Na Corda Bamba

download Na Corda Bamba

If you can't read please download the document

description

livro

Transcript of Na Corda Bamba

NA CORDA BAMBA Dorothy Gilman -Digitalizao e ArranjoAgostinho CostaEste livro foi digitalizado para ser lidopor Deficientes VisuaisUma imaginativa aventureira A multitalentosa Dorothy Gilman capaz de criar um cenrio com uma caneta ou um pincel.Originalmente interessada em seguir a carreira artstica,estudou durante algum tempo na Academia de Belas-Artes daPensilvnia, em Filadlfia. Seguidamente, aos vinte e doisanos, retomou um passatempo favorito da sua infncia: escreverhistrias. Aps uma quantidade de romances destinados aosjovens que alcanaram xito, Dorothy Gilman dedicou-se fico para adultos e criou essa simptica diletantedaespionagem, Mrs. Emily Pollifax. As Seleces do Livro jpublicaram uma das aventuras de Mrs. Pollifax, seguindo-a dosEUA at Albnia. Nascida e criada em Nova Brunswick, Nova Jrsia, onde seupai era pastor baptsta, Dorothy Gilman sempre desejou viajar. Enquanto permanecia em casa para criar os seus dois filhos,expressou os seus sonhos de viagem nas histrias,maravilhosamente inventivas, de Mrs. Pollifax. Desde que os filhos entraram na universidade, aautora pde dispor de tempo para as suas prprias aventuras:muitas das almejadas viagens a pases estrangeiros, bem comouma odisseia espiritual. Acabou recentemente de escrever o seuprimeiro livro que no de fico, Uma Nova Espcie de Pais,baseado na sua vida, na sua casa actual, na costa da NovaEsccia. Afirma que encontrou as suas razes numa pequena aldeiaisolada de pescadores de lagosta, onde passa a maior parte doseu tempo a escrever e a cuidar do seu jardim, no qual plantaervas aromticas. Na paisagem espectacular que descreve comoespao e cu e gua, Mrs. Gilman encontrou bons amigos e umaexistncia nova e compensadora. Eles vo matar-me em breve - dentro de poucas horas, creioeu -, e ho-de proceder de forma tal que ningum jamaissuspeitar que fui assassinada. Porque assinei eu aquelepapel a noite passada? Sentia tanta fome e estava to cansada... mas agora, demanh, sei que nunca devia t-lo assinado. O que quer quefosse... foi a minha sentena de morte. CAPTULO I Talvez o terror assombre cada minuto da existncia de cadaum de ns e o enterremos no mais recndito de ns mesmos,nunca nos detendo para o olhar. Ou talvez me assombre apenas amim. Refiro-me aos nossos vulgares terrores bsicos, como o quese sente quando nos interrogamos sobre o significado da vida,ou constatamos que no tem nenhum, ou se nos depara umasituao de alarme, ou ouvimos rudos numa casa antiga, quandoas tbuas do soalho rangem e os objectos se entrechocam nanoite. Por vezes, penso que somos todos funmbulos,equilibrados sobre uma corda a quinhentos metros de altura, eque tudo decorre normalmente enquanto no olhamos para baixo;alguns de ns, porm, perdem a cadncia do movimento e olhampara baixo durante um segundo e nunca mais voltam a ser osmesmos: eles sabem. Por isso, quando encontrei o bilhete escondido no velhorealejo, no o considerei uma brincadeira. Reconheci o terrornaquelas palavras mesmo antes de ter acabado de ler a primeirafrase. Eles vo matar-me em breve - dentro de poucas horas, creioeu -, e ho-de proceder de forma tal que ningum jamaissuspeitar que fui assassinada. Mas talvez seja prefervel euexplicar como adquiri o realejo e como que, com a minhaidade, vinte e dois anos, no estou propriamente a gozar avida, mas possuo e dirijo a loja Baixa-Mar, Tesouros eSucatas, Proprietria Amlia Jones, 688, Fleet Street (noexactamente a zona mais elegante da nossa cidade), em Trafton,Pensilvnia. Este condicionalismo verifica-se de facto por eu ser tolivre, palavra que costumo usar no sem alguma ironia. Tenhovivido s no mundo desde os dezoito anos e, alm disso, com aexperincia de uma estranha infncia. Quando tinha dezasseteanos, o meu pai marcou-me consulta num psiquiatra chamado Dr.Merivale. Penso que ele sabia que no tardaria a morrer, e um diaolhou para mim - talvez de facto me tenha visto pela primeiravez - e despachou-me para o Dr. Merivale, para que recebessedoses macias de confiana e carcter. Decorridos algunsmeses, o meu pai foi hospitalizado e morreu, vtima de umltimo ataque cardaco. Deixou uma surpreendente quantia em dinheiro, que um bancoda cidade deveria entregar-me em mensalidades at eu completaros vinte e um anos. Continuei a visitar o Dr. Merivale durante dois anos edescobri que descendia de uma famlia afectada por traumas eque a vida me aterrorizava. Comecei a interessar-me porpsicologia e a ler livros sobre o assunto todo o dia e metadeda noite. Surtiu efeito. Um dia vi-me num espelho de corpo inteiro ecompreendi por que motivo ningum reparava em mim - nem eu meteria notada numa camisola cinzenta demasiado grande e saiacinzenta de bainha irregular. Sa e comprei um par de