade de atuação, as noções de responsabilização e avaliação surgem como dois momen-tos de uma relação que só se manterá por meio da necessária escuta, por parte dos representantes, do que a sociedade, os representados, anseia. Sem ela, o vínculo, inicialmente construído com a autoriza-ção, inevitavelmente se desfaz no momento da responsabilização.

É truísmo dizer que não é o zelo pelo vínculo entre representantes e representados o que vemos. Receosos de perderem preciosos votos em possíveis reeleições, ou mesmo imbuídos de sinceras posições conservadoras, deputados e senadores se esquivam do embate de interesses em questões polêmicas, privilegiando votações orçamentá-rias – prato cheio para o processo de judicialização – ou, o que é mais costumeiro, o jogo de “gato e rato” entre governo e oposição – sintoma perverso do presidencialismo de coalizão. Recentemente, o caso que envolveu suposto enriquecimento ilícito do ex-ministro-chefe da

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Conjuntura

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Casa Civil, Antônio Palocci (PT), é o melhor exemplo de uma oposição que aparenta ter se esquecido de fazer oposição, tragada por um pro-jeto “inconteste” de Brasil que não permite a construção de modelos alternativos de país. Amarrados na agenda do governo, distantes do seu papel constitucional e confusos acerca dos princípios democráti-cos, sobra aos opositores a agenda menor de buscar fissuras em prováveis deslizes morais na base governista.

Cenário no qual o Legislativo parece atuar de forma “encapsula-da”, alheio aos embates emergentes no campo da sociedade civil e, mais grave, refratário inclusive à discussão de temas que se impõem no cenário político, o que, de saída, compromete seu papel de órgão receptor e processador de demandas vocalizadas pela população.

Não afirmamos, com isso, que trazer à tona crimes de corrupção, ou mesmo promover uma inflexão sobre o papel dos interesses priva-dos na política, a partir da discussão sobre o desempenho no merca-do de ex-ocupantes de cargos públicos que detenham informações privilegiadas, não seja do interesse de todos. Entretanto, contornar o lobby no Congresso não pareceu, à primeira vista, ter sido o objetivo central da oposição no caso Palocci.

E o que resta? Críticas. Muitas delas sintetizadas na recente constatação de que o Congresso parou. Ao invés de assumir seu pa-pel constitucional e canalizar para dentro da dimensão política os interesses da sociedade, dimensionando-os na produção legal, ele tem se mostrado surdo ao que ela anseia de mais premente. Sem fa-lar no “tabuleiro” que se forma a partir da distribuição de ministé-rios, primeiros e segundos escalões, jogo no qual a estratégia melhor sucedida envolve negociar matérias e demonstrar força na aprovação ou não de leis que deveriam, é bom lembrar, “representar”. O Código Florestal, capitaneado pelo PCdoB e encampado pelo PMDB, dois aliados até que se prove o contrário, foi aprovado na Câmara como parte dessa estratégia e encontra-se, agora, em um segundo e desa-nimador embate no Senado. Tudo isso, é claro, endossado pelo com-portamento “varejista” de um Executivo que aparenta ter se acostu-mado bem ao tal presidencialismo de coalizão.

Mas o mundo não para. A sociedade civil, agora instrumentaliza-da pela internet e outros canais de comunicação, se move com uma feliz intensidade encontrando novas formas de representação. Mes-mo passível de críticas, o projeto de iniciativa popular que torna ine-legíveis políticos condenados ou que tenham renunciado para fugir da cassação, mais conhecido como lei da “ficha limpa”, veio de “bai-xo”, nascido do anseio por uma reforma política, necessidade essa

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A representação e sua surdez

Diogo Tourino de Sousa e Daniela Leandro Rezende

reforçada quase como um mantra entre os analistas, mas nunca ini-ciada pelo Congresso. A despeito de ter sido “esfriada” pela interpre-tação do STF, a lei da “ficha limpa” foi recebida pela opinião pública como a maior conquista institucional no controle da corrupção, ten-do como sujeitos não os representantes tradicionais. Em outras pa-lavras, ainda que o Congresso não escute, a sociedade não cessa em falar, buscando, sobretudo, outras formas de ser ouvida.

Não por acaso, discute-se hoje formas alternativas de representa-ção política que não a representação referenciada territorial e eleito-ralmente. Nadia Urbinati e Mark Warren, em suas reflexões sobre a democracia representativa, vêm apontando a existência no mundo contemporâneo de agentes que se auto-autorizam, se manifestando no campo da sociedade civil e além das fronteiras nacionais, capazes de vocalizar não apenas interesses, mas perspectivas e opiniões no formato de grupos de advocacy. Entretanto, é importante que se diga que o debate sobre novas formas de representação não prescinde ou pretende eliminar a representação política eleitoral. A ideia é que tais formas se complementem, o que traz o desafio de se pensar instru-mentos para tornar a representação política efetivamente democráti-ca, ou seja, pensar como podemos associar a relação que se estabe-lece entre representantes e representados pela autorização eleitoral à noção de que, na democracia, todos os potencialmente afetados pe-las decisões políticas devem delas participar, seja pessoalmente (o que, dada a questão da escala nas democracias contemporâneas, é inviável) ou por meio de representantes. Nesse sentido, a participa-ção direta na formação da opinião e construção da agenda, por meio da internet, surge como um dos instrumentos possíveis de “atualiza-ção” da responsabilização, zelando pelo vínculo entre representantes e representados perdido no ordinário da política.

Outro instrumento nessa direção, talvez o principal nos dias de hoje, tem sido o Judiciário. Nunca antes a presença de seus opera-dores nos noticiários se viu com tanta frequência, tendo os ministros do Supremo assumido destacado papel em diferentes matérias. No caso da união civil homoafetiva, antes mencionado, encontramos apenas mais um exemplo da tentativa de “atualização” da ideia de representação, ainda que muito significativo para a compreensão dessa tendência, de suas vantagens e seus problemas.

Sem dúvida, o posicionamento do STF sobre a matéria é uma conquista contra a intolerância. Muito mais pela interpretação favo-rável e pela construção de argumentos que podem, de alguma forma, subsidiar lutas futuras do que pela transformação da lei. Isso por-que, o Judiciário não é o encarregado da produção legal e sua inter-

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Conjuntura

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pretação esbarra na própria Constituição, já “defasada” conforme a recente decisão do Supremo. Diagnóstico que aponta para a neces-sidade de revisão pela produção legislativa, carência que será com-provada e possivelmente “penalizada”, dado o cenário inerte do pre-sente, no momento da responsabilização.

Ainda assim, o Congresso não se move, assumindo a passiva pos-tura de não enfrentar questões polêmicas e delegando tacitamente seu papel constitucional ao Judiciário. Não enfrentamento que oca-siona soluções pontuais, além da aparente inutilidade da política na vertebração da vida social. Um duplo equívoco: por um lado, ques-tões substantivas, como a criminalização da homofobia, por exem-plo, permanecem fora da agenda pública; por outro, operadores do direito se materializam na percepção comum como os sujeitos da democracia, responsáveis idôneos pela imaginação de mundos e construção do futuro. À política compete a corrupção, os interesses menores, o privatismo, no limite, a inutilidade ante, inclusive, os “agrados” concedidos pelo Executivo no exercício de usurpação do poder de legislar.

Homofobia e união civil homoafetiva surgem, aqui, como manifes-tações de uma tendência. Surgem como indicadores de que a socie-dade se transforma, cobrando respostas legais para anseios concre-tos. O episódio envolvendo os vídeos educativos produzidos pelo Ministério da Educação, numa campanha pela tolerância contra a homofobia, vídeos que receberam o singelo apelido de “kit gay” pela bancada conservadora e seu epíteto, o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), é prova disso. Os vídeos tiveram sua distribuição suspensa pela presidenta Dilma, alegando ser o MEC e o governo incapazes de deliberar unilateralmente sobre questões morais, como a opção se-xual, no caso. Quem seria capaz, então? Seguramente, o Congresso.

Longe de defender os vídeos em questão, mesmo porque questio-namos sua qualidade, apontamos a concretude de um problema para o qual o Legislativo se fecha, ensejando soluções pontuais – oriun-das, em sua maioria, do STF –, reações descabidas – como as prota-gonizadas pelo deputado Bolsonaro –, ou mesmo suspeitas perigosas – como ter Dilma vetado os vídeos como moeda de troca com a ban-cada evangélica, visando escudar o agora ex-ministro Palocci.

Ainda que o Congresso não deva, tal como a ideia de representa-ção especular sugere, ser o “retrato fiel” da nação, conservando sua margem de autonomia frente os interesses imediatos da população, deputados e senadores não podem se recusar a se posicionar diante de temas e demandas oriundas da sociedade, sob pena do esfacela-

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A representação e sua surdez

Diogo Tourino de Sousa e Daniela Leandro Rezende

mento do vínculo entre representantes e representados no momento da responsabilização. E as consequências disso vão além da descren-ça em pessoas, abalando, por certo, o sentido das instituições.

Em outras palavras, ou o Congresso reassume o seu papel de protagonista no embate de interesses, superando a passividade e omissão em que se encontra no presente, ou a crescente descrença acerca do seu papel delegará a política ao plano da permanente inu-tilidade, eliminando da agenda a possibilidade de grandes inflexões sobre o futuro e direcionando a representação para formas de mani-festação que prescindem definitivamente do momento eleitoral.

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entre Pinóquio e Hipócrates

Gil Castello Branco

É conhecida a fábula de Collodi e o seu personagem Pinóquio, simpático boneco de madeira que ganhou vida. Após unir-se a más companhias foi salvo pela fada madrinha, sob a condição que o seu nariz aumentasse todas as vezes que mentisse. Seria ótimo que o mesmo acontecesse com as nossas autoridades. Algumas até pos-suem a cara de pau, mas, como o nariz não se altera, fica difícil in-terpretar se falam ou não a verdade.

Há cinco anos, entre as afirmações de Francenildo e as negativas do ministro Palocci – sobre eventuais reuniões de negócios e prazer em Brasília – grande parte dos brasileiros acreditou no caseiro. Jeito caipira, tímido, disse à época, no Senado: “Falar a verdade é fácil; duro é mentir, quando você tem que ficar pensando...”

Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal rejeitou a denúncia con-tra Palocci por insuficiência de provas e responsabilizou unicamente o ex-presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Matoso, pela viola-ção e divulgação de informações sobre a conta bancária do caseiro, embora o principal interessado no vazamento fosse o então ministro.

O ato ilegal pretendia constatar que o serviçal estava sendo finan-ciado por terceiros para incriminar o ministro. Não estava. Ficou sem resposta a clássica pergunta: “A quem interessava o crime?”. Há pouco tempo, quando a Caixa Econômica Federal apresentou sua defesa jurídica e institucional, veio à tona o que todo mundo suspei-tava, ou seja, que a ordem para vasculhar a vida de Francenildo partira do gabinete do então ministro. Mas, já era tarde. Ao menos nesse episódio, Palocci está inimputável.

De lá para cá, ambos seguiram os seus caminhos. O caseiro, de-sempregado, continuou a viver modestamente. O ministro, com vá-rios empregos, perigosamente.

Valendo-se do “valor de mercado” adquirido como ministro da Fazenda, Palocci montou a empresa Projeto, que dava consultorias tão lucrativas quanto misteriosas. Aberta em agosto de 2006, em sociedade com a mulher Margareth, com capital inicial de míseros dois mil reais, a empresa teve a razão social alterada para Projeto

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Entre Pinóquio e Hipócrates

Gil Castello Branco

Consultoria Financeira e Econômica Ltda., em dezembro do mesmo ano. Nesse momento entrou como sócio o economista Lucas Martins Novaes, recém-formado na Universidade de São Paulo e mestrando na Fundação Getulio Vargas.

Mesmo sem funcionários, a Projeto faturava mais que as duas maiores consultorias do ramo, no país. Os contratos continham cláusulas de “sucesso” e confidencialidade. Do faturamento de R$ 20 milhões em 2010, metade foi paga entre novembro e dezembro, quan-do o sócio/médico/deputado/consultor já tinha sido anunciado como o braço direito da nova presidente da República e participava, informalmente, da equipe de transição de governo. Em qualquer país do mundo, os fatos seriam considerados graves e exigiriam respostas rápidas e claras.

O ministro, porém, depois de prolongado silêncio, mostrou-se in-gênuo durante entrevista à TV Globo, na qual tentava salvar sua pele: “Eu não fiz tráfico de influência, como eu provo isso?”

A resposta era simples, ministro. Sendo transparente. Dizendo quais foram os clientes da sua empresa, que tipo de serviço foi pres-tado e quanto lhe pagaram. E, diga-se de passagem, não seria ne-nhum favor a divulgação dessas informações, pois prestar contas à sociedade é dever do homem público.

Por quase um mês, a situação de Palocci paralisou o país. Menos por suas explicações, e mais pelo que não foi dito. À época, o ex-presidente Lula sugeriu que o governo não baixasse a guarda o que não aconteceu com vários integrantes da base política. Aliás, o “fogo amigo” teria começado com a eleição de Rui Falcão para a presidên-cia do Partido dos Trabalhadores, o que representou derrota de Dil-ma e do seu articulador Palocci para o grupo de José Dirceu. Coinci-dência ou não, pouco tempo antes de Palocci virar alvo, matéria divulgada pela revista Veja, sem maior repercussão, envolveu Dirceu em suspeitas de tráfico de influência.

Tenha ou não a denúncia inicial partido de “petistas aloprados”, o fato é que a sociedade assistiu incrédula ao calvário do ministro. O Legislativo não o convocou e satisfez a vontade do Palácio. O Exe-cutivo ficou inerte, justificando que, na ocasião do suposto enrique-cimento, ele não era servidor público. O “mico” foi empurrado para o procurador-geral da República, que mandou arquivar o caso, afir-mando não ter encontrado indícios que lhe levassem a determinar uma investigação a respeito. O assunto sumiu dos noticiários, mes-mo sem ser resolvido. Afinal, todas as dúvidas persistem.

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Conjuntura

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A última esperança de que o imbróglio seja desfeito é a investiga-ção ainda em curso do Ministério Público do Distrito Federal, que está apurando se o enriquecimento de Palocci foi causado por impro-bidade administrativa. Não restam dúvidas que só as cópias dos con-tratos, os comprovantes de prestação de serviços e as quebras dos sigilos bancários de Palocci e de sua empresa esclarecerão os fatos. Saber que as empresas envolvidas pagaram impostos não é suficien-te. A curiosidade de todos é saber o que fez Palocci, deputado/sócio de uma consultoria fajuta com rendimentos de multinacional. A ver-dade precisa vir à tona.

O ex-ministro, por opção, morreu abraçado à sua clientela. Entre a Constituição Federal que jurou e o segredo a respeito de quem lhe pagou, ficou com os empresários. Tal como Pinóquio, não mereceu a segunda chance que lhe foi dada por sua fada madrinha.

Com formação médica, é provável que Palocci tenha seguido à risca o que disse Hipócrates (460-351 a.C.), considerado o maior mé-dico da Grécia Antiga: “Aquilo que, no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto”.

Neste caso, medicina e demissão à parte, a sociedade exige que nada fique em segredo.

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III. observatório

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Autores

José Carlos CarvalhoEngenheiro florestal e ex-ministro do Meio Ambiente, no Governo FHC.

Marco Antônio Tavares CoelhoAdvogado, jornalista, ex-deputado federal, ex-editor executivo da revista do Instituto de Estudos Avançados da USP, além de autor de vários livros, como Herança de um sonho.

Almira Correia de Caldas RodriguesSocióloga e psicanalista, membro do Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo da Sociedade de Psicanálise de Brasília.

Denise PaivaFormada em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora, é consultora em política social e administração pública. Foi assessora especial do presidente Itamar Fran-co, experiência que lhe estimulou a escrever Era outra história – Política social do Go-verno Itamar Franco (1992-1994), publicado em 2009, pela Fundação Astrojildo Pereira.

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O Código Florestal

José Carlos Carvalho

O país está debruçado sobre os debates que ocorrem no Congres-so Nacional a respeito de mudanças que querem introduzir no Códi-go Florestal brasileiro. Como se trata de matéria naturalmente polê-mica, os ânimos estão acirrados e o debate se prolonga sem chance de um acordo, diante de posições inflexíveis e cristalizadas que aca-bam esterilizando a discussão.

É um assunto realmente sério, que deve merecer toda a atenção dos congressistas e da sociedade brasileira, pois o que está em jogo é o patrimônio florestal do país. Por isso, não se está fazendo uma lei para hoje, mas uma lei intergeracional. Infelizmente, o tema está do-minado pelas preocupações de ontem, quando deveria está focado nas premissas do amanhã, já que a cobertura vegetal e as florestas, em particular, são e serão fundamentais para o desenvolvimento sustentável do Brasil, a curto, médio e longo prazos.

Além do intenso debate sobre as áreas de preservação permanen-te (APP) e da reserva legal (RL) que está polarizando o debate, já que as APP são áreas ecologicamente sensíveis, fundamentais para o equilíbrio dos ecossistemas e as RL estratégicas para a manutenção e conservação da biodiversidade, há outros temas que merecem ser analisados mais profundamente, diante da importância deles para o futuro da nação.

Em primeiríssimo lugar, é fundamental observar que embora o Código trate de florestas, não é só de vegetação que ele cuida, razão pela qual surge de forma tão evidente a questão da APP e da RL, uma vez que as florestas guardam uma relação de total interdependência

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Observatório

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com os solos, as águas e a fauna. De fato, não existe floresta sem solo, não existe água sem solo e floresta, e a fauna não existe sem estes três elementos.

Daí porque o uso predatório dos recursos naturais renováveis não deve ser abordado como um problema exclusivamente ecológico, embora os prejuízos ambientais do uso inadequado desses recursos sejam flagrantes. Há considerações de ordem econômica também a ser analisadas, porque as florestas, o solo e as águas, além de recur-sos ambientais, são também recursos econômicos. A destruição des-ses recursos significa, antes de tudo, destruir os fatores de produção do setor agropecuário. Malbaratá-los, agora, implica comprometer a prosperidade futura dos produtores rurais e agricultores e o desen-volvimento da nação a longo prazo.

É comum ouvir o argumento de que a Reserva Legal só existe no Brasil, o que é verdade, e que sua exigência significa um ônus para os proprietários rurais. É um equívoco. Juntamente com as APPs, elas prestam serviços ambientais de extraordinária importância para o país, começando pelos próprios agricultores, como elemento natural essencial para a conservação do solo, da água e como abri-go da fauna. Por outro lado, numa economia cada vez mais globali-zada, em que os mercados estão mais exigentes em relação a produ-tos ambientalmente saudáveis, a RL é uma vantagem comparativa para um país que se tornou grande exportador de commodities agrí-colas. Além disso, temos grande disponibilidade de terras abando-nadas e subutilizadas no processo de produção, algo em torno de 700 mil km², uma área fabulosa, que permite a expansão da produ-ção sem novos desmatamentos e com recuperação das áreas ecolo-gicamente sensíveis.

De fato, a expansão da fronteira agrícola em áreas cobertas com florestas e a existência de terras abandonadas numa extensão tão grande significam, na atualidade, uma das maiores, senão a maior contradição do modelo de desenvolvimento que estamos praticando. É uma irracionalidade total, absurda, incompreensível.

Esta situação impõe a perda de biodiversidade, de solos agricul-táveis e de mananciais de água numa escala alarmante, mesmo para um país de dimensão continental como o nosso. Neste contexto, per-de o meio ambiente e perde a agricultura. O meio ambiente perde em razão de danos irreparáveis provocados à natureza, e a agricultura perde, porque destrói os fatores de produção do seu próprio negócio.

Aliás, uma agricultura que se torna competitiva utilizando preda-toriamente seus fatores de produção é uma agricultura sem futuro,

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O Código Florestal

José Carlos Carvalho

como demonstram as regiões dos Vales do Rio Doce e do Mucuri, em Minas, do Sul do Espírito Santo e do Noroeste do Rio de Janeiro, para citar exemplos geograficamente mais próximos, de como este modelo afeta a economia agrícola com drástica redução da produtivi-dade, do mesmo modo que afeta o meio ambiente, ao degradar as bacias hidrográficas e devastar os ecossistemas.

Na prevalência deste modelo anacrônico de produção, nós esta-mos subsidiando a agricultura brasileira com o nosso capital natu-ral, numa total demonstração de miopia estratégica e infantilismo político. Este modelo poderá nos fazer a quinta economia do mundo nas próximas décadas e, muito provavelmente, a quinquagésima, no fim do século. Por esta razão, ao definir o novo Código Florestal não estamos tratando apenas dos interesses ambientais do Brasil, mas, com igual importância, do sucesso e da sustentabilidade de nossa agricultura.

Graças ao talento profissional do ex-ministro Alysson Paulinelli que idealizou a criação da Embrapa, o Brasil já desenvolveu e está desenvolvendo tecnologias agrícolas tropicais que permitem ao nos-so país praticar uma agricultura baseada no uso sustentável dos recursos naturais, sem a necessidade de insistir no modelo ultra-passado que levou vastas regiões brasileiras à decadência econômi-ca e que já viveram a prosperidade que fazem o progresso de outras regiões, principalmente no Centro-Oeste. Por isto é que estamos vivendo este falso dilema, que dificultou a missão do deputado Aldo Rebelo em encontrar uma proposta contemporânea para a Lei Flo-restal brasileira.

Com relação ao substitutivo propriamente dito do relator algumas questões centrais estão passando ao largo das discussões. A primeira e a mais importante delas está na concepção da própria lei. A propos-ta sob exame dos congressistas repete os mesmo vícios de origem das leis anteriores, isto é, continua baseada exclusivamente nos mecanis-mos de comando e controle do Estado, sem criar instrumentos reais e efetivos de fomento para conservação. Quando se trata de controle e fiscalização, o projeto de lei é mandatório e quando aborda a questão crucial dos incentivos econômicos é meramente declaratório. Isto é, atenua as ações de controle e fiscalização, mas não define com preci-são os incentivos para recuperar o que já foi detonado no passado, principalmente, para a agricultura familiar, fazendo recair sobre os agricultores os mesmos ônus da lei atual. O agricultor familiar que não tem condições de recompor sua APP de 30 m continuará sem con-dições econômicas de recuperar a faixa de 15 m.

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Observatório

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Se parte das APPs e RL foi desmatada com o financiamento do Estado, como arguem corretamente lideranças do setor agropecuá-rio, nada mais natural que o Estado financie a recuperação destas áreas. Até porque, como bem define a legislação florestal brasileira, desde 1934, as florestas e demais formas de vegetação existente no território nacional são bens de interesse comum do povo. Ora, se são bens de interesse coletivo, é justo que a coletividade participe direta-mente do esforço de recuperação que a incúria do passado legou às presentes gerações e que se agravarão no futuro, se nada for feito na atualidade. No caso da agricultura familiar, a solução ideal não está em desobrigá-la de manter as áreas necessárias à conservação, mas apoiá-la para reconstituir estas áreas a longo prazo, de tal maneira que esta obrigação não reduza ainda mais os padrões de renda já baixos dos pequenos agricultores.

Na verdade, é o intensivo uso predatório dos imóveis rurais no pas-sado, sem observância da lei e das práticas recomendadas de conser-vação do solo e água, com cultivos e criações de baixa produtividade que criaram o quadro de crise que estamos vivendo hoje. Os Vales do Rio Doce e Mucuri em Minas, regiões tradicionalmente ocupadas com a pecuária, chegaram a suportar 2,8 unidades animal por hectare, no auge da ocupação há 50 anos, e hoje, com a destruição dos recursos naturais, incluindo a devastação da Mata Atlântica, a bovinocultura atinge, em média, 0,6 unidade animal, no mesmo hectare, isto é, uma redução de quase 5 vezes. Neste caso, como é comum ouvir dizer que o meio ambiente atrapalha a agricultura, é de se perguntar: quanto custa não proteger o meio ambiente para a agricultura?

Outro ponto crucial, normalmente ignorado no Brasil, diz res-peito às leis de norma geral, como é o projeto do Código segundo definição encontrada logo no seu art. 1o. No nosso sistema federati-vo, a lei de norma geral, como define o mandamento constitucional da competência legislativa concorrente, deveria remeter, aos esta-dos membros da União, as normas especificas. Mas não é o que ocorre, já que o PL é um misto de norma geral e normas específicas, a ponto de disciplinar detalhadamente como deve ser feito um Pla-no de Manejo Florestal Sustentável, iniciativa inteiramente técnica que poderia ser disciplinada pelo órgão ou entidade responsável pela sua aprovação.

Todavia, a tendência de transformar lei de norma geral em lei es-pecifica é um dos problemas enfrentados pelo Congresso Nacional, diante da exacerbada dificuldade de harmonizar as diferentes reali-dades regionais numa única norma, como ocorre no caso presente. A lei nacional é simétrica por definição, mas sua aplicação se faz

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O Código Florestal

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numa federação e num território totalmente assimétricos, com pecu-liaridades distintas e, por vezes, antagônicas. Eis aí a causa princi-pal da dificuldade em obter o necessário consenso em torno do tema e de outros assuntos de dimensão nacional que são submetidos ao exame do Congresso Nacional. Embora as lideranças do governo e da oposição digam que já há consenso sobre 98% do substitutivo, é im-portante lembrar o saudoso presidente Tancredo Neves que já nos ensinou que, em política, 1% pode ser mais que 99%. As dificuldades em votar o projeto de lei demonstram que ele tinha razão.

Fica claro, mesmo para os leigos, que é praticamente impossível produzir uma norma legal adequada aos seus objetivos, em relação a este tema, sem regras de caráter específico, que possam capturar e dar tratamento às peculiaridades locais e regionais, levando em con-ta as realidades dos nossos diversos biomas, os ecossistemas que os compõem e as diferentes bacias hidrográficas que drenam o territó-rio. Contudo, como os biomas se espalham por mais de um estado, a melhor solução não está em remeter às unidades federadas a legisla-ção complementar, mas estabelecer no âmbito do próprio Congresso, leis especificas por biomas, como, aliás, já ocorreu com a Mata Atlân-tica, por iniciativa à época do então deputado Fábio Feldman.

Desta forma, a solução recomendável no atual cenário político, seria aprovar a atualização possível do Código Florestal, sem retro-cessos que descaracterizem os fundamentos que vêm sendo erigidos desde a lei de 1934, adotando a moratória dos desmatamentos por 5 anos, como originalmente previsto pelo relator, com a obrigação do Congresso Nacional votar leis especificas para os biomas da Floresta Amazônica, do Cerrado, do Pantanal e da Caatinga, dentro deste pra-zo. Esta solução evitaria que os estados, como Minas Gerais, no uso e no limite de sua competência constitucional concorrente, sejam instados a elaborar suas próprias leis, tratando de biomas comparti-lhados com outros estados, para atenuar os conflitos que giram em torno do tema e que tumultuam o processo de governança do setor e a gestão ambiental das florestas e da biodiversidade.

É preciso reconhecer a necessidade de dar às Áreas de Preserva-ção Permanente tratamento compatível com o uso antrópico consoli-dado, historicamente, considerando o horizonte temporal de uso do solo agrícola no Brasil, principalmente com o objetivo de descrimina-lizar o uso de boa fé feito no passado. Este é um ponto que precisa ser enfrentado com coragem e bom senso, dando à agricultura fami-liar tratamento especial, em razão das condições socioeconômicas dos pequenos agricultores.

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Quanto à Reserva Legal, é difícil compreender que se adote agora a sua inexigibilidade, já que é uma obrigação estatuída desde o Có-digo de 1934, ratificada em 1965 e em 1989, em todas as ocasiões pelo Congresso Nacional, e não por Medida Provisória, como se tenta arguir na atual etapa dos debates. É sempre bom lembrar que a obri-gatoriedade da recomposição da RL também foi adotada por lei de iniciativa congressual, através da lei agrícola com apoio das banca-das partidárias vinculadas ao setor agropecuário. Ora, isto significa que o substitutivo do deputado Aldo Rebelo é uma contradição histó-rica, uma negação do papel histórico do Parlamento brasileiro, um lamentável retrocesso que não honra a biografia do relator e depõe contra conquistas inalienáveis da nação brasileira, obtidas exata-mente pela clarividência e pela contemporaneidade de parlamentares que nos idos de 1934, 1965 e 1989, há quase 80 anos, deram ao Brasil um estatuto jurídico fundado no sentimento de pátria, que não deve faltar agora.

Isto não significa que esta posição de vanguarda, historicamente afirmada e reafirmada no Congresso, deixe de considerar questões especificas como a da agricultura familiar, por razões socioeconômi-cas. Mas, esta realidade não justifica a visão reducionista e a decisão simplista de se abolir a Reserva Legal. Há outras alternativas e ou-tros caminhos a ser explorados, que podem assegurar a recomposi-ção destas áreas, mediante financiamento e assistência técnica pro-porcionada pelo Poder Público, sem sua súbita eliminação, mais uma vez sem comprometer a renda dos agricultores familiares.

Uma das hipóteses a considerar poderia ser a adoção de uma escala progressiva de redução da RL de 4 módulos fiscais para me-nos, condicionando a recomposição ao apoio efetivo do Poder Públi-co, no âmbito do Programa de Regularização Ambiental (PRA) defini-do no próprio substitutivo, estabelecendo mediante motivação edafo-climática, biológica, hídrica e geológica as áreas prioritárias de recomposição das RL. Isto significa que a recomposição só poderá ser cobrada da agricultura familiar se viabilizado o apoio do Poder Público. Caso contrário, o pequeno agricultor continuaria dispensa-do da obrigação de recompor, recaindo sobre os governos a respon-sabilidade de sua omissão.

Outra questão relevante sobre o tema da RL diz respeito aos as-pectos locacionais. Mais uma vez, o PL mantém a propriedade rural como a célula da reserva legal, oferecendo o bioma como opção na ausência de alternativa local. Embora polêmica, esta decisão precisa ser pensada na ótica da bacia hidrográfica. Definir a RL na proprie-dade, principalmente em regiões de estrutura minifundiária, é um

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O Código Florestal

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erro técnico e estratégico, pois o máximo de conservação a ser obtida será um retalho de pequenas áreas, um conjunto de fragmentos su-jeito ao efeito de borda, condenados ao desaparecimento, sem ne-nhuma serventia para a estratégia de conservação da biodiversidade, principalmente como corredores de conectividade para assegurar o fluxo gênico da flora e da fauna e como cobertura essencial à prote-ção de mananciais e cabeceiras de córregos e rios de ordem inferior até o rio de primeira ordem. Neste caso, a bacia hidrográfica é a me-lhor referência espacial para a localização dessas reservas.

As entidades que integram o movimento Diálogo Florestal, reu-nindo organizações ambientalistas e da iniciativa privada, apresen-taram um documento baseado em 16 pontos que constitui um bom eixo para orientar as negociações das partes interessadas visando a romper o imobilismo e criar as condições políticas que permitam um grande entendimento nacional sobre o futuro das nossas florestas.

Muita critica tem sido feita ao substitutivo do Código Florestal que tramitou na Câmara dos Deputados e agora está no Senado, em razão do debate acirrado entre ruralistas e ambientalistas, que pra-ticamente, como seria natural, monopolizam o debate, ao discutir as falhas do projeto segundo o pensamento dominante de cada um des-ses segmentos. Todavia, torna-se necessário considerar que este PL não pode ser elaborado para ambientalistas e ruralistas, ele tem que ser elaborado para a nação, principalmente para a maioria silenciosa e indiferente que sequer percebe que o Congresso está decidindo o seu futuro e o futuro dos seus filhos.

Por isso, é necessário criticar o substitutivo também pelas quali-dades que ele não tem. E, certamente, uma das lacunas desta inicia-tiva legislativa diz respeito à ausência de instrumentos econômicos mandatórios para assegurar que os pequenos agricultores terão as condições necessárias para fazer o seu papel, ao lado dos médios e grandes. Em 2002, foram criados dois instrumentos econômicos im-portantes para estimular o reflorestamento e a recuperação de áreas degradadas, o Pronaf Florestal e o Propflora, duas linhas de crédito com prazo e carência compatíveis com as atividades florestais. Pas-sados nove anos, nada se fez para aprimorar e ampliar estes instru-mentos e adotá-los como ferramentas importantes para fomentar a conservação e o uso sustentável das florestas no Brasil.

Outra lacuna está relacionada com o silêncio do substitutivo no que pertine as instituições florestais e ambientais encarregadas de colocá-lo em execução. Com exceção de meia dúzia de estados, os demais, incluindo a União, não estão preparados para assumir as

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competências que o projeto de lei está lhes atribuindo, em virtude, entre outros pontos, da gratuidade justificada que a proposta assegu-ra aos agricultores familiares. O PL ignora a necessidade de fortale-cimento institucional dos órgãos e entidades florestais e ambientais que lidam com a matéria. Só em Minas Gerais são mais de 300 mil-propriedades a ser atendidas. Pela toada em que estamos, o proble-ma continuará praticamente do mesmo tamanho. Restam novamen-te o controle e a fiscalização. E que os órgãos e entidades ambientais não venham a ser novamente amaldiçoados, pela incapacidade ope-racional de atender a esta nova demanda.

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o brasil e o terrorismo

Marco Antônio Tavares Coelho

No mês de abril último, a mídia deitou e rolou sobre o caso de Osama bin Laden. No entanto, poucos foram os comentários a res-peito das opiniões no Brasil sobre o terrorismo. Apenas de raspão houve referências ao apoio, direto ou indireto, de personalidades brasileiras às Farc da Colômbia e o respaldo a países que abertamen-te apoiam o terrorismo como meio de luta contra os Estados Unidos e os países da Otan.

Em certos comentários foram mencionadas declarações favorá-veis do ex-presidente da República, Lula da Silva, a países que com-batem os norte-americanos com ações claramente terroristas (os ca-sos da Líbia e do Irã foram os mais notórios). Na verdade, Lula sempre vacilou entre uma simpatia aos que praticam atos terroristas e a conveniência de não assumir uma clara oposição aos Estados Uni-dos e seus parceiros. Portanto, Lula “navegou” entre as correntes que pressionam os governantes brasileiros, ora num sentido ora em ou-tro. Enfim, uma concordância favoravelmente discreta diante de ações terroristas no plano mundial.

No que se refere à presidente Dilma Rousseff, até agora ainda não assumiu uma posição clara e consequente sobre a questão. Atribui-se essa atitude ao dado compreensível dela pretender não destoar da herança que recebeu da política de Lula. Então, até agora ela tam-bém ora dá uma martelada num cravo ora assume posição diversa.

Assim, é interessante pesquisar porque o Brasil continua na du-biedade em relação ao terrorismo, quando a vida vai impondo uma atitude nítida, pois esse tema tornou-se, infelizmente, um problema internacional prioritário. Ou seja, é de pouca valia girar em torno das inconsequências dessa ou daquela personalidade, pois envolve a re-corrência a uma velha polêmica na realidade internacional e brasilei-ra. Controvérsia acirrada que se espraia nas realidades nacionais, so-bretudo quando nesse ou naquele país há situações de perplexidade.

Sem pretender um exame internacional aprofundado do tema, recorde-se apenas o intransigente repúdio de Marx às teses dos se-guidores do anarquismo (quase sempre incorporando ações terroris-

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Observatório

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tas), que então grassava por vários países com maior ou com menor força, em consequência de variados fatores.

Geralmente a adesão a práticas terroristas tem uma nítida tendên-cia a ultrapassar as fronteiras de um país, como uma curiosa demons-tração da globalização na vida política. É indiscutível, portanto, que a adesão a práticas terroristas ganha apoio além das fronteiras desse ou daquele país quando se aguçam pleitos nacionais, étnicos, religiosos ou tão só tribais. Na maioria dos casos, o recurso ao terrorismo nunca foi uma atividade restrita no âmbito de um combate contra a arbitra-riedade localizada num determinado país, ou como um ataque à re-pressão num país a minorias nacionais oprimidas.

Ao mesmo tempo, a maior adesão a práticas terroristas tem um terreno fértil quando os que governam recorrem a regimes arbitrá-rios, sem o mínimo respeito a normas democráticas de convivência. No entanto, essa não é uma regra geral, porque quando a arbitrarie-dade é assustadoramente eficiente, sem qualquer limite, as manifes-tações de terrorismo são esmagadas (Aí está o acontecido no nazismo e nos dias de chumbo do regime stalinista). De qualquer forma, esse dado nos permite asseverar que um regime de caráter democrático é a melhor vacina contra a expansão do terrorismo, pois lhe retira al-gumas justificativas diante da população.

dados novos sobre o terrorismo

O fato decisivo e fundamental é que a ação terrorista é internacio-nal, assumindo o caráter de uma luta contra uns poucos países que massacram dezenas de povos e nações. O grande adversário no mo-mento são os Estados Unidos, o Grande Satã, como definiram os fer-vorosos partidários da “Jihad”, a guerra santa de forças muçulmanas localizadas em vários países do Oriente Médio, da África, da Ásia, além de minorias árabes em países europeus e inclusive nos Estados Uni-dos. É certo que há elementos de ódio à pérfida Albion e ao colonialis-mo da França, ambos promotores mais desabusados do colonialismo no século 19. Felizmente foi uma opressão historicamente curta o acontecido nos países ocupados pelo eixo Berlim, Roma e Tóquio.

Em diversas situações, eventos terroristas contribuem para gerar simpatia em favor dessa causa, notadamente quando ocorrem em países distantes, ou naqueles em que são desconhecidas as conse-quências negativas desses procedimentos. Não por acaso é comum na televisão aparecer visões favoráveis a protagonistas de atos terro-ristas em tempos remotos ou em regiões distantes. Mas também, não

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O Brasil e o terrorismo

Marco Antônio Tavares Coelho

por acaso, embora já tenham passados dez anos desde a destruição das torres gêmeas em Nova York, nenhum produtor ou cineasta atre-veu-se a “justificar” aquela loucura criminosa de 11 de setembro de 2001, que provocou um morticínio de três mil norte-americanos.

Examinando a posição dúbia dos governantes brasileiros não nos esquecemos do famoso libelo de Eduardo Prado, A ilusão americana, lançado em 1883. Mas essa motivação tem uma relação direta com a política praticada no dia a dia pela administração que flui da Casa Branca e notadamente dos píncaros de Wall Street. Alguns de seus líderes, sem recorrer a um elenco de figurões, justificam nosso pé atrás diante dos Estados Unidos (notadamente os Bush) que só con-tribuíram para essa animosidade

Na verdade, só durante a fase que antecedeu a segunda guerra mundial e no curso da confrontação bélica teve início no Brasil uma visão favorável aos Estados Unidos. Mas, ao lado disso, é um dado indiscutível a admiração generalizada ao cinema e à música norte-americanas, sendo mesmo um fervor o culto entre nós pelo “jazz” e o “pop”. Cultivamos essa cultura – expressada num Marlon Brando, num Norman Mailer, num Armstrong – considerando um dado mar-cante nesse panorama a presença de um Carter, um Clinton e man-temos a esperança na plataforma de Barak Obama.

Não estendemos, na análise desprimorosa dos Estados Unidos e o fato de abominarmos sua política aos que vivem naquele país, à gente alegre, inteligente e que se aglutina em centenas de ONGs sempre dis-postas a ajudar os desafortunados existentes na grande maioria dos países. E inscrevo-me nas fileiras dos que pensam que o futuro do mundo está sendo jogado nos Estados Unidos e para tanto é de fun-damental importância estarmos atentos ao seu povo, à evolução de seu comportamento político, a fim de que possamos abrir caminhos para um acordo com seus setores progressistas e realmente democrá-ticos (Entenda-se como tais os lá apresentados como “liberais”).

Aos que se aferram à aversão zoológica aos Estados Unidos, digo que, nas últimas sete décadas, já presenciei mudanças radicais no cenário internacional, como a aliança antifascista, o que nos levou a prestar grandes homenagens a Franklin Delano Roosevelt, por oca-sião de seus funerais. Por isso, alertamos contra análises primárias e não proclamo qualquer tipo de subordinação ao Departamento de Estado. Pretendo apenas deixar clara a tese de que podem e devem acontecer mudanças básicas na realidade internacional.

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Observatório

Política Democrática · Nº 30

A reação dos estados unidos

Assim, devemos ter os olhos abertos á realidade atual do grande país do norte, avaliando cuidadosamente os prenúncios do que ali está ocorrendo. Justificamos seu repúdio visceral ao terrorismo, em-bora discordando de algumas medidas tomadas no caso de Bin La-den. Nesse clima depressivo, são lamentáveis medidas inaceitáveis como a execução sumária desse lider do terrorismo sem a audiência de um juizado internacional (nos moldes de realizado em Nuremberg) e a violação da soberania do Paquistão.

Por isso, apoiamos o voto brasileiro na ONU de não endossar me-didas bélicas agressivas propostas pelos Estados Unidos e os países da Otan. Mas entendemos como um dado inarredável o clima que motivou uma mobilização profunda no cenário político desse país. Mobilização comparada ao revide ao Japão pelo ataque contra a frota naval ianque em Honolulu, fato que determinou a participação nor-te-americana na última guerra mundial.

O terrorismo internacional trouxe um incalculável prejuízo às for-ças que dentro dos Estados Unidos se opõem a uma reformulação de suas atividades belicistas e imperialistas. Daí, ao invés de batermos palmas aos terroristas e às nações que estimulam a expansão das armas nucleares, devemos combater sem dubiedade atos terroristas e a ação de alguns governos que, imersos no desejo de vingança con-tra o imperialismo norte-americano, não contribuem para uma mu-dança radical na situação do mundo.

Nesse quadro, vê-se que a política dos Estados Unidos vai evoluin-do num clima de crise econômica interna, na perda de sua posição como superpotência incontrastável no mundo, desde que houve a fa-lência da União Soviética e a difícil situação na esquerda mundial. Ao lado disso, evidencia-se a perda de seu poderio quando o panorama é marcado pelo crescimento da China e o desenvolvimento rápido de um grupo de países chamados de emergentes. Assim, generaliza-se o en-tendimento de que muitos países não mais rezam pela cartilha de Washington. Ademais, os Estados Unidos são testados pelo que suce-de no Oriente Médio e pelo receio de perder o fornecimento de petróleo, artigo essencial para o “modus” de vida dos norte-americanos.

Entretanto, apesar desses dados negativos, a América do Norte ainda dispõe de um potencial econômico, financeiro e militar que é decisivo para a evolução internacional. Disso decorre o entendimento da necessidade de acompanharmos atentamente o que ali ocorre, buscando canais para um acordo mundial baseado em três objetivos essenciais: primeiro – repúdio à política e à economia norte-america-

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O Brasil e o terrorismo

Marco Antônio Tavares Coelho

na nocivas à necessidade do desenvolvimento do conjunto das na-ções, particularmente das mais atrasadas; em segundo lugar, traçar os caminhos que resultem numa “entende cordiale” das forças demo-cráticas e progressistas do mundo com os Estados Unidos e aliados, tendo como motivação básica a causa da paz, a autonomia e o pro-gresso dos países e povos mais pobres, sendo inconcebível as limita-ções aos que desejem emigrar; finalmente, cumpre executar um con-junto de medidas essenciais à existência da vida no planeta, enfatizando a necessidade de uma mudança radical no comporta-mento face à Natureza.

Temos plena noção de que apresentamos aqui um sonho semiutó-pico, mas não é assim que devemos agir? Ou vamos cruzar os braços diante desses obstáculos? Aos nossos netos, como poderemos justi-ficar a passividade diante da insensatez?

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Sofrimento, violência e loucura

Almira Correia de Caldas Rodrigues

A tragédia de 7 de abril na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, no Rio de Janeiro, tocou o país e ganhou notoriedade in-ternacional. Um jovem de 23 anos entra na escola em que estudou por vários anos, mata 12 adolescentes e deixa outros dez feridos; baleado pela polícia, suicida-se. A violência choca a todos, principal-mente pelo fato de que: as vítimas são crianças; o assassinato foi em massa e aconteceu em uma escola; não existe relação direta entre o agressor e as vítimas; o ato cruel ficou exposto e visível.

A dor das famílias atingidas pelo ato insano é uma dor de todos nós. Impossível não nos perguntarmos: Por que? A tragédia poderia ter sido evitada? Temos condições de nos prevenir para que outras semelhantes não ocorram? Como elaborar o trauma das crianças que sobreviveram e das famílias enlutadas?

Essa tragédia, infelizmente, condensa tantas outras que ocor-rem cotidianamente no Brasil. Crianças morrem todos os dias por falta ou precariedade de atendimento de saúde e de segurança pú-blica, e também pelas chamadas “balas perdidas”. Jovens são pri-vados de oportunidades de estudo, trabalho e cultura e encontram na marginalidade uma forma de sobrevivência.

Afora a violência institucional, a violência entre pessoas atinge níveis extremos: violência doméstica contra crianças e idosos; vio-lência contra mulheres – estima-se que mais de 2 milhões sejam espancadas anualmente no país; violência sexual de adultos contra crianças e adolescentes, especialmente meninas. Uma das feições da violência interpessoal é a mortalidade por causas violentas, en-tre pessoas do sexo masculino, na faixa etária dos 15 aos 39 anos – quase 500 mil mortos, entre 1995 e 2008, no Brasil.

Cabe apontar, ainda, as agressões sofridas por diversos grupos sociais, perseguidos e destratados pela condição de sexo/gênero, sexualidade, étnicorracial, regional/nacionalidade, condições físi-cas e mentais.

Como sobreviver a tanta violência, dor, indignação e impotência? Que marcas as pessoas estão acumulando? Onde e como buscar re-

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Sofrimento, violência e loucura

Almira Correia de Caldas Rodrigues

cursos para seguir e construir projetos pessoais e coletivos? São questões complexas que a psicanálise pode nos ajudar a refletir.

Ademais, podemos traçar um paralelo entre o mecanismo da psi-cose e o funcionamento da sociedade. Na psicose, algo que não foi simbolizado no espaço psíquico é projetado para a realidade externa e volta como alucinação ou delírio. Em relação ao espaço social, aqueles que não são integrados no sentido socioeconômico e cultural podem retornar com violência e ódio contra a sociedade que os ex-cluiu, algo como uma “loucura social”. No entanto, o caminho do sofrimento que se desdobra em violência e loucura não precisa impe-rar. Pode ser modificado pela abertura de canais de expressão e transformação do sofrimento, que, embora íntimo, pode ser compar-tilhado e ressignificado.

A psicanálise, enquanto um tipo de conhecimento e de psicotera-pia, pode contribuir para as pessoas se conhecerem melhor e se de-frontarem com suas partes cruéis e excluídas; resgatarem e desen-volverem seus recursos perdidos, fragilizados ou pouco desenvolvidos; crescerem emocionalmente e desenvolverem ações criativas e res-ponsivas em relação a si próprias e aos outros.

Diz-se que o século 21 será o século em que os estados depres-sivos vão se generalizar e ultrapassar todos os demais motivos de falta ao trabalho. Enfrentar a apatia, a impotência, a insegurança, o desamparo, a amargura é um eterno desafio para os humanos que se intensifica em tempos pós-modernos. E o psiquismo/saúde mental não tem merecido a atenção necessária dos poderes e das políticas públicas nem das instituições particulares. Os planos de saúde pri-vados são pouco efetivos para custearem qualquer psicoterapia. As famílias não contam com atendimento necessário de atenção à saúde mental, e a escola, lugar privilegiado de formação existencial, tampouco tem as condições adequadas para identificar dificuldades e transtornos de jovens, e oferecer-lhes apoio e/ou encaminhamento.

Enfim, urge que Estado e sociedade reconheçam essas lacunas e empreendam esforços visando a expandir a atenção em saúde men-tal e a considerar a dimensão de subjetividade nas políticas públicas e intervenções sociais. Nesse rumo estaremos avançando na cons-trução de sociedades mais democráticas, justas e acolhedoras.

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Resgatando o Programa nacional Paz na escola

Denise Paiva

Como promover a escola como lugar seguro, ao cuidado, à socia-lização, à construção do saber, à preservação da vida e da felicidade?

A resposta não está no vento, nem nos muros, nem dos detecto-res de metais, nem do aparato polícial. A resposta está numa cultura de paz e de direitos humanos.

O governo Fernando Henrique, sob a inspiração/decisão do mi-nistro José Gregori, criou, em 1999, no âmbito da Secretaria Nacio-nal de Direitos Humanos, o Programa Nacional Paz na Escola.

O programa fomentou uma rede de parcerias, com instituições públicas e privadas e atores sociais capazes de transformar a escola num espaço de promoção da paz e da cidadania. Centenas de inicia-tivas, projetos, ações formataram o Programa em todo o país, com estímulo financeiro e com uma linha metodológica e uma concepção filosófica tendo como antídoto da violência a solidariedade, a coope-ração, o respeito, o afeto, o cuidado e o amor.

Onze anos se passaram e a assertividade desta concepção se mostra viva e presente na forma como a sociedade brasileira deve buscar enfrentar a violência no cotidiano das escolas.

Lições emergem das experiências práticas que devem ser trazidas à luz, para orientar, cada vez mais o investimento social público e privado a contribuir efetivamente para o desenvolvimento do país, atuando junto à juventude, fazendo-a protagonista do seu próprio bem viver, fazendo-a empunhar as bandeiras da paz e do desenvolvi-mento sustentável.

Promover sinergias de forças propulsoras da paz foi a grande es-tratégia do Programa, descobrindo tais forças na experiência do es-porte, dos grêmios, da polícia solidária, nos Parâmetros Curriculares de Ètica e Cidadania do Ministério da Educação, nas associações comunitárias, nas artes, enfim na gama de expressões concretas que exprimem o compromisso e o amor à vida e à felicidade.

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Resgatando o Programa Nacional Paz na Escola

Denise Paiva

Estratégias que somadas consubstanciam as relações democráti-cas dentro da escola e da escola com a comunidade e fortalecem a construção da democracia no concreto e no cotidiano.

Abrir a escola no sentido material e simbólico é o caminho mais adequado para transformá-la num espaço de paz e de atração para os jovens.

Romper com os muros de ferro, cimento e sobretudo os muros pedagógicos e da intolerância é dever de todos, é tarefa impostergável na agenda do século XXI, que todo dia nos impõe uma reflexão e uma tomada de decisão pela barbárie ou pela civilização.

Iluminar as quadras, e efetivar esporte à noite, é receita compro-vadamente eficaz que diminuiu índices de criminalidade e rivalidade entre gangues juvenis, não só em Nova Iorque mas nas cidades saté-lites do Distrito Federal, através do emblemático Projeto Esporte à Meia-Noite, criado em 1999, por uma corajosa policial chamada Aldadei Filha.

Difícil, para não dizer quase impossível, citar nomes. Foram muitos!

Foram 107 projetos em todo o país, quarenta parceiros institucio-nais, para execução na ponta, instituições consolidadas que permiti-ram um desenho inédito ao projeto e uma multiplicidade de iniciati-vas pautadas nas linhas mestras do programa: mobilização social; ampliação das ações da sociedade civil complementares à educação formal; construção de uma nova relação polícia-escola; difusão da temática Paz na Escola com processos amplos de comunicação so-cial; produção de conhecimento e informações sobre violência e cul-tura de paz.

As metodologias de intervenção, privilegiaram o que chamamos de construção coletiva, daí a importância das rodas de conversa, das oficinas de desconstrução da violência, dos cartazes que retiraram a letra “r” da palavra arma, para transformá-la em ama; da criação dos mais diferentes espaços para abordagem do tema na sua ampla di-mensão e complexidade.

A violência, e a não violência, flui na vida e integra a saúde men-tal e reprodutiva, o esporte, a carreira, o lazer, enfim o conjunto de bens, aspirações e realidades que perpassam a vida dos jovens.

Hoje, ao debruçar sobre os relatórios, pelas conversas com par-ceiros e avaliadores e substancialmente com a equipe que acompa-nhou o nascimento e o desenvolvimento do programa de 1999 a

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Observatório

Política Democrática · Nº 30

2005, até quando tive uma posição gerencial de destaque em relação ao mesmo, pudemos dizer que aprendemos:

l) A intersetorialidade, respeitando competências próprias e espe-cificidades culturais dos vários parceiros, promove robustas ações conjuntas;

2) Quanto maior for a autonomia dada aos núcleos de decisão para gerir recursos maior será a capacidade de consolidar e articular novas parcerias e novos atores;

3) Redefinidas as regras de uma escola, de forma democrática, aguça-se o sentimento de pertencer e o compromisso com o acordo coletivo, portanto são maiores as possibilidades de su-cesso de uma cultura de paz.

4) Para superação do discurso comum sobre violência que acaba por aumentar o medo e a segurança, e reforça o padrão que violência se combate com mais violência, há uma mudança ra-dical nos temas que mediam a relação educativa na promoção de uma cultura de paz. Temas privilegiados são: Estatuto da Criança e Adolescente, saúde reprodutiva e direito a uma se-xualidade saudável, relação da escola com a comunidade; dro-gadição, violência sexual e doméstica, diversidade de gênero, raça, orientação religiosa e sexual; direitos humanos no coti-diano, como exemplos. A diversidade de profissionais, com for-mações diferentes e a integração entre o saber especializado a experiência popular, assegura maior riqueza e efetividade aos processos de educação pró-cultura de paz.

5) Escutar o jovem, através de instrumentais de pesquisa que deem conta do seu universo complexo e sua linguagem muito própria e muito dinâmica. Muitas dessas expressões foram transformadas em peças de arte, como roteiros de vídeos e músicas.

6) A desconstrução da violência e a implementação de uma cultu-ra de paz exigem uma pedagogia ativa, com táticas e estraté-gias; um planejamento com metas de curto, médio e longo pra-zos. As responsabilidades pela vida e pelo rumo da escola são compartilhadas por todos, tanto pelos agentes da escola, da família, como da comunidade.

Existem caminhos para a desconstrução da violência nas escolas, basta ter olhos para ver e disposição para agir coletivamente.

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Iv. Batalha das ideias

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Autores

Fabrício MacielDoutorando em Ciências Sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora e na H S Frei-burg, Alemanha.

Ruszel Lima Verde CavalcantePromotor de Justiça, especialista em Relações Internacionais pela UnB; mestre em Direito Internacional Econômico pela UCB; doutorando em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa.

Giovana F. M. Nunes SantosMestre e doutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), advogada e professora.

Guiomar Oliveira PassosDoutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí.

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Existe uma “sociedade do conhecimento”?

Fabrício Maciel

Vivemos uma época na qual o tom do panorama político e econô-mico mundial é o de celebração da mudança. Como nunca antes, o Brasil desponta, na mídia mundial, ao lado de nações como China e Índia, entre as mais promissoras “potências emergentes”. Já se fala que o futuro do capitalismo e da humanidade pode ser visto a partir destas nações. Um influente sociólogo alemão anunciou profetica-mente o perigo da “brazilização do Ocidente”.1 Nas ciências sociais dominantes no mundo, presenciamos o anúncio profético de vários “fins”. São eles: fim das sociedades de classe, fim do socialismo real, fim das grandes narrativas, fim das ideologias, fim das estruturas rígidas de estratificação e dominação social, fim das interpretações macroestruturais, fim da ordem mundial bipolar, fim da hegemonia dos grandes centros políticos e econômicos, fim da polarização cen-tro-periferia e fim das sociedades “do trabalho”.

O mesmo tipo de alarde apocalíptico parece guiar a definição atual de uma época “pós”. Os paradigmas dominantes na ciência social mundial e os discursos dominantes na esfera pública mundial são marcados pela indefinição como definição. Vivemos uma época sobre a qual a melhor coisa que temos para falar é que temos muito pouco para falar. Já se anunciou o pós-moderno, o pós-nacional, o pós-colonial, o pós-social e até o pós-humano. Em meio a toda esta nova doutrina de uma “era de transição”, algumas perspectivas até se apresentam potencialmente esclarecedoras. Entretanto, o mais im-

1 Ver Ulrich Beck, The brave new world of work, 2000..

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Batalha das ideias

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portante é que a combinação “fim-pós” já se tornou o discurso domi-nante de nossa época sobre ela mesma. O filósofo francês André Gorz (2004) esboçou o parecer de que “saímos de uma sociedade do traba-lho e não colocamos nada em seu lugar”. Em geral, parece que pode-mos aplicar a mesma lógica: saímos de uma ideia de sociedade mo-derna e nacional, ou até mesmo de uma ideia de sociedade, no caso de teorias mais radicais, para não colocarmos nada bem definido em seu lugar. Ao mesmo tempo, apenas se esboça, mas não se desenvol-ve, a ideia de uma sociedade mundial.

Este panorama geral sugere, ao mesmo tempo, um novo mundo no qual as estruturas e as relações sociais são mais opacas, fluidas, complexas e menos rígidas, hierarquizadas e verticalizadas. Trata-se da horizontalidade da vida no horizonte das ideias. A ideia geral de um mundo mais complexo, na ciência, parece encontrar uma afini-dade direta com a ideia de um mundo mais democrático, na econo-mia, na política e na vida social. O tom geral de nosso tempo é de esperança. Esta é a época de um negro no poder da nação mais rica do mundo, e de uma mulher sucedendo um brasileiro nordestino, no governo brasileiro, no momento em que o Cone Sul do mundo faz sua virada no tabuleiro das forças econômicas e políticas internacionais. Esta é a era dos acordos, dos tapinhas nas costas, e não da guerra no sentido mais tradicional, ainda que estas permaneçam ocorrendo pontualmente no mundo inteiro. Na mídia mundial, os apertos de mãos são mais evidentes do que os apertos de gatilhos. O anúncio de uma “nova ordem multipolar”, que já completa duas décadas, é inci-sivo na sugestão de uma descentralização geral do poder no mundo. Seu novo senso comum já parece esboçado na mídia mundial e en-dossado pela ciência social dominante: trata-se de uma “nova ordem multicultural”. Trata-se da época na qual o Brasil da desigualdade e do carnaval se anuncia como “Brasil, um país para todos”.

O discurso de uma época sobre si mesma nunca é uma mentira total, uma distorção completa, uma “falsa consciência”. Ele tem uma razão de ser. Reflete a edição de uma realidade. Uma edição é uma generalização de uma realidade parcial como se fosse uma realidade total. É uma simplificação da realidade. O discurso de uma época sobre si mesma é sempre uma meia-verdade. É sempre ambíguo. Enfatiza e exagera uma parte, esquece e omite outra. O discurso con-temporâneo que interessa especialmente a este texto é o da “socieda-de do conhecimento”. Ele parece parte indispensável do cânone cen-tral de ideias que definem as mudanças de nosso tempo, o fim de uma era e um “pós” que ainda não se define muito bem

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Existe uma “sociedade do conhecimento”?

Fabrício Maciel

Da “sociedade do trabalho” à “sociedade do conhecimento”

A ideia de sociedade do conhecimento é uma das tentativas domi-nantes de redefinição das sociedades ocidentais contemporâneas. Há pelo menos três décadas, uma constatação básica parece se genera-lizar nas ciências sociais dominantes. As “sociedades do trabalho”, no sentido compreendido desde Marx, teriam entrado em profundo colapso, se observadas as mudanças concretas em suas formas ma-teriais de produção e reprodução. Tais mudanças exigiriam assim uma revisão analítica na lógica e no significado destas sociedades. Nos anos 1980, um artigo emblemático de um sociólogo alemão, Claus Offe, sintetizava bem a questão intrigante deste novo tempo: o trabalho ainda é uma categoria sociológica chave?2 A ideia de traba-lho criticada é aquela diretamente vinculada à primazia da esfera da produção na reprodução social. O dado mobilizado por este au-tor para fundamentar este questionamento incisivo, e que parece ter chegado para ficar, é o advento inevitável do “setor de serviços”. Este seria um efeito estrutural e funcional do inchaço da lógica for-dista do capitalismo industrial. Este setor reproduziria apenas par-cialmente a lógica econômica e as relações de dominação na dimen-são da produção. Ele significa ao mesmo tempo a fragmentação da classe trabalhadora tradicional e de seu vínculo com a produção e o advento crescente de economias paralelas, informais, periféricas e ilegais. Tais mudanças levam o autor à definição de um “capitalis-mo desorganizado”3.

Este parece ter sido um passo fundamental no caminho de tran-sição de um paradigma da “sociedade do trabalho” para um paradig-ma da “sociedade do não trabalho”, e não para o de uma sociedade da não centralidade do trabalho, como sugeria Offe. O diagnóstico de Offe naquela época, de que o “mundo da produção” era mais estuda-do do que o “mundo da vida”, parece ter sido profético. Ele apontava para a necessidade de compreender o papel de outras esferas da vida como movimentos sociais e identidades na atribuição de sentido da vida moderna, uma vez que o trabalho perdera, com as referidas mu-danças, a sua centralidade nesta função vital. Três décadas depois, o “mundo da vida” parece ter virado o jogo no paradigma intelectual e no discurso político. A importante ideia inicial de refletir sobre a não centralidade (afinal, nenhum conceito resolve a realidade sozi-nho) acabou se desdobrando em um efeito perverso, em uma falsa polarização entre a perspectiva de uma sociedade do trabalho, que acabou, e a de uma sociedade do não trabalho. A categoria de “socie-

2 Ver Offe, Capitalismo desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1994.3 Ib.

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Batalha das ideias

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dade do trabalho” foi reduzida pela ciência social dominante a um uso residual, ou a um uso central apenas no campo específico, tradi-cionalmente marxista, da “sociologia do trabalho”. A falsa polariza-ção simplifica as mudanças vividas pelo capitalismo nas últimas dé-cadas, sugerindo o advento de um “novo” capitalismo4, o que é diferente de compreender o processo histórico de um capitalismo, eu diria, “reorganizado”.

Neste caminho de transição para um novo paradigma intelectual e um novo discurso político, outro passo decisivo é a vasta obra de André Gorz.5 Sua frase emblemática – “saímos de uma sociedade do trabalho para não colocarmos nada em seu lugar” – resume bem os posicionamentos nem sempre explícitos, na ciência social dominan-te, em torno da referida polaridade. Sua obra é emblemática porque é ambígua. Ambígua como as mudanças para e o correspondente paradigma de uma “sociedade do conhecimento”. De um lado da po-laridade, está um marxismo específico, ortodoxo na manutenção do esquema conceitual carro-chefe da teoria do valor e das relações so-ciais a ela vinculadas. No Brasil, o maior exemplo desta perspectiva é Ricardo Antunes. Este marxismo tem um lugar garantido no campo da ciência social moderna, exerce a função no campo de que há pos-sibilidade para todo tipo de crítica. Entretanto, sua influência parece menor do que a do outro polo, aquele da tentativa de redefinição do que seriam as sociedades pós “sociedades do trabalho”. Neste polo a figura de André Gorz é central, pois sua ambiguidade ao mesmo tem-po corrobora o abandono da ideia de fim da sociedade do trabalho e contribui incisivamente para a compreensão das mudanças efetivas pelas quais passa o capitalismo nas últimas décadas.

Desde seus trabalhos seminais nos anos 19806, Gorz esboça uma perspectiva que ao mesmo tempo transborda e complementa a de Offe. Seu resgate é importante para a compreensão do germe da ideia de “sociedade do conhecimento” a partir da ideia de fim da sociedade do trabalho. Além do advento do setor de serviços, percebido por Offe, mas analisado mais decantadamente por Gorz7, este último ar-ticula o dado levantado pelo primeiro com outro dado igualmente

4 Esta linguagem surge em autores influentes como Richard Sennett (2000) e Axel Honneth (2006).

5 Vasta literatura existe sobre os temas do terceiro setor, da sociedade do conheci-mento e do fim das sociedades do trabalho. Entretanto, as obras referidas neste texto parecem as mais significativas em sua influência política e em seu potencial analítico.

6 A obra seminal no debate é seu livro Adeus ao proletariado.7 Ver principalmente o capítulo 2 de seu livro Misérias do presente, riqueza do possível

(2004), para este ponto.

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Existe uma “sociedade do conhecimento”?

Fabrício Maciel

fundamental, que não desenvolve isoladamente do advento do setor de serviços: trata-se do advento crescente da tecnologia e do conhe-cimento intelectual especializado como força produtiva central na reprodução das sociedades contemporâneas. Em torno da ideia de conhecimento “imaterial”8, Gorz caracteriza esta nova força produti-va e busca tematizar as mudanças estruturais que permitem seu advento. O fim da sociedade do trabalho, no sentido marxista origi-nal, consiste para Gorz no fato histórico de que o capital teria opera-do uma cartada decisiva na histórica luta de classes entre a burgue-sia e o operariado organizado. Ele está analisando a trajetória específica de sociedades europeias, mas a lógica do raciocínio pode ser apropriada para os interesses deste texto.

Desde o século XIX, a classe trabalhadora europeia realizou vá-rias conquistas diante do capital, encarnado na burguesia e na posse dos meios de produção. Vasta literatura há sobre o tema. Sabemos que a classe trabalhadora tradicional adquiriu na Europa sua digni-dade ao longo do século XX, através da garantia de direitos básicos envolvendo salário, segurança no trabalho e tempo livre. Mas ela queria mais. A classe trabalhadora almejava autenticidade e vinha acumulando pequenas vitórias diante do capital. Garantida a digni-dade, faltava a realização no trabalho. A classe trabalhadora quis participar da concepção de seu trabalho, da realização plena da uto-pia marxista, para além da mera realização do trabalho. Queria de volta o que o capital havia lhe roubado: sua autonomia, sua liberda-de de criação e criatividade humana. Sentou-se à mesa para negociar com o capital. Eis aqui a percepção fundamental de Gorz: o capital tinha uma carta na manga, que a classe trabalhadora não previu. Ele a aceitou para compor o outro lado da mesa e participar das deci-sões, das concepções e da realização plena do trabalho.

A análise de Gorz é importante neste aspecto porque ele identifica uma mudança estrutural específica no capitalismo do século XX, sem a qual seria impossível a negociação que traiu e enganou a clas-se trabalhadora: o fordismo alcançara seu limite estrutural e funcio-nal. O capitalismo precisava se reinventar. Simplificando seu argu-mento: a produção de mercadorias em massa, conduzida pelo capitalismo fordista industrial, chegou a um limite de autossupera-ção que não podia gerar mais lucros. Os estoques significam prejuí-zo. O capital precisava explorar uma nova modalidade de mercado-rias que não ocupasse os galpões das fábricas, que circulasse mais rapidamente, que mantivesse a lógica de lucro sobre lucro. Esta mer-

8 Ver o já citado Misérias do presente e principalmente seu livro O imaterial (2005).

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cadoria só podia ser imaterial, ou seja, a venda de sonhos, a venda de significado. O desenvolvimento de um valor de uso imaterial. Mais sentido e menos matéria.9 O mais irônico é que o velho barbudo já havia avisado sobre a carta na manga do capital. Parece que nin-guém escutou. Gorz (2004) ressalta que Marx havia analisado nos seus Grundrisse a possibilidade e a lógica de valorização do conheci-mento pelo capital.

A exigência de valorização de uma dimensão específica da produ-ção, que não pode abandonar a produção material, mas passa a sub-jugá-la ainda mais, além de um tipo específico de mercadoria, exige também um tipo específico de consumidor e de trabalhador. Fora da fábrica, o consumidor precisa acreditar no valor imaterial das merca-dorias que ele mesmo pode ajudar a conceber, se dentro da fábrica ele apresentar as capacidades de produtor material e imaterial. Aqui a classe trabalhadora é cindida ao meio e perde muito de sua força de organização política, pois os engodos aos interesses econômicos e culturais que agora o capitalismo oferece aos seus membros, indivi-dualmente, são mais imediatos e objetivos do que qualquer interesse coletivo. A última conquista da classe trabalhadora é a entrega total de sua subjetividade ao capital, como percebe Gorz. Ele ajuda a com-preender como o capitalismo se reestrutura, pela dupla necessidade funcional e de produção de significado. A produção de significado passa a funcionar produzindo o significado da produção.

A ênfase de Gorz na força produtiva central do conhecimento imaterial acaba não refazendo uma teoria da sociedade do trabalho, no sentido de rever o significado prático deste, mas sim realiza uma teoria do fim da sociedade do trabalho, colocando em seu lugar uma sociedade “do imaterial”. A perspectiva é ao mesmo tempo ambígua e produtiva, pois ele opera duas revisões analíticas que podem ser úteis aos objetivos deste texto, ou seja, a crítica ao paradigma da “sociedade do conhecimento” dominante na ciência social contempo-rânea e ao seu correspondente discurso na esfera pública. As duas revisões retomam e articulam os dois dados empíricos mencionados acima, desde Offe e o próprio Gorz: o advento do setor de serviços e do conhecimento tecnológico e especializado. Gorz vincula o desen-volvimento dos dois fatores, por exemplo, a partir do caso empírico de uma fábrica de ponta da Volvo em Uddevalla, na Suécia. O esgo-tamento prático do fordismo e o consequente advento do pós-fordis-mo, em sua versão taylorista ou toiotista, são exemplares não apenas da fragmentação da classe trabalhadora tradicional, mas também da

9 A vasta literatura sobre indústria cultural e sobre sociedade do consumo, ainda que esta última ideia seja recheada de ambiguidade, pode ser esclarecedora neste ponto.

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Existe uma “sociedade do conhecimento”?

Fabrício Maciel

fragmentação do mercado de produção e consumo em fatias hetero-gêneas, com o que concorda Offe. A economia produtiva fora da fá-brica, para além do fordismo, que sempre existiu em escala maior na periferia do capitalismo, agora é um dado crescente na Europa.

O esgotamento da produção fordista se opera articulado à valoriza-ção de parte da classe trabalhadora, que por disposições específicas se qualifica mais que seus companheiros de fábrica, mordendo a isca oferecida pela promessa de realização pessoal no trabalho através da autonomia na concepção das mercadorias. Gorz mostra que esta fra-ção passa, por isso, a ser mais bem recompensada pelo capital. Ou seja, quem melhor consegue fazer o jogo é automaticamente mais va-lorizado e reconhecido. Em contrapartida, um enxugamento prático se opera nas grandes fábricas, gerando altos níveis de desemprego, mes-mo nos países top do capitalismo, como a Suécia.10 O dado do advento tecnológico entra aqui operando uma automação e maquinização que dispensa boa parte da mão de obra humana, ou seja, exatamente aquela que não se qualificou mais. Para onde vão estas pessoas?

O desemprego ou a realocação em dimensões inferiores do merca-do de trabalho são as duas possibilidades no horizonte. O horizonte de perspectivas da classe trabalhadora, agora mais heterogênea, é crescentemente verticalizado. Sua precarização se opera em dois ní-veis: o fracionamento na classe e a consequente realocação diferen-cial, de um lado, e o fracionamento das dimensões produtivas do mercado em fatias hierarquicamente articuladas, de outro. Gorz está mostrando a realocação precária dos que não se qualificam a partir dos critérios da produção imaterial, através de um processo de “ter-ceirização em cascata”. Os mais qualificados permanecem na empre-sa “mãe”, enquanto os demais são terceirizados ou subterceirizados. Esta diferenciação funcional isenta o capital dos custos de produção com a seguridade do trabalho, transferindo estes crescentemente ao trabalhador, que agora se percebe e passa a ser tratado como “cola-borador” ou “parceiro” de produção. O advento de contratos de tra-balho flexíveis e da economia informal absorve assim as forças hu-manas dispensadas pelos setores estabelecidos da produção, que se tornam ainda mais fechados e valorizados.

A dupla fragmentação mencionada, a do mercado e a da classe, permite a Gorz operar uma importante distinção analítica entre co-nhecimento e saber. O “conhecimento” é o tipo de saber historica-mente e institucionalmente formalizado, reconhecido e valorizado. Este é o que se torna força produtiva central na sociedade do conhe-

10 Ver o dado de Gorz (2004).

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cimento. O saber em sentido mais amplo é toda capacidade criativa e produtiva fora do conhecimento institucionalizado e legitimado. Esta distinção pode ser usada para definir todo saber social prático, da experiência, da vida, da escola da vida. Este nem sempre é reco-nhecido pelo mercado ou pelo Estado, e a hipótese levantada pelo estudo da sociedade do conhecimento é que passa a ser ainda menos valorizado, enquanto ferramenta prática daqueles que ocupam um degrau inferior na hierarquia social do trabalho contemporâneo.

A compreensão das mudanças na estrutura econômica e na di-mensão dos saberes, entretanto, leva Gorz a abandonar a ideia de sociedade do trabalho. Seu esclarecimento poderia ser usado para uma renovada ideia de sociedade do trabalho, mas ironicamente não é o que acontece com o próprio autor. Ele também é traído pela ideia do imaterial, e em livros recentes chega a esboçar uma ontologia do imaterial11, em lugar da ontologia do trabalho que de fato precisava ser desconstruída. O ponto importante é que nem os autores mais críticos conseguem escapar da ideia do advento de uma sociedade de bases práticas e de sentido totalmente novos. Por isso, a ideia do fim da sociedade do trabalho é o paradigma dominante atualmente.

Uma hipótese alternativa seria a reconstrução do que é a socieda-de do trabalho contemporânea, se considerarmos que o “mundo da produção” não desapareceu e que sem esta dimensão da vida não existe nenhuma outra. Esta hipótese exigiria o enfrentamento de equívocos e lacunas deixados pela tentativa de compreensão da “so-ciedade do conhecimento”, sem desconsiderar a capacidade parcial de interpretação que tal perspectiva apresenta. A principal lacuna no paradigma da sociedade do conhecimento é que não existe a periferia do capitalismo em sua noção geral de sociedade. Mesmo os autores mais críticos como Gorz traçam uma narrativa específica de socieda-des europeias. Em nenhum momento se enfrenta uma questão bási-ca para o funcionamento geral do capitalismo: para onde vai a di-mensão da produção precarizada com a reestruturação intelectual das sociedades contemporâneas? Onde e por quem é operado o tra-balho braçal que precisa existir — e que agora tudo indica ser ainda mais desvalorizado — para que o sistema inteiro continue a funcio-nar? Estas devem ser boas questões de reflexão para a sociologia crítica contemporânea.

11 Principalmente em seu livro O imaterial (2005).

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República, democracia e deslegitimação

Ruszel Lima Verde Cavalcante

A República e a Democracia são duas grandes conquistas da hu-manidade, porque elas se revelam impessoais em suas ações, ou ao menos a teoria assim o alvitra. Ambas são respostas aos autoritaris-mos religiosos das primeiras coletividades e ao despotismo dos gran-des impérios. República e democracia têm uma simbiótica relação de fortalecimento ou de enfraquecimento.

A vida contemporânea tem insuflado o homem a comportamentos conflitantes com a vida social e, por conseguinte, com a do próprio homem. Isso pode ser visto do ponto de vista internacional, com o terrorismo e os crimes ambientais que afetam o ecossistema, como também do ponto de vista interno, com a corrupção praticada por agentes públicos, quer para o próprio acúmulo pessoal de riqueza, quer para o jogo do sistema eleitoral vigente no país.

A república e a democracia são as grandes vítimas daqueles atos, quer no plano internacional, quer no plano doméstico. Nossa tarefa é de compreensão que do amanhã de nossas ações e atitudes podere-mos alçá-las à condição que queremos e necessitamos para garantia de continuidade de existência social ou sepultá-las de vez, enterrando uma tradição secular e, pior, condenando a nossa existência social.

Em meio à pergunta que todos fazemos, hoje em dia (o que fare-mos?), primeiro, pensamos ser necessário assumirmos que o erro deva estar em nós mesmos e não nos outros. Por que, a partir daí, podemos construir um novo paradigma, um novo norte, uma nova direção, pensando inclusive nos futuros herdeiros da nossa e de ou-tras repúblicas pelo mundo afora e, principalmente, do sistema de governo que é uma herança humanista, a democracia.

Esse novo paradigma, esse novo norte e essa nova direção fala-dos, além da assunção de que o erro deva estar em nós mesmos, também merece análise através do fundamento da própria república e da democracia, onde repousam latentes as forças para a restaura-ção delas mesmas e, assim sendo, do amparo ético, moral e social que elas devem nos proporcionar em suas ações.

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Da leitura da Constituição Federal deflui o chamamento à imple-mentação da democracia efetivamente participativa, fundamento da República Federativa do Brasil, explicitada no parágrafo único do art. 1: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de repre-sentantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Assim, falamos em soberania, que pertence a quem?

Bem sabemos que o conceito de soberania, embora firmado e teo-ricamente definido desde o século XVI1 somente veio a consolidar o poder dos reis no século XVIII, para exprimir a superioridade de um poder, desembaraçado de quaisquer laços de sujeição2, que o novo conceito tratou de findar em relação ao imperador do Santo Império Romano Germânico.

O nascimento do princípio da soberania adveio da carência de uma força brutal que forjasse o rompimento das estruturas de pode-res autônomos de ordem intermediárias do Império, formando assim uma definição em que a república, na acepção de Estado, Bodin fize-ra da soberania seu elemento inseparável.3 Em festejada obra de di-reito internacional, seus autores afirmam:

O Estado não é a única coletividade humana que pode gabar-se de dispor de uma população, de um território e de um governo efetivo. Ao lado dele, ou mes-mo no seu interior, outras coletividades autônomas podem reivindicar as mes-mas características. Ora, não há dúvida de que estes concorrentes do Estado, não ocupam o mesmo lugar que ele enquanto sujeito de direito internacional. Portanto, somente o Estado pode pretender uma efetividade completa, tanto internacional quanto interna. Não merecerão a qualificação de Estado senão as coletividades cujo governo é independente e soberano.4

Os teóricos da soberania procuraram enxergar seu detentor e, enquanto a soberania popular de Rousseau vê parcela de soberania em todos os cidadãos do Estado, que teve seu valor histórico devido à progressiva universalização do sufrágio5, no combate da burguesia contra a monarquia absoluta, durante a Revolução Francesa, a ideia de soberania popular iria exercer grande influência, caminhando no sentido de soberania nacional.6 Posteriormente,

1 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 74.

2 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 15. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 134.3 Idem. p. 135.4 DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Públi-

co. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. p. 433.5 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 15. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 141.6 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 24. ed. São Paulo:

Saraiva, 2003. p. 78.

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República, democracia e deslegitimação

Ruszel Lima Verde Cavalcante

(...) vai surgir na Alemanha a teoria da personalidade jurídica do Estado, que acabará sendo apontado como verdadeiro titular da soberania. E já no séc. XX, aperfeiçoada a doutrina jurídica do Estado, a soberania passa a ser indicada como uma de suas notas características, colocando-se entre os te-mas fundamentais de direito público, desenvolvendo-se uma completa teoria jurídica da soberania.7

A evolução do conceito de soberania tem profundo impacto no re-lacionamento do Estado e o elemento povo, transformando-o de súdito a cidadão, desde a noção pioneira de soberania política, em que a so-berania era tida como absoluta e de poder incontrastável, para uma noção mais recente de soberania jurídica, embora continuando a ser uma expressão de poder, a soberania se revela em poder jurídico uti-lizado para fins jurídicos.8 Em outras palavras, até mesmo os gover-nantes devem obediência às leis.

Segundo Miguel Reale, soberania seria o poder de organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro do seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência9, o que nos leva à certeza de que a soberania é legitimada, internamente, pela noção de fins éticos de convivência, que abrangem o espaço de normatividade de um Estado-nação.

Tal é possível porque a concepção de Estado Democrático, no sentido apreendido no século XVIII, tem estreita ligação com a prote-ção de direitos fundamentais dos governados, tendo o ideário demo-crático sido transposto do plano teórico para o prático por meio de três grandes movimentos, a Revolução Inglesa de 1689, a Revolução Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789.10

Estado democrático de Direito impõe à ordem jurídica e à ativida-de estatal um conteúdo utópico de transformação da sociedade.11 Essa transformação se dá não no espaço de beatificação e quietude social ante os quadros violadores da ordem jurídica, mas sim de um ativismo que possa produzir movimentos vivificantes dela.

O experimentalismo republicano-democrático está em efervecência mostrando-nos aquilo que nos impede de alcançar os fins republica-nos-democráticos. Os sentimentos egoísticos é que nos levam à des-

7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 79.

8 Idem, p. 80.9 Idem, p. 80.10 Idem, p. 147.11 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do

Estado. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. p. 94.

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lealdade com a “res” pública e que contaminam a nossa democracia, transformando-a em uma demagogia.

Dentro dessa hipótese, temos a deslealdade institucional, que se nutre do desvirtuamento das funções das instituições públicas, fazen-do com que o Legislativo não legisle mais e apenas referende os atos do Executivo, que vira um pequeno Rei, a ordenar o que quiser com sua caneta provisória e, nessa relação, o poder, que era dito mais fra-co por Montesquieu, passa a legislar por um tal ativismo ou altivez.

Abordamos apenas os três poderes, mas, no interior deles, as mi-ríades de instituições e órgãos não conseguem se impor a um coman-do que parece ser uma razão de Estado, a deslegitimação dos interes-ses públicos, por meio de uma mistura de interesses privados de quem governa, que submete as causas e interesses públicos a um plano que nem sequer secundário consegue ser.

Assim, os poderes e órgãos da república democrática tornam-se fantoches de sua própria imagem constitucional, palatável apenas à mediocridade das nossas capacidades, quando os conflitos e/ou cho-ques éticos revelam a ineficiência das próprias instituições que re-presentam a República e o seu sistema de governo, a Democracia.

Recordo que já debatemos possibilidades de saídas, pois, em dois artigos publicados no caderno Tendências e Debates, do jornal Folha de S. Paulo, edição de 13 de agosto de 2005, assim expuseram sobre tema debatido pelo jurista José Afonso da Silva e pelo deputado Ro-berto Freire, que dizia respeito à necessidade ou não de uma revisão constitucional, no que assim pronunciaram-se:

“Será o caso de reunir uma Assembleia Constituinte para reordenar a Consti-tuição, retalhada por mais de 50 emendas? Não, porque essa não é uma fun-ção do poder constituinte originário. Uma Constituinte, em tal situação, não será um instrumento de seu exercício. O poder constituinte originário, que é a manifestação mais elevada da soberania popular, ao realizar sua obra (a Cons-tituição), nela introduz o princípio da supremacia e, com isso, se ausenta, se oculta, porque seu poder soberano passou a ser encarnado naquela suprema-cia, que perdurará até que ele seja chamado para elaborar nova Constituição, em caso de revolução ou golpe de Estado, que rompa a ordem vigente. Se não ocorre esse pressuposto, uma Constituinte não será instrumento de atuação do poder constituinte originário”. (José Afonso da Silva)

“A democracia brasileira suporta uma saída radical para a crise, inclusive o impeachment do presidente, se isso for necessário e a legalidade institucional solicitar. A par de medidas que podem e devem ser adotadas imediatamente

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República, democracia e deslegitimação

Ruszel Lima Verde Cavalcante

-reforma de algumas regras eleitorais, pactos em torno de projetos essenciais à estabilidade econômica e progresso social-, a saída para a crise, a nosso ver, demanda o chamamento a todo o povo brasileiro para que se pronuncie sobre os rumos do próprio futuro. Nesse sentido, a convocação de uma Constituinte se impõe como espaço limpo e livre para reformar os poderes Legislativo, Exe-cutivo e Judiciário, sepultar privilégios e estabelecer um novo pacto federativo”. (Roberto Freire)

Será que perdemos esse bonde reformista? Será que precisamos reformar a República ou a nós mesmos? Para responder isso, sirvo-me da sabedoria platônica, que, abordando diálogo de Sócrates, com seu discípulo Adimanto, assim colocou:

Sócrates – Mas agora, em nome dos deuses, que faremos no que concerne aos negócios da ágora, aos contratos que os cidadãos das diversas classes aí celebram entre si e, se quiseres, aos contratos de mão de obra? Que faremos no que concerne às injúrias, às vio-lências, à apresentação das solicitações, à organização dos juizes, à instituição e ao pagamento das taxas que poderiam ser necessárias sobre os mercados e nos portos e, em geral, à regulamentação do mercado, da cidade, do porto e do resto? Ousaremos legislar sobre tudo isto?

Adimanto – Não convém fazer tais prescrições a pessoas honra-das; elas mesmas descobrirão facilmente a maior parte das regras que é preciso estabelecer nessas matérias.

Sócrates – Sim, meu amigo, se Deus lhes conceder manter intac-tas as leis que enumeramos mais acima.

Adimanto – Do contrário, todos passarão a vida a fazer um gran-de número de tais regras e a reformá-las, na suposição de que che-garão à melhor.

Sócrates – Equivale a dizer que viverão como esses doentes que a intemperança impede de abandonar um mau regime. Essas pes-soas passam o tempo de forma encantadora: tratando-se, não che-gam a nada, exceto a complicar e a agravar as suas doenças; e es-peram, sempre que se lhes aconselha um remédio, que graças a ele se tornarão saudáveis.12

O que Sócrates quis com isso dizer, foi justamente que, estando uma república doente, sempre é esperado que, com um remédio legal ela venha a se tornar saudável. Entretanto, ocorre o contrário,

12 PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 122 (Coleção Os Pensado-res).

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pois o problema talvez até mesmo seja agravado, com a criação e reforma de leis.

A nossa república tem leis para tudo, para proteção do meio ambiente, dos idosos, da criança e do adolescente, dos direitos in-dividuais, sociais e coletivos em geral, que sabemos não ter o alcan-ce e a aplicação que esperamos. Agora, vítima de uma crise sistêmi-ca de corrupção e de representação política, prega-se a necessidade de novas leis e uma reforma política.

O doente é a República Democrática e o seu sintoma é a repre-sentação política cada vez menos representativa dos interesses do povo, aliada à baixa estatura dos poderes e das instituições que, fa-zem tudo, menos a nossa res publica. Isso ocorre por baixo nível de cobrança e interesse popular. Quem faz a república e a democracia somos nós mesmos. Assim, a república e a democracia brasileiras são reflexos de quem e do que somos.

Referências Bibliográficas

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain; Direito Internacional Público. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.

PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 2004 (Coleção Os Pensadores).

STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

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Súmula vinculante: uma nova perspectiva de Poder judiciário

Giovana F. M. Nunes Santos e Guiomar Oliveira Passos

A teoria da separação dos poderes, enquanto instrumento de limita-ção do poder do Estado, é preponderante para a existência de um Esta-do de direito. Desde o modelo aristotélico e a sistematização feita por John Locke e Montesquieu até a incorporação do sistema de freios e contrapesos, muitos foram os avanços no sentido de garantir a efetiva autolimitação do poder político. Se para Locke, em Segundo Tratado para o Governo Civil, haveria uma supremacia do Poder Legislativo em detrimento do Executivo e do Federativo, a concepção aristocrática de Montesquieu produziu uma evolução considerável em propor um equi-líbrio entre os poderes, que culminou com a feição constitucional con-temporânea construída pelos Founding Fathers americanos na divisão dos poderes da Constituição dos Estados Unidos de 1787.

Desde então, o processo evolutivo da tripartição dos poderes teve a mesma conotação, sempre na busca de evitar os abusos e as ini-quidades resultantes da concentração do poder. A rotina da atuação dos poderes no Brasil retrata uma teoria da separação de poderes bastante peculiar, em que se percebe a ocorrência de um reenqua-dramento de funções que jamais deve ser confundido com desvirtua-mento das mesmas. Em outras palavras, o sistema político brasileiro é marcado pelo compartilhamento de poderes, o que faz com que um poder em sua função de controle acabe por assumir feições que ori-ginariamente não seriam suas.

O Poder Judiciário, considerado o mais fraco por Montesquieu e Madison1 por não decidir novas políticas públicas, tem no Brasil atuação bastante expressiva no que se refere a estas políticas quan-do os poderes Executivo e Legislativo se mostram ineficientes. É o que ocorre, por exemplo, em relação às políticas de acesso a medica-mentos, pois a falta da prestação do serviço leva o Poder Judiciário a exercer funções, mesmo indiretamente, de implementação de políti-cas públicas.

1 Apud GROHMANN, 2001, p. 88.

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É nessa perspectiva de Judiciário que se busca discutir a súmula vinculante, tendo em vista a principal crítica de que a adoção deste instituto traria desequilíbrio na divisão clássica de poderes. O centro do conflito está no momento em que o art. 103-A da CF/88 determi-nou o efeito vinculante e o caráter erga omnes para a súmula que obriga incondicionalmente, não apenas os órgãos do Judiciário, mas a toda administração pública. Assim, ao editar súmulas vinculantes, o Poder Judiciário estaria invadindo a esfera do Legislativo.

Questiona-se se tal fato configura desrespeito ao princípio da se-paração dos poderes. A resposta a esta pergunta pode trazer inúme-ras consequências para o ordenamento brasileiro, a primeira delas seria a inconstitucionalidade da EC nº 45/04, por ferir as cláusulas pétreas da Constituição Brasileira (art. 60, § 4º, III), em caso positi-vo. Por outro lado, a súmula vinculante é tida como instrumento de celeridade e previsibilidade do sistema, além de permitir uma maior segurança jurídica.

Os argumentos em prol da súmula vinculante são fortes, a consi-derar os inúmeros processos que chegam aos tribunais diariamente, além da notoriedade brasileira em ter infindáveis recursos. Impor-tante ressaltar que esses fatores também estimularam outras inova-ções pela EC Nº 45/04, como a repercussão geral que conseguiu re-duzir eficazmente o número de processos no STF.

As súmulas estão no sistema jurídico brasileiro desde 1963, sur-giram da adequação do State Decisis americano e dos extintos assen-tamentos portugueses e foram criadas com a finalidade de estabilizar a jurisprudência e agilizar os julgamentos, mas não obrigava os ope-radores do direito ao seu enunciado, podendo ser alterada a qual-quer momento. Depois do dispositivo do art. 103-A, inserido pela Emenda Constitucional no 45 e da Lei no 11.417/2006 que o regula-mentou, o Supremo Tribunal Federal tem a faculdade de aprovar súmulas com efeito vinculante em relação ao Poder Judiciário e à administração direta e indireta em todas as esferas.

Para Gozzeto (2008, p. 383), o instituto da súmula vinculante não desequilibraria os poderes, “porque, em primeiro lugar, nosso siste-ma político está estruturado no princípio de poderes compartilhados e, em segundo, não é dado ao STF o poder de inaugurar ordem jurí-dica, criando direitos e deveres, como ocorre com o legislador”. Toda-via, um olhar mais atento nas súmulas editadas vai constatar que a atuação da Corte Maior brasileira tem inovado no nosso ordenamen-to, um exemplo bastante discutido pelos juristas é a redação da sú-mula vinculante no 13:

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Súmula vinculante: uma nova perspectiva de Poder Judiciário

Giovana F. M. Nunes Santos e Guiomar Oliveira Passos

A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessora-mento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compre-endido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.(Grifos do autor)

O principal fundamento legal da conhecida Súmula do Nepotismo é o princípio da moralidade administrativa, tendo em vista que o atual modelo de administração gerencial que se pretende adotar não com-porta atitudes típicas de uma administração patrimonial colonialista. A inovação está no fato da súmula considerar o parentesco em tercei-ro grau por afinidade, quando o Código Civil, estabelece claramente o entendimento de parentesco por afinidade no art. 1595, §1º, segundo o qual “o parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos des-cendentes e aos irmãos do cônjuge ou companheiro”. Isto implica em dizer que são parentes por afinidade o sogro, a sogra, nora, genros e os cunhados, não mais havendo possibilidade de aumentar esse rol, visto que a norma caracteriza-se por ser taxativa.

Fala-se em parentesco administrativo, mesmo sabendo-se inequi-vocadamente que parentesco é matéria de direito civil. Do mesmo modo, a doutrina civilista é uníssona2 em determinar que o parentes-co por afinidade não vai além do segundo grau.

Além disso, outros fatores precisam ser considerados. O primeiro é que nos sistemas romano-germânicos de onde surge o ordenamen-to brasileiro, a fonte primária do direito é sempre a lei, o segundo é que num Estado democrático de Direito os juízes não teriam legitimi-dade democrática para criar o direito. O terceiro argumento está no fato de que a Constituição determina que a função de declarar a in-constitucionalidade de uma norma é do criador das Súmulas Vincu-lantes, bem como que o controle das súmulas editadas será exercido através de reclamações ao próprio STF.

2 Para Maria Helena Diniz “são, portanto, afins em primeiro grau. p. ex: em razão de casamento alguém poderá ser afim em primeiro grau com a filha e a mãe da mulher a que se uniu, caso em que a filha de sua mulher será sua enteada e a mãe, sua sogra. Em segundo grau, na linha reta, o marido será afim com os avós de sua mu-lher e esta com os avós de seu marido, porque na linha reta não há limite de grau. Na linha colateral, o parentesco por afinidade não vai além do segundo grau, exis-tindo tão somente com os irmãos do cônjuge; assim com o casamento uma pessoa torna-se afim com os irmãos do cônjuge. Cunhados serão parentes por afinidade em segundo grau, mas entre marido e mulher não há parentesco, nem afinidade” (in Curso de Direito Civil, v. 5, 23. ed. Saraiva, 2009. p. 250).

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Por isso considera-se temerário o instituto em debate. O Poder Judiciário está investido da função normativa de caráter vinculante e efeito erga omnes para a qual não tem legitimidade dada pelo povo, e por outro lado não foi criado um sistema de vigilância de sua atuação que deveria ser exercido por outro poder.

Também é importante evidenciar que essa perspectiva de atuação do Poder Judiciário tem se refletido em importantes avanços no que se refere ao objetivo maior de evitar desmandos e abuso de poder político, principalmente nas decisões que gradativamente acabam por pressio-nar o Poder Legislativo no intuito de regulamentar determinadas ma-térias, como é o caso da Emenda Constitucional nº 57, que foi criada por pressão do STF para convalidar os atos de criação, fusão, incorpo-ração ou desmembramentos de municípios que tinham sido criados irregularmente até 2006; ou o exemplo da infidelidade partidária que começou a surtir efeito a partir da Resolução no 22.610 do TSE.

Fica a indagação: existe efetivamente um desequilíbrio na atua-ção dos três poderes brasileiros? Este artigo não tem a pretensão de adotar uma posição em relação ao problema formulado, até porque esse assunto exige maior dedicação. O que se pretende é puramente despertar o interesse acerca da separação dos poderes implementa-da no Brasil e sobre a importante função desempenhada pelo Judi-ciário diante da ineficiência dos demais.

Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Nova Cultural, 2000 (Coleção Os Pensadores).

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v. Questões do desenvolvimento

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Autores

George Gurgel de OliveiraEscola de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBa), doutor (Unicamp, 1995), e atualmente professor do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca na Espanha.

Rudá RicciSociólogo, doutor em Ciências Sociais, membro do Fórum Brasil do Orçamento. Autor de Lulismo: da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão da Nova Classe Média Bra-sileira (Contraponto/Fundação Astrojildo Pereira, 2010). http://rudaricci.blogspot.com. [email protected].

Raimundo SantosProfessor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Autor, entre outros, de Agraristas políticos brasileiros. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira / Nead, 2007.

Meiriane Nunes AmaroConsultora Legislativa do Senado Federal, mestre em Economia pela Universidade de Brasília e pós-graduada em Direito Legislativo pela Unilegis. Especialista em previdência social e economia do trabalho, atuou como assessora direta dos relatores das reformas da previdência social em 1998, 2003 e 2005.

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desenvolvimento e a perspectiva da sustentabilidade

George Gurgel de Oliveira

As razões da insustentabiliade

O desenvolvimento capitalista, a partir da revolução industrial do século XVIII até a primeira metade do século XX, tinha, como razão e base para a sua reprodução, a concepção de que o planeta era infi-nito e, portanto, as fontes da natureza também eram infinitas. A ca-pacidade de suporte do meio ambiente não era uma preocupação para o funcionamento do sistema. A variável ambiental era conside-rada uma externalidade ao processo de desenvolvimento.

Desde então, o processo de concentração urbana e industrial, o aumento significativo da população do planeta nos últimos 100 anos (de 1,5 bilhão para 6 bilhões de pessoas), o caráter excludente e de concentração de riqueza e as crises cíclicas inerentes ao próprio sis-tema capitalista, levaram a uma realidade econômica, social e am-biental insustentável.

Destaque-se, durante o século XX, a destruição causada pela 1ª e, principalmente, a 2ª guerra mundial, inclusive a decisão america-na de jogar bomba atômica, em momentos distintos, nas cidades ja-ponesas de Hiroshima e Nagasaki, já no final da guerra. Ainda nos anos 1940, logo depois do final da 2ª guerra mundial, o inicio da guerra fria, com a criação da Otan, liderada pelos Estados Unidos, e a resposta da URSS a esta situação, criando o Pacto de Varsóvia, no início dos anos 1950, levando a uma corrida armamentista sem pre-cedentes na história da humanidade.

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A partir de então, construiu-se um complexo industrial militar liderado, de um lado, pelos Estados Unidos e, por outro, pela URSS, com capacidade de destruir o planeta dezenas de vezes, criando con-flitos militares regionais, resultando em tragédias socioambientais, em uma escala ainda hoje não devidamente avaliada.

Os investimentos materiais, financeiros, técnico-científicos usa-dos com a finalidade de construção desses complexos industriais mi-litares seriam mais que suficientes para o enfrentamento e a solução de uma boa parte dos problemas socioambientais gerados neste pe-ríodo e seus desdobramentos atuais, inclusive parte destes não te-riam existido, se as relações internacionais tivessem sido estabeleci-das em outras bases, não a militar.

O esgotamento do modelo soviético, quando a URSS deixa de existir em 1991, não determinou o fim desta maneira de fazer política pelas principais potências mundiais, nem no plano internacional, nem no plano regional. Ao contrário, exarcebou-se, com a volta do nacionalismo, principalmente na Europa e o fundamentalismo reli-gioso no mundo árabe. As guerras declaradas e não declaradas de disputa do petróleo, gás, água e outros minerais estratégicos, de ter-ritórios, na área de produção de alimentos e criação de animais, o oligopólio da indústria de transgênicos e de fertilizantes, em nível mundial, impactaram e impactam populações em todo o mundo.

A década de 1960 é um período de radicalização e crítica aos mo-delos hegemônicos de desenvolvimento existentes e a criação de mo-vimentos políticos e sociais que irão influenciar e mudar o mundo. O fortalecimento e o surgimento de organizações mundiais, conti-nentais e nacionais de luta pela paz e democracia, de afirmação dos direitos humanos, da juventude, das mulheres, as organizações dos trabalhadores na luta por seus direitos sociais e as chamadas “mino-rias” (movimento negro americano, comunidades indígenas, entre outros), ocupam um lugar de destaque no cenário político mundial. Posteriormente, na década de 1970, com o nascimento do movimen-to ambientalista, as denúncias e o combate à poluição dos mares, dos rios e da atmosfera, dos impactos causados pela indústria nucle-ar, de petróleo e gás, pela mineração em geral e a construção de hi-droelétricas começam a fazer parte do cotidiano da humanidade.

Ainda é parte integrante desse processo a crítica, iniciada no cam-po da esquerda e na própria URSS, ao “socialismo real” (stalinismo, relações da URSS com a China e a Iugoslávia, invasão da Hungria e da Tchecoslováquia, entre outros), criando rupturas e conflitos dos que se alinhavam em torno do “socialismo real”. Então, nos anos 1950,

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após a morte de Stalin e início do governo de Kruschev, após o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, além da denún-cia dos crimes do período stalinista, constatou-se a necessidade de mudanças também na economia (que acabaram sendo realizadas par-cialmente, como se verificou posteriormente) em função da centraliza-ção exacerbada do poder político, refletindo na tomada de decisões em relação ao desenvolvimento da sociedade de forma geral. Na política econômica, a ineficiência na produção e na gestão era compensada com a maquiagem no cumprimento dos planos anuais e quinquenais.

Destaque-se ainda em relação à URSS, os recursos investidos no complexo industrial militar na disputa da hegemonia mundial, levan-do a um desenvolvimento econômico que já não atendia as expectati-vas da maioria da sociedade, dificultando o atendimento das deman-das que iam sendo atendidas parcialmente para a maioria da população. Esta situação levou à estagnação da economia soviética, que já não conseguia os resultados que surpreenderam o mundo capi-talista, pelo menos até a 2ª guerra mundial. Uma outra questão a ser considerada é a não incorporação, de maneira geral na sociedade so-viética, dos avanços científicos e tecnológicos alcançados pelo sistema, apenas utilizados em setores considerados estratégicos (principalmen-te no complexo industrial-militar, espacial e agrícola).

Assim, os impactos socioambientais gerados pelo modelo soviéti-co, também, como no capitalismo, só foram reconhecidos na sua complexidade, posteriormente. A tragédia de Chernobil é o símbolo deste desenvolvimento, historicamente insustentável.

O desafio da sustentabilidade

As atividades humanas, particularmente a industrial e as tecnolo-gias por ela incorporadas, abrigam a contradição permanente da pre-disposição para satisfazer e garantir as necessidades dos indivíduos e da sociedade em geral. A produção de determinados bens e serviços traz impactos econômicos, sociais e ambientais, inerentes a estas ati-vidades humanas. Particularmente, os processos industriais ganham maior visibilidade, porque estão localizados em determinados territó-rios, materializados no ciclo de produção de cada produto, desde a extração de fontes primárias da natureza, passando pela produção em si, a chegada ao mercado como mercadoria, a sua utilização, até o descarte final. As opções dos indivíduos e de cada sociedade viabili-zam um determinado modelo de desenvolvimento, expresso nas rela-ções políticas, econômicas e sociais e da própria sociedade com a na-tureza, como processo histórico e cultural.

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No caso específico da ciência e da tecnologia e as suas relações com o processo de desenvolvimento, como qualquer outra atividade humana, está subordinada a princípios e interesses políticos, econô-micos e sociais, influenciada ainda pela cultura e a própria base cien-tífica e tecnológica, em um período histórico determinado. A sua lógica secular de oferecer caminhos alternativos para a resolução dos proble-mas da sociedade, muitas vezes, está comprometida pela incapacida-de de apontar soluções que se constituam em reais alternativas para estes problemas e aos por ela própria criados. Também, quando estas soluções são oferecidas, na maioria das vezes, são apropriadas de uma maneira que não atendem aos interesses da maioria da sociedade.

As relações sociedade e natureza, no âmbito da ciência em geral, encontram-se em processo de (des)construção, podendo incorporar novas contribuições que possam permitir identificar os conflitos en-quanto possibilidades de novas configurações sociais, na interpreta-ção destas questões. Entretanto, permanecem lacunas quanto à con-jugação das diversas dimensões, inclusive as que relacionam política, economia e meio ambiente, quando da seleção e enfoques de alguns aspectos em detrimento de outros, em razão de uma determinada opção da sociedade e dos que governam, quando não consideram outras possibilidades possíveis de serem implementadas, descarta-das pela lógica da racionalidade do mercado.

Em geral, o caráter prescritivo destas abordagens situa-se como elemento presente no escopo dessas e de outras áreas de conhecimen-to, principalmente por não avaliar as possibilidades de transformação política, econômica e social, constituindo-se na prática, em uma ma-terialização de interesses hegemônicos contidos na esfera do Estado e do mercado, ignorando, quase sempre, a necessária participação e incorporação das demandas da sociedade civil neste processo.

As insustentabilidades políticas, sociais e ambientais identifica-das tanto no capitalismo, quanto na própria experiência do socialis-mo real, já sinalizavam desde a década de 1960 para a necessidade de superação dos conflitos e contradições destes sistemas políticos, econômicos e sociais existentes no século XX, apresentados como alternativas de desenvolvimento para a humanidade.

A ampliação da consciência ambiental é um sintoma desta insus-tentabilidade e o imperativo da necessidade de construção de uma nova perspectiva de desenvolvimento, que se quer sustentável. Colo-ca-se, portanto, o desafio de superação deste modelo de desenvolvi-mento atual. Os problemas econômicos, sociais e ambientais mun-

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diais, nacionais e locais continuam como desafios políticos a serem resolvidos para a construção desta sustentabilidade.

A urgência da questão ambiental colocou-se pelo grau e a veloci-dade de degradação em decorrência da ação humana na natureza. Analisando apenas o que aconteceu no século XX, os impactos sofri-dos pelos ecossistemas planetários são sem precedentes na história da humanidade. O nível de degradação do meio ambiente mundial, durante este curto espaço de tempo, em contraponto ao tempo da natureza necessário para o funcionamento dos ciclos naturais, colo-cou em risco a sobrevivência destes ecossistemas planetários e, con-sequentemente, a disponibilidade de recursos naturais, inclusive o ar, a água e o território, necessários à sobrevivência da humanidade.

Uma demonstração inequívoca da insustentabilidade do modelo atual de desenvolvimento é o funcionamento das economias ameri-cana e chinesa, cujo grau de interdependência é maior do que apa-rentemente apresentam. Estes dois países são as principais econo-mias mundiais, responsáveis por uma parte significativa da produção de mercadorias e do consumo de energia. As demandas e a escala de produção destes países para atenderem os seus respectivos merca-dos e a necessidade de exportação destas economias exercem uma forte pressão nos recursos naturais mundiais, dentro e fora dos seus territórios, com reflexos sociais e ambientais preocupantes.

Portanto, a questão ambiental em si passa a ser preocupação de organizações governamentais e não governamentais nos níveis mun-dial, nacional e local. Os governos, os meios de comunicação, o mer-cado, a comunidade científica e a sociedade civil em geral passam a ter papel de destaque neste processo de conscientização.

A necessidade de preservação do meio ambiente impõe-se como uma variável a ser considerada no processo de desenvolvimento. Os impactos acumulados desde a revolução industrial e o consequente processo de urbanização passaram a ter escala mundial. O século XX é palco de acidentes e catástrofes ambientais geradas pela intervenção humana, refletindo negativamente na atmosfera, mares, rios, aquíferos, florestas, em todos os ecossistemas do planeta. Efeito estufa, mudanças climáticas, poluição, desertificação, extinção significativa de espécies animais e vegetais e também a perda de vidas e da qualidade de vida de milhões de pessoas em diferentes regiões do planeta, afetadas com es-tes impactos, passaram a ser parte do cotidiano da sociedade.

Importante ainda observar que, embora os impactos socio-ambientais tenham reflexos na qualidade de vida das populações em geral, eles acontecem, concretamente, a partir de um determinado

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território. Destacar e identificar as atividades humanas causadoras destes impactos e suas consequências é uma parte importante na perspectiva de enfrentamento destes problemas, comprometendo os principais atores políticos, econômicos e sociais com este processo, nos níveis local, regional, nacional e mundial.

Nesse contexto, devem ser avaliados os impactos causados dire-tamente nas populações que vivem em territórios onde as grandes obras de engenharia são realizadas. As decisões de realização destas grandes obras, na maioria das vezes, são tomadas em acordos de fi-nanciamentos internacionais, sem a participação efetiva das comu-nidades atingidas por estas construções. As populações afetadas são obrigadas a sair dos seus territórios (ou viver sofrendo as consequên-cias dos respectivos impactos socioambientais) em função da cons-trução de hidrelétricas, termoelétricas, usinas nucleares, mineração, indústria de petróleo e petroquímica, entre outras. São os chamados refugiados ecológicos, deslocados por estas atividades industriais, cuja situação não pode mais ser ignorada pela sociedade.

Destaque-se ainda que coexistem no planeta populações milena-res como os indígenas na América, aborígenes na Austrália, comuni-dades tribais na África, inuits no Pólo Norte, comunidades extrativis-tas, pescadores, agricultores, fortemente impactadas com este processo de desenvolvimento que não foi escolhido por elas. Algumas destas comunidades, remanescentes de populações ancestrais, além de terem sido dizimadas e saqueadas de suas riquezas pelos coloni-zadores europeus desde o século XV, continuam a ser massacradas e impactadas em seus territórios, em pleno século XXI, com perdas materiais, culturais e espirituais, normalmente não consideradas na lógica da sociedade atual.

A busca de alternativas para superação desta realidade coloca a necessidade de construção de uma nova agenda para pautar as questões do desenvolvimento nos contextos mundial, nacional e lo-cal. O trabalho desenvolvido pela ONU (que deve ser transformada, pois ainda funciona com a hegemonia política dos vencedores da se-gunda guerra mundial) e outras organizações multilaterais, a luta pela paz, a afirmação da democracia e o imperativo das questões socioambientais e de uma nova economia, passam a ser valores per-manentes para a construção de novas formas da humanidade se re-lacionar entre si e com a natureza.

Soluções mundiais para os problemas de preservação do meio ambiente estão sendo discutidas, há muito, diagnosticadas, algumas pactuadas na própria ONU e uma boa parte com dificuldades de se-

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rem implementadas por diferentes razões. A principal é de natureza econômica. Os investimentos necessários para a implementação des-tas soluções são significativos, afetando a lógica do desenvolvimento atual, a competitividade de algumas economias nacionais, principal-mente a americana – que se desenvolveu e desenvolve-se aproprian-do-se, inclusive manu militari, dos recursos naturais em várias regiões do planeta, a exemplo do petróleo, entre outros.

Assim, o enfrentamento, de fato, destas questões em escala mun-dial, coloca em cheque o próprio desenvolvimento capitalista e os seus valores, a sua lógica de produção e consumo e o consequente processo de urbanização e industrialização gerados por este sistema.

As concentrações urbana e industrial em determinadas regiões do planeta, a partir da Europa e dos Estados Unidos, são questões fundamentais a serem discutidas.

Essa maneira de reprodução do sistema gerou e gera sociedades desiguais, que concentrou e concentra riquezas, excluindo uma boa parte da população do planeta que participa como periferia do siste-ma. A possibilidade da população mundial de consumir no nível mé-dio americano, por exemplo, está inviabilizada principalmente pelos limites físicos do planeta e o tempo necessário aos ciclos naturais para redisponibilizar estes recursos para atender as demandas e o consumo mundial.

Embora se tenha avançado, há muito o que fazer para melhor conhecimento desta realidade. Nos últimos anos, organizações go-vernamentais e não governamentais mundiais, nacionais e locais es-tão trabalhando no sentido de entender a complexidade desta reali-dade, a partir da ONU, através dos seus organismos multilaterais, com a colaboração mais efetiva da comunidade científica mundial.

As pesquisas desenvolvidas pela comunidade cientifica mundial em diversas áreas, a respeito do conhecimento dos governos, do mer-cado e da sociedade em geral, são publicadas sistematicamente por diversas organizações, destacadas nos meios de comunicação (mui-tas delas disponíveis na internet), constatam a dimensão e a comple-xidade destes impactos econômicos, sociais e ambientais em escala global, continental, nacional e local, e a urgência do enfrentamento e da busca de soluções para estas situações.

Os trabalhos desenvolvidos pelo Programa Internacional da Biosfe-ra e Geosfera (International Geosphere and Biosphere Program), en-volvendo uma parte expressiva da comunidade científica mundial, alerta para as mudanças na dinâmica da população mundial – cresci-

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mento exponencial desde 1950 (2,5 bilhões para os 6 bilhões atuais e a perspectiva de chegar a 10 bilhões até 2050) e as variações antrópi-cas que vêm acontecendo, em função da escala e da concentração da produção mundial e a respectiva demanda de recursos naturais já referida (MORAN, 2008). Ainda, em consequência deste processo, um crescimento exponencial das concentrações de gás carbônico (CO2), óxido nitroso (N2O) e metano (CH4). Fundamentalmente, estes três gases são responsáveis pelo aquecimento global, aumento das tempe-raturas médias da superfície do hemisfério norte, resultando no au-mento dos chamados “desastres naturais” que afetam, principalmen-te, as populações e os ecossistemas costeiros e tropicais.

Em relação às mudanças climáticas, a ONU e a comunidade cien-tifica, por meio do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC) têm chamado a atenção para a gravidade da situação e a necessidade de medidas urgentes a serem implementadas. Observam que as temperaturas deverão continuar a subir, podendo, em 2100, ficar no nível superior a 5,8 Cº, em relação aos níveis de 1990 (idem, MORAN, 2008).

Neste contexto, são criadas as condições de enfrentamento des-tas questões por diferentes atores políticos, econômicos e sociais que estão a vivenciar esta realidade.

Vive-se mundialmente um processo de construção de uma cons-ciência ambiental individual e coletiva. As iniciativas regionais, na-cionais e internacionais, desde a Conferência da Biosfera (ONU, Pa-ris, 1968) e a partir de 1972, na I Conferência Mundial de Meio Ambiente em Estocolmo, colocaram a necessidade de um novo de-senvolvimento, denominado de ecodesenvolvimento, naquela confe-rência. No Rio de Janeiro, 20 anos após Estocolmo, realizou-se a II Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92), quando o conceito de desenvolvimento sustentável é apre-sentado pela ONU, como um desafio para a humanidade, compro-misso das gerações atuais e futuras. Do Rio, em 1992, até Johannes-burgo em 2002, a maioria dos países construiu sua Agenda 21 nacionais, compromisso assumido naquela Conferência.

A sustentabilidade como possibilidade

Assim, nesse processo de conscientização e crítica ao modelo de desenvolvimento atual, foram e estão sendo criadas as condições obje-tivas para a sua superação na perspectiva de construção de uma nova sociedade, que se quer sustentável. Portanto, o desafio que se coloca é de superação da sociedade atual, historicamente insustentável.

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A construção política, econômica e social da sociedade futura, que já está sendo gestada nesta sociedade em que vivemos, é um desafio permanente colocado para a sociedade política, para toda a humanidade. Alguns valores devem fundamentar esta nova constru-ção social. Entre outros, o reconhecimento da democracia, criadora das condições para uma governabilidade mundial, nacional e local, de consolidação da paz, do diálogo permanente para avançarmos e superarmos os atuais desafios socioeconômicos e ambientais. Nesta nova sociedade, o modelo de desenvolvimento estará comprometido com a equidade na distribuição da riqueza produzida pelos que tra-balham, preservando os valores ambientais, culturais e espirituais construídos historicamente pela humanidade, com participação ati-va da cidadania.

Os princípios relacionados ao conceito de desenvolvimento susten-tável, em que pese sua importância como uma declaração discutida e pactuada pela ONU (ECO-92), refletindo o atual processo de consciên-cia mundial em relação à questão ambiental, naturalmente, incorpora as contradições e os conflitos inerentes à sociedade contemporânea, por estas razões não podem ser realizados na sua plenitude. Assim, qualificar e contextualizar esta situação, em relação à realidade mun-dial e seus reflexos nos níveis nacional e local, é um desafio que se coloca para o enfrentamento e superação desta realidade.

Nesta perspectiva, avaliar como a problemática do desenvolvimento sustentável está sendo tratada, formulada e incorporada nos processos de desenvolvimento atual, pelos diferentes atores sociais a partir da análise da política ambiental existente e a tradução desta política na Agenda 21 construída para cada país, avaliando e reavaliando os res-pectivos instrumentos e condições de implementação, nível de transver-salidade entre as políticas públicas e a participação efetiva da cidada-nia, deve ser uma das estratégias, rumo a esta sustentabilidade.

As políticas ambientais nacionais e as suas respectivas Agenda 21 devem ser construídas a partir das respectivas realidades socioe-conômicas e culturais, com incorporação do conhecimento em diálo-go com as comunidades tradicionais, da ciência e da tecnologia com visibilidade para toda a sociedade.

A construção de um desenvolvimento que se quer sustentável em nível mundial, deverá ser pactuado por meio de uma ONU renovada, com participação das organizações multilaterais, governamentais e não governamentais, dos diferentes atores políticos, econômicos e sociais, buscando de uma maneira sistêmica a perspectiva da sus-tentabilidade, procurando:

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• analisar e explicitar as contradições atuais no processo de de-senvolvimento mundial na perspectiva de construção da sus-tentabilidade econômica, social e ambiental;

• correlacionar as variáveis contidas na análise anterior, no sen-tido da explicitação das contradições inerentes a este modelo de desenvolvimento, buscando oferecer alternativas a esta realida-de, na perspectiva da sustentabilidade;

• compreender os conflitos ambientais como inerentes e parte in-tegrante da história da humanidade nas suas relações com a natureza, permitindo transcender aos problemas que lhes de-ram origem na sociedade atual, no sentido de oferecer soluções e, sobretudo, que expressem as diferenças e os reais interesses entre os diversos atores sociais em questão, criando os funda-mentos de novas relações políticas, econômicas e sociais para a sociedade futura que se quer sustentável.

Finalmente, considera-se como uma questão fundamental na construção desta sustentabilidade a participação ampla da socieda-de. As políticas públicas nacionais, particularmente a política am-biental, devem ser construídas nas relações pactuadas entre estado, mercado e sociedade civil, abrindo espaço para os diversos atores políticos, econômicos e sociais, indicando e criando soluções teóricas e práticas na construção destas políticas públicas, tendo o Estado como regulador e mediador destes processos. Destaque-se ainda, a necessidade de ampliação dos mecanismos da democracia participa-tiva em todas as esferas da sociedade.

A sociedade futura, que já está sendo construída, terá como um dos seus maiores desafios, além da centralidade da democracia e da paz, a necessidade de uma melhor distribuição da riqueza social-mente produzida por todos e uma melhor sintonia nas relações com-plexas e dinâmicas entre a natureza e a própria humanidade.

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o declínio do municipalismo

Rudá Ricci

A origem

O municipalismo nasceu no período de redemocratização do Bra-sil, pelas mãos do MDB. Fazia parte da agenda de desconcentração política do país, par do centralismo e autoritarismo político do perío-do. O pacto federativo estava totalmente comprometido pelas inter-venções e controle da política pelos militares, se aproximando do formato do Estado Unitário.

Nos anos 1980, Franco Montoro e Orestes Quércia adotaram esta agenda como um dos pilares de sua identidade política. Assim, o municipalismo ganhou contornos políticos vinculados à democracia e controle social sobre a ação estatal. Não por outro motivo, os dis-cursos que o defendiam como norma constitucional repisavam que o cidadão atua e vive no município e que os outros entes federativos eram, muitas vezes, percebidos como abstrações para o homem sim-ples. O fato é que este ideário foi absorvido pelos formuladores da Constituição de 1988. Os constituintes reconheceram os municípios como entes federativos. Segundo José Luiz Quadros de Magalhães:

A Constituição brasileira estabelece um novo modelo de federalismo onde estão incluídos como entes federados além da União e dos estados-membros, os mu-nicípios e o Distrito Federal. Este dispositivo, por muitos criticado, estabelece uma federação com três círculos de poder federal, sendo que na esfera menor de poder existe uma federação de municípios, que forma a União ao lado dos estados. Sem dúvida, a fórmula constitucional é inovadora, mas em nada se reflete na realidade nacional. Talvez o papel mais importante deste modelo te-nha sido o de levar a discussão constitucional até os municípios, que tiveram de elaborar suas Constituições ou, na denominação da Constituição Federal, Leis Orgânicas Municipais.1

Contudo, vários autores questionaram as características formais do sistema federativo estabelecido pela nova Constituição. Raul Machado Horta chegou a sugerir que o “federalismo brasileiro encontra-se esma-gado pela exacerbação centralizadora de poderes e de competência da

1 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Um novo município: federação de municípios ou miniaturiza-ção dos Estados-membros. Revista da OAB, [S.l], ano XXVI, n. 62, 1996.

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O declínio do municipalismo

Rudá Ricci

União, convertendo o federalismo constitucional em federalismo pura-mente nominal e aparente.”2

O que esteve em questão nos debates jurídicos sobre nosso fede-ralismo foi a comparação com modelos europeus, como o da Áustria (1920) e Alemanha (1949). Segundo Daury Fabriz (FABRIZ, 2010), o modelo austríaco distribuiu competências para os estados que, além dos poderes executivos, ganharam atribuições legislativas, repartin-do competências entre a União e estados, ou mantendo diálogo entre legislação central de princípios e legislação de aplicação estadual. Já o modelo alemão adotou o princípio da concorrência (ou cooperativo) entre entes federativos. Na cooperação, ocorre clara interdependên-cia dos entes federativos sem que um deles se destaque dos demais, o que ocorre com frequência no modelo de concorrência.

Sinteticamente, a discussão sobre nosso modelo federativo, ao comparar com as experiências europeias, se ateve ao equilíbrio ne-cessário, em que o âmbito federal estabelece as opções e escolhas, disciplinando os temas públicos gerais e os estados e regiões definem a execução e planejamento das ações, de acordo com as característi-cas locais.

O modelo teórico adotado na Constituição de 1988 era o de coo-peração entre entes federativos. Contudo, vários estudos indicam que a autonomia dos municípios foi conspurcada pela dependência financeira aos entes superiores. Assim, desde o primeiro momento da descentralização de várias políticas públicas oriundas da orienta-ção constitucional (já nos anos 1990), o papel da União foi de desta-que essencial.

Em outras palavras, pecamos pela ausência de um nítido federa-lismo financeiro.

Como sugere Daury, em obra já citada:

E isso depende de ousadia, pois é urgente que se passe do avesso do federa-lismo, centrado na unidade representada pela União e também pela burocra-tização excessiva da máquina estadual, para um federalismo ao avesso, cuja maior tarefa estará em contemplar a diversidade, fazer emergir o sentimento federativo e o apreço pela democracia, facilitar a fruição dos direitos humanos e dar vazão às expectativas de uma nação que clama por justiça social. Para isso, o maior protagonista será o município.

2 HORTA, Raul Machado. Reconstrução do federalismo brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, v. 30, p. 38, 1980-1982. Citado por FABRIZ, Daury Cesar, Federalismo, Muncipalismo e Direitos Humanos, Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, out./dez. 2010, v. 77, n. 4, ano XXVIII.

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Questões do desenvolvimento

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Marta Arretche se notabilizou por estudos sobre o processo de des-centralização de políticas sociais no pós-Constituinte. Segundo a autora,

Em 1997, instâncias colegiadas estaduais, com representação paritária de es-tados e municípios eram responsáveis pela alocação da totalidade dos recursos da principal fonte financeira da política federal de saneamento e habitação po-pular - o FGTS3; a oferta de merenda escolar era inteiramente gerida por estados e municípios; pelo menos 33% dos municípios brasileiros estavam habilitados a gerir os recursos federais destinados à oferta de serviços assistenciais; 58% dos municípios brasileiros estavam enquadrados em alguma das condições de gestão previstas pelo SUS4 e 69% das consultas médicas eram realizadas através de prestadores estaduais ou municipais, sendo que, destas, 54% eram prestadas pelos municípios. Se considerarmos que todas as atividades relativas à gestão destas políticas eram, no início dos anos 90, centralizadas no governo federal, temos a dimensão da transformação institucional que vem se operando no Siste-ma Brasileiro de Proteção Social. Há expressiva variação no alcance da descen-tralização entre cada uma destas políticas. Se a alocação dos recursos do FGTS e a merenda escolar estão totalmente descentralizadas, os resultados alcançados no território nacional nas áreas de assistência social e saúde são mais modes-tos. Também é expressiva a variação do grau de descentralização alcançado por cada uma destas políticas entre os estados. No Ceará, em 1996, a participação dos municípios no total das consultas médicas realizadas era superior à média nacional, ao passo que, na Bahia, esta participação era de apenas 24% do total das consultas médicas prestadas no estado. No Paraná, alterou-se substancial-mente o padrão de oferta de vagas no ensino fundamental, de tal modo que estas passaram a ser dominantemente ofertadas pelos municípios, ao passo que nos demais estados não ocorreram entre 1987 e 1994 alterações significativas na prévia distribuição das matrículas neste nível de ensino. Portanto, o alcance desta reforma é bastante variável, seja entre as diversas políticas, seja entre as Unidades da Federação no tocante a cada política particular (ARRETCHE, 1998).

3 Criado pelo Governo Federal, em 1967, para proteger o demitido sem justa causa, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço é constituído de contas vinculadas, aber-tas em nome de cada trabalhador, quando o empregador efetua o primeiro depósito. Todo brasileiro com contrato de trabalho formal, regido pela CLT e, também, traba-lhadores rurais, temporários, avulsos, safreiros e atletas profissionais têm direito ao FGTS, que pode ser sacado para aquisição de imóveis, em caso de aposentadoria, demissão sem justa causa ou em caso de doença grave.

4 O Sistema Único de Saúde é um sistema público de saúde criado, em 1988, pela Constituição Federal com o propósito de garantir o acesso integral, universal e gra-tuito para toda a população do país. Baseado nos princípios estabelecidos na Lei Orgânica de Saúde, em 1990, de universalidade, integralidade, equidade, descen-tralização, regionalização, hierarquização e participação popular, o sistema oferece atendimento ambulatorial, consultas, exames, cirurgias e internações, além de pro-mover campanhas de vacinação e ações de prevenção e de vigilância sanitária. Do SUS fazem parte os centros e postos de saúde, hospitais – incluindo os universitá-rios, laboratórios, hemocentros (bancos de sangue), serviços de Vigilância Sanitária, Vigilância Epidemiológica, Vigilância Ambiental, fundações e institutos de pesquisa.

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Rudá Ricci

Em estudos mais recentes, Arretche revela que a descentralização das políticas sociais, nos anos 1990, foi fortemente influenciada por políticas de apoio financeiro e compensações por parte dos entes fede-rativos superiores (estados e União). Tal revelação indica o quanto a intenção constitucional esbarrou, desde sempre, na cultura política altamente centralizadora e de dependência entre os entes federativos.

O município, desde então, vive sua esquizofrenia administrativa, entre se capacitar para assumir e formular políticas públicas locais e depender e gerenciar políticas sociais formuladas pelos governos estaduais e federal.

As situações geradas por tal esquizofrenia federativa se revelam em todo processo de gerenciamento de políticas sociais. Em sua tese de doutoramento sobre a descentralização das políticas de saúde (consideradas as mais avançadas e fortemente controladas social-mente no país), Vanessa Elias de Oliveira sustenta que:

(...) o processo de descentralização da saúde desenvolveu-se, ao longo dos anos 90, em duas fases distintas: a fase da descentralização autonomista, entre 1990 e 1998, quando os municípios tinham total liberdade nas escolhas da po-lítica local de saúde, e a fase da descentralização dirigida, após a introdução do Piso de Assistência Básica (PAB), quando os municípios começaram a receber recursos “carimbados”, destinados exclusivamente a determinados programas de saúde, determinados pelo Ministério da Saúde. (...) Ambas as fases não fo-ram capazes de minorar as desigualdades regionais existentes, em termos de oferta, acesso e financiamento aos serviços municipais de saúde. (...) Somado a isso, (...) os argumentos normalmente utilizados pela literatura sobre federa-lismo e municipalismo no Brasil, críticos à “onda municipalista” e à existência de milhares de municípios pequenos e altamente dependentes dos repasses do Fundo de Participação dos Municípios, não são suficientes para explicar a produção local de políticas sociais, dado que não são estes os municípios que apresentam os piores resultados na política de saúde no que tange à oferta, acesso e financiamento da saúde pelos gestores municipais (OLIVEIRA, 2007).

As conclusões desta autora indicam um grau de dependência e inoperância assustadores.

federalismo ao avesso

Nos últimos dez anos, o Brasil mergulhou em transformações profundas. Somos a 7ª potência econômica mundial (entre 205 paí-ses) e nos transformamos em um país de classe média. Entramos, ao que parece, um ciclo virtuoso de desenvolvimento que possibilitaria o fortalecimento de toda estrutura de gestão pública, florescendo nosso pacto federativo democrático. Contudo, a crença dos gestores

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federais não caminha nesta direção. Retomando a velha dissociação entre crescimento/concentração e desenvolvimento/equidade, o mo-delo de gestão de políticas públicas reforçou a dependência política dos municípios e aumentou a disputa entre estados e União.

A concentração do orçamento público que resulta no declínio dos municípios como entes federativos autônomos. Estamos nos aproxi-mando, em termos da lógica orçamentária pública, do modelo não-federativo do Chile, o modelo do Estado Unitário. Vale registrar que nos aproximamos deste modelo a partir de uma lógica perversa, im-plícita, em que os governantes locais são obrigados a lançar mão de convênios sucessivos com ministérios e secretarias estaduais de go-verno para superarem seus limites de recursos para investimento.

o estado unitário e o estado federativo

Em um Estado Unitário, qualquer unidade subgovernamental pode ser criada ou extinta e ter seus poderes modificados pelo gover-no central. O processo, no qual as unidades subgovernamentais e/ou parlamentos regionais são criados por um governo central, é co-nhecido por devolução. Um Estado Unitário pode ampliar e restringir as funções de tais (sub)governos devolvidos sem o consentimento for-mal dessas entidades. No sistema federativo, ao contrário, as assem-bleias nesses estados, que compõem a Federação, têm uma existên-cia constitucional e suas atribuições são determinadas por ela e não podem ser unilateralmente modificadas pelo governo central.

ParticiPação relativa das receitas MuniciPais segundo os gruPos de habitantes no ano de 2008 (*)

grupos de gabitantes (por mil)

receita orçamentária total (%) receitas tributárias (%) receitas de

transferências (%) outras receitas (%)

TOTAL 100,00 16,34 68,21 15,45

até 2 100,00 2,11 91,43 6,46

2 – 5 100,00 2,89 90,53 6,58

5 – 10 100,00 4,29 90,73 4,98

10 – 20 100,00 4,83 88,23 6,94

20 – 50 100,00 7,51 82,30 10,19

50 – 100 100,00 10,70 75,47 13,83

100 – 200 100,00 13,93 68,77 17,30

200 – 500 100,00 18,45 63,90 17,65

500 – 1000 100,00 18,92 60,93 20,15

1000 – 5000 100,00 24,08 52,09 23,83

5000 e mais 100,00 39,10 39,33 21,57

Fonte: Ministério da Fazenda. Secretária do Tesouro Nacional, 2008. Tabulações especiais: François E. J. de Bremaeker(*) Dados expandidos a partir de uma mesma amostra de 5.048 municípios. Não são considerados os dados referentes ao Distrito

Federal e Fernando de Noronha.

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O declínio do municipalismo

Rudá Ricci

Trata-se de uma lógica, uma opção política do nosso país demar-cando o poder em virtude da concentração do orçamento público.

Segundo o Observatório da Equidade do Conselho de Desenvolvi-mento Econômico e Social (CDES), o maior orçamento per capita mu-nicipal do país é 41 vezes maior que o menor orçamento. Ainda se-gundo a mesma fonte, os 20% mais pobres recebem das transferências intragovernamentais, em média, 850 reais per capita e os 20% mais ricos chegam a 1.700 reais per capita. No caso do repasse dos royal-ties, a relação é de 74 reais per capita para os 20% mais pobres para 142 reais per capita para os 20% mais ricos. E, finalmente, chegamos ao repasse do Fundo de Participação dos Municípios (FPM): os 20% mais ricos recebem 289 reais per capita e os 20% mais pobres apenas 190 reais per capita.

O FPM é a principal fonte de receita de 81% das prefeituras bra-sileiras. No Nordeste, há casos de cidades em que o fundo correspon-de a 95% do orçamento local. A origem deste Fundo é 23,5% do total arrecadado pelo governo federal com o imposto de renda e o IPI (Im-posto sobre Produtos Industrializados). O FPM é repassado a cada dez dias. Com a crise imobiliária dos Estados Unidos, aflorada em 2008, o governo federal penalizou os municípios com cortes sucessi-vos de repasses do FPM. Os municípios receberam 9,1% a menos no primeiro decênio de 2009 que no mesmo período de 2008, 75% a menos no segundo decênio e recuperaram no terceiro decênio (85% a mais, na comparação com o ano anterior), totalizando uma queda mensal de 14,7%. Dos recursos do FPM, as prefeituras são obrigadas a investir 25% na Educação e 15% na Saúde, além de repassar um percentual equivalente a 8% do orçamento anual para as Câmaras Municipais. Com a crise que assolou o setor automobilístico no final de 2008, o governo federal decidiu isentar do IPI as montadoras, o que impactou o FPM. Mas a questão de fundo é a inversão, que ocor-re desde o Governo FHC (e se acelerou no Governo Lula) da lógica municipalista da Constituição Federal, que descentralizava progra-mas e execução orçamentária. Um dos exemplos de centralização progressiva é o Programa Saúde da Família (PSF), que custa R$ 23 mil mensais às prefeituras, sendo que o governo federal arca com R$ 5,5 mil e o estadual com R$ 1,5 mil. O restante é arcado pelas prefei-turas. Trata-se de aprofundar a centralização crescente da execução orçamentária brasileira, em que o governo federal assume uma pos-tura imperial que diminui profundamente a autonomia financeira dos municípios. Sem recursos, os prefeitos, sem grandes paixões pela participação dos cidadãos na sua gestão, têm argumento farto para reduzir o processo de implementação e fortalecimento de conse-

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lhos de gestão pública e mecanismos de descentralização adminis-trativa. Até então, vínhamos numa toada lenta, mas progressiva. Se-gundo o IBGE, 75% dos municípios brasileiros já haviam adotado algum mecanismo de participação cidadã em suas gestões. Mas ago-ra, com a política deliberada do governo federal, tal tendência pode se inverter, espelhada na própria prática da União. O gráfico apre-sentado a seguir possibilita a visualização da queda dos valores re-passados aos municípios através do FPM, no período:

50

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

40

30

20

10

0

25,926,8

30,332,9

36,2

42,7

39,240,4

No início de 2011, a situação relacionada ao repasse do FPM me-lhorou, dando alento aos prefeitos. De janeiro a março, haviam sido repassados 15 bilhões de reais, acima dos 11 bilhões de reais repas-sados no mesmo período em 2010 e 2009 e acima dos 12 bilhões de reais repassados entre janeiro e março de 2008. Mas a dependência dos municípios continua a mesma.

O fato é que o modelo centralizador traça a sorte dos municípios mais pobres. Sorte que está diretamente vinculada ao imenso poder da União. Segundo estudo de François E. J. de Bremaeker, a União, no ano de 2008, deteve 54,18% das receitas públicas, os estados 27,7% e os municípios 18,12%. Na composição das receitas munici-pais, as transferências constitucionais e as voluntárias representa-ram 68,21% do total de recursos. Fica nítido, portanto, que as trans-ferências de recursos da União e dos governos estaduais têm um peso significativo na vida dos municípios. A situação parece ainda mais grave quando observamos o peso da União na sobrevivência dos pequenos municípios.

As transferências (sejam elas as constitucionais, sejam as volun-tárias) superam os 75% das receitas, em média, para municípios com população até 100 mil habitantes. Uma dependência brutal que obriga prefeitos a recorrerem a convênios com órgãos federais (e, em menor medida, aos governos estaduais) para que possam investir. A resultante política é das mais graves para nossa democracia fede-

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O declínio do municipalismo

Rudá Ricci

rativa: os prefeitos se parecem cada vez mais, independente da ori-gem partidária ou coloração ideológica. São, todos, gerentes de pro-gramas federais. A inovação municipalista dos anos 1980 e 1990 foi escoando pelos dedos neste início de século XXI. O que sugere uma concepção de Estado indutor do desenvolvimento, um demiurgo na-cional, que desconsidera os municípios como capazes de formular.

O problema é mais grave em pequenos municípios, em municí-pios rurais e de baixo IDH. Mas também afeta os grandes. Isto por-que o montante do endividamento de longo prazo dos municípios, ainda segundo Bramaecker, corresponde a 43,09% do montante da receita orçamentária e a 263,63% do montante da receita tributária. O endividamento é maior na medida em que os municípios crescem: 8% em municípios com até 5 mil habitantes, 24% em municípios entre 50 mil e 100 mil habitantes, 50% em municípios entre 500 mil e 1 milhão de habitantes.

Este cenário altamente centralizador gera situações constrange-doras aos municípios.

Recentemente, veio à tona que 328 municípios mineiros (38% do total) não possuem agências bancárias. Minas Gerais é o campeão de abandono da região sudeste (ES e RJ têm todos seus municípios atendidos e somente 7,5% dos municípios paulistas vivem o mesmo abandono que mais de um terço das cidades mineiras). Há relação direta com o tamanho e poder econômico dos municípios mineiros. Somente 75 dos 853 municípios possuem mais de 40 mil habitantes, ou seja, pouco mais de 8%. Mais: 79% dos municípios mineiros pos-suem menos de 20 mil habitantes. Sem o estado, sem repasse do FPM e convênios com secretarias estaduais e ministérios, simples-mente desaparecem. Daí o abandono deles pelo sistema bancário. Tempos atrás, a União Europeia criou o conceito de áreas desfavore-cidas para identificar regiões que não possuíam atrativos para inves-timentos estatais ou privados. Identificou regiões que não possuíam mão de obra qualificada, ficavam distantes de grandes centros de consumo, não tinham atrativos fiscais ou de exploração da natureza. A solução era ação enérgica do Estado, alterando esta realidade.

Outra situação constrangedora foi o desespero que abateu vários prefeitos de pequenos municípios brasileiros que viram escoar pelos dedos os repasses federais, logo após a divulgação da contagem de habitantes pelo IBGE. O prefeito de Jacareacanga (PA), Raulien Oli-veira de Queiroz (PT), recorreu ao IBGE e à Justiça Federal e amea-çou fretar dez ônibus rumo ao prédio do instituto em Santarém para protestar contra os números do último censo, que encolheu a popu-

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Questões do desenvolvimento

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lação do município de 41.487 para 14.040 pessoas. Além de “varrer do mapa” 27 mil jacareacanguenses, a contagem dinamitou as con-tas da região – só as transferências do Fundo de Participação de Municípios (FPM) devem ter uma redução de R$ 4,8 milhões. Levan-tamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM) cruzou os dados do Censo 2010 com a projeção populacional do próprio IBGE para o ano de 2009. Em termos gerais, o país saiu de 191.480.630 habitantes para 190.732.694, uma variação de 0,4%. O estudo, no entanto, aponta diferenças expressivas em pelo menos quatro muni-cípios do Pará: Jacareacanga (-66,2%), Faro (-58,2%), Itaituba (-23,9%) e Aveiro (-22,2%). O IBGE encaminha os dados demográfi-cos ao Tribunal de Contas da União (TCU), que calcula as cotas do FPM. De acordo com a CNM, 176 municípios devem receber menos dinheiro do fundo devido aos números do Censo 2010: Bahia (41), São Paulo (26), Rio Grande do Sul (13), Paraná (12) e Pará (11) con-centram o maior número de casos.

Este tema está diretamente vinculado ao controle social sobre o orçamento público e ao modelo federativo do país. Sem municípios fortes, a pluralidade política míngua e os cidadãos ficam mais dis-tantes da possibilidade de fiscalização e orientação de políticas pú-blicas. Pior: concentrando o orçamento nas mãos de governadores e do presidente da República, pasteurizamos a lógica administrativa da imensa diversidade das localidades do país. Ficamos mais pobres em termos de formulação de políticas públicas e desconsideramos a capacidade criativa de nossa cultura.

Referências Bibliográficas

ARRETCHE, Marta. Políticas Sociais no Brasil: Descentralização em um Estado federativo. XXI MEETING OF THE LATIN AMERICAN STUDIES ASSOCIATION. The Palmer House Hilton Hotel, Chicago, Illinois, 1996.

FABRIZ, Daury Cesar. Federalismo, Municipalismo e Direitos Humanos. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, out./dez. 2010, v. 77, n. 4, ano XXVIII.

OLIVEIRA, Vanessa. O municipalismo brasileiro e a provisão local de políticas sociais: o caso dos serviços de saúde nos municípios paulistas, Unicamp, 2007.

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Agronegócio, agricultura familiar e política

Raimundo Santos

A economia não é um templo, mas um campo de testes.

Habermas

A bibliografia acadêmica vem apresentando um debate no qual nosso rural aparece como um mundo dinâmico movimentado pelo “confronto e diálogo” entre o agronegócio e a agricultura familiar. Já se tornou tão complexo o mundo rural brasileiro que a estrutura go-vernamental há anos se repartiu, significativamente, em dois minis-térios, um para cada lado (Ministério da Agricultura e Ministério do Desenvolvimento Agrário).

Não por acaso, o atual governo, liderado por um partido de com-promisso camponês – ativista da luta pela terra nos anos 1980 e 1990 –, é chamado a administrar o grão-capitalismo (usando a ex-pressão com que um sociólogo do Rio de Janeiro se refere à economia brasileira), dele (e da “herança maldita” recebida de FHC) extraindo sucessos para sua política econômica.

No mundo rural de hoje, dispõem-se de possibilidades de desen-volvimento localizadas no agronegócio e na agricultura familiar, al-vos de políticas públicas especiais nada desimportantes. É só ver o seu número, diversificação e abrangência crescentes, aqueles dois ministérios mais e mais articulando ações com o Ministério do Meio Ambiente e a Secretaria da Pesca, além de vários outros programas de envergadura (ações no território, os Pronafs, etc.). Toda uma tra-ma institucional atua num meio rural já bem distante do mundo da tradição e do tempo dos “grandes domínios”.

Com base em certa bibliografia, estas páginas registram a contro-vérsia em torno daquela dualidade a que se atribui a dinamização da vida rural. Assim, em uma ponta, pode-se ver na bibliografia aqui referida uma tendência que defende a agricultura familiar em termos de um “campesinismo” novo e atualizado, ponto de vista hoje hege-mônico nas esquerdas militantes. Este campo vê-se reforçado por

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Questões do desenvolvimento

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autores dos mais credenciados (VEIGA, 1998; ABRAMOVAY e VEI-GA, 1998; VEIGA, 1994; apud SAUER, 2008), que, naqueles anos 1990, justificaram um ressurgimento da reforma agrária distributi-vista, aumentando as expectativas em relação ao advento de um novo dinamismo econômico com base na agricultura familiar. Real-çando seus atributos vantajosos em relação ao agronegócio (pluricul-tura, absorção da pobreza, sustentabilidade etc.), chega-se a pensar que a agricultura familiar tem todas as condições para ser o protago-nista de um novo padrão de desenvolvimento social e econômico no mundo rural (SAUER, 2008).

Todavia, é de se registrar um grupo de estudiosos do agronegócio que se propõe ir além da ênfase na dimensão econômica do grande empreendimento1. Realizando uma abertura analítica em relação à bibliografia denuncista, esta vertente volta suas vistas para a “socie-dade” do agronegócio. Ao direcionarem assim sua investigação, seus autores estão fazendo um diagnóstico do custo social do agronegócio, ator que não teria obtido o dinamismo que o separa dos seus ante-passados sem o uso privatista do Estado, a concentração da proprie-dade e o caráter predatório do empreendimento, como mostra o estu-do minucioso realizado em três regiões (o norte matogrossense, o Triângulo Mineiro e o oeste baiano). No entanto, o que chama a aten-ção no estudo são a diversidade das relações sociais que envolvem o conjunto do mundo à volta dos agronegócios e, especialmente, a seg-mentação social que prospera na “sociedade do agronegócio”.

Há outras opiniões a respeito da agricultura familiar com postura mais positiva em relação aos agronegócios. É o caso de John Wilkin-son, o principal autor referido nestas notas, que se associa a uma “nova síntese” que “já se desenha em torno da noção de “território”, como diz ele próprio. Visando ampliar o horizonte dos defensores da agricultura familiar, Wilkinson se propõe ir além de três posições consideradas insuficientes: a) daqueles que superestimam o grau de consolidação de certos segmentos de produtores, “por não levarem em conta as transformações na dinâmica recente dos mercados”; b) dos que (em estudos da pluriatividade) subestimam “as oportunida-des para a agricultura familiar nos novos mercados de nicho como também na crise do modelo dominante da agricultura especializada” (WILKINSON, 2008: 14) ; e c) dos que “descuidam do significado dos espaços de mercados ocupados pelas PMEs (pequenas e médias em-

1 Trata-se da pesquisa “Sociedade e economia do ‘agronegócio’ no Brasil”, coordenada por Beatriz Herédia, Leonilde Medeiros, Moacir Palmeira e Sérgio Pereira Leite. Cf. HERÉDIA et al. (2009).

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Agronegócio, agricultura familiar e política

Raimundo Santos

presas) e da dinâmica do setor informal” (aqui aludindo a estudos sobre a agroindústria) (Ib.).

O autor põe o seu tema –, a agricultura familiar e os mercados –, no cenário econômico atual. Diz ele que, no mundo das grandes ca-deias de commodities, a agricultura familiar tem que operar com no-vos níveis de qualidade e novas escalas de produção. Ela é chamada a obter “capacidades próprias” para desenvolver “iniciativas autôno-mas”, o que exige aprendizagem coletiva capaz de levar consideráveis contingentes a processos de muita inovação. O próprio tema da se-gurança alimentar e os requerimentos de qualidade realçam o papel da fiscalização e das regulamentações do poder público em seus três níveis (marcas, certificações etc.) e também estimulam a agricultura familiar e o mundo artesanal a procurarem uma reestruturação que os habilite a entrar nos novos mercados, não faz muito reservados à grande empresa. O fortalecimento (“autônomo”, por sua qualidade) dos “mercados dos orgânicos” (mais abrangentes) e a ida da agricul-tura familiar a mercados regionais e nacionais (aos “consumidores desconhecidos”) não constituem as últimas fronteiras da sua expan-são. A agricultura familiar não só tem posição importante no merca-do interno como também já responde por fatias das exportações bra-sileiras. O grande varejo e os grandes supermercados, anota o autor, já mobilizam os pequenos e médios produtores para montar os seus grupos de fornecedores de produtos de qualidade especial (Id.: 209).

Para Wilkinson, “à medida que a agricultura familiar se oriente ao mercado e adote práticas de um pequeno empresário, abre-se uma ponte para uma aproximação ao mundo dos agronegócios” (Id.: 206). O autor não tem dúvida: “O mercado, portanto, nos seus diversos aspectos, começa a ser o grande desafio também para a agricultura familiar” (Id.: 209). Este caminho expressa um condicionamento da esfera econômica que os dois lados (o agronegócio e a agricultura familiar) parecem subestimar, ao não ver “a profundidade das trans-formações nos valores da sociedade que são parcialmente refletidos nas novas dinâmicas dos mercados”, delas não escapando o grande mundo das commodities (rastreabilidade, internacionalização dos va-lores ambientais e sociais). Ao não reconhecerem as mudanças, os representantes do agronegócio e os defensores da agricultura fami-liar não se dispõem a explorar “os espaços de convivência”.

O autor alude ao fenômeno do Corporate Social Responsability (CSR), observando que os dois lados não percebem a incidência da valorização de “uma série de qualidades, separadamente ou em con-junto, que questionam a sujeição de valores ambientais, sociais, cul-turais e políticos a prioridades de custo e escala” (Id.: 211). Sistemas

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Questões do desenvolvimento

Política Democrática · Nº 30

de certificações, redes alternativas de produção e consumo questio-nam o modelo de economia industrial e põem em realce o mundo artesanal. E ainda: “Na medida em que a economia desloca-se para serviços, este reconhecimento se desdobra em externalidades positi-vas para outros setores, sobretudo o turismo” (Ib.).

Daí advém a necessidade de requalificar o dualismo antigo no qual ainda se concentra a bibliografia denuncista ou de “viés campesinista” (sic). O agronegócio é criticado por viver obcecado pela busca de com-petitividade nas suas grandes cadeias de commodities, o que impede a sensibilização pelos temas do meio ambiente e do trabalho. Por sua vez, os defensores da agricultura familiar desqualificam o CSR, consi-derando-o simples “greenwashing e cooptação”, e não buscam ver “em que medida mudanças na sociedade, refletidas mais por intermédio do mercado do que em períodos anteriores, estão criando bases novas para uma convivência entre estes dois segmentos, sem eliminar as grandes áreas de conflitos que continuariam alimentando mobiliza-ções sociais e políticas” (WILKINSON, 2008: 210).

O sentido dos tempos atuais requer atenção para temas emergen-tes: “Do lado do mercado, porém, muitos sinais apontam para um reconhecimento e uma valorização de um novo dualismo em relação a sistemas de produção” (WILKINSON, 2008: 211). O CSR expressa “tendências mais abrangentes pela valorização de uma série de qua-lidades” e leva a uma espécie de “paradoxo”: “Ou melhor, existe um reconhecimento de que custos que não levam em conta essas quali-dades transformam essas próprias qualidades em custos. Sistemas de certificação, por um lado, e redes alternativas de produção e con-sumo, por outro, focalizam, sobretudo, a valorização de processos produtivos distintos em relação ao modelo industrial, ratificando um reconhecimento do ‘mundo artesanal’ bem como dos sistemas de produção local” (Ib.).

O autor acredita que novos estudos virão contribuir para reequa-cionar a desconfiança dos porta-vozes da agricultura familiar, parti-dários, acrescenta Wilkinson, de uma longa “guerra de posições” (sic) contra os agronegócios. Estes, por sua vez, medem tudo por seu mo-dernismo empresarial, desconhecendo a força da agricultura familiar e do mundo artesanal. “Na sua desconfiança de manifestações de CSR”, diz o autor, “os porta-vozes da agricultura familiar parecem subestimar o grau em que o mercado se torna um canal de expressão dos valores de movimentos sociais” (Id.: 212). Esse novo espaço do mercado abre possibilidades para um mínimo de “reconhecimento mútuo”, que pode, ao mesmo tempo, favorecer o diálogo sobre os outros temas de maior conflito no campo político-institucional (Id.).

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Agronegócio, agricultura familiar e política

Raimundo Santos

Já não é possível deixar de reconhecer a importância que têm tanto os agronegócios quanto a agricultura familiar, este dado apon-tando para a necessidade de explorar as bases de “convivência entre ambos”. Não se trata mais de uma recuperação das virtudes campo-nesas da agricultura familiar. O impulso já estaria noutra dimensão. “O mercado ainda é o mesmo?”, esta é a tese do autor, e o seu ponto consiste em que, à medida que se diversificou, o mercado pôs-se diante do camponês atual de diferentes modos. Trata-se hoje de mer-cados atravessados por diversas mediações e regulações do poder público; resultantes, acrescentemos, de ações praticadas na esfera da política (partidos, Congresso, sindicatos, movimentos, associa-ções, governo e agências governamentais nos seus três níveis).

Essa controvérsia acerca das relações entre o agronegócio e a agricultura familiar mostra o papel decisivo do poder público. A pro-pósito, há uma tendência incipiente que também procura ir além da ênfase no tema da polaridade “grande domínio” – agricultura familiar e que se refere ao grão-capitalismo dominante no mundo rural, como Wilkinson, sem defensivismos paralisantes.

Esta bibliografia realça a questão do sentido e das prioridades da ação de governo, chamando particularmente a atenção para os inves-timentos animadores da vida rural no âmbito regional e local, investi-mentos estratégicos para a reforma democrática do mundo rural.

Referências bibliográficas

HERÉDIA, Beatriz; MEDEIROS, L.; PALMEIRA, M.; LEITE, S. P. Sociedade e economia do “agronegócio” no Brasil. Caxambu: Anpocs, 2009.

SAUER, S. Agricultura familiar versus agronegócio: a dinâmica sociopolítica do campo brasileiro. Brasília: Embrapa, 2008.

WILKINSON, J. Mercados, redes e valores. Porto Alegre: UFRS, 2008.

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No Brasil, existem dois regimes de previdência pública: o dos ser-vidores públicos e o do INSS. Além disso, há a previdência privada. Já empreendemos duas reformas da previdência social, uma no Go-verno FHC, outra no Governo Lula. No entanto, ambas repercutiram basicamente no regime próprio de previdência dos servidores e, em menor proporção, no regime privado de previdência complementar, deixando as condições que regem o regime geral de previdência social praticamente inalteradas.

Enquanto isso, a restrição fiscal que motivou o encaminhamento ao Congresso Nacional da primeira proposta de reforma previdenciá-ria, em 1995, continua. Agora potencializada pelo estratosférico au-mento dos gastos do INSS.

Entre 1988 e 2009, a despesa do INSS triplicou seu peso relativo na economia, passando a comprometer 7,2% do PIB e perto de um terço da despesa não financeira da União (despesa total menos ju-ros). É o maior item de despesa da União, superando os gastos com o pagamento de pessoal (4,8% do PIB) e com juros (4% do PIB).

Quase metade da receita líquida federal é hoje destinada à previ-dência (36,8% para o INSS e 10,2% para inativos e pensionistas do setor público). A metade que sobra tem, assim, que custear todos os outros gastos da máquina pública, cuja maioria não pode ser des-continuada. Resultado: nosso ajuste fiscal acaba sendo feito pela compressão do investimento público, que representa apenas 1% do PIB e menos de 7% da despesa primária.

Estudos mostram que, embora ainda sejamos um país jovem, gastamos com previdência o mesmo que gastam países desenvolvi-dos e com estrutura etária já envelhecida, como o Reino Unido, e que, para custear tal nível de despesas, também aplicamos elevadís-simas alíquotas de contribuição previdenciária.

Essa asfixia fiscal, ao comprometer a necessária expansão dos investimentos em infraestrutura, educação e capacitação da mãode-obra (afora outras áreas fundamentais, como saúde e segurança pú-

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Por que precisamos reformar a previdência social?

Meiriane Nunes Amaro

blica), compromete nosso potencial de crescimento futuro e de me-lhoria da qualidade de vida da população mais pobre.

A situação é ainda mais grave quando confrontada com os prognós-ticos demográficos. A população brasileira está envelhecendo, e a uma velocidade mais rápida do que a verificada nos países do Velho Mun-do, que, ao contrário de nós, enriqueceram antes de envelhecer. A proporção de idosos (indivíduos com mais de 60 anos) na população total do Brasil triplicará nos próximos quarenta anos, passando de 6,8% para 22,7%. O impacto desse envelhecimento na previdência so-cial é enorme.

Sendo nossa previdência pautada pelo regime de repartição, é a população em idade ativa que sustenta a inativa. Isso significa que, enquanto hoje 6,45 indivíduos em atividade potencialmente podem gerar recursos para cada beneficiário, em 2050 deverão ser apenas 1,9. Em outras palavras, haverá cada vez menos pessoas trabalhan-do e, assim, sustentando o crescente número de idosos no Brasil.

Nesse contexto, fica evidente que, se nada fizermos agora, nossas despesas previdenciárias simplesmente explodirão, comprometendo o futuro das próximas gerações de brasileiros.

Sabemos que o Brasil não envelhece sozinho. Várias nações já se encontram em situação crítica, aguçada, na maioria dos casos, pelo aumento dos gastos públicos após o colapso da economia global em 2008. O irreversível envelhecimento da população no mundo repre-senta uma questão tão grave, que pode hoje ser considerada como uma das principais variáveis a definir o futuro econômico e social das nações.

Diante disso, muitos países se encontram engajados na reformu-lação dos seus sistemas de previdência, movidos pela assunção de que é melhor aumentar agora os anos de contribuição em relação aos de aposentadoria, bem como reduzir um pouco a taxa de reposição do benefício em relação ao salário, do que, daqui a alguns anos, se-rem forçados a elevar sobremaneira as contribuições sociais e/ou diminuir o valor dos benefícios previdenciários em manutenção.

Suas experiências constituem importantes ensinamentos. Em primeiro lugar, mostram que as idades de aposentadoria nos países avançados são bem maiores do que as relativas à aposentadoria por tempo de contribuição dos trabalhadores brasileiros da iniciativa pri-vada (54 anos para homem e 52 para mulher). Isso ocorre porque continuamos a ser um dos únicos países do mundo que concede apo-sentadoria sem impor limite mínimo de idade (os outros são Nigéria,

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Argélia, Turquia, Eslováquia e Egito). Ademais, ao contrário do que aqui ocorre, muitos países aplicam a mesma idade mínima para ho-mens e mulheres.

A experiência internacional também mostra que o valor dos nos-sos benefícios previdenciários como proporção dos salários é muito elevado. No caso da aposentadoria, embora muitos países permitam aposentadoria antecipada aos 60 anos de idade (vejam bem: anteci-pada), depois de 40 anos de contribuição (enquanto aqui o máximo exigido são 35 anos), isso implica redução de 40% no valor de bene-fício. No Brasil, mesmo considerando a aplicação do fator previden-ciário, um homem na mesma situação não terá qualquer perda mo-netária. Ou seja, sua aposentadoria equivalerá a 100% do salário.

Além disso, em relação à aposentadoria por idade, embora haja limite etário para a concessão do benefício, exige-se apenas 15 anos de contribuição, o que é muito pouco, especialmente quando se com-para ao que ocorre no mundo. Afinal, um homem que espere 50 anos para começar a contribuir para a previdência poderá se aposentar aos 65 anos e receber o benefício por mais 16,3 anos, de acordo com sua expectativa de sobrevida. No caso da mulher, serão 15 anos de contribuição versus 19,1 de recebimento do benefício. Ademais, es-ses segurados receberão aposentadorias que reporão 85% de seus salários, enquanto que, se forem empregados, terão recolhido 8%, 9% ou 11% dos salários, de acordo com o rendimento que tinham, que, somados aos 20% do empregador, corresponderão à contribui-ção mensal de apenas 28%, 29% ou 31% do salário. É fácil perceber que a conta não fecha e será cada vez mais inconsistente, em vista dos prognósticos populacionais.

No caso das pensões, a situação é ainda mais discrepante. Repre-sentamos um dos poucos países que não exige qualquer condição de qualificação para a concessão do benefício. Não há, por exemplo, qual-quer limitação relacionada à carência contributiva, ao tempo de casa-mento ou união, à idade do cônjuge sobrevivente e dos filhos, ao núme-ro de filhos, à renda do cônjuge sobrevivente, ao período de recebimento do benefício ou ao seu acúmulo com outros benefícios. Como resultado, nosso gasto com pensões é tão significativo que repre-senta o segundo maior na estrutura de despesas do INSS, e, em termos de participação no PIB, representa o triplo da média internacional.

Mas é na indexação do piso previdenciário ao salário mínimo onde reside o maior propulsor da elevação das despesas com benefí-cios. Entre 1995 e 2010, o salário mínimo teve um aumento real de 122% (44% no Governo FHC e 54% no Governo Lula). Como o piso da

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previdência social é vinculado a esse salário, isso significa que o va-lor do piso foi elevado na mesma proporção; o que também é verdade para o benefício de prestação continuada da assistência social (que favorece idosos e deficientes físicos de baixa renda), igualmente atre-lado ao mínimo.

A despesa da previdência social é fortemente influenciada pelo piso dos benefícios, já que dois em cada três segurados o recebem. A receita, por outro lado, depende principalmente dos benefícios su-periores. Por isso, a elevação do salário mínimo impacta mais a des-pesa que a receita: a cada R$ 1 real de aumento do salário mínimo, os gastos com benefícios previdenciários sobem R$ 198 milhões e as receitas, apenas R$ 14 milhões, fazendo com que o déficit cresça em R$ 184 milhões. Agregando as despesas da previdência e da assis-tência social, observa-se que o déficit do INSS cresce R$ 230 milhões a cada R$ 1,00 de elevação no valor do mínimo.

É importante sublinhar que, no âmbito da assistência social, a vinculação do benefício de prestação continuada ao salário mínimo, além das implicações fiscais diretas, carrega consigo outro importan-te condicionante: desestimula a inclusão previdenciária, limitando, assim, o universo de contribuintes e, consequentemente, a elevação das receitas do sistema.

Isso ocorre porque a maior parte dos trabalhadores informais, mes-mo sem qualquer contribuição prévia, quando atingirem 65 anos (mes-ma idade exigida dos homens para efeito de concessão da aposentado-ria previdenciária por idade), poderão pleitear um benefício assistencial de valor idêntico ao piso da previdência social, desde que comprovem possuir renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo.

Daí cabe perguntar: qual o incentivo que esses trabalhadores têm para contribuir para a previdência social quando sabem que poderão usufruir, a partir da mesma idade (no caso dos homens), da mesma aposentadoria que será concedida à maioria dos trabalhadores do mer-cado formal de trabalho, que, com muito esforço, contribuem sistema-ticamente sobre seus rendimentos mensais de um salário mínimo?

Outro importante ponto a destacar é que o efeito do salário míni-mo sobre a pobreza é quase residual atualmente e, no que diz respei-to à pobreza extrema, é nulo. Resultado da expressiva escalada de aumentos reais verificada nos últimos anos, quem hoje recebe apo-sentadoria não mais pode ser considerado pobre.

Assim, defender os elevados gastos com a previdência social sob o argumento de que constituem importante instrumento de redução

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da pobreza esconde uma grande verdade: se parcela dos gastos re-dundantes do sistemático aumento do piso previdenciário for aloca-da na expansão de programas sociais focalizados nos estratos infe-riores de renda, como por exemplo, o Programa Bolsa Família, que representa menos de 2% da despesa primária da União, a pobreza e a miséria diminuirão muito mais.

As constatações apresentadas reclamam a urgente modificação de parâmetros básicos no âmbito da previdência dos trabalhadores da iniciativa privada, a maior parte de cunho constitucional, com destaque para as seguintes alterações:

a. aposentadoria por tempo de contribuição: imposição de idade mínima;

b. aposentadoria por idade: aumento da carência para conces-são do benefício;

c. pensão por morte: imposição de condicionalidades que refli-tam o grau de dependência do cônjuge ou parceiro sobrevi-vente e filhos;

d. piso da previdência social: fim da vinculação ao salário míni-mo (atualização pela inflação passada);

e. diferenças por sexo, setor (rural versus urbano) e categoria profissional (professor em sala de aula versus demais traba-lhadores): extinção;

f. benefício de prestação continuada da assistência social: fim da vinculação ao mínimo (atualização pela inflação passada), valor inferior ao do piso previdenciário e elevação da idade de 65 para 70 anos.

Ressalte-se, por fim, que as mudanças propostas não devem afe-tar os aposentados e pensionistas, devendo ser, em contraposição, integralmente aplicadas aos novos trabalhadores. Com relação aos trabalhadores em atividade, sugere-se o estabelecimento de regras de transição com extenso período de carência e lenta progressivida-de. A carência para início da aplicação das regras de transição pode-ria ser de quatro, cinco ou mais anos e a implantação progressiva dos novos parâmetros poderia ocorrer durante uma ou mais déca-das. As únicas alterações que deveriam ter aplicação imediata para todos são as relativas à vinculação dos benefícios ao salário mínimo e às novas regras para concessão de pensão.

Extenso período de carência com lenta progressividade na aplica-ção das regras de transição aos trabalhadores já inseridos no merca-

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do de trabalho é fator fundamental para que se consiga apoio político às mudanças. Outra opção, talvez mais pragmática, do ponto de vis-ta político, seja executar imediatamente as mudanças relativas ao mínimo e às pensões e aplicar as demais alterações apenas aos no-vos trabalhadores.

Se houvéssemos considerado isso em 1995, quando começaram os debates em torno da necessária reformulação da nossa previdên-cia social e o Executivo apresentou sua primeira proposta sobre a matéria, e tivéssemos efetuado uma reforma mais profunda que se aplicasse apenas aos novos trabalhadores, por exemplo, todos aque-les que entraram no mercado de trabalho nos últimos 15 anos já seriam regidos pelo novo sistema. Assim, já teríamos passado pela fase mais dura do período de transição e, certamente, as contas pú-blicas estariam em condições muito melhores, permitindo ao governo investir maiores recursos em infraestrutura e educação, dois itens fundamentais para o sucesso das futuras gerações de brasileiros.

Para ler mais sobre o tema:

AMARO, Meiriane N. Terceira Reforma da Previdência: até quando esperar? Brasília: Centro de Estudos da Consultoria do Senado, fev./2010 (Texto para Discussão nº 84). Disponível no site: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm.

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vI. mundo

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Autor

Fábio MetzgerJornalista e cientista político, mestre em História Social pela Universidade de São Paulo.

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A questão chinesa – um gigante a se afirmar

Fábio Metzger

A República Popular da China (RPC) é uma potência que não tem pressa para crescer além de suas fronteiras. Trata-se da nação mais populosa do mundo (tem cerca de 1,3 bilhão de habitantes) e a terceira em extensão territorial (9,3 milhões de km2), atrás apenas da Federação Russa e do Canadá. Por outro lado, estamos diante de um gigante que tem, e muita, pressa, para fazer crescer a sua economia. De forma vo-raz, e sem os conceitos de sustentabilidade em que, por exemplo, países da União Europeia, ou algumas unidades federativas dos Estados Uni-dos se pautam, ela vai tomando fatias inteiras de mercados de nações do Primeiro e do Terceiro Mundo, sem maiores dificuldades.

O país, cuja capital é Pequim, já tem o segundo maior Produto Interno Bruto do mundo, crescendo ininterruptamente há mais de 35 anos. Sob o regime de partido único, o Partido Comunista da Chi-na (PCCh) mantém absoluto monopólio em todo o território, em toda a infraestrutura original do país, concedendo ao campesinato con-cessões para a exploração de sua terra. Nas cidades, são mantidas enormes redes estatais de gestão industrial, comercial e de serviços.

Desde meados dos anos 1970, a China criou um novo modelo econômico com zonas especiais de desenvolvimento, com parcerias mistas do capital estatal e de investidores estrangeiros, sob gestão e intermediação direta do PCCh. Trata-se de algo muito vantajoso para Pequim. Forma-se um consórcio, em que o regime político da RPC-PCCh fica com 51% das ações e o investidor externo com os 49% restantes. Este transfere e fornece tecnologia por 20 anos. Depois deste período, o consórcio RPC-PCCh fica com 100% do controle dos empreendimentos e da tecnologia.

Imaginem este modelo de virtual monopólio em uma região de dimensões continentais para um país super-populoso, sendo que 95% dos chineses pertencem à etnia han. Ou seja, pouco mais de 1,2 bilhão de pessoas compartilham uma língua em comum. Notem que a população chinesa, em sua grande maioria, ainda é de origem ru-ral, e o processo de urbanização ainda é nascente. Que o Estado está sob gestão direta e única de um só partido, ou seja, o Estado é o Par-

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tido, o Partido é o Estado, e o secretário-geral do Partido é a autori-dade central do Estado.

Então, estamos falando de uma gigantesca organização capitalista com potenciais 1 bilhão de consumidores, quase todos compartilhan-do uma mesma cultura nacional. Isto representa 20% da humanida-de. Pessoas que ainda não estão sujeitas ao circuito internacional da globalização, uma vez que estão restritas ao país-continente manda-rim. Que têm um consumo em dólar menor, muito menor que dos outros países. Mas cujo poder de compra daquele um dólar que possui é muito maior, por exemplo, do que de um cidadão norte-americano.

Logo, os investimentos desta organização têm enorme retorno. Os salários, em comparação com aqueles pagos no restante do mundo, são bem mais baixos. O impacto do consumo de um chinês médio so-bre a economia interna é bem maior do que em uma economia já con-solidada, como, por exemplo, a do Japão. Tudo isso seria muito limi-tado, se a China estivesse isolada e fora do circuito econômico mundial.

Mas não é isto que acontece. Os dirigentes da RPC tiveram uma visão bastante pragmática do que poderiam fazer. E notaram que nas bordas marítimas, no Sudeste de seu território, havia duas colônias de antigas potências europeias. Ao invés de requererem a imediata devolução, negociaram uma longa, gradual e suave transição. Permi-tiram que mantivessem estes territórios como sendo formalmente dela, sob administração destes países. Tratava-se de um dos maiores centros turísticos da Ásia e do maior centro financeiro do Oriente. E assumiram o compromisso de manter, nestes pequenos enclaves, es-truturas capitalistas. Assim, a China associou ao seu território as Regiões Administrativas Autônomas de Hong Kong e Macau. Esta tem cerca de meio milhão de habitantes e é um importante centro turístico e de jogos de azar, uma espécie de Mônaco do Oriente. Era, até 1999, colônia portuguesa. Hong Kong, com 7 milhões de habitan-tes, até hoje é um importante centro financeiro mundial. Rivalizava com Tóquio a posição de centro financeiro número um da Ásia. Este baluarte do capitalismo financeiro, que esteve sob administração bri-tânica até 1997, passou a estar associada diretamente a Pequim, tornando-se a porta de entrada das finanças internacionais do resto do mundo para a antiga China comunista. O capitalismo financeiro internacional está agora a serviço de uma estrutura burocrática que sustenta mais de 1 bilhão de cidadãos.

Existem algumas questões internas a serem resolvidas pela Chi-na-RPC. A primeira, a questão do Tibete e do povo tibetano. O povo tibetano vive sob uma religião clerical, o Lamaísmo, dentro de uma

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A questão chinesa – um gigante a se afirmar

província chinesa, que é, de direito, autônoma, mas que, de fato, possui interferência direta de Pequim. O povo tibetano e a religião lamaísta possuem uma liderança histórica de renome internacional, o Dalai Lama, expulso de seu país, em 1959, após uma tentativa fra-cassada de revolta. Ele e seu clero vivem hoje exilados na cidade in-diana de Dharamsala, um local com pouco menos de 20 mil habitan-tes, de onde são administrados templos tibetanos, dentro da Índia, e a partir daí, para o Ocidente (curiosamente, a Índia tem um Estado, Arunachal Pradesh, que a China-RPC reivindica com o nome de “Ti-bete do Sul”, apesar de ser uma região multiétnica). O movimento nacional tibetano no exílio conta com o apoio político da Índia e de países ocidentais, especialmente França e Estados Unidos.

Outra questão importante é a da província do Sinkinag, também conhecida como Turquestão Oriental. Como o Tibete, de direito, é província autônoma, de fato, está sob controle direto da China-RPC. Trata-se de uma região de maioria muçulmana, vizinha a regiões po-liticamente bastante instáveis como a Caxemira, disputada por Índia e Paquistão, e o Afeganistão, sob ocupação de exércitos ocidentais, exposta ao crescimento do fundamentalismo religioso islâmico, espe-cialmente por conta da presença de militantes da rede Al-Qaeda do movimento Taleban baseado em território afegão.

A RPC ainda tem uma questão histórica de disputa territorial a resolver. Falamos de Taiwan, província que está sob administração da República da China (aqui denominemos ela de China-RC), país funda-do na região continental chinesa no início do século XX, e que, depois da Revolução Chinesa de 1949, ficou restrita à Ilha Taiwanesa. A Chi-na-RPC negocia uma aproximação com a China-RC, com vistas a for-mar uma confederação política nos moldes de “um país, dois siste-mas”. A China-RC, como a RAA-Hong Kong e a RAA-Macau seriam regiões capitalistas sob regime político especial, com constituições próprias, deixando a cargo de Pequim as questões de relações exterio-res e forças armadas. A China-RC tem cerca de 20 milhões de habitan-tes e uma economia poderosa, cada vez mais ligada à China-RPC. Por outro lado, existe uma questão política discutida localmente: são par-te da China, ou um país independente? De fato, a China-RC é inde-pendente de Pequim. Mas a China-RPC não reconhece. Desde 1971, Pequim anuncia: quem quiser estabelecer relações diplomáticas com a China-RPC tem que romper com a China-RC. E anuncia: Taiwan é uma província rebelde. Ou seja: se Taiwan declarar independência, a China-RPC não hesitará em atacar a ilha. O governo de Pequim já deu inúmeras demonstrações disso, com exercícios silenciosos de adver-tência a cada vez que o governo de Taiwan, quando sob o comando do

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Partido Independentista acena para algo nesse sentido. A China-RC é bem armada e tem o apoio logístico e militar dos Estados Unidos, ape-sar de Washington reconhecer Pequim, e não Taipei como represen-tante do governo chinês.

Por outro lado, Pequim fortalece os seus laços comerciais com Taipei. Parece contraditório. No entanto, a realidade é simples. Alguns países que não reconhecem a China-RPC fazem comércio in-ternacional com a China-RC, alguma coisa em torno de 10% do total das transações. Os 90% restantes são um intercâmbio entre China-RPC e China-RC. E quando o partido Kuomitang está no poder na China-RC, o PCCh expande os seus laços políticos com o seu vizinho insular. Na medida em que a China-RC se torna dependente da Chi-na-RPC, a única saída, inevitável, será a associação das duas na ideia de “um país, dois sistemas”. A China-RC, com a sua própria Constituição, assim como a RAA-Macau e a RAA-Hong Kong. Com a diferença de que a China-RC teria a vantagem de sustentar um sis-tema de partidos próprios. Já integrada à China-RC, qual seria o futuro do Partido Independentista? Taiwan, afinal de contas, não se-ria mais uma “província rebelde”. A hegemonia do Kuomitang, na Ilha e do PCCh, no Continente, consolidaria o sistema como um todo. A China-RPC como o maior mercado consumidor do mundo, a Chi-na-RC como a ponta de lança de um parque industrial contido den-tro das zonas especiais de desenvolvimento no continente, a RAA-Hong Kong como porta de entrada de um complexo sistema financeiro asiático que teria, entre outros grandes centros, Cingapu-ra e Shangai, e RAA-Macau, um centro turístico, meio Mônaco, meio Las Vegas, ponto de encontro do jet set asiático.

Uma estratégia de longo Prazo e longo Alcance

Se formos analisar a forma como a China-RPC vem atuando é sempre de maneira cautelosa, levando em conta o seu tamanho, sua população e, principalmente, a sua unidade interna. O governo chi-nês faz de tudo para ampliar suas fronteiras econômicas. Mas freia, do jeito que pode, quaisquer tentativas de expansão de abertura po-lítica. A China trabalha com o fator tempo. Não prioriza tanto o al-cance dos resultados, mas quando eles poderão ser alcançados.

Se levarmos em conta que a quantidade de pessoas e territórios a ser administrados é muito grande, faz bastante sentido este raciocínio. O PCCh pode afirmar quantas vezes for necessário que o objeto político dele é a implementação do Socialismo. No entanto, o PCCh, enquanto timoneiro da grande China-RPC, fará tudo o que for necessário para

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A questão chinesa – um gigante a se afirmar

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que seu Estado seja hegemônico, ainda que não seja o Socialismo a ideologia vencedora. A simples observação do antigo vizinho, a URSS, nos remete a isto. As condições para atingir o socialismo real poderiam ser atingidas. Mas, e depois? Como resolver as questões nacionais in-ternas? Como organizar ou reorganizar o sistema produtivo, tendo, diante de si, os Estados Unidos como potência hegemônica?

Na posição em que estava, a China-RPC poderia até não fazer concessões em questões teóricas. Mas, sem dúvidas, na política, as concessões seriam necessárias. E na política, ficaram algumas ques-tões teóricas, dentro do socialismo, que são até hoje pendentes. Ser internacionalista, como no caso da URSS? Ou priorizar a questão nacional interna? Notem bem: ninguém mais fala de “Revolução Per-manente”. Mas sim de “socialismos” em um só país. E mesmo estes “socialismos” em um só país, qual o modo de fazer? A Identidade da URSS poderia até ser a da “Grande Rússia”, em alguns momentos, mas em outros, era a do “Estado Soviético” plurinacional. Ou seja: uma política ambígua de nacionalidades, que dificultou bastante a adesão ao sistema político. Para a China-RPC, a questão ficava mais simples: a identidade é “chinesa”. E se é socialista, dentro das decla-rações do PCCh, admite a ideia mais ampla de “um país, dois siste-mas”. Ou seja: é socialista na China profunda. E é capitalista nas relações avançadas da China com o sistema capitalista globalizado.

Quando a URSS tentou a perestroika e a glasnost, se deparou com este problema mais complexo. Qual é a identidade básica do Estado soviético? O da Grande Rússia, a fazer as reformas econômi-cas necessárias? Ou o do Estado Proletário a se democratizar? A China-RPC não teve dúvidas. O Estado é chinês. As reformas eco-nômicas são importantes, mas devem ser feitas por etapas. E os avanços na área política não poderão acontecer. As válvulas de esca-pe do sistema são as RAAs e a China-RC (esta, futuramente). Mesmo assim, Pequim estará de olho. A Democracia Liberal definitivamente não é um valor na China-RPC. Por outro lado, através do nacionalis-mo chinês, a soberania popular é norma política na China. Uma so-berania popular feita por vias tortas, através de um desenvolvimento econômico desigual, mas integrador. Fica a questão: e quando a Chi-na-RPC parar de crescer, como fica? Neste caso, teremos que ver como a população chinesa poderá reagir. Pois opressão é opressão em qualquer local do mundo. E não se pode descartar a ideia de li-berdade individual como valor fora do Ocidente, mesmo que para o Oriente esta seja uma norma estrangeira.

De qualquer forma, se há algo de universal nas ações de Pequim, este é o pragmatismo de suas ações. Onde existe uma diáspora chi-

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nesa, o governo da China-RPC busca aproximar-se de sua diáspora e fazer amplos negócios. São dezenas de milhões de pessoas espalha-das pelo mundo. Um terço da população da Malásia. 1% da popula-ção da Indonésia, e o controle de cerca de metade da economia local. Três quartos da população de Cingapura. Grandes colônias de chine-ses na Austrália, no Canadá, Tailândia, Estados Unidos e países da América Latina, incluindo o Brasil.

Na rede de contatos entre os chineses ultramarinos e os chineses continentais, há oportunidade de se fazer negócios e obter algumas cadeiras dentro da Assembleia Popular em Pequim, o que permite até mesmo uma pequena representatividade. Com isso, a China-RPC (e, em menor grau, a China-RC) sustenta uma eficiente rede de contatos e negócios, sem precisar estabelecer nenhuma grande forma de coer-ção política mais violenta. São redes sociais que são minuciosamente trabalhadas, com bastante paciência e visão de longo prazo.

Mesmo quando negocia uma aproximação com a China-RC, a China-RPC calcula bem estas questões. Por exemplo, em relação à Igreja Católica. A separação das duas repúblicas foi determinante na adesão do Vaticano à China-RC. E nem por isso, a China-RPC aboliu o clero local. Apenas modificou a sua hierarquia. Fez dela uma nova instituição: a Igreja Patriótica. Como fez a Grã Bretanha, quando criou há alguns séculos, a Igreja Anglicana. Neste sentido, a China-RPC não se preocupa em antecipar-se a uma aproximação precipita-da com o Vaticano. Prefere, antes, integrar à sua órbita de autono-mia a China-RC, para que o Vaticano possa, finalmente, ter o reconhecimento de Pequim. Para isto, não há pressa. A China-RPC, como país de mais de um bilhão de habitantes, sabe o que é lidar com a Igreja Católica, instituição com mais de um bilhão de fiéis. Trabalha com o tempo, com calma. Podem se aproximar pela via de seus intermediários: a China-RC e o Estado da Cidade do Vaticano.

De maneira análoga, a China-RPC se mostra dura em relação ao Dalai Lama, na questão do Tibete. Sabe que o clero de Dharamsala, na Índia, é uma janela do Lamaísmo para o Ocidente, ao mesmo tempo em que o Dalai Lama se presta a ser um porta-voz do povo tibetano no exílio. Por outro lado, a grande parte do povo tibetano continua sobre seu solo histórico. E Lhasa é a cidade sagrada do Lamaísmo. Sob do-mínio chinês, permanece um clero lamaísta sob a orientação do PCCh, e uma hierarquia formada internamente de Lamas. Sabe-se bem que o Dalai Lama atual está fora de questão. Mas, e depois que ele falecer?

Existe, dentro da linha sucessória dos Dalai Lama, um substitu-to, escolhido, quando bem jovem, o Panchen Lama. O Dalai Lama

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designou um, que a China-RPC não permite, desde 1995, que faça aparições públicas. A própria China-RPC, por sua vez, designou, ela mesma, um Panchen Lama “oficial”. Para a China-RPC, não há pres-sa. O simples fato de controlar e dominar a cidade sagrada e o Palá-cio de Potala (hoje utilizado como museu, e não como local sagrado), em Lhasa, cidade sagrada do Lamaísmo, já lhe dá uma vantagem significativa. E assim, como um dia o Catolicismo teve um Papado em Avignon e, outro, em Roma, poderemos ter um cisma dentro das religiões dos Lamas! Dalai Lama pró-ocidente em solo indiano, o Da-lai Lama, pró-chinês, em solo sagrado tibetano sob soberania chine-sa. E aí, a China-RPC não terá a menor pressa. Será uma questão de espera e negociação. Como um dia houve a reunificação dos Papados de volta à Roma, e o retorno do clero de Avignon, poderemos ter algo semelhante: a reunificação do Lamaísmo em território tibetano, com o retorno do clero de Dharamsala. O atual Dalai Lama e seus even-tuais sucessores terão sido história.

A questão coreana

É sob o pano de fundo deste projeto lento, gradual e suave, que a China-RPC observa e atua sob a questão da unificação das duas Co-reias. A China-RPC, que assistiu a queda do muro de Berlim, viu a dissolução da Alemanha-RDA (ou Alemanha Oriental), que tinha o apoio da URSS. Com o desmoronamento da URSS, desapareceu qualquer suporte político para a Alemanha-RDA. E a Alemanha-RDA foi dissolvida, sendo o seu território incorporado à Alemanha-RFA (ou Alemanha Ocidental). Esta ficou sendo a única representante ofi-cial dos alemães, portanto, a Alemanha.

Não é isto o que deseja a China-RPC, em relação à Coreia do Nor-te (ou República Popular Democrática da Coreia), país de partido único, Partido dos Trabalhadores Socialistas da Coreia, diante da Coreia do Sul (ou República da Coreía, país com apoio político e tro-pas dos Estados Unidos). A China deseja a reunificação das duas Coreias, não sob o ideal da dissolução de uma, e a vitória total de outra (no caso, a vitória da República da Coreia, ou Coreia do Sul), mas sim sob a ideia análoga do que ela pensa para si mesma de “um país, dois sistemas”. Ou seja: Duas repúblicas coreanas, confedera-das, com intensos laços econômicos entre si.

Obviamente, a Coreia do Norte é muito mais pobre e isolada que a Coreia do Sul. E a China-RPC é muito mais poderosa que a China-RC. Isoladamente, a Coreia do Norte seria facialmente derrotada e engolida pelo vizinho do Sul, tendo o apoio de Washington. Mas isso

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não acontece, enquanto a China mantém o seu contraponto, apoian-do a Coreia do Norte, e mais, dando-lhe o tempo necessário para que esta se arme e se transforme em uma potência nuclear.

Sendo a Coreia do Norte uma potência nuclear, como fazer para uma dissolução deste Estado? Note: mudam totalmente as correlações de forças. Uma coisa é dissolver um Estado como a Alemanha Orien-tal, que tinha a proteção da URSS, e recebia tropas do Exército Verme-lho. Na medida em que a URSS é desintegrada, a Alemanha Oriental perde o seu sustentáculo externo. E assim, a outra Alemanha, a Oci-dental, com o sustentáculo da Otan, pode ocupar o vazio de poder que foi deixado do lado oriental. Outra coisa é a Coreia do Norte, ela mes-ma potência nuclear, e com fronteiras físicas com a China-RPC que não necessita colocar suas tropas em território norte-coreano. Do ou-tro lado, a Coreia do Sul recebe tropas dos Estados Unidos em seu território, e não possui fronteiras físicas com ninguém, a não ser com a Coreia do Norte. À distância, a Coreia do Sul possui fronteiras marí-timas com o Japão, a China-RC e a China-RPC.

Economicamente, a Coreia do Sul tornou-se uma das maiores po-tências industriais do mundo, sem dúvida, a segunda maior do Orien-te, apenas atrás do Japão. Sede de conglomerados como a Samsung, a LG e a Kia-Hyundai, a Coreia do Sul tornou-se uma porta de entrada da alta tecnologia para o mundo industrial. E isto não foi à toa. Du-rante a Guerra Fria, a Coreia do Sul, como o Japão, a China-RC, Hong Kong e Cingapura, eram regiões estratégicas de contenção para o avanço do bloco socialista soviético até os anos 1970. E o apoio dos Estados Unidos a estes países, na formação de grandes conglomera-dos econômicos foi decisivo na alteração do balanço de poder no Ex-tremo Oriente. Como foi decisiva a lenta e calculada flexibilização de concessões de poderes da China-RPC, a partir das políticas de Deng Xiaoping, desde 1976. Afirmar e reafirmar a ideologia socialista, sob uma perspectiva nacionalista chinesa, foi um dos pilares da China-RPC. Por outro lado, aproximar-se das potências capitalistas foi outro importante aspecto desta política. Mas isto não poderia ser feito, sem que um importante país tivesse que ter suas questões discutidas: a Coreia. Aceitar o avanço econômico da Coreia do Sul era estratégico para a China-RPC. Mas aceitar o sistema político sul-coreano, não.

A ideia de ter uma República Coreana ao Sul, sustentada por um sistema pluripartidário, combinado com grandes corporações capita-listas alimentando a economia, é algo importante para a China. Mas não sem o contraponto de uma outra República Coreana ao Norte, com um sistema unipartidário polícial, sem o mesmo poderio econô-mico, mas com um imenso cacife de negociação política. Enquanto

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cuidam do assunto “reunificação”, todos sabem que a república nor-te-coreana já está armada com um arsenal capaz de dissuadir quais-quer vizinhos, com o suporte decidido de Pequim.

Certamente os Estados Unidos não ficaram quietos com esta ideia, e se articularam, nos últimos anos, para isolar a Coreia do Norte. E mesmo isolada, a Coreia do Norte fala alto, faz ameaças, chantageia, recua, mas mantém a sua posição de força. A fronteira entre as duas Coreias, diferente daquela que dividia as duas antigas Alemanhas não é feita por um muro, mas sim por uma zona desmili-tarizada de grande largura. O desenho físico de uma república autô-noma, portanto, já existe. Não há muro, há uma região sem tropas, apesar de tão bem armados que são os dois exércitos coreanos.

Discretamente, a Coreia do Sul inicia um processo de parcerias público-privadas com a Coreia do Norte no modelo que deseja a Chi-na-RPC. Algo muito tímido, é claro. Mas já acenando para qual dire-ção se pretende ir. É importante lembrar que a China-RPC tem na sua fronteira com a Coreia do Norte uma região que é totalmente habitada por uma minoria nacional coreana, com o apoio oficial de Pequim. Diferente da Coreia do Norte, é uma região que não está iso-lada economicamente, recebe investimentos da China-RPC, está in-tegrada à economia chinesa, e serve de alternativa para auxiliar eco-nomicamente a Coreia do Norte.

O comando unipartidário da Coreia do Norte se mantém, mesmo que, às custas do empobrecimento geral da população. Há que se lem-brar da fome nos anos 1990, que resultou na morte de milhões de pes-soas. O isolamento internacional da Coreia do Norte não intimidou os seus líderes, tampouco os seus vizinhos chineses. E a população local simplesmente se mostrou incapaz de qualquer reação maior contra o regime, que como Pequim, é implacável com os seus opositores (basta lembrarmos do massacre da Praça da Paz Celestial em 1989, ano da Queda do Muro de Berlim, para se compreender um pouco melhor as reações do que estava se passando do outro lado do mundo...).

As questões de Estado se sobrepõem às de vida e liberdade indi-vidual, na medida em que os Estados que representam estas nações dizem respeito a comunidades coletivas, e trabalham em torno delas, e não priorizam as questões de cidadania, pelo menos não no sentido em que o Ocidente as pensa. Ainda mais em Estados dominados por um sistema unipartidário. Antes de se conceber “liberdade”, chine-ses e coreanos concebem “harmonia”. E isto faz muita diferença na hora em que se organizam politicamente.

Se na China-RC e na Coreia do Sul, os conceitos do Ocidente são melhor assimilados, na China-RPC e na Coreia do Norte, há algo que

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vai mais além. Se o cristianismo protestante entrou com toda a força na Coreia do Sul e na China-RC, os vizinhos da China-RPC e da Coreia do Norte levaram adiante uma tradição de doutrina de Estado de inte-grar e hierarquizar as religiões, a partir de doutrinas de Estado. Já foi citada aqui a formação da Igreja Patriótica, como dissidência chinesa ao Vaticano, que, por sua vez, só reconhece a China-RC. Como a ma-nutenção de um clero lamaísta na China-RPC, diante do Dalai Lama e seu clero, no exílio na Índia. Mas há algo mais firme e duradouro na China-RPC. Diante do rompimento das tradições anteriores, a Revolu-ção Cultural da China-RPC dos anos 1960 não criou o famoso Livro Vermelho à toa. Foi uma forma de se criar uma doutrina de Estado, tal como Confúcio criou a sua na remota Antiguidade (Mao Tse Tung na República; Confúcio no Império). Já na Coreia do Norte, o fundador da República Kim il Sum, o Grande Líder, fundou uma doutrina própria. Enquanto o Cristianismo (principalmente o protestante, através do Reverendo Moon) avançava no sul, tradicionalmente confucionista e budista, foi elaborada a doutrina Juche. Esta misturava as doutrinas de Estado confucionistas, com aspectos do Cristianismo e do Budis-mo, junto à ideologia moderna socialista. Uma forma de contenção da difusão religiosa dentro do território setentrional coreano, enquanto no sul expandia-se um “mercado” religioso junto a um sistema econô-mico capitalista e um regime político pluripartidário.

Então, a China-RPC sob o Livro Vermelho, e a Coreia do Norte sob a doutrina Juche, mantêm, dentro de cada uma de suas áreas, uma forma de hegemonia de Estado, onde a ideologia religiosa se submete a uma doutrina oficial que se apropria da ideia de multiplicidade de religiões, hegemonizando-a e tornando uma unidade da qual o ques-tionamento externo se torna uma forma de quebra de disciplina.

A ideia de “mercado” de religiões, que é algo comum e bem assi-milado no Ocidente como uma questão de escolha individual, pode ser bem aceito de forma diferenciada no Oriente. Basta ver, então, os exemplos citados da China-RC, do Japão e da Coreia do Sul, locais, inclusive, onde as populações podem possuir mais do que uma reli-gião ao mesmo tempo, uma vez que, mais do que revelações fecha-das, o Budismo, o Xintoísmo, o Taoísmo e outras são filosofias aber-tas de vida que são agregadas por famílias orientais ao longo de gerações, entre japoneses, chineses ou coreanos.

Por outro lado, a velha tradição de se construir uma doutrina oficial de Estado, gerada desde Confúcio, tem grande força e poder de mobilização, e é um fator decisivo na rede de relações China-Coreia. E, em especial, entre a China-RPC e a Coreia do Norte. Esta formu-lação mantém uma tríplice unidade: China-RPC e Coreia do Norte,

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no plano do Estado. PCCh, e Partido dos Trabalhadores Socialistas da Coreia no Plano do Partido. Livro Vermelho e Doutrina Juche, no Plano da Ideologia.

É este o ponto de partida que a Coreia do Norte tem, na hora de negociar a sua unificação com a Coreia do Sul: unidade e parceria com um poderoso vizinho, que nem exige tanto: a ideia de “um país, dois sistemas” já é um suporte bem elaborado. A China-RPC pode esperar. Porque, inicialmente, sua prioridade, por ora, é integrar a China-RC. Depois, mais adiante, poderá trabalhar o seu conceito de unificação com as duas Coreias. É importante, neste momento, manter a sua unidade interna. E, a todo custo, sustentar a unidade interna dentro da Coreia do Norte. Ainda que isto não seja nada agradável aos nossos teóricos valores de cidadãos do mundo.

outros avanços a conferir

A China-RPC possui contenciosos fronteiriços com uma série de países. Com a Índia, tem as questões da Caxemira e do Tibete. Com a Federação Russa, os limites fronteiriços da Guerra Sino-Soviética. São conflitos territoriais com potências nucleares de tamanho conti-nental, especialmente a Rússia, e muito populosos, no caso indiano. São avanços difíceis de ocorrer, devido à força de seus oponentes. Mas que podem se fazer notar, enquanto projeção política, na aliança da China-RPC com os países rivais da Índia e da Federação Russa, especialmente na Ásia Central.

Por outro lado, a China-RPC tem um plano de longo prazo de avan-ço rumo ao Pacífico, e na passagem para o Índico. E reivindica ilhas com diversos Estados. Com o Vietnã, a China-RPC disputa as ilhas Paracel, que ficam próximas às Filipinas. Mais ao Sul, a China-RPC também reivindica as Ilhas Spratly, com Brunei, Malásia, China-RC, Filipinas e o Vietnã. São ilhas muito pequenas, mas com grande valor estratégico e com grandes recursos econômicos, principalmente nas áreas de petróleo e gás natural, nas partes territoriais marítimas. Es-tas disputas, para a China-RPC, podem ser interessantes, no que diz respeito à aproximação de seu território ao Oceano Índico.

Por outro lado, existe ainda uma disputa entre a China-RC, a China-RPC e o Japão pelas Ilhas Senkaku/Dyaoiu, que são controla-das pelo Estado japonês e estando sob o controle do Estado chinês continental seriam a porta de entrada definitiva para o Oceano Pací-fico, algo que, decididamente, não interessa nem um pouco aos Es-tados Unidos.

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No entanto, como fica claro para os chineses, a prioridade é man-ter a unidade interna e o crescimento econômico. Estas reivindicações não parecem ser questões urgentes. Os chineses estão mais preocupa-dos em não dar passos em falso. E o confronto com o sistema interna-cional, dada a quantidade de contenciosos que a China-RPC possui, tende a levá-la a um grande isolamento. De 1949 a 1971, a China-RPC soube muito bem o que foi este isolamento, especialmente, a partir do rompimento com a URSS em 1961, e os resultados pífios do Grande Salto Adiante desde 1958, da Revolução Cultural a partir de 1966 e do conflito armado com os soviéticos em 1969.

A partir de 1971, a China-RPC começou a estabelecer a sua linha de poder. E condicionou: ou o país estabelece relações diplomáticas com ela ou com a China-RC. E assim, a China-RC foi expulsa da ONU, entrando a China-RPC em seu lugar. Em 1976, graças a apro-ximação com os Estados Unidos, a China-RPC começou a sua ascen-são, que dura até hoje. Sem fazer guerras, revoluções e acompa-nhando o direito internacional até onde lhe interessa. Obviamente, ela paga o preço das terríveis violações aos direitos humanos, como no massacre da Praça da Paz Celestial em 1989, da questão tibetana, da prisão e perseguição a dissidentes políticos. O desgaste interna-cional é óbvio e as cobranças surgem em todos os lugares.

No entanto, não se vê ou ouve na mídia notícias a respeito da in-tervenção de Forças Armadas chinesas em outros países, ou de esta-belecimento de bases militares. Vez ou outra, sabemos que a China-RPC está investindo em países africanos, até então esquecidos pelas potências ocidentais, de alianças como a dos BRIC, com potências como Brasil, Rússia e Índia e iniciativas como o projeto da constru-ção de uma ferrovia ligando o Pacífico ao Atlântico via Colômbia (um Canal “seco” do Panamá). Sempre buscando a cooperação econômi-ca. E lembrando dois importantes trechos da obra do velho coman-dante Sun Tzu, autor de A Arte da Guerra: “Aquele que conhece o inimigo e a si mesmo lutará cem batalhas sem perigo de derrota; para aquele que não conhece o inimigo, mas conhece a si mesmo, as chances para a vitória ou para a derrota serão iguais; aquele que não conhece nem o inimigo e nem a si próprio, será derrotado em todas as batalhas” e “evitar guerras é mais gratificante que ganhar mil ba-talhas” (capítulo III, “Estratégia Ofensiva”). É a tradição do Taoísmo, do Confucionismo e do Maoísmo, na China do século XXI.

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vII. ensaio

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Autores

Alfredo ReichlinDirigente da Fondazione Cespe – Centro Studi di Politica Economica, em Roma, foi mem-bro da secretaria, da direção e do comitê central do Partido Comunista Italiano, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” do PCI. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda) e, recente-mente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da “Carta de valores” do PD (Partido Democrático).

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Dos programas aos sujeitos

Alfredo Reichlin

Diante das mudanças epocais a que estamos assistindo, é oportu-no perguntar se, em consequência delas, estamos diante do nasci-mento de novos sujeitos. Falo de novas subjetividades políticas e cul-turais em que se possa apoiar um reformismo que queira se colocar à altura das coisas. Afinal, é uma nova humanidade que está se forman-do. E as mudanças (inclusive na Itália) são capazes de fazer com que tentemos lançar a vista além da contingência: pelo menos tentar. Per-cebo muito esta exigência, até porque não acredito que vá bastar uma manobra pelo alto para pôr fim aos efeitos mais profundos dos vinte anos berlusconianos. E, se observo a afasia da esquerda, continuo a pensar que um grande partido se afirma e ocupa a cena se sabe inter-pretar a novidade do conflito dominante e representar os seus atores. Em síntese, se está claro onde se coloca, com quem e contra quem.

Pergunto, antes de mais nada, em qual contexto tendencial nos movemos; qual é a tendência de fundo. E, ao fazê-lo, parto do juízo expresso no Financial Times por Martin Wolf há alguns dias: “Depois de três anos do início da crise, damo-nos conta de que, afinal, ela não foi o início de um colapso mundial. Depois de três décadas de desre-gulamentação, a tendência é por uma intervenção maior dos poderes públicos, mas sempre no quadro intelectual e institucional prece-dente”. Um juízo que Salvatore Biasco explicita mais quando subli-nha que persiste grande parte dos efeitos induzidos no tempo (trinta anos) da orientação neoliberista da mundialização: fragmentação da sociedade, inversão das relações de força no mercado de trabalho, esvaziamento da democracia, ampliação das desigualdades. Os ban-cos, além disso, tornaram-se maiores e mais poderosos do que antes,

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Ensaio

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de modo que o coração do poder, pelo menos no Ocidente, permane-ce nas mãos de uma restrita oligarquia. Portanto, não basta consta-tar que o modelo liberista fracassou, pesa o vazio de um novo pensa-mento capaz de enfrentar uma questão crucial: o mundo pode ser governado com base num desequilíbrio tão grande entre a potência da economia globalizada e o poder da política entendida como liber-dade das comunidades de decidir o próprio destino?

Através de muitos sinais, esta contradição está começando a se manifestar. Observemos a revolta que está abalando o mundo árabe, com efeitos geopolíticos e geoeconômicos que certamente serão mui-to profundos e nos quais não entro. Mas não penso que se trate ape-nas de revoltas da fome ou de fanatismos religiosos. Creio que, entre muitas outras coisas, está se tornando explosiva a contradição entre o advento de novas gerações aculturadas e a condenação de ampla parte delas ao desemprego, ao trabalho precário e à marginalização política e cultural. Este é o “grande desperdício” de que falou, inclu-sive sobre a Itália, o governador do Banco da Itália, Mario Draghi (30% de jovens desempregados), mas que se torna ainda mais explo-sivo na presença de regimes autoritários e corruptos. É o exemplo daquelas novas subjetividades de que falava no início, nas quais de-vemos nos apoiar. Acrescento que é muito importante o desapareci-mento daquela clássica tese americana, formulada por Samuel Hun-tington, segundo a qual entre o Ocidente e o mundo muçulmano seria inevitável uma guerra de religião e, portanto, não haveria espa-ços de diálogo. O contrário é que pode se revelar verdadeiro. Pode-ríamos assistir a um novo papel do Mediterrâneo como centro de novos encontros políticos e culturais.

Enfatizo esta esperança, mas não subestimo suas enormes difi-culdades. Torna-se obrigatório perguntar para onde vai a Europa. A Europa é, mais do que nunca, o lugar que defino como o nosso modo de ser. Quanto à China, a pergunta que aqui proponho, com o objetivo de avaliar o seu papel crucial, é como este enorme país en-frentará o advento das novas gerações. O dirigente dos industriais sicilianos, Ivan Lo Bello, perguntava-se recentemente sobre o fato de que surge no plano internacional um inédito capitalismo de Estado, que tenta conjugar mercado e compressão dos direitos políticos e sociais. Um novo pacto social parece emergir (a China é o seu epicen-tro): é um pacto social que postula uma troca entre crescente pros-peridade coletiva, bem-estar individual, eficiência e capacidade deci-sória do Estado, por um lado, e renúncia a reivindicar direitos políticos e civis, por outro. “Este –, ele dizia –, é o nosso ‘concorrente’ mais temível, que tem a ambição de escrever uma nova história radi-

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Dos programas aos sujeitos

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calmente diferente daquela que acompanhou as vicissitudes econô-micas e civis dos países ocidentais”.

Não sei em que medida seja fundado um tal juízo. Desmenti-lo-iam os novos problemas que a nova direção chinesa se está colocan-do, uma direção que parece decidida a enfrentar os desequilíbrios demasiadamente grandes do desenvolvimento, deslocando recursos para a produção de bens públicos e serviços. Mas de quais bens pú-blicos e de quais serviços? Dificilmente ela poderá replicar o modelo do Ocidente. Deverá inventar uma nova relação entre produção e consumo, logo, um novo modo de viver. Nascerão novos protagonis-mos, novas exigências de cidadania.

Em todo caso, a crise da democracia representa o problema central do mundo atual. E é o resultado não da mundialização em si, mas do modo pelo qual ela está procedendo, isto é, como causa e efeito de um desequilíbrio crescente entre a potência de uma economia mundializa-da e o poder da política privada dos seus instrumentos fundamentais (o velho Estado nacional como última instância de decisão diante de uma economia no passado amplamente doméstica).

Chegamos assim ao ponto que me interessa discutir: como pen-samos enfrentar este problema? Só aventando novas instituições su-pranacionais (certamente, isso também), ou então encarando, final-mente, o modo pelo qual muda o papel da política em sociedades que a rede de comunicação une, compara, mas cujas grandes diferenças, precisamente por isso, revela? E isso torna difícil estarem juntas. É uma questão muito nova em relação a toda a nossa experiência histórica. Trata-se, essencialmente, do problema de como represen-tar e dar poder a uma humanidade que se vê diante de uma multipli-cidade de oportunidades e riscos, de exigências e demandas que se produzem numa escala muito ampla, que supera os velhos limites. As respostas são difíceis, mas uma coisa me parece clara: não basta-rá entregar-se ao mercado que se autorregula nem à tradição social-democrata. Será preciso ir mais ao cerne dos problemas sociais e culturais. Partir deles em nome de uma visão mais alta do interesse geral e, portanto, de uma nova ideia do progresso humano. Depois de meio século – goste-se ou não –, volta à baila este grande tema.

Pensemos no que revelaram as duzentas praças italianas ocupa-das pelo movimento das mulheres. Lá havia não só uma nova ideia de si das mulheres, mas uma visão mais ampla da realidade. Expri-mia-se uma nova ideia da política, ia-se muito além de uma reivindi-cação de autonomia; havia a ideia de mudar não só o próprio lugar na ordem existente, mas a velha ordem no seu todo. Pareceu-me

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uma nova subjetividade que conquista a cena, um movimento que desloca a ênfase da reivindicação dos próprios direitos para uma reinterpretação do mundo, para uma releitura global do saber.

Portanto, há muito em que refletir. Percebem-se também sinais do despertar da esquerda na Europa, a começar pela Alemanha. Mas é uma esquerda diferente, que se forma com base em novas temáti-cas, como, por exemplo, a ambientalista.

Eis o sentido destas minhas sumárias reflexões: levar o reformis-mo a sair do pensamento débil destes anos. Mas, atenção, não por nostalgia de “esquerdismo” ou em nome de não sei qual nova “narra-ção”, mas como resposta ao modo pelo qual irrompeu no tecido demo-crático ocidental esta forma nova de economia com dominação finan-ceira, que obedece a lógicas de lucro (não haveria nisso nada de estranho), no entanto capazes de destruir o laço social, romper aque-les compromissos e aqueles valores que são o necessário pressuposto dos regimes democráticos. Sei que este tema é muito adverso ao pen-samento “liberal” destes anos. Todavia, é um fato que seus efeitos fo-ram catastróficos. E não me refiro só aos econômicos (a bolha especu-lativa), mas àqueles morais e até antropológicos: um sistema econômico baseado no risco moral, na dívida que gera dívida e no di-nheiro que produz dinheiro só pode conduzir à devastação dos recur-sos naturais e ao empobrecimento das camadas trabalhadoras.

Eis a grande questão com a qual devemos acertar contas: o des-tino e o papel do trabalho. É verdade que na sociedade moderna o trabalho não é tudo, mas o que parece ruir é o grande edifício histó-rico da modernidade. Aquele edifício que (à diferença do passado, em que as figuras representativas eram figuras do não trabalho: nobres, soldados, sacerdotes, aventureiros, enquanto o trabalho era o subso-lo da sociedade, o servo) vê como protagonistas as novas grandes forças produtivas: a burguesia e o proletariado. E, através do conflito entre ambos, o mundo ocidental convergiu para a construção de uma nova ordem: os direitos e os deveres, a liberdade e a democracia.

Recordo-me a mim mesmo que aquilo que é chamado capitalismo (esta palavra indefinível, pouquíssimo usada até por Marx) é uma vi-cissitude histórica peculiar de não muitos séculos e não é só um fenô-meno econômico. Foi e é uma civilização, e foi também, ainda que nas formas mais cruéis e tormentosas, um processo de emancipação dos homens de velhos vínculos. Portanto, minha pergunta é: o que vemos hoje é só uma sua variante ou é uma ruptura que nos põe diante de problemas verdadeiramente novos de convivência e sustentabilidade?

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Dos programas aos sujeitos

Alfredo Reichlin

Não quero enveredar por uma disputa historiográfica. Só quero recordar que, se a chamada economia de mercado cresceu em sim-biose com a civilização europeia, isso ocorreu não porque descobrira o mercado (o qual existe sob os regimes mais variados há milênios), mas pelo fato de que o poder político ditava ao mercado as regras que o tornavam não certamente o lugar da igualdade, mas muito menos o da luta entre feras. É isso que um economista e historiador como Paolo Prodi chama de “dualismo”, um dualismo entendido como não coincidência do poder político com o econômico e como copresença e concorrência de normas éticas e de direito positivo com a avidez do homem econômico. O que representou aquele fator que gradativa-mente conduziu ao desenvolvimento do homem moderno e, depois, à criação da democracia e do Estado social.

Alguma coisa não se sustenta numa situação que voltou a consi-derar o trabalho como um resíduo. É uma grande questão política, não sindical. E ela se entrelaça com uma outra grande questão de que falamos pouco, isto é, com a evolução em curso da ideia de em-presa (instrumento para criar “valor” para os acionistas através do jogo de bolsa, ou lugar onde, com a colaboração de forças diversas, faz-se a inovação e se cria a economia real?). A quem considere estes temas muito radicais e pouco reformistas gostaria de lembrar que o que está em jogo é o fundamento da democracia. De fato, sobre o que se sustenta uma democracia e em que se baseia a vitalidade das ins-tituições, se um jovem sabe de partida que sua vida e seu destino serão apenas uma sucessão de trabalhos precários? Nestas condi-ções, o que vem a ser uma comunidade? Não me livro da impressão de que aqui se define o terreno do conflito ético-político, além do so-cial. Mas é justamente aqui, é neste terreno que penso se possa for-mar aquela nova síntese entre a tradição democrática do socialismo e o humanismo cristão, a ideia na qual alguns de nós trabalhamos há anos, mas até agora com poucos resultados.

Estamos diante de algo paradoxal. Governos e bancos centrais endividaram-se em trilhões de dólares para salvar os bancos. Em decorrência, a dívida privada se transformou em dívida pública. Daí o paradoxo: faltam recursos para os investimentos produtivos, para o Estado social, para o emprego e o desenvolvimento. A clássica situa-ção em que a riqueza privada se nutre da miséria pública. Enfrentar um tema desta natureza impõe encetar uma profunda reforma do sistema político, que há vinte anos condiciona pesadamente a situa-ção italiana: o populismo, o mito do homem solitário no comando. Uma alternativa exitosa deveria considerar melhor o fato de que Ber-lusconi não vem do nada, mas do vazio criado pelo fim dos grandes

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partidos da Primeira República. Estes, por sua vez, foram minados não pelos juízes [Operação Mãos Limpas], mas por algo que dizia respeito à grande mudança em curso da sociedade ocidental. Não o “bunga bunga”, mas o indivíduo definido pelo consumo no lugar do cidadão e da pessoa. O consumismo no lugar dos direitos iguais. Não falo só da Itália, evidentemente. Noto apenas que esta espécie de su-percapitalismo financeiro foi, afinal, a resposta ao desaparecimento daquele grande edifício da modernidade de que falei e que funda-mentava na livre empresa e no trabalho a fonte do direito e a exigên-cia de cidadania. Nesta base se fizeram os partidos, a democracia dos partidos. Isto é, o instrumento através do qual os cidadãos podem não só votar, mas encarar o Estado e os grandes poderes reais atra-vés de identidades coletivas. Esta é a questão, nada de partidocracia. E com as identidades coletivas se criara a possibilidade de passar da simples alternância entre grupos políticos a reais mudanças das re-lações de poder entre dirigentes e dirigidos. Não esqueçamos que este foi também o verdadeiro motor do “milagre” econômico italiano.

Se observarmos a Itália de hoje, o dado de síntese mais significati-vo é que se deteve o desenvolvimento do país. É como no início do sé-culo XVII, diz-nos Marcello De Cecco citando Carlo Cipolla, quando, como hoje, o país reage pouco ao seu declínio porque tem pouca cons-ciência dele, e assim é porque vive consumindo a riqueza acumulada. É um juízo discutível, se considerarmos a vitalidade duradoura da Itália. No entanto, é fato que um processo de declínio começou, e evi-tar que se torne incontrolável é, no fundo, o problema dos problemas. Pessoalmente, penso que, para enfrentá-lo, seria preciso olhar além das razões econômicas e se propor questões mais de fundo, que dizem respeito ao ordenamento social. Que ideia fazemos deste ordenamen-to? O que está por trás da degradação crescente do Mezzogiorno e dos problemas não resolvidos de natureza do Estado, como a corrupção e a enorme evasão fiscal? Será culpa dos maus governos? Certamente. Será culpa dos erros na gestão da dívida pública? Certamente. Mas os historiadores de amanhã, tendo de explicar esta coisa inacreditável e vergonhosa – que um grande país se deixou dirigir durante vinte anos por Berlusconi –, penso que não se contentarão com estas análises. Realçarão também outras coisas, como, por exemplo, o peso, a exten-são e as ligações internacionais da criminalidade organizada italiana. Segundo estimativas, são 20 milhões de italianos que, de fato, não são mais protegidos pelo Estado e pela lei. E agora este câncer se estende também no Norte. Torna-se difícil falar de mercado, quando a econo-mia é cada vez mais governada por bandos, clãs, grupos criminosos. Logo, a pergunta que neste ponto me proporia a mim mesmo, e tam-bém aos economistas, é se, junto com aquelas medidas corretas que

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dizem respeito à reforma dos mercados, à produtividade das empresas e à luta contra o desperdício e as rendas, não seria preciso também voltar a pensar nos instrumentos e nos sujeitos capazes de canalizar a poupança para bens públicos, serviços, conhecimentos, capital so-cial e capital humano.

Por certo, não podemos reproduzir o velho capitalismo de Estado. E bem sei que estamos totalmente integrados num mecanismo de de-senvolvimento que só em nível europeu pode ser combatido. E, no entanto, qualquer sistema econômico é, no fim de tudo, uma relação entre pessoas, não entre coisas. E penso que os programas contam e incidem se forem animados por uma ideia adequada às características desta crise. Seria preciso, pois, pensar em definir um novo pacto de cidadania. Um pacto político que seja uma coisa diversa e muito mais ampla do que os velhos pactos entre produtores do passado. (...)

São necessárias novas ideias. Há anos não inventamos nada. Fla-gelamo-nos com a crise da esquerda, mas talvez não tenhamos per-cebido que, mesmo em presença de sociedades parcelizadas, também se abriu uma nova exigência que é constitutiva do gênero humano em formação, isto é, a exigência de um novo “nós”. Um nós que veja além dos territórios singulares (bastariam os desafios ora iniludíveis dos direitos humanos e da proteção do ambiente para nos darmos conta disso). E esta espécie de novo “nós” é também possibilitada pelo modo novo com que já hoje se mobilizam as massas e se organi-za a participação popular. A mensagem interativa é que organizou as grandes manifestações destas semanas na Itália e no Norte da África. Alguns já dizem que já entramos na era pós-televisiva (isto é, além da era da comunicação passiva, unidirecional, confiada à tela pequena), passando à do social network interativo, de modo que é suficiente uma palavra chave para veicular uma mensagem política.

Concluindo: pensar uma forma nova da política como o lugar das grandes escolhas coletivas. Necessariamente os partidos, que, no en-tanto, diferentemente do passado, deveriam apoiar-se numa plurali-dade de organismos intermediários, cujo traço comum é uma ideia de progresso inspirada pela consciência de que o mundo está em si-tuação de risco e que governá-lo é uma tarefa comum. Em suma, um horizonte de valores neo-humanistas dentro do qual toda e qualquer formação política e cultural se coloca a seu modo. Por isso, penso que é tempo de dar muito mais atenção a novos organismos interme-diários, inclusive autogestionários, a começar pela empresa coopera-tiva, pelo terceiro setor, pelo federalismo. Devemo-nos apoiar naquilo que está emergindo: uma economia social que se vale dos enormes recursos não vistos pela grande economia e que atribui a gestão dos

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recursos às comunidades locais, inclusive por meio de uniões e acor-dos entre pessoas.

A questão social não pode mais ser reduzida à disputa entre a em-presa e os operários. É o conjunto do mundo dos produtores, isto é, das pessoas que criam, pensam, trabalham e empreendem, que sofre uma forma nova de domínio e de exploração. Mas, se é assim, existem as condições para alianças mais amplas. Tanto o modelo social-demo-crata quanto o liberista estão obsoletos. A política deve saber reconhe-cer a riqueza da vida social. Deve oferecer soluções para os problemas coletivos que escapam às velhas identidades. E assim volto à Itália. É bastante óbvio que o conjunto de reestruturações que ora aguardam improrrogavelmente o nosso país seguramente não poderá ser levado adiante num clima de guerra de todos contra todos. E é aqui que se reencontra a razão fundante do Partido Democrático.

Sobre os referendos últimos

Sobre o significado da avalanche de votos nos referendos recente-mente realizados na Itália já se disseram muitas coisas. Convém re-fletir bem a respeito, porque as novidades são grandes: afinal, é uma nova geração que está tomando a palavra. Não é pouco. Não creio que se trate só de uma condenação política de Berlusconi. Certamen-te, é isso também, e é fundamental. Mas no voto daqueles 25 milhões de italianos (muito além dos limites da esquerda) existe, acredito, um fenômeno mais profundo: a exigência das pessoas de se reapropria-rem da suas vidas.

Pierluigi Bersani fala de uma revanche cívica. É verdade, mas em relação a quê? Não só à vergonha do “bunga bunga”, mas também (não o ocultemos) à degradação da política: a política sem finalidade, sem análise nem programa, em busca de um consenso imediato, su-balterna ao poder econômico. Fiquei surpreso com a indignação de alguns sobre o “simplismo” do quesito sobre a água e a energia nu-clear. Sim, era simplista, mas o que não se compreendeu é o senti-mento que finalmente se revela com tanta força depois de anos e anos em que só se fez a exaltação do indivíduo negado como pessoa, porque “a sociedade não existe”.

É a demanda de “bens comuns” e de qualidade de vida que se revelou. Emerge, finalmente, uma enorme exigência de justiça que ouvi no grito de uma mulher simples: vocês nos tiraram o trabalho, tornaram-nos trabalhadores precários, enriqueceram-se escandalo-samente, quero pelo menos impedi-los de tomar o mais simples dos

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bens comuns, que é a água. Uma ingenuidade, certamente, mas a esquerda, se for inteligente, deve compreender que existe uma enor-me demanda de relações sociais, de sentido das coisas, de significa-dos da vida, de regras. Eu parto disso.

E é por essa razão (está mudando algo na relação entre política, economia e sociedade) que percebo a necessidade de um partido novo. Não mais a soma de velhas histórias. O Partido Democrático. Um sujeito político que pretende pôr em campo um movimento refor-mador amplo, o qual seja sustentado por uma cultura capaz de reler os problemas italianos à luz da relação cada vez mais intrínseca en-tre a Itália e o mundo.

Mas que análise vocês fazem – me perguntou um velho amigo - se não levam em consideração o modo como o superpoder financeiro está mudando por toda parte os mapas sociais e a relação entre o dinheiro e a riqueza real? Percebem o que implica este tipo de auste-ridade imposto pela direita europeia? Vocês não terão nunca o de-senvolvimento e terminarão como a Grécia.

Com efeito, é esta a grande tragédia que nos assedia, e para en-frentá-la é vital limpar o terreno deste governo que não governa. É diante deste risco mortal que o dever do Partido Democrático é pôr em campo um novo projeto para a Itália.

Mas não bastará agir “de cima”: será preciso despertar os recursos mais profundos e vitais do país. Eis a grande tarefa que o PD se pro-põe. É a de restituir à democracia o poder de decidir, o que, no fundo, consiste em inverter a relação de subalternidade da política em rela-ção à economia. A democracia não só como procedimento, mas como liberdade das pessoas, as quais, através de um novo poder político, sejam postas em condições de decidir o próprio destino. É aqui que se fundamenta a razão da reunificação das forças reformistas e a novida-de do perfil de uma força que assume a missão de restituir ao “prínci-pe” (isto é, às pessoas) o enorme potencial criativo dos italianos, sua liberdade de escolher, de empreender, de se realizarem.

É neste horizonte que vejo a necessidade de reerguer a bandeira do trabalho. Um trabalho que não é só o trabalho operário, mas tam-bém, certamente, o do empreendedor, do produtor, do intelectual, do artesão. Uma coisa diferente em relação ao trabalho dos tempos de Giuseppe Di Vittorio [velho líder sindical comunista da CGIL]. Mas uma coisa igualmente forte. Trata-se de uma ideia de justiça e soli-dariedade, capaz de envolver as camadas mais modernas e criativas, reconhecendo, além das necessidades, os méritos, e dando a palavra a uma nova geração que se impacienta com as velhas tramas.

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Ensaio

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Sempre tive a convicção de que não se pode formar um grande partido sem uma visão de longo período. Mas em que consiste hoje esta visão, senão em pensar o processo de emancipação social como um fenômeno que não cancela os contrastes de classe, mas não se reduz a eles? Toda a história humana foi adiante graças à progressiva libertação do indivíduo das velhas barreiras nas quais se organizara pouco a pouco a sociedade: dos vínculos feudais ao papel dos sexos e às contraposições sociais com bases ideológicas.

E é por isso que não são aceitáveis as lógicas de uma oligarquia financeira que tende a invadir – inclusive através do controle da in-formação e dos instrumentos que produzem o “senso comum” – to-dos os âmbitos da vida. A sociedade não pode ser reduzida à socieda-de de mercado, sem se desagregar. O indivíduo largado a si mesmo não pode apelar àquelas suas extraordinárias capacidades criativas que não vêm do simples intercâmbio econômico, mas da memória, da inteligência acumulada, das esperanças e da solidariedade humana.

O desenvolvimento humano. Afinal, não seria este o objetivo e a marca identitária do Partido Democrático, a sua missão original?

Tradução: A. Veiga Fialho.

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vIII. vida Cultural

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Autores

Maria Aparecida Rodrigues FontesDoutora em Literatura Comparada.

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Poetisas cariocas do século XXI

Maria Aparecida Rodrigues Fontes

O estudo da produção poética de autoria feminina dos anos 1990 e início do novo milênio envolve a reconstrução das condições sociais e histórico-políticas das quais emergem esses sujeitos plurais compro-metidos com a “elaboração das representações culturais” de nossa época. Mas envolve, sobretudo, uma revisão do aparato crítico, um molde vazado, que circunscreva, ainda que de modo parcial, essa mul-tiplicidade, essas vozes dispersas, afastando a criação de novos “câno-nes literários”. Desse molde vazado, começa a surgir uma paisagem cujos planos e cores se multiplicavam, evidenciando uma pluralidade de temas, formas e conteúdos. Observo que essa heterogeneidade, esse hibridismo da dicção poética feminina, é, ela mesma, a caligrafia literária dos anos 1990 e início do milênio no Rio de Janeiro.

Dos inúmeros livros de poesia que li desse período, observei que a dicção poética dessas mulheres se aproxima do discurso da prosa, especificamente da fala. Laura Esteves, Helena Ortiz, Glenda Maier, Cristina Ferreira-Pinto, Marcia Leite, Ana Cruz, Flora Furtado e Sil-vana Salles são autoras que exploraram, de modo diverso, esse re-curso técnico. É da oralização da escrita poética e das suas represen-tações como figuras, que compõem o mosaico da produção de autoria feminina desse período, que nasce a figura da Torre de Babel como metáfora das várias vozes e da oralidade que imprime aos sujeitos dispersos a sua identidade “híbrida”. Babel é a figura que resume a criação de uma linguagem baseada na variedade da fala através da qual essas poetisas constroem a sua própria história, sua identidade e a sua caligrafia poética.

Um dos eixos de análise utilizados para definir a oralização da produção poética dessas autoras partiu da diferença que se estabe-lece entre “língua” e “fala”. O conceito de língua é bastante amplo e engloba todas as manifestações da fala e suas variações que podem ser geográficas, sociais, profissionais, situacionais. O que é específi-co da língua falada é o fato de ela manter uma profunda vinculação com as situações em que é usada. A poesia dessas mulheres mantém esse vínculo com as situações que descrevem, com o aqui e agora. A poesia retoma a sua função declamatória. As performances poéti-cas tão propaladas na década de 1990 refletem a tendência de sub-

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trair a distância entre voz e escrita. Isto porque a comunicação oral se desenvolve em situações em que o “contato” entre os interlocuto-res é direto: na maioria dos casos eles estão em presença um do ou-tro e elaboram um discurso marcado por fatos da língua falada.

Na verdade, o discurso poético dessas autoras está, sobretudo, comprometido com uma militância poética: uma poesia feita para ser recitada, lida, que pressupõe a interação direta com o público, uma poesia para ser falada e cantada, uma poesia de viés político, aquela que está nas ruas, nos bares, que mistura os vários médias, o teatro, a música, a mímica, a máscara. Uma poesia do cotidiano, dos frag-mentos, da memória que dialoga com o presente através de flashs. Uma poesia que encarna a fala de diversos atores sociais: o menino de rua, o polícial, a prostituta, a dona de casa, a avó. Para dar voz a essa diversidade foi necessário romper com a escrita, com a lingua-gem formal, com a sintaxe e criar uma outra linguagem poética ba-seada na discursividade, na hibridação dos idiomas, na velocidade da fala compatível com o ritmo urbano, com a nossa época. Tornou-se necessário, então, reproduzir a fala.

Para essas poetisas, a consciência de uma pluralidade de tempos e espaços é inevitável diante das experiências do cotidiano na moder-nidade tardia. Isso cria uma heterogeneidade de temas e registros poéticos. Portanto, entre símbolos e alegorias, a produção poética dessas escritoras não possui uma unicidade. Convivem, no interior de um mesmo período, os tempos diversos, os estilos e a multiplici-dade de ritmos e temas, afinal, característicos da história literária brasileira. Trata-se de uma espécie de “descompasso constitutivo” que marcaria a poesia desde o Romantismo. A qualidade híbrida que define a “construção” poética, sobretudo nos anos 1990 e início do novo milênio, demonstra a convivência de sistemas culturais distin-tos em meio às tensões e discordâncias entre movimentos literários diversos que surgiram nesse período. A heterogeneidade e a plurali-dade vocálica são em si a sua caligrafia, mas também o seu leitmotiv, pois se tornam as bases de uma atopia, constitutiva de um conjunto formado por dois ou três sistemas literários diferentes, segundo re-giões, linguagens e outros, correspondentes ao capital cultural acu-mulado. É por meio desse confronto de realidades distintas, das ato-pias vocálicas, que se podem compreender as relações entre a forma literária e o processo social, e estabelecer o momento histórico da enunciação poética.

O engenho de Helena Ortiz, por exemplo, realiza a construção gradativa da cidade, o seu cotidiano constituído de vícios, futilida-des, estranhezas, extraídos das rotinas do trabalhador (construtor)

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Poetisas cariocas do século XXI

Maria Aparecida Rodrigues Fontes

“transcendente/ inútil”. Trata-se da afirmação de uma unidade transcendente, mas inútil, e de uma multiplicidade de vozes que pa-recem confundir-se como em Babel, porém estão em par. Uma dupli-cidade de registro que mantém uma certa instabilidade entre des-crição e relato, um tom expositivo e um andamento narrativo na composição do poema. Misturam-se as funções poética e referencial como no poema “Motim”, do livro Em par (2001).

Helena, preferindo a concisão das formas, as metonímias, a si-multaneidade temporal e mantendo, em geral, o verbo no presente, evidencia a heterogeneidade de segmentação dentro de cada comuni-dade. Trata-se de uma poética “vista de baixo”, uma espécie de “mi-cro-história”, não linear, de vozes variadas e opostas, que misturam as suas lembranças, valores morais e religiosos aos espaços culturais descontínuos das grandes metrópoles. Nos poemas de Helena, os pontos de vista são sempre descentrados, dobrados. A poetisa procu-ra ângulos novos, moldes vazados, para extrair do cotidiano, da me-mória, do amor e da morte o sentido inusitado (e efêmero) da vida.

Do cotidiano, essas mulheres extraem a “palavra-não-poética”, recurso praticado pelos modernistas como uma afronta ao academi-cismo, especificamente à poesia parnasiana. Assim, as poetisas aproximam o discurso poético do prosaico, diluindo as fronteiras en-tre verso e prosa, e introduzem os elementos da linguagem falada: o discurso direto, conversações, interjeições, provérbios, onomato-peias, e uma sintaxe característica da fala popular. É curioso obser-var a construção dos versos em Helena Ortiz e Laura Esteves. Ambas as escritoras abolem os excessos da sintaxe, utilizam, sobretudo, os substantivos, os verbos no infinitivo e as orações coordenadas, uma das formas de se obter a concisão do poema, a justaposição das ima-gens, e de se aproximar do discurso oral.

Mas o que se quer é a construção perfeita do poema, da escritura que se traduz em corpo e palavra, em carne e osso. Trata-se, então, de erguer o edifício estético da humanidade a partir da palavra. Por isso refiro-me nesse texto à Torre de Babel. Recordando o mito de Babel, sabemos que a verticalidade domina todo o texto. Alguns ar-quétipos ascensionais estruturam o relato. A sucessão dos fatos, que abre o livro do Gênesis, evoca uma cosmogonia hierárquica, quando o homem do alto de uma pirâmide domina as criaturas terrenas e de onde mantém uma relação estreita com Deus. A partir daí, formam-se núcleos metafóricos, campos de imagens, figuras, através das quais a ideia de verticalidade e ascensão se irradia por todo o texto. É assim que, após a Torre de Babel, surge também a imagem da “es-cada de Jacó”, cujas verticalidade e função mediadora ilustram, de

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algum modo, o segredo de Babel. Na verdade, é uma metáfora axio-mática, realizada de mito em mito como a “montanha sagrada”, a “pirâmide”, a “Torre”, o “campanário” ou o “voo de Ícaro”.

Do simbolismo “espetacular” do olhar, a leitura dos poemas de Helena, como no texto babélico, escorrega para o simbolismo ascen-sional: da luz ao verbo, da afirmação da unidade à multiplicidade, encarnada pelos peregrinos e construtores da Torre ou pelo poeta que inaugura o fazer poético como quem sobrevoa uma cidade poli-fônica/invisível ainda por ser conquistada, a exemplo o poema “Pri-meira migração”.

A verticalidade e a mediação são o esquema arquetípico do axis mundi, eixo universal a partir do qual, na intenção dos construtores, se edifica a Torre, enquanto aos olhos de Javé ela se constituía na “paródia demoníaca”. Assim, dentre os livros da Bíblia, é Babel que anuncia um dos temas capitais das vicissitudes humanas, isto é, a oposição entre os “sedentários” e os “sem lugar”, entre a fixação e a dispersão. Isso aponta não apenas para um espaço de desdobramen-to, mas também para um tempo cíclico dos impérios e das revolu-ções. Como se observa hoje um tema comum em nossas vidas: emi-gração, desterritorialização, dispersão e fixação, transnacionalização, hibridação e tantos outros ligados à globalização.

Habitar essa “cidade polifônica e invisível”, porque nada se fixa, ou construir uma Torre, significa, para essas poetisas, edificar a palavra poética através da qual elas podem tocar o céu, comungar com Deus, significa fazer-se um nome. No poema “Limiar absoluto”, de Helena Ortiz, o eu lírico alcança essa “síntese das manhãs”, dizendo o que está para além do nome, o “corpo que enfim retorna/do exílio o sal nas mãos a terra fértil” (2001, p. 51). Corpo, casa, Torre exaltam os con-trastes implícitos na verticalidade de suas linhas, a oposição assim desenhada entre uma transcendência estática e um devir temporal indefinido, senão indeterminado, constitui a tensão entre “querer-ser” e um “querer-fazer”, o que move a história humana.

A poesia de Laura Esteves recupera a espessura existencial da vida cotidiana. No seu primeiro livro de poemas, Transgressão, a es-critora demonstra o seu ecletismo e a sua irreverência, através de um tom irônico e rebelde, abordando temas sociais polêmicos. Laura é lírica, erótica, nostálgica, política e social. Em Como água que brota na fonte (2000), ela mesma afirma, ser “transbordamento, torrente e travessia” – momento em que passado, presente e futuro se tocam: a aldeia dos ancestrais, a fala da avó, as cantigas de roda, o suicídio das mulheres, a infância, a cidade, “a esperança revolucionária”.

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Maria Aparecida Rodrigues Fontes

Nos poemas de Laura Esteves, a memória é o leitmotiv que propi-cia a combinação de elementos tradicionais locais aos urbanos. Veri-fica-se a interpenetração de planos, não apenas espaciais, mas tem-porais: passado e presente ajustam-se num tempo mágico, correspondente a momentos diferentes da sociedade. Os espaços multiplicam-se, tornam-se atópicos, disseminados. Laura constrói, em seu livro Como água que brota na fonte, sua torre de lembranças. A metáfora da tecelã que costura passado ao presente não é sem ra-zão. Trata-se de buscar no passado a própria identidade, um nome, uma estirpe, uma caligrafia coletiva. Em “Tecelãs da vida”, a poetisa atribui às mulheres o papel de artífice da História.

A produção poética de autoria feminina aqui examinada também aponta para esse processo de exclusão e testemunha, por um lado, o movimento de dispersão desses sujeitos em busca do próprio nome e de seu espaço; e, por outro, se impõe como uma outra voz. Esta voz desenha uma geografia diferencial, com níveis diversos de existência e zonas concêntricas das quais emerge uma “fala” modulada pelos planos diversos da história. No poema “Uma Luz sobre nós”, de Lau-ra Esteves, os estratos culturais superpostos correspondem a mo-mentos diferentes da sociedade brasileira. O assassinato do índio Galdino é particularmente exemplar não apenas para a compreensão do processo de aculturação, da violência dos encontros culturais e da diferenciação do Brasil, mas porque promove uma reflexão sobre o desdobramento de planos culturais híbridos decorrentes da disper-são humana, da pluralidade e diversidade, e das injustiças sociais, além de ser uma resposta às tensões culturais resultantes da urba-nização e modernização do país.

Se a ideia inicial da construção da Torre baseava-se na manuten-ção da unidade do povo e da língua, no momento em que é erguida se concebe a História, faz-se um nome, e multiplicam-se as línguas, a fala, o murmúrio de vozes. A cidade e a Torre deixam de ser um centro de conciliação e comunhão e tornam-se figuras da dispersão, da incomunicabilidade, da perdição e da errância. Assim como em Babel, não há uma unicidade, uma homogeneidade, e nem pode ha-ver, na construção da caligrafia poética dessas mulheres. Ao contrá-rio, torna-se visível a coexistência de vários códigos simbólicos num mesmo grupo e até mesmo num mesmo sujeito, assim como os em-préstimos e transações interculturais. Cada um constrói a própria Torre, tenta tocar o céu, descobre que Deus está pronto para nos confundir, descobre a Lei, a palavra e a história. Depois, destrói a Torre, desconstrói a Lei, a palavra e a história, e (re)faz-se um nome.

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Ao aproximar a poesia da fala, Glenda Maier desequilibra o senti-do do poema em direção à prosa, através de um discurso no qual prevalece a função referencial. Jakobson já havia assinalado que a poesia se concentra no signo de função poética e emotiva, enquanto a prosa, sendo pragmática, no de função referencial, o que possibili-ta a abertura para a poesia discursiva, consequentemente para a oralidade. A negação da função poética e o investimento nas funções referencial, metalinguística e conativa da linguagem revelam tam-bém a dissociação entre poesia e discurso do ser, evidenciando que a poesia converte sua função ontológica em uma função social. De fato, a poesia de Glenda Maier assume, em tom coloquial, o caráter de denúncia e uma perspectiva política. Assim em Poesia etc. & tal (2002), diz ela: “Que sintam, diariamente, em suas narinas emproa-das/ o cheiro nauseabundo das carnes putrefatas/ dos que morre-ram, sem socorro, dentro de públicos.../ hospitais!, diz Glenda em “Poesia maldita” (2002, p. 98).

Glenda não rasura apenas os limites entre língua e fala, prosa e poesia, mas também entre sujeito e objeto, realidade e imagem, pú-blico e privado. Glenda aponta para essa nova forma de comunicação através dos meios eletrônicos que fizeram irromper as massas popu-lares na esfera pública e deslocaram o desempenho da cidadania em direção às práticas de consumo. Com isso, Glenda registra em seus poemas como as identidades na modernidade tardia são transterrito-riais e multilinguísticas.

Da mesma forma que essas poetisas aboliam a distância entre língua e fala, em geral, aboliam também os liames que separam o poeta do seu “eu lírico”. Desse modo, a dicção poética transforma-se na fala da própria autora. Trata-se de uma “fala” livre, sem a másca-ra que já não encobre mais o rosto do eu lírico, aquele que dissimu-lava seus desejos e que elaborava um outro eu para edificar o seu lirismo. Embora encarne as vozes de vários atores sociais, o pseudo eu lírico (que não existe) não se transforma em o Outro, mas assume a sua própria identidade e surpresa diante da dor, diante do Outro e da vida pós-moderna.

Nos poemas de Marcia Leite vislumbram-se reinvenções fragmen-tárias de bairros, ruas, ou zonas, superações pontuais do anonimato e da desordem, é o que testemunha de modo prosaico o eu lírico em “Van”, do livro Curtos & Definitivos (2000). Em “Latinidade”, uma história do cotidiano, voltada para a oralidade, atópica, que proble-matiza a diferença, os conceitos de identidade e da experiência. Em Curtos & Definitivos, Marcia traduz o ritmo urbano, a velocidade, a

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fala das minorias sociais, a realidade cruel que nos faz reféns, o ero-tismo que se mistura ao cotidiano de uma urbis em ruína.

A poesia de Ana Cruz também aponta para esse processo de ex-clusão e testemunha, por um lado, o movimento de dispersão desses sujeitos em busca do próprio nome e de seu espaço; e, por outro, se impõe como uma outra voz. Esta voz desenha uma geografia diferen-cial, com níveis diversos de existência e zonas concêntricas das quais emerge uma “fala” modulada pelos planos diversos da história. Em Com perdão da palavra (1999), Ana diz “abrir o verbo”, através de uma poesia discursiva e combativa; engajada nas reivindicações do movimento em defesa dos direitos dos afro-brasileiros. O poema “Fala Preta” torna-se a voz do outro excluído, da mulher simples, dona de casa, reprimida pelos preconceitos morais, religiosos e esté-ticos, da prostituta, do indivíduo drogado, do mendigo, do “menino de rua”, das negras. Todavia, em Mulheres Q’rezam (2001), a poetisa abandona o tom combativo, alimentado por ideais de rupturas com o sistema social e falocêntrico, e cria uma poesia reflexiva, voltada para o passado, o amor e os problemas conjugais.

A poesia de Flora Furtado (Laura Esteves) refaz o caminho da memória e o registro poético também passa a operar a partir de ora-lização da linguagem. Em A morosa caligrafia (2003), Flora observa que as “Lembranças migram, gestos minguam/ palavras trancadas em chaves secretas”. Já em “O fuso da língua”, do livro Navegações do Sentido (1997), Flora Furtado traz para a cena poética o seu diário de bordo. Nele ressoa a vivência do sertão, que “é agrura e gáudio” (amargura e alegria), e a voz das “pedras cabralinas”, metáfora da incomunicabilidade, misturando-se à opacidade de outras paisagens e à “voz extinta fogo-fátuo” de outras histórias além mar. Isso nos remete a uma outra característica da memória: a de operar uma con-tínua reconstrução de si mesma; isto é, a recordação do passado a partir do fluxo dos eventos do presente, é como “segurar o fio das palavras que socorrem/ não se preparam despedidas”.

A língua e a fala tornam-se o instrumento que assegura a cons-trução identitária. A linguagem é a mediação que nos permite estar no mundo e criar um espaço de racionalidade, isto é, o logos. Através da multiplicidade da linguagem é que as escritoras recolhem as vozes dispersas. Uma “escrita da fala” que mistura as formas eloquentes da palavra à verbosidade letrada. Ao incorporar as vozes dos excluí-dos, a poesia dessas mulheres volta-se para a multiplicidade da rea-lidade do quotidiano e administra recursos estilísticos mesclados como alteração do modo de composição para aproximar a escrita da fala. O que significa a oralização da escrita poética. A combinação de

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Vida Cultural

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registros culturais diversos e a capacidade da materialização dessas vozes, que encarnam os repertórios folclóricos, ligados às festas po-pulares, à infância, aos cultos e rituais, à fé, aos santos, e os elemen-tos urbanos, os shoppings, criam intertextualidades e dão à lingua-gem uma aparência de espontaneidade, em meio a muitas aspas e fala alheia, reforçando o efeito da oralização, que às vezes soa como um jogo pueril. Esse efeito atópico a partir da memória somente é possível devido ao registro informal da linguagem, isto é, da oraliza-ção da escrita. Trata-se de um arranjo formal no qual a potência da voz é sincronizada, através de um ritmo oratório que tenta mimetizar a fala, os gestos, as impressões, enfim, os sentidos.

Se, por um lado, as expressões coloquiais determinam alguns segmentos e atores sociais, como no poema “Quase mulher”, de Lau-ra Esteves, por outro, elas também ampliam a percepção de contem-poraneidade das populações urbanas marginalizadas que se multi-plicaram, nas cidades brasileiras, na segunda metade do século XX. Somam-se a esse léxico “transgressor” da vivência urbana expres-sões populares regionais, características de um tempo e de um espa-ço específico: “mula sem cabeça”, “homem da meia-noite”, “mulher de branco”, “cavalo de fogo”, “corisco”, “jagunço”, “danação”. Trata-se de uma convergência temporal que, embora aproxime elementos díspares, evidencia uma atopia significativa.

Na produção poética dessas escritoras, as figuras de linguagem sonoras, tais como a aliteração, a assonância, as onomatopeias e o eco, colaboram para intensificar o processo de oralidade: o “tilintar das tigelas de louça”, do “pinga-pinga na pia”, “bate bate enxada”, “planc planc planc”, o som do líquido passando entre as brasas “tchii tchii tchii”.

Silvana Salles explora essa possibilidade sonoridade dos versos “Leio, releio, volto e leio”, em “Relendo”, poema do livro Coincidências (2000), “Se eu pudesse dizer tudo que sei/ Seria mais fácil saber o que não sei”. Aqui a repetição dos fonemas /r/ e /v/ /s/ intensifica ainda mais a ideia de continuidade. A poetisa celebra as pequenas coisas da vida, os relatos do cotidiano, a experiência da memória, e reúne não apenas a técnica, mas a intuição e a sensibilidade marca-da pelo som, a cor, a luz, enfim pelo canto.

Para Cristina Ferreira-Pinto, em Poemas da vida meia (2002), confurdir as línguas é um dos meios para expor a dispersão humana e para resumir o mal-estar desse sujeito múltiplo e em movimento que se perde no labirinto da cidade e da linguagem.

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Poetisas cariocas do século XXI

Maria Aparecida Rodrigues Fontes

A produção poética dos anos 1990 e início do século XXI retoma a figura de Babel: as aporias de um espaço “atópico”, a multiplicida-de dos estilos, a confusão das línguas e da fala, a dispersão da hu-manidade, a necessidade de construir um nome e uma história, ba-seada sobretudo na voz feminina; de superar a fome, o preconceito, os traumas, a angústia, a solidão, as fraturas temporais. Ela traz o sinal, a palavra, o Verbo com o qual se tecem os versos além do câ-none, como água que brota na fonte, buscando a irrecuperável in-completude, e a “Porta de Deus”.

Referências bibliográficas

CRUZ, Ana. Com perdão da palavra. Rio de Janeiro: Edição Ana Cruz, 1999.

_____. Mulheres q’rezam. Rio de Janeiro: Edição Ana Cruz, 2003.

ESTEVES, Laura. Transgressão. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.

_____. Como água que brota na fonte. São Paulo: Barcelona, 2000.

FERREIRA-PINTO. Cristina. Poemas da vida meia. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2002.

FURTADO, Flora. Navegação dos sentidos. Rio de Janeiro: F. Furtado/Grupo Letra Itinerante – Poesias, 1997.

_____. A morosa caligrafia. Rio de Janeiro: F. Furtado/Grupo Letra Itinerante-Poesias, 2003.

LEITE, Marcia. Curtos & Definitivos. Rio de Janeiro: Oficina, 2000.

MAIER, Glenda. Poesia etc. & tal. Rio de Janeiro: OFICINA Editores, 2002.

ORTIZ, Helena. Pedaços de mim. Porto Alegre: Eletrônica Luís Carlos Passuelo, 1995.

_____. Margaridas. Rio de Janeiro: Blocos, 1997.

_____. Azul e sem sapatos. Rio de Janeiro: Blocos, 1997.

_____. Em Par. Rio de Janeiro: Editora da Palavra, 2001.

SALLES, Silvana. Coincidências. São Paulo: Massao Ohno Editor, 2000.

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IX. História

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Autores

Jarbas Silva MarquesProfessor, jornalista, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal

Alfredo OliveiraMédico e escritor, dentre outros, é autor de Cabanos&Camaradas sobre a cabanagem e a história do PCB paraense

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os 120 anos da criação do distrito federal

Jarbas Silva Marques

No dia 24 de fevereiro de 2011, completaram-se 120 anos da pro-mulgação da I Constituição republicana do Brasil, sob a Presidência do senador por São Paulo, Prudente de Morais Barros, que, poste-riormente, seria o primeiro civil a presidir o governo republicano. Esta primeira Carta republicana, em sua quase totalidade, foi escrita pelo jurista e jornalista Rui Barbosa e os arts. 2º e 3º, que determi-navam a mudança da capital federal para o Planalto Central e a cria-ção do Distrito Federal, pelo deputado catarinense Lauro Müller.

A Assembleia Constituinte

O Congresso Constituinte, composto por 205 deputados e 63 se-nadores, foi instalado no antigo Palácio Imperial (hoje, Quinta da Boa Vista), após as sessões preparatórias onde hoje é o edifício do Automóvel Clube, na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro. Ele foi marcado pela participação ativa de Rui Barbosa que, influenciado pela Constituição dos Estados Unidos da América, que já havia sido também a matriz da Constituição argentina, eliminou a influência positivista que organizou o golpe de Estado de 15 de novembro de 1889, que pôs fim ao regime imperial.

A grande capacidade intelectual e de trabalho de Rui Barbosa praticamente anulou a “Comissão dos Cinco”, presidida por Salda-nha Marinho e integrada por Américo Brasiliense de Almeida Melo,

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Antônio Luis dos Santos Werneck, José Antônio Pedreira de Maga-lhães Castro e Francisco Rangel Pestana.

A influência positivista conduzida pelo deputado catarinense Lauro Müller, que foi um dos cadetes de Benjamin Constant e parti-cipante ativo no golpe de Estado, estava alicerçada em duas consta-tações geopolíticas: a primeira, a invasão e sequestro da cidade do Rio de Janeiro pelo corsário francês, almirante René Duguay Trouin, em 11 de setembro de 1711, portanto há 300 anos, e o vazio demo-gráfico de 5.500.000 quilômetros quadrados do território nacional, conseguidos no Tratado de Madri e que a Guerra do Paraguai veio constatar com a invasão de Mato Grosso, por Solano Lopes, em de-zembro de 1864.

lauro müller e a capital da República

Decorridos 84 anos da morte de Lauro Severiano Müller, Brasília e o Distrito Federal, no dia 30 de julho de 2010, ficaram mais uma vez sem render as devidas homenagens a esse eminente brasileiro, nascido em Itajaí, Santa Catarina. A ele devemos a articulação par-lamentar e a redação do art. 3º da I Constituição republicana que dispôs: “Fica pertencendo à União, no Planalto Central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamen-te demarcada, para nela estabelecer-se a futura Capital Federal. Pa-rágrafo Único. Efetuada a mudança da capital, o atual Distrito Fede-ral passará a constituir um Estado”.

Ainda jovem, ele mudou-se para o Rio de Janeiro, capital do Im-pério dos Orleans e Bragança, empregando-se como caixeiro numa loja. Após o expediente comercial, à luz do candeeiro, punha-se a ler as mais variadas obras, até que seu patrão o apanhou lendo e o despediu. Influenciado por um tio, cursou Humanidades em Niterói e após diplomar-se ingressou na Escola Militar, tornando-se enge-nheiro militar.

Na Escola Militar, foi, junto com Lauro Sodré, Augusto Tasso Fra-goso, Joaquim Inácio Cardoso e Cândido Mariano da Silva Rondon dos discípulos mais próximos do professor e ideólogo positivista Ben-jamin Constant, o “Fundador da República”, e que organizou a ope-ração militar que depôs a Monarquia em 15 de novembro de 1889.

Proclamada a República, o Governo Provisório o nomeia para go-vernador de Santa Catarina, cargo que ocupa por poucos meses, sendo então eleito deputado na Constituinte por Santa Catarina, que

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Jarbas Silva Marques

também elegeu o capitão-de-infantaria Carlos Augusto de Campos e o capitão do Estado-Maior, Felippe Schimith, ambos catarinenses.

De volta ao Rio de Janeiro, contando apenas 26 anos, sua visão estratégica e geopolítica o leva a fazer parte da Comissão dos Vinte e Um, incumbida de elaborar o anteprojeto da Carta Magna, ao lado do jornalista e jurista Rui Barbosa.

Cabe-nos fazer uma leitura acurada dessa visão geopolítica que 65 anos depois iria ser implementada pelo “condutor de sonhos”, Juscelino Kubitschek de Oliveira, ao construir Brasília e garantir a ocupação do Centro-Oeste e da Amazônia.

Ao conseguir a subscrição de noventa constituintes, para a sua emenda, que originou o art. 3º, Lauro Müller demonstrou um con-vencimento tão sólido que passou à história do Parlamento brasileiro como uma das defesas mais breves (foi de apenas um minuto no ple-nário), deixando como justificativa de um terço dos constituintes o documento elaborado pelo historiador e diplomata Francisco Adolfo Varnhagen, também engenheiro militar como ele, e que chegou ao posto de tenente-coronel do Corpo de Engenheiros do Exército Impe-rial, entregue em 1877 ao ministro da Agricultura do Império, justi-ficando a conveniência da mudança da capital para o Planalto Cen-tral. Desses noventa subscritores, além dele, Santa Catarina apoiou com mais três votos, dos senadores Antônio Justiniano Esteves Jú-nior e Raulino Horn e do deputado Carlos Augusto de Campos, e Goiás com os senadores Antônio Amaro da Silva Canedo e Antonio da Silva Paranhos e os deputados Joaquim Xavier Guimarães Natal, Se-bastião Fleury Curado e José Leopoldo de Bulhões Jardim.

Os desdobramentos dessa visão geopolítica dos republicanos se objetivaram a 17 de maio de 1892, quando o marechal Floriano Peixo-to nomeia o engenheiro e astrônomo Luiz Cruls para presidir a comis-são que iria demarcar o futuro Distrito Federal. Na Comissão Cruls lá estava outro republicano positivista, o tenente Augusto Tasso Frago-so, do círculo íntimo de Benjamin Constant, como Lauro Müller.

Benjamin Constant teria ainda um outro discípulo, que se distin-guiria nesse círculo de que Lauro Müller fazia parte, Cândido Maria-no da Silva Rondon, que estendeu milhares de quilômetros de linhas telegráficas ligando o Rio de Janeiro a Corumbá e Coimbra, na fron-teira boliviana, e a Porto Murtinho e Bela Vista, na fronteira do Para-guai em 1906, e idealizador da primeira política pública no Brasil para a proteção dos indígenas e dos parques indígenas.

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Saneador

Lauro Müller, quando da elaboração do anteprojeto constitucio-nal, ao articular ideológica e politicamente os arts. 2o e 3o da primei-ra Constituição republicana – que determinou a delimitação e a transferência da capital da República para o Planalto Central – esta-beleceu uma sólida relação intelectual e política com vários subscri-tores das emendas constitucionais que patrocinou, dentre eles Fran-cisco de Paula Rodrigues Alves. Este deputado paulista elegeu-se presidente e convidou Lauro Müller para ser ministro da Viação.

O Rio de Janeiro, desde que passou à condição de sede adminis-trativa e política do governo colonial, só conhecera melhoramento urbano e sanitário com a chegada da corte portuguesa em 1808, var-rida que fora de Portugal pelas tropas de Napoleão. A insalubridade, a sujeira e a pestilência estão consagradas em textos literários, his-tóricos, políticos e artísticos, como bem fixou Debret, em muitos dos seus desenhos a mostrar os escravos a transportar os “tigres”, que nada mais eram do que barris cheios de fezes e urina, e jogarem es-ses detritos nas praias do Caju a Botafogo.

Esse é o Rio de Janeiro, capital da República, que Lauro Müller recebe. Monta ele então o tripé: Pereira Passos, Paulo de Frontin e Oswaldo Cruz, que iriam não só sanear a capital da República mas empreender seu ordenamento urbanístico.

A nascente metrópole era pestilenta e suja, desde os becos dos bairros da Saúde e da Prainha nos quais existiam focos de febre amarela e as zoonoses advindas dos ratos – a ponto de se estimar estatisticamente que para cada cidadão carioca tinha uma popula-ção de trinta ratos.

Eram de conhecimento universal, também, as condições insalu-bres e de péssima atracagem do porto do Rio de Janeiro.

A campanha de vacinação – que iria gerar até uma perigosa revol-ta – e a de eliminação de ratos (a Prefeitura do Rio pagava a popula-ção pelos ratos mortos), correram paralelamente ao reordenamento urbanístico, com a remoção dos cortiços do Conde D´Eu, abrindo-se a Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, e que comemorou o seu primeiro centenário em 2003.

Lauro Müller reforma e remodela o porto do Rio de Janeiro para adaptá-lo à evolução técnica dos navios a vapor, constrói os portos de Belém e de Salvador, e contrata os engenheiros norte-americanos Corthwell e White para estudarem toda a barra do Rio Grande, na

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entrada da Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, que viabilizaria a extração de carvão nas minas de céu aberto de Santa Catarina.

Além disso, reformou e ampliou a rede ferroviária em todo o país, lançando linhas férreas de grande alcance econômico como a São Francisco-Iguaçu e a Noroeste do Brasil, que sofriam estagnação desde a destruição das iniciativas de Irineu Evangelista, o Barão de Mauá, promovida por Pedro II e pela economia escravagista que do-minou o Segundo Império. Defendeu e promoveu a ampliação da rede telegráfica iniciada pelo seu companheiro positivista e de enge-nharia Cândido Rondon, para assegurar a soberania brasileira no Centro-Oeste e em toda a região fronteiriça com a Argentina, Para-guai, Bolívia e a Colômbia. Teve ainda a antevisão de estabelecer as bases de implantação de estudos meteorológicos no Nordeste brasi-leiro, com vistas à prevenção das secas e lançou os fundamentos estatísticos para a localização de trabalhadores nacionais e estran-geiros, e estabelecer uma política de Estado para controle migratório no Brasil, na avançada visão geopolítica de ocupar os vazios demo-gráficos brasileiros.

Não escapou a Lauro Müller que a soberania e o crescimento da economia brasileira teriam que passar pelo domínio do nosso vasto litoral, e ele incrementou a cabotagem aumentando a frota do Loide Brasileiro.

militar e político

Lauro Müller entrou para o Exército a 28 de fevereiro de 1882, fazendo inicialmente o curso de Cavalaria e Infantaria (obrigatórios aos alunos cadetes) e depois na Escola Militar cursou Engenharia Militar, diplomando-se ainda como bacharel em Matemática e Ciên-cias Físicas e, após 43 anos, cinco meses e 13 dias, reformou-se como general de divisão.

Desde a sua entrada na Escola Militar agregou-se ao círculo de cadetes alunos que iria gerar eminentes engenheiros militares do Exército pela influência de Benjamin Constant Botelho de Maga-lhães, o “fundador da República”. Dele não só conseguiria sólidos conhecimentos científicos, mas a iniciação na filosofia positivista e no movimento abolicionista e republicano.

A intimidade e a confiança de Benjamin Constant nos predicados de Lauro como aluno e republicano permitiram, logo proclamada a República, ter sido indicado para o cargo de governador do seu esta-do natal, Santa Catarina, quando era segundo-tenente.

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A corrente republicana positivista se batia ideologicamente con-tra os tropiers de Manoel Deodoro da Fonseca durante o Governo Provisório, a ponto de Benjamin Constant, em defesa das liberdades democráticas e da liberdade de imprensa, quase duelar de espada com o “marechal de ferro”, em uma reunião ministerial.

Morto Benjamin Constant, um mês antes da promulgação da pri-meira Constituição republicana, em 1891, Deodoro da Fonseca deu vazão ao seu autoritarismo e, no dia 3 de novembro de 1891, decre-tou a dissolução do Congresso Nacional e das liberdades públicas.

Os únicos governadores a protestarem contra o golpe de Estado foram Lauro Sodré, que governava o Pará, e Lauro Müller, de Santa Catarina, ambos discípulos de Benjamin.

Lauro Müller estava no Rio de Janeiro e, embora pudesse ser pre-so por Deodoro da Fonseca, foi contra. Nesse ínterim, seu vice-gover-nador em Santa Catarina, Gustavo Richard, manifestava-se favorá-vel ao golpe de Estado. Ele volta imediatamente à Santa Catarina, e no demorado retorno de navio, as oligarquias políticas estaduais conseguem de Floriano Peixoto a sua demissão.

Em 6 de setembro de 1893, Custódio de Mello e Eduardo Wan-delkok iniciam a Revolta da Armada e Lauro Müller, no posto de ca-pitão, vai para o Paraná participar da organização da resistência e dos combates que se deram em Santa Catarina, no Paraná e no Rio Grande do Sul, dentre eles o famoso combate da Lapa, no Paraná.

A Revolta da Armada promoveu um banho de sangue na nascen-te república brasileira. Com a morte do chefe federalista Gomercindo Saraiva, em Carovi, no dia 10 de agosto de 1894, o almirante Salda-nha da Gama vai para o Rio Grande do Sul, já que a frente do Paraná e de Santa Catarina fora barrada. A partir do Uruguai, sob o coman-do dos generais Aparício Saraiva, Guerreiro Vitória e Antônio Carlos da Silva Piragibe, mais de três mil federalistas invadem o Rio Grande do Sul.

Os combates se estendem até 1895. No dia 24 de junho, João Francisco Pereira de Souza – chamado de “A Hiena do Cati” – e Cân-dido Azambuja, que faziam parte da Divisão do general Hipólito Ri-beiro, dão combate às margens do Rio Quaraí e com uma carga de cavalaria destroçam um acampamento federalista. O almirante Sal-danha da Gama tenta fugir a cavalo, mas, como não era bom cavalei-ro, é alcançado pelo capitão Salvador Senna e seu irmão, o alferes Alexandre. Salvador Senna, sem saber que era o almirante Saldanha da Gama, já que ele não usava suas dragonas, o feriu com uma lança

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e, em seguida, o golpeou com a espada. Com a ponta da lança, Senna apanha o chapéu com a inscrição “Exército Libertador”. Quando João Francisco reúne os oficiais e os prisioneiros, um guarda-mari-nha, ao ver o chapéu na mão do capitão Salvador Senna diz: “O cha-péu do almirante!!!”. Só aí se soube da morte de Saldanha da Gama.

Os monarquistas e federalistas iniciaram, a partir de Portugal, onde estava asilado Custódio de Melo – que fugira dos combates asi-lando-se em navios portugueses ancorados no Rio de Janeiro –, uma campanha de difamação que o corpo de Saldanha da Gama fora pro-fanado pelos republicanos depois da batalha de Campo Osório.

O Império dos Orleans e Bragança foi derrubado sem uma gota de sangue, mas a consolidação da República custou o sangue de mais de dez mil brasileiros.

Soberania

A passagem de Lauro Müller pelo Ministério da Viação comprovou efetivamente a sua capacitação como engenheiro militar, mas um novo desafio foi lhe apresentado: suceder o Barão do Rio Branco no Ministério das Relações Exteriores.

No seu primeiro pronunciamento, ele lega para a posteridade a sua dimensão: “Irei sucedê-lo, sem substituí-lo”.

Em seguida, passou a finalizar os tratados das nossas fronteiras na América Latina, todas – a se ressaltar – conseguidas pela via di-plomática e nenhuma por via militar.

A Europa mergulhava em convulsão nos Balcãs e os Estados Uni-dos já substituíam o colonialismo inglês com agressões militares e econômicas nas três Américas. Foi o primeiro chanceler brasileiro, no exercício do cargo, a empreender negociações com os Estados Unidos, em defesa da economia brasileira, intermediando ainda, em 1914, a negociação entre o México e os Estados Unidos, quando Woodrow Wilson enviou uma frota americana e 3 mil fuzileiros na-vais para ocupar, a 22 de abril, o porto de Vera Cruz, no México.

Para aplastar as feridas abertas à época da Guerra do Paraguai, articulou a chamada política do ABC – Argentina, Brasil, Chile – e, enquanto pôde, sustentou a posição de neutralidade do Brasil na Primeira Guerra Mundial.

Essa posição, embora tenha o Brasil rompido relações diplomáti-cas com a Alemanha sob a sua orientação, e não declarado guerra, lhe custaria o cargo. Contra ele, a partir de insídias de Rui Barbosa

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e de outros americanófilos, se estruturou uma campanha de difama-ção que afirmava que ele era contra a guerra, por ser um germanófi-lo em sua origem familiar.

Aos que lhe criticaram por não se alinhar automaticamente aos Estados Unidos na declaração de guerra à Alemanha, em poucas li-nhas ele balizou uma eterna lição de soberania: “O argumento dos oradores nas praças públicas é sempre o mesmo: o Brasil tem de seguir o exemplo dos Estados Unidos. Isto significaria tornarmos nossas opiniões as opiniões dos Estados Unidos. Mas um país inde-pendente governa-se por sí”.

Lauro Severiano Müller é objeto de orgulho, não só para os seus conterrâneos de Itajaí e de Santa Catarina, mas para todo o povo brasileiro. Sua visão geopolítica, ao determinar constitucionalmente a mudança da capital para o Planalto Central, ajudou a consolidar nossas fronteiras e a continentalidade do Brasil.

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Resumo histórico do PCB no Pará

Alfredo Oliveira

A formação do primeiro núcleo paraense do Partido Comunista Brasileiro (PCB) começou na cidade de Belém no mês de agosto de 1931, por conseguinte pouco tempo depois da triunfante Revolução de Trinta. O líder civil no Pará do movimento outubrista fora o advo-gado e político liberal Abel de Abreu Chermont (1887-1962), que posteriormente se tornaria comunista, cabendo ao “tenente” Joa-quim de Magalhães Cardoso Barata (1888-1959), um antigo admira-dor de Luiz Carlos Prestes (1898-1990), assumir o governo estadual na condição de interventor federal. Nenhum dos dois teve qualquer atitude conhecida relacionada com a criação do “centro local comu-nista” arregimentado por um grupo de trabalhadores, secretamente, em decorrência da ilegalidade da vida partidária. Entre os organiza-dores destaca-se a presença do motorneiro de bonde Henrique Felipe Santiago (1906-1985), que, em 1947, elegeu-se deputado estadual pela própria legenda do PCB, na sua fase de legalidade após a dita-dura do Estado Novo.

A economia do Pará era submetida ao extrativismo explorado pelo latifúndio e gerador de fortunas para um comércio exportador de matérias-primas (castanha, madeira, borracha, couros e peles de animais silvestres etc.). A falta de indústria acarretava a ausência de operários fabris, de modo que a força de trabalho à disposição na capital e no interior correspondia em números esmagadores aos chamados “braçais”, que viviam em condições miseráveis, cumprin-do jornadas de até 12h a 14h de serviço, sem qualquer garantia trabalhista. Assim sendo, a fundação do partido, para lutar pelas reivindicações básicas desses trabalhadores, era uma necessidade, apesar da limitada divulgação da filosofia marxista e sem contar com os verdadeiros proletários forjados nas fábricas. Por outro lado, a dificuldade de comunicação e o isolamento geográfico prejudicavam seriamente a articulação com a distante direção central, localizada no Rio de Janeiro (Distrito Federal). Tanto que, no ano seguinte, Santiago e Pedro Pomar, em 06/09/1932, participaram de uma in-surreição deflagrada por estudantes e trabalhadores, na capital pa-raense, com o incerto objetivo de aderir à chamada Revolução Cons-titucionalista de São Paulo, na realidade, não apoiada pelo PCB

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nacional, que a ligara aos barões do café. A força da Polícia Militar, sob as ordens do interventor Magalhães Barata, leal ao governo de Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), prontamente liquidou essa manifestação armada. Santiago foi preso e Pomar conseguiu fugir.

Novos nomes vieram juntar-se aos fundadores, como João Ama-zonas de Sousa Pedroso (1912-2002), que ingressou nas fileiras par-tidárias em 1933, apesar da onda de prisões desencadeada nessa ocasião em Belém contra os trabalhadores suspeitos de ser comunis-ta. Amazonas passou a atuar no meio sindical, em lenta expansão, ao lado de outros militantes aguerridos como o estivador Raimundo Manito (1908-1976), o marceneiro Mário de Assis Gonçalves de Sou-za (1909-1991), o gráfico João Gomes Pereira (1905-19--), o eletricis-ta José Dias do Nascimento (1899-1982), além do ex-motorneiro Santiago, que virara sapateiro, depois de demitido da companhia in-glesa de bondes Pará Eletric Railways And Ligthing Corporation. Quanto ao jovem Pedro Ventura Felipe de Araújo Pomar (1913-1976), que ingressara na Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, coube dedicar-se ao trabalho político junto a estudantes e intelectuais. Aliás, o futuro escritor Dalcídio Jurandir (1909-1979), um dos maiores ro-mancistas brasileiros, também logo veio incorporar-se a essa ativida-de. Vale ainda lembrar o papel de Eneida de Moraes (1903-1971), que se dedicava ao partido no Rio de Janeiro, procurando acompa-nhar, embora de longe, a atuação e o crescimento do PCB na sua terra natal.

Durante a campanha da Aliança Nacional Libertadora, em 1935, os comunistas paraenses, sobretudo na capital, foram para as ruas participar de comícios e passeatas, ocorrendo então outro aumento significativo do número de quadros partidários. Em Belém, a ANL não enveredou para a luta armada, como em Natal, Recife e Rio, o que não livrou o PCB no Pará da repressão impiedosa após a derrota do movimento, levando à prisão vários dirigentes e até militantes menos conhecidos. A seguir, o combate ao integralismo e nazi-fascis-mo, contra a ditadura Vargas e a implantação do Estado Novo, pro-vocou novas batalhas e mais prisões, a partir de 1937. No ano de 1941, depois de algumas tentativas frustradas, Pedro Pomar e João Amazonas escaparam da cadeia num posto polícial e, através de lon-ga rota iniciada no sul do Pará, chegaram ao Rio de Janeiro, onde passaram a viver e se tornaram nomes nacionais. O ferroviário per-nambucano Agostinho Dias de Oliveira (1903-1966), que fora preso em Belém, também fez parte dessa fuga, mas só saiu do estado me-ses depois e por outro caminho. Alguns anos mais tarde, os três in-tegraram a bancada comunista no Congresso Nacional, na condição

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Resumo histórico do PCB no Pará

Alfredo Oliveira

de deputados federais constituintes: Agostinho por Pernambuco, Amazonas pelo Rio de Janeiro, e Pomar eleito por São Paulo pela le-genda do Partido Social Progressista (PSP), de Adhemar de Barros. Em 1947. Abel Chermont, já filiado ao PCB, elegeu-se suplente de Prestes no Senado, e Henrique Santiago tornou-se deputado estadual no Pará. À exceção de Pomar, eleito pelo PSP, os demais perderam os seus mandatos em janeiro de 1948, conforme cassação imposta aos parlamentares comunistas.

É de salientar que, durante a fase de legalidade, o crescimento partidário alcançara um nível preocupante para as autoridades polí-ciais da época, segundo relatórios arquivados, devido à multiplicação das células dos bairros e das categorias profissionais, chegando ao interior do estado, notadamente às cidades de Castanhal, Santarém, Cametá, Soure, Vigia e Bragança. Por sinal, em 19-8-1945, os esco-lhidos para compor o Comitê Estadual, com Santiago à frente, toma-ram posse festivamente no palco do grandioso Theatro da Paz, intei-ramente lotado, e na presença de João Amazonas, que viera representar o Comitê Central. Titulares desse organismo: Henrique Santiago (sapateiro); Raimundo Manito (estivador); Ritacínio Pereira (médico); Antônio Santos (gráfico); Diogo Costa (jornalista); Djalma Hartery (telegrafista); Antônia Cordeiro (dona de casa); Edgar Pantoja (bombeiro); Argemiro Nascimento (motorneiro); Otaviano Santos (marítimo); Santilio Figueiredo (motorista); Raimundo Gomes (pe-dreiro); Gilberto Vasconcelos (estudante).

Por outro lado, a União Geral dos Proletários do Pará, dirigida por João Gomes Pereira, reunia então 42 sindicatos, os órgãos estudan-tis abriam-se às lideranças de jovens comunistas, e em 11-10-1946 começou a circular o jornal partidário Tribuna do Pará (1946-1958), que era vendido à população nas ruas e praças da capital. Na eleição de 19-1-1947, o PCB resolveu apoiar a candidatura ao governo esta-dual do major Luiz Geolás de Moura Carvalho, do Partido Social De-mocrático (PSD) e lançado por Magalhães Barata, o que provocou intensa movimentação da Igreja junto ao eleitorado católico, a fim de condenar a aliança do PSD com o PCB, o que não impediu a vitória folgada de Moura Carvalho. Algumas figuras partidárias importan-tes, como o popular estivador Raimundo Manito, também fundador do Rancho Não Posso Me Amofiná, a primeira escola de samba para-ense e uma das mais antigas do Brasil, decidiram afastar-se do PCB insatisfeitas com a resolução eleitoral tomada, contrária à escolha de uma candidatura própria.

A seguir, apesar da clandestinidade, de tantas adversidades cria-das pela Guerra Fria para impor a hegemonia ideológica, econômica

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e militar dos Estados Unidos, da perseguição polícial e das prisões arbitrárias, das ofensivas caluniosas por conta da imprensa reacio-nária, e do prejuízo resultante do sectarismo provocado pela direção nacional através do seu Manifesto de Agosto de 1950, ainda assim, o PCB paraense conseguiu eleger deputado estadual, pela legenda do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o valoroso militante bancário Antônio Hamilton Imbiriba da Rocha, na eleição de 03/10/1950.

Pode-se relacionar mais uma série de ações lideradas pelos co-munistas paraenses no decorrer dos anos 1950: algumas greves de repercussão nacional, como a paralisação dos quarenta navios da frota fluvial do Snapp, feita pelos portuários e marítimos contra a exploração de cabotagem no rio Amazonas concedida à empresa nor-te-americana Moore Mc Cormack, e a memorável greve dos trabalha-dores têxteis, que parou a poderosa fábrica Perseverança e levou à fundação do sindicato da categoria, entre outras, inclusive de menor envergadura, mas todas identificadas com a atuação de João Gomes Pereira no comando da luta sindical; instalação do centro de Estudos e Defesa do Petróleo e da Economia Nacional (Cedepen-Seção do Pará) presidido pelo saudoso camarada coronel-aviador reformado Jocelyn Barreto Brasil de Lima (1908-1999); organização do Movi-mento pela Vida e Liberdade (Movil) presidido pelo médico comunista Wilson da Mota Silveira (1915-1982) e responsável pelos Conselhos da Paz implantados nos bairros; Comissão Paraense Contra o Acordo Militar Brasil-Estados Unidos presidida pelo deputado comunista Imbiriba da Rocha; Comissão Paraense Pela Reforma Agrária presidi-da pelo jornalista comunista Sandoval Queiroz Barbosa (1920-2003); fundação da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Pará, presidida pelo veterano militante comunista Benedito Pereira Serra (1903-1964); instalação da Associação das Donas de Casa pre-sidida pela camarada Ester Cabral; participação ativa, em abril de 1955, na histórica Conferência Nacional em Defesa da Amazônia que contribuiu vigorosamente para barrar o projeto da Hileia Amazônica e outras tentativas de internacionalização da região; presença da ju-ventude comunista no movimento estudantil e nas diretorias da União Acadêmica Paraense (UAP) e União dos Estudantes dos Cur-sos Secundários do Pará (UECSP); influência junto à intelectualidade da terra, sobretudo através da atuação do escritor Levi Hall de Mou-ra (1907-1983), membro da Academia Paraense de Letras; circulação do jornal Tribuna do Pará, definindo e divulgando a palavra dos co-munistas, sem recuar diante dos assaltos terroristas e dos empaste-lamentos que sofreria repetidas vezes. É interessante citar que a Di-visão de Polícia Política e Social do Pará, em relatório de dezembro de 1952, reconhece a habilidade dos comunistas paraenses para desen-

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Alfredo Oliveira

volver atividades legais e publicamente assumidas, sobrepondo-se aos obstáculos da clandestinidade.

Em fevereiro de 1958, chega a Belém o cearense Humberto Luce-na Lopes (1911-1976) que, no posto de secretário-geral, de 1958 a 1964, torna-se, ao lado dos nomes de Santiago e Raimundo Antônio da Costa Jinkings (1925-1995), um dos três mais dinâmicos e longe-vos secretários do Pará. Humberto combateu com firmeza as seque-las do stalinismo e impulsionou as diretrizes da Declaração de Março de 1958, coordenando a formação da Frente Nacionalista do Pará, que reuniu líderes sindicais, parlamentares, empresários, intelec-tuais, estudantes etc. com o objetivo de implementar a luta democrá-tica anti-imperialista e antifeudal. Com o apoio do deputado estadual comunista Benedicto Wilfredo Monteiro (1924-2008), eleito pela le-genda do PTB, esse notável dirigente comunista levou o partido a analisar as características peculiares do latifúndio na Amazônia e propor medidas concretas de reforma agrária, inclusive assentamen-tos de camponeses sem terras, ao longo de rodovias em construção, o que chegou mesmo a ser conseguido com o apoio do governo esta-dual de Aurélio Correa do Carmo, do PSD, antes do golpe de 64 em algumas áreas do sul do Pará. O PCB também denunciou o velho comércio exportador de matérias-primas adversário da industrializa-ção da região, procurando incentivar e defender a implantação de projetos industriais, como a fábrica de cimento da cidade de Capane-ma montada com máquinas e equipamentos adquiridos na antiga Tchecoslováquia, por um grupo local privado, estabelecendo assim um relacionamento político positivo com empresários paraenses in-teressados no desenvolvimento de caráter autônomo ou nacionalista como era conceituado.

Nessa fase, o partido cresceu mais uma vez e aumentou o seu número de quadros, como sempre de forma mais acentuada nos meios sindicais e estudantis, recebendo entre os novos militantes dois grandes nomes da terra: o poeta paraense Ruy Guilherme Para-natinga Barata (1920-1990), ex-deputado estadual e ex-deputado fe-deral, e o líder bancário Raimundo Jinkings, que se tornaria presi-dente estadual do Comando Geral dos Trabalhadores durante o governo de João Belchior Marques Goulart (1918-1976). Em setem-bro de 1963, o PCB dirigido por Humberto Lopes, contribuiu decisi-vamente para a realização do I Congresso dos Trabalhadores da Amazônia, presidido pelo líder sindical comunista Emanuel Arque-lau Alcântara (1918-2006), presidente da Federação dos Trabalhado-res na Indústria do Pará, que juntou parlamentares e sindicalistas de todos os estados amazônicos, para debater e elaborar o documen-

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to denominado Carta da Amazônia. Não podendo ser considerado um partido de massa, no entanto, o PCB dispunha de um número de quadros de inegável competência para de fato influir no meio sindi-cal, entre os intelectuais e estudantes.

O PCB paraense, como nos demais estados do Brasil, foi abatido pelo golpe militar de 1964, sem conseguir esboçar qualquer ato de resistência à imposição da ditadura que resultaria da queda do Go-verno Jango Goulart. O Secretariado da época era assim constituído: Humberto Lopes (secretário geral); Raimundo Jinkings (sindical); Francisco Nascimento (organização); Guilherme Cruz (finanças); João Luiz Araújo (agitação e propaganda); José Maria Platilha (mas-sas); Alfredo Oliveira (cultura). Por infelicidade, o dirigente Humberto Lopes foi preso, logo no início da onda de violência desfechada pelos militares contra todos os cidadãos por eles considerados subversi-vos. Além de Humberto, outros dirigentes foram sendo localizados e, de imediato, encarcerados, como Jocelyn Brasil, Ruy Barata, Rai-mundo Jinkings, Carlos Sá Pereira, Sandoval Barbosa e José Maria Platilha (1925-2005). Benedicto Monteiro, reeleito deputado estadual em 1962, pela legenda do PTB, preso nas matas de Alenquer, teve o seu mandato cassado e os direitos políticos suspensos por dez anos. Nomes históricos, apesar da idade, foram também encarcerados, como Henrique Santiago, Mário de Souza e Benedito Serra, que adoe-ceu gravemente na cela e morreu pouco depois de dar entrada num hospital militar. Trabalhadores, estudantes, professores, funcioná-rios públicos etc. acusados de comunistas encheram os espaços do vermelho “planeta de grades”, no dizer de Ruy Barata. Alguns perse-guidos resolveram fugir pela rodovia Belém-Brasília e outros de bar-co chegaram às Guianas. Um jovem e talentoso dirigente, o enge-nheiro João Luiz Barreiros de Araújo (1936-1996), por exemplo, da Guiana Inglesa rumou para Cuba, onde viveu com a família até po-der regressar ao Brasil. O Partido ficou entregue aos que consegui-ram escapar da prisão e se abrigaram em refúgios ocasionais, inclu-sive alguns dirigentes estaduais. Em conjunto, todos permaneceram empenhados nas tarefas de solidariedade até à reconquista de condi-ções mínimas para a atuação política. Humberto Lopes, no final de 1964, saiu de Belém indo para Belo Horizonte. Aí passou a exercer a sua abnegada militância, transferindo-se para o Rio de Janeiro em 1970, de acordo com determinação do Comitê Central. Faleceu na clandestinidade e com nome trocado, em 1976, sem nunca mais ter voltado ao Pará.

Em meados de 1965, Ruy Barata tornou-se secretário-geral e di-rigiu o apoio partidário à candidatura de Alexandre Zacharias de

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Assumpção (1895-1981) ao governo estadual. O velho marechal As-sumpção, ícone do antibaratismo, todavia, foi derrotado na eleição de 03/10/1965 por Alacid da Silva Nunes, candidato da ditadura e lançado por Jarbas Gonçalves Passarinho. Como delegado do Pará, Ruy compareceu ao VI Congresso do PCB, realizado clandestinamen-te em São Paulo, em dezembro de 1967, quando se reafirmou o cará-ter nacional-democrático da revolução brasileira e se decidiu pela oposição à ditadura sem apelar para a luta armada. No primeiro se-mestre de 1968, Raimundo Jinkings substituiu Ruy Barata na Se-cretaria Geral, cargo em que permaneceu até o fim da vida. O Partido então busca se reorganizar, avançando mais na área estudantil. Com a morte do estudante paraense Edson Luis de Lima Souto, assassi-nado pela ditadura no restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro, em 28/03/1968, estudantes universitários do PCB e da AP (Ação Popular) ocupam várias faculdades de Belém (Medicina, Economia, Direito e Filosofia), para protestar contra o regime militar, mantendo a invasão durante um mês até o desfecho da negociação com o gover-nador Alacid Nunes, concluída pacificamente. Em agosto de 1968, líderes comunistas destacam-se na organização do Encontro Sindi-cal dos Trabalhadores do Estado do Pará que aprova a Carta do Pará, em defesa da democracia, das reivindicações dos trabalhadores e da execução da Reforma Agrária. O fumageiro comunista Osvaldo de Oliveira Coelho Filho é eleito presidente do Sindicato do Fumo e, em seguida, da Federação dos Trabalhadores na Indústria. Tais con-quistas foram a seguir invalidadas pela fascistização decretada pelo AI-5, em 13/12/1968. A partir daí, durante cerca de dez anos, sem-pre ao comando de Raimundo Jinkings, a atuação partidária tornou-se extremamente difícil e limitada, esforçando-se com o empenho possível para a utilização do MDB (Movimento Democrático Brasilei-ro) como frente política das forças oposicionistas e no combate inter-no ao surgimento de vozes favoráveis à guerrilha.

No correr do ano de 1978, Jinkings consegue um grau maior de organização partidária e de atuação política impulsionada pelo obje-tivo de lutar em favor do Estado democrático de Direito. A linha par-tidária considera indispensável a existência da frente embutida no MDB, a concessão de anistia aos presos e perseguidos pela ditadura militar, o respeito fundamental aos direitos humanos. Nasce o Comi-tê Paraense Pela Anistia e é fundada a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, com a colaboração e a presença marcante dos comunistas em suas direções. No ano seguinte, surge a destemida Associação dos Docentes da Universidade Federal do Pará, presidida pelo professor comunista Romero Ximenes Pontes. É realizado o in-fluente Encontro Estadual Sindical, que seria repetido nos dois pró-

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ximos anos, estimulando a crescente mobilização dos trabalhadores. Já com um novo Comitê Estadual eleito e em atividade, o PCB para-ense decide apoiar o nome do deputado federal do MDB, Jader Bar-balho, na eleição direta para o governo estadual, em 15/11/1982. Tal posição mostra-se decisiva pois Benedicto Monteiro, convencido pelo PCB, retira a sua candidatura pela legenda do PDT (Partido De-mocrático Trabalhista) de Leonel Brizola, o que garante a vitória de Jader contra o candidato da ditadura. Ximenes é eleito deputado estadual pela legenda do MDB e é escolhido líder da bancada gover-nista na Assembleia Legislativa do Estado. O médico Almir José de Oliveira Gabriel, militante paraense da base de médicos do PCB des-de 1962, é indicado por Jader e toma posse na Prefeitura Municipal de Belém em 14/09/1983. Almir nomeia o sociólogo comunista José Mariano Klautau de Araújo (1936-2010) para a Assessoria de Comu-nicações, onde ele acabará executando um extraordinário trabalho, responsável inclusive pelo aparecimento de centenas de associações de bairros, despertando também nessas entidades a participação dos trabalhadores ainda carentes de atuar livremente nos sindicatos. Nesse ano, o atual deputado federal do PPS, Arnaldo Jordy Figueire-do ingressa no PCB egresso do MR-8. Por sinal, em 1986, converte-se no primeiro vereador comunista integrante da Câmara Municipal de Belém. Tendo sido eleito pelo MDB, desliga-se desse partido e trans-fere-se oficialmente para o PCB, que voltara à legalidade em maio de 1985. Em 1988, Jordy transforma-se igualmente no primeiro verea-dor eleito pela própria legenda do PCB. Romero Ximenes e Almir Ga-briel deixam a militância partidária, filiando-se ao MDB. Almir, na eleição de 15/11/1986, conquista o mandato de senador, iniciando uma destacada carreira política que viria a incluir dois períodos con-secutivos como governador estadual a partir de 1955, agora perten-cendo ao PSDB.

Em 1987, o PCB paraense elege um novo Comitê Estadual, lide-rado por Raimundo Jinkings, e escolhe delegados para o VIII Con-gresso do Partido, que se realiza em Brasília, de 16 a 19/07/1987. No mesmo ano, instala-se em Belém numa sede própria comprada com os recursos arrecadados numa vitoriosa campanha que conse-guiu entusiasmar a militância e obteve a adesão de aliados e simpa-tizantes. Da base de médicos, que no correr de sua existência contou com nomes de cinco futuros secretários estaduais de Saúde, saem na época o presidente do sindicato da categoria (Hélio Franco de Ma-cedo Jr.), do Conselho Regional de Medicina (Alfredo Carlos Cunha de Oliveira) e mais adiante do Conselho Federal de Medicina (Waldir Paiva Mesquita). Em 1989, o PCB paraense representa um dos 11

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estados que cumpriram com êxito a cota de filiações necessárias para o registro definitivo do Partido afinal legalmente alcançado.

Em 1992, a fundação do PPS (Partido Popular Socialista), como não podia deixar de ser, repercutiu entre os comunistas paraenses, de um lado, colocando Arnaldo Jordy na liderança da nova corrente, e de outro, o veterano Raimundo Jinkings, que passou a trabalhar pela refundação da sigla, preservação de símbolos e princípios marxistas. Entre os nomes que permaneceram ao lado de Jinkings podem ser citados os seguintes: Jocelyn Brasil, Carlos Sá Pereira, Alfredo Olivei-ra, Mariano Klautau, José Braz, Maria Bastos, Domingos Furtado e Luciano Amaral, todos da chamada “velha guarda”, além de militantes mais novos como Roberto Correa, Waldir Mesquita, Leila Jinkings, Raimundo Jorge Nascimento e José Penafort. Efetivamente, a maioria dos militantes, sobretudo na capital, resolveu optar pelo PPS, que se manteve na sede própria adquirida no bairro do Jurunas.

Em 5-10-1995, falece o bravo dirigente comunista Raimundo An-tônio da Costa Jinkings. A seguir, o seu posto de secretário-geral é ocupado por uma de suas filhas, justamente a arquiteta Leila Maria Tavares Jinkings que, apesar de jovem, possuía dentro do Partido experiência suficiente para a missão. Todavia, a morte de Jinkings causou um baque profundo na vida partidária, coincidindo com o esgotamento em curso e com a incapacidade de recuperar condições para atividades indispensáveis. Finalmente, em dezembro de 2004, a paralisação tornou-se inevitável já com a direção estadual sob a res-ponsabilidade principal de José Domingos Penafort da Silva.

Em resumo, o PCB no Pará, ao longo de sua trajetória, certa-mente não chegou a conquistar a massa, não elegeu mais do que um número pequeno de parlamentares, não conseguiu superar a séria debilidade de sua atuação no campo, mas teve quadros ex-pressivos de influência juntos aos intelectuais e sindicatos de cate-gorias profissionais, participou de todas as lutas regionais impor-tantes, de forma reconhecidamente fiel aos interesses da nação e dos trabalhadores, cumprindo jornadas tantas vezes vinculadas a uma indômita coragem.

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X. HomenagemCentenário de nelson

Werneck sodré

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Autores

Lincoln de Abreu PennaDoutor em História, especialista em História Política do Brasil, autor de livros sobre temas referentes ao regime republicano brasileiro e à política em geral. Professor aposentado da UFRJ, atualmente integra o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Salgado de Oliveira (Universo).

Anivaldo MirandaJornalista e mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal de Alagoas.

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Nelson Werneck sodré, um intérprete do brasil

Lincoln de Abreu Penna

Não tenho de que me arrepender. Em todos os tempos, combati o bom combate. (...) Já disse alguém, e disse bem: quem não tem posição política não tem alma.

Nelson Werneck Sodré

Conheci NWS em duas ocasiões. A primeira, ao matricular-me no último curso do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), cur-so este intitulado de Teoria Social, no qual a área de História era de responsabilidade dele e de seus auxiliares, todos alunos ainda ou ex-alunos da Faculdade Nacional de Filosofia. Foi um contato mais dis-tante, não obstante a acolhida que proporcionava aos que o procura-vam para equacionar dúvidas a respeito de leituras. A outra ocasião, foram as seguidas visitas que fiz, acompanhado por colegas ou só, ao seu apartamento situado à rua Dona Mariana, número 35, no bairro de Botafogo, no Rio. Nessas ocasiões, frente aos seus interlocutores tornava-se mais afável ainda e cioso sempre de avaliações acerca de seus projetos futuros. Após o golpe, ainda tive oportunidade de com ele estar, mas os contatos foram mais raros.

O que me chamava atenção nas conversas com o general era a sua dedicação aos estudos. Adotava uma disciplina de estudo e mostrava-se atualizado com os novos lançamentos. Tinha o costume de rese-nhar as leituras que fazia e, em algumas ocasiões, as publicava. Dife-rentemente de parte de sua geração, não tinha o hábito de participar de reuniões em casas de amigos que geralmente varavam a noite. Mui-tos de seus contemporâneos exibiam erudição e dela faziam render

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junto aos seus parceiros, amigos e leitores. Com NWS isso não acon-tecia, talvez pela rígida educação militar ou pelo comprometimento com causas mais sérias, não compatíveis com conversas despretensio-sas a deleitar os notívagos. Compenetrou-se de sua tarefa como histo-riador e assim era respeitado por amigos e não amigos.

O que fez de NWS um historiador de renome e respeito foi a sua compreensão de que as forças armadas integram o corpo social e, portanto, nele atravessam as classes sociais.

Independentemente da hierarquia e do senso corporativo, existem interesses de classe que impelem, por exemplo, segmentos da alta ofi-cialidade a se identificarem com as classes dominantes do país. Em determinado momento, quando o Exército, em particular, ainda repre-sentava fundamentalmente os extratos das camadas médias urbanas, a sua identidade maior era com este segmento da sociedade. Assim, a polêmica entre o impulso corporativo e o de natureza socioeconômica chegou a ser debatido na historiografia, desde o instante em que se discutiu se os tenentes da década de vinte do século XX representa-vam ou não os interesses das classes médias da época.

O livro O Sentido do Tenentismo, de Virgínio Santa Rosa, iniciou essa discussão, que foi amparada por Barbosa Lima Sobrinho ao es-crever o seu livro A Revolução de Outubro em alusão ao movimento que depôs Washington Luís e impediu a posse do eleito nas urnas, o paulista Júlio Prestes. Esse debate se estenderia posteriormente à universidade, alentado pelas teses acadêmicas sobre o papel dos mi-litares na República, através de estudos acerca da instituição militar e das doutrinas que orientaram em diferentes momentos da vida na-cional a Academia Militar até, finalmente, o advento da Escola Supe-rior de Guerra, em 1948. Não pararam aí as variadas interpretações sobre função e papel das forças armadas, sempre com maior desta-que para o caso do Exército.

Quando o então Departamento de História da UFRJ, hoje Institu-to de História, organizou o Colóquio “Estado Novo e Autoritarismo – para não esquecer”, em 1987, portanto cinquenta anos após a insta-lação daquele regime no Brasil, NWS foi convidado para participar da mesa que discutiu o significado histórico daquele período, e que en-sinamentos ele nos proporcionaria, estando, naquela ocasião, a vi-ver-se os primeiros e titubeantes momentos de uma transição à de-mocracia política. Ao lado de acadêmicos de renome e de especialistas no tema, sua fala não deixou a desejar. Ao contrário, foi a mais lúci-da e contemplou a todos com uma aula de conjuntura política apli-cada à situação que proporcionaria o advento do golpe de 1937.

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A perfeita concatenação dos fatos com o domínio das fontes e uma atualizada compreensão da historiografia produzida sobre o Estado Novo contribuiram para que o evento fosse ainda mais brilhante. Deixou a todos, que não o conheciam, encantados pela disciplina no trato com o tempo, a simplicidade em discorrer sobre eventuais dis-cordâncias com seus interlocutores e o respeito para com os organi-zadores, portando seu pronunciamento impresso e entregando có-pias aos organizadores e membros da mesa.

Com alguns patriotas de convicções não tão semelhantes, soube cultivar amizade. Foi o caso de Barbosa Lima Sobrinho, um liberal na acepção da palavra, que costumava dizer que no Brasil ele só conhecia dois partidos políticos: o de Joaquim Silvério dos Reis e o de Tiraden-tes. O primeiro, o dos traidores da pátria, ele queria distância; ao pas-so que o do herói da Conjuração Mineira ele se encontrava inteiramen-te afinado, já que se julgava evidentemente um defensor da pátria e, portanto, alinhado às forças progressistas e revolucionárias. NWS, por certo, se integrava a este partido do eterno presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e fundador do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon), em 1989 e até hoje em atividade.

Mas é preciso ressaltar que, acima de tudo, NWS foi um intérpre-te de seu tempo. E tinha noção da absoluta interligação entre litera-tura e história, pois para ele era inconcebível que “a obra de arte nasce inteira e acabada da cabeça dos autores, sem raízes, sem con-dicionamentos, sem nenhum laço com o meio”, como dissera em sua História da Literatura Brasileira, na Introdução a este livro. E ele ti-nha plena convicção da importância da interpretação em todos os campos do conhecimento, tanto que um dos capítulos desta verda-deira síntese das manifestações literárias brasileiras há uma menção a este problema. Sob o título de Interpretações do Brasil, tece algu-mas vigorosas considerações a respeito.

Ao exibir uma rica erudição dos autores que desfilaram em seus trabalhos entre os anos da virada do século XIX ao XX, NWS exibe argumentos que permitem aos seus leitores menos familiarizados com a temática acompanhá-lo em suas observações crítico-literárias, como de costume, imerso na vida social, cultural e política do país, sem deixar de lado as estruturas econômicas que mantêm essa so-ciedade situada ainda dentro do modelo agroexportador de forte de-pendência estrutural com o mercado internacional à época.

Destaca as interpretações de Brasil de Joaquim Nabuco, basica-mente centrada na perspectiva biográfica e autobiográfica, já que o grande abolicionista escrevera sobre o pai, Nabuco de Araújo, e sobre

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si mesmo em Minha Formação. Em ambos os casos, ele situa tais escritos biográficos dentro de uma compreensão possível da socieda-de brasileira. Por outro lado, no que chama de “interpretação social” de Euclides da Cunha, certamente a de grande relevo, uma vez que seus escritos aludem as condições físicas associadas às condições sociais e políticas, muito presentes, é claro, em Os Sertões, traço as-sinalado com destaque pelo nosso historiador.

No que se refere a Machado de Assis e sua “interpretação pela ficção”, NWS reserva um espaço para assinalar traços relevantes da obra desse genial membro fundador da Academia Brasileira de Le-tras. E a relação ficção e realidade é um dos aspectos mais bem tra-balhados na obra machadiana, que despertaria a atenção e o louvor de muitos integrantes de sua geração, como, de resto também da geração que precedera à de nosso historiador, como fora o caso da de Astrojildo Pereira, por exemplo. E, finalmente, a “interpretação pela crítica literária” de José Veríssimo, cujo valor intrínseco dispensa maiores comentários adicionais. Trata, posteriormente, de Raul Pom-peia e Lima Barreto, de modo a criar uma série de elementos infor-mativos e analíticos indispensáveis à boa compreensão dos leitores. Este livro é, até hoje, uma leitura de referência em cursos de História da Literatura Brasileira.

Todavia, a preocupação do intérprete de nossa história não se resumia a identificar no passado os pioneiros das diversas formas de interpretação do Brasil. Era preciso, e ele o sabia bem, fornecer os elementos indispensáveis à busca de informações acerca do país to-mado como objeto de estudo e reflexão. Foi assim que concebeu um de seus mais originais livros, O que se deve ler para conhecer o Brasil. Nele se encontram as fontes bibliográficas fundamentais, porque de referências, para iniciantes e iniciados. Dividido em três partes: De-senvolvimento histórico, Estudos especiais e Cultura brasileira, o li-vro foi ganhando edições à medida em que se fazia necessário.

Em cada uma das partes, os diversos temas contém indicações de leituras precedidas por introdução histórica. E essas fontes de refe-rências dividem-se em fontes principais e subsidiárias. E se hoje em dia as últimas edições desse livro se encontram defasadas em virtude do volume crescente da produção historiográfica, a simples ideia de ter se pensado numa obra dessa natureza, capaz sempre de se atua-lizar, foi e continua a ser uma ideia de importância prática para o leitor. Mas, sobretudo, de concepção de grande visão por parte de seu criador, uma vez que essa sistematização, já encontrada na lite-ratura didática das obras gerais, estava ausente no âmbito das obras de referência.

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Esse livro foi publicado originalmente em 1945, num contexto de abertura não somente política como de ideias. O país, como o mundo ocidental, acabava de se livrar de regimes fascistas, e as esperanças se somavam à necessidade de mais conhecimentos sobre as realida-des dos povos. Foi reeditado em 1960, da mesma forma num clima de esperança e expectativa renovadas, e que se expressava no próprio processo de urbanização e crescimento acelerado ocorridos na se-gunda metade da década anterior.

De novo, o livro de NWS abria horizontes de leituras e de cami-nhos com vistas a novas e mais fecundas interpretações de nossa realidade, o que de fato aconteceria, anos mais tarde.

E um dos mais candentes depoimentos de NWS se encontra no último parágrafo de suas Memórias de um Soldado, cujo trecho abai-xo é extremamente significativo. Dele pode-se extrair a capacidade do intérprete de nossa vida política e de como vislumbrava os hori-zontes que muitos simplesmente não conseguiam descortinar. Com as palavras que se seguem creio que se tem uma medida do talento e da sapiência deste historiador do Brasil.

Nada me parece mais ridículo do que alguém, e principalmente os militares, pretender a propriedade da verdade e, particularmente, a propriedade do pa-triotismo, posições normalmente adotadas pelos que serviram à ditadura. A vida lhes provará, e já está provando, que estão longe do monopólio da verda-de, mas lhes provará ainda, e isso será mais doloroso, que não são os monopo-lizadores do patriotismo. Os que, verdadeiramente, serviram ao Brasil; os que por ele sofreram, os que realmente o defenderam, o tempo deixará claro, dentro em pouco. Patriotismo não se esgota em fórmulas, em palavras, em locuções de “boletim alusivo”; muito ao contrário, é atividade do cotidiano, ação concreta, julgada pelas suas consequências. A ditadura causou males profundos ao Bra-sil, e continua a causá-los; causou males específicos aos soldados brasileiros, de que só agora começaram a se dar conta, e ficam em perplexidade por isso. Pouco a pouco, começam a despertar, a ter consciência desses males. Quando o processo chegar ao fim, eles a detestarão – como ela merece (NWS. MS, p. 643-644).

NWS é um clássico da historiografia brasileira e o conhecimento de sua obra é indispensável para as novas gerações, não somente pelo que ela contém de dados e análises que enriqueceram o patri-mônio cultural, literário e historiográfico do país, mas pelo registro de um autor, cujo trabalho precisa ser reconhecido e estudado por fazer parte, ele também, desse patrimônio.

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Mesmo rotulado por sua opção teórica centrada no marxismo, simplificada sua obra a partir de uma leitura apressada, pouco fre-quentada nas listagens bibliográficas de nossos cursos de História do Brasil, ele continua a incomodar os cultores de uma tendência que tem cultivado o desprezo pelos clássicos do pensamento social e histórico brasileiro. E essa incômoda presença nos meios acadêmi-cos persistirá, porque é parte integrante de uma visão de mundo voltada para a ilustração e a transformação, binômio cuja existência permanece viva na humanidade.

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o doutor Honoris Causa dirceu lindoso1

Anivaldo Miranda

Sem dúvida, estamos todos vivenciando hoje um dia muito espe-cial. O dia em que o povo de Alagoas começa a saldar uma grande dívida de gratidão. E o que é mais importante: é que começa a saldar essa dívida pela maneira mais apropriada e pelo conduto mais legíti-mo para fazê-lo.

Refiro-me, como todos bem sabem, à nossa dívida comum para com o cientista social Dirceu Lindoso, que hoje recebe das mãos da reitora Ana Dayse o merecido título de Doutor Honoris Causa da Uni-versidade Federal de Alagoas, a instituição mais qualificada e mais apropriada para fazer o reconhecimento público da inquestionável importância e do grande valor científico da obra de Dirceu.

Ressalte-se, porém, que a UFAL não se limitou hoje apenas ao reconhecimento da obra dele. Foi mais além e, por isso, torna-se porta-voz privilegiada do povo alagoano, quando, além do cientista, homenageia também o homem, o profissional, o militante político e o grande cidadão alagoano que é Dirceu Lindoso.

É em função dessa homenagem ao cidadão político que estou aqui, atendendo a honroso convite dos organizadores desta solenida-de, para falar um pouco da trajetória política de Dirceu com quem compartilhei muitos anos de militância clandestina no antigo Partido Comunista Brasileiro, o PCB, e da resistência ao regime militar.

Muitos não sabem, mas, para além e até antes de sua longa e produtiva vida de estudioso, Dirceu conseguiu ser aquilo que o ita-liano Antonio Gramsci caracterizaria como um intelectual orgânico, ou seja, aquele que não apenas produz teorias e reflexões sobre a realidade social, mas também participa ativamente do processo de materialização e comprovação dessas teorias com olhos voltados para a transformação da sociedade.

1 Discurso pronunciado durante a solenidade de entrega do título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Alagoas, no Espaço Cultural, Praça Visconde de Sinimbu, em Maceió, AL, no dia 26/03/2011.

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Homenagem Centenário de Nelson Werneck Sodré

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Em outras palavras, com isso quero lembrar que Dirceu foi buscar inspiração e material para sua criatividade científica, em boa parte na militância política que teve como membro do Comitê Estadual do PCB, no final da década de 1950 e início da década de 1960, em Alagoas, quando o partido estava sob a direção de Jaime Miranda.

Aliás, esse foi talvez o período de maior ebulição política em Ala-goas durante todo o transcorrer do século XX. Essa ebulição política encontra sua explicação no fato de ter sido a primeira vez na história de Alagoas em que as chamadas classes representativas do mundo do trabalho intervieram com um consistente projeto de mudanças econômicas e sociais na arena política alagoana.

Fruto de intelectuais engajados como Dirceu, os movimentos sin-dical, estudantil, dos trabalhadores rurais, as associações represen-tativas dos profissionais liberais e formadores de opinião constituí-ram o maior movimento de massas em favor de mudanças democráticas e de rupturas sociais que Alagoas jamais conheceu.

O golpe de Estado representou um profundo corte nesse rico e inigualável processo. E Dirceu, como tantos outros líderes daquele movimento, pagaria caro, muito caro, por sua ousadia socialista.

Preso, em 1º de abril de 1964, pela polícia política de Alagoas, Dirceu fez parte da legião de centenas e centenas de pessoas, ho-mens e mulheres, que foram encarceradas pelos agentes do regime militar e fez parte, também, da última leva de presos políticos a ser libertados 9 meses depois.

Exilado no Rio de Janeiro, Dirceu manteve-se clandestinamente como membro do Comitê Central do PCB até os anos da anistia polí-tica, combinando essa condição de resistente político, cheia de riscos e enormes tensões pessoais, com suas atividades profissionais de professor que foi da Universidade Gama Filho, do Rio de Janeiro, e colaborador do Museu Nacional e do Museu Imperial de Petropólis.

É aqui que ressalta ainda mais o valor desse grande e corajoso intelectual, porque apesar do grande preço pessoal que pagou como cidadão e democrata pelo fato de lutar contra a ditadura, ainda as-sim teve força incomum para escrever a sua maravilhosa obra. Sin-ceramente, não é positivamente fácil ter determinação e autocontrole para produzir intelectualmente no contexto das perseguições, riscos, intimidações e perigos que cercavam aqueles e aquelas que ousas-sem criticar e fazer oposição ao regime militar fascista que se im-plantou no Brasil.

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O Doutor Honoris Causa Dirceu Lindoso

Anivaldo Miranda

O melhor de tudo é que essas circunstâncias dolorosas do exílio, do isolamento forçado, da desestabilização da vida pessoal, das per-seguições políticas, não contaminaram a obra nem a pessoa de Dir-ceu com amarguras e rancores.

Tampouco contaminaram a obra de Dirceu suas convicções ideo-lógicas. Militante comunista e discípulo de Marx, podemos dizer que Dirceu nunca foi, como de resto o próprio Marx também nunca o foi, um marxista doutrinário.

Do marxismo, Dirceu valeu-se do método e da genialidade das análises histórico-concretas, sem prescindir, todavia, das contribui-ções e ensinamentos de todos os demais gênios das ciências sociais para interpretar, sem qualquer mecanicismo, a história do povo de Alagoas. História que ele viu e reviu desde o olhar das chamadas classes subalternas, desde o olhar dos escravos, dos negros, dos ín-dios, dos trabalhadores, dos homens e mulheres do campo, das clas-ses médias, da grande maioria formadora do universo do trabalho.

Filho de Maragogi, voz tardia mas nem porisso absolutamente legítima dos grandes cenários históricos do Quilombo dos Palmares, da Revolta dos Cabanos, das Invasões Holandesas, da resistência anticolonial, da saga representada pelos trabalhadores da cana-de-açúcar e sua inimaginável opressão, da riqueza e exuberância da civilização da Mata Atlântica e do verdor dos nossos mares, Dirceu deu à Alagoas uma extraordinária contribuição para o resgate de sua memória.

E no contexto desse resgate, ajudou-nos de uma forma absoluta-mente rara, ou seja, ajudou-nos e vai continuar nos ajudando a co-nhecer e melhor formar nossa identidade como civilização brasileira, nordestina e alagoana, bem como ajudou-nos e vai continuar nos ajudando e fornecendo notáveis instrumentos para aumentar nossa autoconsciência como povo e sociedade.

O Partido Popular Socialista, sucedâneo do antigo PCB, através do seu Diretório Nacional e do seu presidente nacional, Roberto Frei-re, pediu-me para transmitir a toda a comunidade de estudantes, professores, funcionários e técnicos da Ufal as mais calorosas con-gratulações por este ato de justiça e de reconhecimento acadêmico a este grande amigo, grande mestre e grande alagoano que é Dirceu Accioly Lindoso. Muito obrigado.

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XI. Resenha eCrítica de Cinema

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Autores

Ivo CoserCientista político, professor da UFRJ e autor de Visconde do Uruguai. Centralização e federalismo no Brasil 1823-1866. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: UFMG/Iuperj, 2008.

Luiz Carlos Prestes FilhoAutor dos livros Economia da Cultura – a força da indústria cultural do Rio de Janeiro (2002), Cadeia Produtiva da Economia da Música (2005) e Cadeia Produtiva da Econo-mia do Carnaval (2009).

Martin Cezar FeijóProfessor da Faculdade de Comunicação e Marketing (Facom) da FAAP desde 1988. É professor do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie desde 2002, doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e autor de vários livros.

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neorrepublicanismo, tolerância e diálogo

Ivo Coser

Abordar o pensamento neorrepublicano implica analisar um pen-samento em movimento. Em outras palavras, diferentemente de au-tores cujas obras já estão fechadas, às quais se sobrepõem interpre-tações sobre ideias já conhecidas, os principais autores do pensamento neorrepublicano estão produzindo. Portanto, formula-ções consideradas chaves podem ser reformuladas em razão de no-vos argumentos.

O pensamento neorrepublicano emerge a partir de duas linhas de pesquisa. Uma se desenvolve no campo da História das Ideias, cujo principal expoente é Quentin Skinner, que tem sua obra bastante difundida no Brasil. A segunda envolve a Teoria Política, cujo princi-pal expoente é Phillip Pettit. O principal esforço teórico em delinear esta corrente partiu de Phillip Pettit, e, foi o seu trabalho que forne-ceu elementos chaves para as pesquisas de Quentin Skinner no cam-po da História do Pensamento Político. Em 1997, Philip Pettit publi-cou Republicanism.1 Esta obra desencadeou uma série de trabalhos que retomavam a tradição republicana em novas bases. O termo “re-publicanismo” invadiu o vocabulário acadêmico e, mesmo, o do de-bate político mais amplo. Hoje, tornou-se comum lermos ou ouvir-mos o termo “republicanismo” nos jornais, revistas e debates parlamentares. A publicação em 2001 de Theory of Freedom possibi-lita redefinições relevantes tanto no seu aspecto teórico como nas pesquisas em história do pensamento político.

Na sua obra hoje já clássica Republicanism, Pettit apresentou como um dos seus aspectos distintivos para com o pensamento libe-ral o conceito de liberdade como não dominação. Esta definição en-fatiza a ideia de que o cidadão é livre quando não sofre uma interfe-rência arbitrária. Um sujeito afeta arbitrariamente outro quando constrange as escolhas que este realizaria, através de uma interfe-rência direta ou velada. A ideia de arbitrariedade está associada à negação de que o outro sujeito deva possuir autonomia para realizar

1 PETTIT, P. Republicanism. A Theory of Freedom and Government. Oxford, 1997.

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Resenha e Crítica de Cinema

suas escolhas e que estas devam ser levadas em conta na formulação das alternativas. O pensamento republicano estabelece esta distin-ção a partir do principal perigo a ser evitado: a dominação. A domi-nação seria caracterizada por uma relação entre senhor/amo e ser-vo. Nesta o senhor pode intervir de maneira arbitrária nas escolhas do dominado, sem que tenha que considerar as opiniões da pessoa afetada. Pettit enfatiza que a dominação pode ocorrer sem que seja necessária a ocorrência da intervenção, pois a ameaça e o sentimen-to de temor conduzem o sujeito a restringir suas escolhas, buscando satisfazer aquele que pode, sem a necessidade de ponderar os inte-resses do outro, forçá-lo a um dado comportamento.2

Para os republicanos pode-se permitir a interferência de uma ins-tituição com a condição de que esta promova os interesses dos cida-dãos e a realize de acordo com critérios compartilhados entre os ci-dadãos.3 Os instrumentos de um Estado democrático são meios para promover a liberdade dos cidadãos e não fins em si mesmos. A liber-dade do cidadão é distinta da participação no governo a qual é enten-dida como um meio para assegurar a primeira.

O pensamento neorepublicano construiu intencionalmente sua definição em oposição à concepção teórica de Isaiah Berlin, que foi talvez o mais importante teórico político liberal do pós-segunda guer-ra mundial. Hoje, é clássica sua distinção entre os dois conceitos de liberdade, a liberdade positiva e a negativa. Nesta formulação, o polo principal deste conceito reside na liberdade negativa, ocorrendo uma equação política, na qual quanto maior a interferência menor o espa-ço da liberdade. Em outras palavras, o silêncio da interferência é o campo da liberdade.

Os neorrepublicanos avaliam positivamente a possibilidade de in-tervenção como um reforço para o exercício da liberdade. A necessida-de de intervenção decorre da existência de poderes assimétricos na sociedade, que afetariam a autonomia do cidadão – poderes tais como o de patrões sobre trabalhadores ou o de maridos sobre as es-posas. Essa intervenção não representaria uma perda de liberdade.

Neste sentido, o pensamento republicano estabelece dois aspec-tos para evitar a arbitrariedade: a importância dos procedimentos formais e a ausência de fins últimos na condução da interferência. A formulação do pensamento neorrepublicano esteve assentada em aspectos formais. Tal procedimento foi movido pela ideia de que de-veria ser afastada qualquer sombra de um conteúdo substantivo

2 Pettit, 1997, cap. 1.3 Ib.

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Neorrepublicanismo, tolerância e diálogo

Ivo Coser

para o exercício da liberdade. Quaisquer metas, tais como liberdade do povo, liberdade como participação política, seriam vistos como um retorno ao conceito antigo de liberdade. Ao cidadão não lhe seria de-mandado nenhum conteúdo para a sua ação, mas simplesmente o respeito às regras formais que sustentariam o espaço de liberdade, o qual seria preenchido por cada cidadão livremente.

Esta formulação foi modificada recentemente. A publicação do livro Theory of Freedom (2001) apontou para um deslocamento im-portante na sua argumentação. Neste trabalho a ênfase na formula-ção do conceito de liberdade se desloca dos aspectos formais do Es-tado e da sua organização para os pré-requisitos de que o cidadão deve dispor para exercer essa liberdade. A ideia da liberdade como não dominação asseguraria a autonomia do cidadão, entretanto esta deve estar diretamente associada ao controle discursivo. O aspecto principal desta ideia consiste na capacidade relacional com outros cidadãos. Num sistema republicano, o cidadão deve ser capaz de dia-logar amistosamente e de agir com outros cidadãos, que, porventura, possam postular valores distintos44.

Dessa maneira emerge no pensamento neorrepublicano o tema do diálogo. Um tema importante que foi trabalhado principalmente por Hannah Arendt e, sob influência, desta, mas em outra direção, por Jurgen Habermas.

A ideia do diálogo, formulada por Hannah Arendt, emerge como um passo além da tolerância. A ideia de tolerância desempenha um papel importante na reflexão política ocidental. Os cidadãos, pos-suindo crenças e valores distintos, de maneira a evitar um conflito que colocaria em risco a vida em comum, aceitam o convívio em ba-ses de tolerância às diferenças. Entretanto, a ideia de diálogo envolve um aspecto distinto. A esfera da política é permeada pela capacidade dos cidadãos em sairem da sua visão do mundo e serem capazes de compreender o ponto de vista dos demais, ampliando seu conheci-mento dos assuntos públicos. O agir em conjunto, característico da política, somente pode ocorrer através deste deslocamento, o qual requer mais do que a mera tolerância, mas a incorporação dos valo-res dos outros cidadãos num novo patamar.

A formulação de Hannah Arendt pode oferecer elementos novos para a teoria política neorrepublicana. Conforme os neorrepublica-nos enfatizaram, participar nos assuntos públicos era um meio para proteger sua esfera de não dominação; com a introdução do tema do

4 Pettit, 2001, cap. 4 e 6.

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Resenha e Crítica de Cinema

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diálogo este aspecto ganha uma nova dimensão. O cidadão participa dos assuntos públicos não apenas para dispor de uma esfera de au-tonomia, mas para ampliar seu conhecimento e sua ação na esfera pública. Somente através do diálogo o cidadão incorpora a visão de mundo dos demais, ganhando uma mirada que jamais obteria caso permanecesse preso aos seus interesses. A ideia da liberdade como não dominação passa a ser um primeiro passo, o qual requer, em seguida, que o cidadão disponha da capacidade de dialogar amisto-samente com outros cidadãos, portadores de valores distintos, impli-cando a incorporação destes na sua nova opinião.

A leitura de A teoria da liberdade, em que pese sua linguagem teórica, permite ao leitor o acesso a um aspecto novo nesta importan-te corrente do debate político contemporâneo.

Sobre a obra: A teoria da liberdade. Phillip Pettit. Trad. Renato Sér-gio Pubo Maciel. Coordenação e supervisão Luiz Moreira. Belo Hori-zonte: Del Rey, 2007. 272p.

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André midani e o inconsciente coletivo na mPb

Luiz Carlos Prestes Filho

O Brasil teve sorte na manhã de 5 de dezembro de 1955, quando um mix de sírio, turco e francês desembarcou na Praça Mauá, no Rio de Janeiro. Mas aquele jovem teve muito mais sorte! Pois, tivesse ele man-tido seu roteiro original e desembarcado em Buenos Aires, na Argenti-na, sua história teria sido outra. A música popular brasileira, não. Seria a mesma que hoje conhecemos – com Midani ou sem Midani.

Esta é a mensagem que passa o livro Música, Ídolos e Poder – do vinil ao download, através do qual o ex-empresário da indústria fono-gráfica, André Midani, com humildade leva o leitor a passear por sua vida. Tudo bem mastigadinho: origens, nascimento, meio e fim. Sua narrativa é linear, sem um flashback.

A cada página ele vai se redefinindo, expondo suas ambições e aspirações. Indicando que a força de sua obra está na unidade das ações. Nunca num disco específico, num festival ou show que conce-beu e realizou durante os últimos cinquenta anos.

“E a proa do navio”, conta Midani, “já em marcha lenta, cortava o mar azul transparente quando já se podiam descobrir, pouco a pouco, o Pão de Açúcar, o Corcovado”. Assim, com esta paisagem nos olhos, terminava sua fuga de uma França mergulhada na guerra colonial contra a independência da Argélia, para a qual temia ser convocado: “Quem nunca entrou de navio na baia da Guanabara não pode ter ideia do que seja a beleza da cidade... Eu, vindo da chuvosa Paris, nunca tinha visto natureza mais bonita, nem sonhado que pudesse existir uma vista tão luxuriante. Quando o navio passou em frente ao Aeroporto Santos Dumont, decidi: – É aqui que eu quero viver”.

Ele trazia na bagagem uma frágil experiência de trabalho na Dis-ques Decca e muito amor à música gravada. Mas isso foi o suficiente para ser contratado pela gravadora Odeon brasileira, 72 horas de-pois de sua chegada!

Somente este fato já seria uma ótima justificativa para a teoria de um Glauber Rocha: “André Midani foi agente da CIA”. Afinal, não existiria outra explicação para o fato de um obscuro francês-sírio-

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Resenha e Crítica de Cinema

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turco, absolutamente desconhecido, ser tão rapidamente contratado por uma multinacional! Foi a CIA que deu ordem, ele tinha um papel a desempenhar durante a Guerra Fria contra os artistas brasileiros.

Paranoias à parte, Midani apresenta sua história como uma ma-téria flexível, que até poderia ter sido outra. Ficou com a cara que tem porque foi modelada pelos imprevistos.

Qual foi a maior constatação de sua vida? A de que um artista, mesmo desafinado, se tiver ligação imediata com o inconsciente cole-tivo, termina acontecendo! Esta luz veio através do cantor Orlando Dias – hoje considerado um cafona. Abraão Medina, pai do Roberto Medina do Rock in Rio, era dono da prestigiosa loja de eletrodomés-ticos “O Rei da Voz”, que patrocinava programas musicais nos horá-rios nobres da TV e rádio. Ele queria que a gravadora trabalhasse o cantor: “Era o tipo de proposta temida nos departamentos artísticos e promocionais, por ser um engodo que se voltava contra a gravadora no desenrolar dos acontecimentos. Em geral, o artista, muito ruim e sem sucesso esperado, fazia o lojista atribuir à gravadora o fracasso do seu protegido”. Midani, ao ouvir o Orlando Dias, sentenciou que ele era ruim demais! Mas, para seu espanto, o cantor estourou no país inteiro. Foi sucesso absoluto em todas as emissoras sem ninguém ter promovido o disco.

“Comecei a entender”, lembra Midani, “que o que o cantor e sua música diziam não era tão importante quanto a maneira como diziam, e como o que diziam dependia da genuinidade do sentimento que vi-nha do fundo da alma. Quando o público carregava um sentimento similar, identificava-se com o cantor através do inconsciente coletivo. E a canção, como tal, se restringia a um pretexto, e era meramente um fio condutor da empatia entre o cantor e o público. Visto através desse prisma então revolucionário, a gente poderia compreender que o espi-ritismo e o tormento expressados pelo Orlando Dias através de sua música e do seu cantar eram porta-vozes do inconsciente coletivo do povo nordestino emigrado do sertão para as cidades. Essas eram as razões do seu sucesso. Foi a partir deste momento, através de um lon-go aprendizado, que me exercitei pouco a pouco a ouvir muito mais a alma do artista do que propriamente escutar a beleza de sua canção e de sua voz”.

Esta foi a chave que lhe permitiu se aproximar de um Dorival Caymmi que, por sua vez, o apresentou a um jovem baiano recém-chegado ao Rio de Janeiro, de grande talento e de uma musicalidade muito original. Midani conta: “Caymmi chegou com um rapaz que achei ainda mais tímido do que a turma da bossa nova. Poucas pala-

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André Midani e o inconsciente coletivo na MPB

Luiz Carlos Prestes Filho

vras pronunciadas naquela noite e, começando com ‘bim-bom’, muitas foram as músicas cantadas pelo jovem João Gilberto. Em poucas pa-lavras, levamos um susto! Era algo totalmente revolucionário!”

Curioso como a palavra ‘revolucionário’ é empregada no relato de Midani. Tanto para destacar um esquecido Orlando Dias, como para referenciar o papa da MPB, João Gilberto. Parecem não existir fron-teiras entre um e o outro nestas páginas de memórias. Os dois habi-tam ali no mesmo tempo, têm a mesma textura, o mesmo sabor e massa. Penso que na verdade são raios luminosos que passaram pelo mesmo prisma – André Midani. Ele soube captar as refrações diversas, as variáveis da qualidade de som e identidade original. Re-volução? Penso que não, evolução, sim.

O livro está recheado, nas entrelinhas, de sinais desta capacida-de de Midani em captar a força do inconsciente coletivo da música. Foi assim com Elis Regina, Caetano Veloso, Tim Maia, Chico Buar-que, Raul Seixas, Nara Leão, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Jorge Ben Jor, Mutantes, Barão Vermelho, Kid Abelha e tantos outros ar-tistas e bandas.

Emblemático é o lançamento, em 1969, da canção “Aquele Abra-ço” de Gilberto Gil, feita para a partida do autor para o exílio, por conta do endurecimento da ditadura fascista que chegou ao poder no Brasil com o golpe de 1964: “Guilherme Araújo havia me telefonado, solicitando que eu deixasse o estúdio de gravação à disposição dos meninos na sexta-feira para gravarem uma música de despedida com-posta por Gil para a ocasião. Ficou acertado que ninguém, além deles e do técnico de gravação, ficaria no estúdio, e que nenhuma notícia seria dada à imprensa. Eu me comprometi a lançar a música o mais rápido possível nas rádios. Nosso gerente de estúdio, Umberto Contar-di, companheiro de muitas odisseias, tomou as providências necessá-rias para o completo sigilo. Os baianos finalizaram a gravação na noi-te de sexta para sábado. Sábado de manhã, produzimos muitas cópias em fita para as rádios do Rio e de São Paulo tocarem a música no exa-to momento em que o avião fosse decolar na noite de sábado. Lá pelas 21 horas, fui acompanhar os meninos até o Aeroporto do Galeão, hoje Aeroporto Internacional Tom Jobim, onde muita gente tinha ido deles se despedir. Voltei para casa com o rádio ligado e ‘Aquele Abraço’ es-tava tocando em muitas estações antes mesmo de o avião decolar e de os meninos perderem de vista a terra brasileira”.

A participação de André Midani – na sombra e nos lucros – na gravação de “Aquele Abraço” se deu por conta de sua capacidade em captar naquela canção algo muito importante, expressivo. Na voz e

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Resenha e Crítica de Cinema

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na canção tinha uma genuinidade de sentimento que vinha do fundo da alma do povo reprimido. Povo que derrubaria o regime fascista brasileiro dez anos depois. Este fato já seria suficiente para fazer muitos de nossos militares imaginarem que o André foi agente ver-melho, agente da KGB, o serviço secreto da ex-União Soviética.

Com Midani ou sem Midani a música popular brasileira teria o mesmo vigor que tem hoje. Mas, temos que reconhecer que o Brasil teve boa sorte, por conta deste francês-turco-sírio se desviar do seu roteiro original naquele longínquo ano de 1955. Imaginem se ele en-tra de coração e alma no tango argentino!

Sobre a obra: André Midani – Música, Ídolos e Poder: do vinil ao ‘do-wnload’. Rio de Janeiro: 2008. (O livro está fora de circulação comer-cial por força de processo judicial de familiares de personagens cita-das pelo autor)

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Tetro, o filme

Martin Cezar Feijó

Quando Francis Ford Coppola, um dos mais importantes cineastas da história do cinema, esteve com alunos da Fundação Armando Álva-res Penteado, em São Paulo, no dia 1º de dezembro de 2010, justificou o fato de estar com meias de cores diferentes como sendo uma opção e um direito adquirido. Opção de não seguir regras sociais obrigató-rias, e direito adquirido, aos 71 anos, como autor de uma rica e com-plexa obra cinematográfica, de fazer só o que acha melhor. O fato, presenciado pelo Teatro Faap lotado, pode ser também visto como uma metáfora da obra que ele então lançava no Brasil: Tetro.

Trata-se de um filme ao mesmo tempo modesto e ambicioso na carreira de Coppola. Modesto para os padrões de superproduções que ele já dirigiu; ambicioso por ser um de seus filmes mais pessoais, em que ele cuidou da produção pessoalmente, escreveu o roteiro e dirigiu sem nenhuma intervenção de produtores de Hollywood. E o filme, se não chega a ser autobiográfico no sentido literal, é total-mente inspirado em sua experiência de vida.

Uma vida dedicada à arte, filho de um pai músico, um maestro razoavelmente conhecido, Carmine Coppola, e tendo como irmão mais velho um talento literário que acabou se realizando na vida aca-dêmica. Tetro é a his tória de uma tensa relação entre pai e filho, um maestro internacionalmente conhecido, Carlo Tetrocini, e seu filho, Augusto Tetrocini, o personagem Tetro que dá nome ao filme. Em uma cena de lembrança, colorida enquanto que o filme é praticamen-te todo em preto e branco, Tetro dialoga com o pai e diz que vai aban-donar o projeto de estudar medicina para estudar filosofia. O pai, então, pergunta como ele iria ganhar a vida com filosofia. Tetro diz que pretende ser escritor, e seu pai Carlo Tetrocini (Klaus Maria Brandauer), responde com empáfia que, numa família, só teria lugar para um gênio. Ou seja, ele mesmo. E esta é a tensão do filme, do filho que quer se livrar do pai, mudando-se de Nova York, onde mora o pai famoso, para Buenos Aires, na Argentina.

O filme se passa praticamente todo o tempo em Buenos Aires, no bairro do Boca. Tetro (Vicente Gallo) recebe uma visita inesperada de

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Resenha e Crítica de Cinema

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seu jovem irmão Bennie (Alden Ehrenreich), que cobra dele não ter ido buscá-lo.

A relação tensa entre filho e pai, Tetro e Carlo, se trans fere para a relação entre irmãos; Bennie, o mais jovem, admirando o mais ve-lho e obtendo dele nada mais que desprezo. O filme de Coppola se estrutura então como melodrama de uma família de origem italiana, com suas passione e conflitos, mas com uma complexidade sobre como esses fios vão sendo costurados no decorrer da narrativa, que aponta para desdobramentos trágicos.

O slogan apresentado por Tetro diz que “toda família tem um se-gredo”, mas são vários segredos; um deles, que se pode contar aqui, é que o pai famoso rouba a namorada do filho pelo fascínio que seu sucesso pro voca. Um motivo de tensão que se desdobra no livro des-coberto por Bennie ao fuçar as coisas de Tetro. E é exatamente nessa parte do filme que a arte é mostrada em todo seu vigor na música, no teatro, na literatura, mas também nas vaidades humanas. Tetro é pego de surpresa ao ver seu texto teatral finalizado por Bennie e acei-to em um famoso festival realizado na Patagônia, sob patrocínio de Alone (Carmen Maura), que protege as artes, mas é temida pelos ar-tistas por seu carisma e poder de influenciar o público. Uma perso-nagem in teressante, sutilmente inspirada em Victoria Ocampo, inte-lectual argentina decisiva, que enfrentou o pero nismo e lançou importantes escritores nessa mesma época, tais como Jorge Luís Borges. E não é casual que o festival, por ela organizado e patrocina-do, tenha exa tamente como conceito o de “Festival do Parricídio”, no momento em que o pai maestro sofre um derrame em Nova York e o filho seria premiado por uma obra literária em que envolve uma tra-ma em que o filho mata o pai.

Com isso, o ciclo se fecha e o tema do parricídio se evidencia, como no “mito científico” criado por Sigmund Freud, publicado em 1912 e intitulado Totem e Tabu. Nessa extraordinária aventura inte-lectual do fundador da psicanálise, tão admirada como massacrada por antropólogos de várias correntes, ele demonstra que o início da civilização se deu a partir do momento em que filhos descontentes matam seu pai por este não respeitar sexualmente suas filhas e res-pectivas irmãs dos filhos revoltados com o poder do pai.

A “morte do pai” provoca duas consequências: é institu ído o tabu do incesto, em que membros do mesmo clã não poderiam mais se ca-sar entre si e, como culpa pelo assassinato do pai, é erigido um totem em sua homena gem, no que Freud demonstraria a origem das explica-ções religiosas. Com a proibição da endogamia, o clã se vê obrigado a

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Tetro, o filme

Martin Cezar Feijó

capturar mulheres de outros clãs e garantir assim a sobrevivência da espécie. Freud explica, assim, de forma muito mais complexa do que é apresentado sucintamente aqui, a origem da civilização.

O filme de Coppola, intencionalmente ou não, atualiza o mito e provoca emoções ao evocar o choque primeiro do filho com o pai, de irmão contra irmão, para, finalmente, ao se desvendar o segredo, permitir que o mundo se recomponha sob escudo de uma mulher extraordinária, Miranda (Maribel Verdú), médica psiquiatra, que aju-da o escritor a se suportar, os irmãos a se conhecerem e, por fim, mesmo sem saber, que pai e filho se encontrem, formando uma ver-dadeira família.

É muito difícil, em poucas palavras, dar conta da riqueza audio-visual na qual Tetro opera, sem contar a importância da música, ressaltada pelo balé Coppélia, que remete ao filme Os Sapatinhos Vermelhos, clássico de 1948, em que sonho e realidade se confundem para gerar o que denominamos arte. Tetro é isso, um filme de arte reali zado por um cineasta que passou pelo mainstream (objetivo fi-nal), ganhou Oscar e hoje, como pro dutor de vinho, produzido em Napa (Califórnia), se aventura a filmar o que deseja com liberdade, finan ciando sua arte com o que ganha com o vinho, fora da conven-ção da indústria do entretenimento, e realizar filmes que, se não agrada rem a todos, nem mesmo a grande maioria de fãs de seus grandes sucessos (como a saga da família Corleone em O Poderoso Chefão), vai agradar ao próprio cineasta, que já não precisa provar mais nada para ninguém e que agora pode até se dar ao luxo de ves-tir meias que não formam par, mas que podem fazer a diferença, como em qualquer processo criativo.

sobre o filme: Tetro. Francis Ford Coppola.

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