calascompridas de boca de sino que roagavam quando eu andava, oque me agradou; na semana seguinte comprei um pulver brancoe depois um azul. Um dia acusei o Dr. Merivale de seremproado! Depois de se recompor do choque inicial, ficou muitosatisfeito comigo. No posso dizer que tenha desabrochadofisicamente; continuava a ser magra e sardenta, com cabelocastanho liso, mas interiormente sentia-me comear a viver.Quase era capaz de perdoar minha me por se ter suicidadoquando eu tinha onze anos. Depois de a nossa grande casa na Walnut Street ter sidovendida, mudei-me para uma penso - o Dr. Merivale insistiapara que eu vivesse com outras pessoas - e apliquei-me aseguir um regime orientado no sentido de facilitar o meudesenvolvimento fsico, pois queria mudar o mais rapidamentepossvel. Levantava-me s oito horas e fazia exercciosrespiratrios profundos, depois meditao transcendental esubsequentemente ioga, seguido por exerccios calistnicos daFora Area Canadiana (cujo principal objectivo, devoconfess-lo, residia em aumentar as dimenses do meu busto). Etrs vezes por semana ia visitar o Dr. Merivale. Mas continuava a ter pesadelos todas as noites. Foi na penso que conheci Calley Monahan, que tambm tinhasardas. O que imediatamente me impressionou nele foi a suacalma imperturbvel. No deveria ter mais de trinta anos epossua barba e cabelos ruivos. Eu nada sabia a seu respeito,excepto o nome e que tocava guitarra. Aps cerca de trssemanas, deixei de me sentir aterrorizada quando ele dizia:Como est?, e uma noite, depois do jantar, tivemos realmenteuma conversa, durante a qual me interrogou sobre a minha vida. Com certa incoerncia, mencionei-lhe as minhas consultas como Dr. Merivale, e Calley fitou-me longamente, com gravidade. Finalmente, disse: melhor vir conhecer Amman Singh. O maisestranho que, depois de ele me levar nessa noite a AmmanSingh, nunca mais o voltei a ver. No entanto, se no fosseele, nunca teria conhecido Amman Singh. Provavelmente, iriafrequentar o curso de dactilografia que o Dr. Merivalecontinuava a aconselhar-me e certamente nunca teria encontradoo bilhete no realejo. A perspectiva de sair com Calley punha-me extremamentenervosa. Passar uma noite com um homem constitua para mim umararidade; sem conseguir decidir qual o vesturio apropriadopara a ocasio, escolhi um traje de compromisso - o velhocamisolo cinzento, imagem da minha vida antiga, e as calasde boca de sino, que representavam a minha vida nova. Calleysurgiu com uma motocicleta, e l partimos roncando, comigodesesperadamente agarrada, possuda do pnico de cair. Apesarde toda a minha existncia ter decorrido em Trafton, nuncavira Clancy Street. Era uma rua estreita ladeada por velhascasas decadentes e pequenas lojas curiosas. Parmos diante deuma encardida casa de madeira com um alpendre inclinado para olado, subimos cinco lanos de escada, tambm encardidos, eentrmos no quarto de Amman Singh. Creio que era o homem mais velho que jamais vi; uma rede definas rugas entrecruzava-lhe o rosto. Olhou-me quandoentrmos, e constatei que os seus olhos eram negros comotinta, e to suaves, to luminosos, que senti algo fundir-sedentro de mim. Estava sentado no cho, de pernas cruzadas, como um buda empijama; vrias pessoas, acocoradas sua volta, falavam umalinguagem que eu no consegui compreender. Sentmo-nos e espermos. Experimentava uma sensaosimultaneamente de mistrio e terror pelo facto de estar ali,e no entanto sentia-me invadida por uma sensao de paz. Decorreram cerca de dez minutos at Amman Singh se voltarpara mim e dizer: Temos estado a falar de violncia, daviolncia que grassa dentro de todos ns, dos dios, dospensamentos negativos, dos ressentimentos, da avidez." Assenticom a cabea cortesmente. Ele acrescentou, numa voz murmurada, com uma expressobondosa no olhar: Quando entrou neste quarto, senti a suaviolncia. Ora, se havia alguma coisa que eu nessa alturapensava no possuir, era violncia. Sentia-me branda,malevel, envergonhada, tmida. Ripostei com indignao:.Maseu no tenho violncia em mim. O meu psiquiatra est a tentarensinar-me a encolerizar-me. Diz que eu no exijo o suficiente., Amman Singh ouviu, decabea erguida como um pssaro, e ; depois declarou na sua vozsuave e melodiosa: "Como somos cegos para ns mesmos!", Osseus olhos fitaram os meus e prenderam-nos. Uma rvore podeser vergada por ventos agrestes,, disse ele, mas no menosbela do que a rvore que cresce num recanto abrigado e muitasvezes produz melhor fruto. No seu desejo desesperado de sercomo todos os outros, voc procura destruir o que, um dia,pode ser uma cano., Fiquei imvel, estupefacta.Evidentemente que ele falara verdade. Eu queria sobretudoser... bem, normal, uniformizada, bonita, popular, e nosolitria. Aceitara a minha aspirao como I lgica e s; erao que tanto o Dr. Merivale como eu prpria desejvamos. Agora,subitamente, todos os meus exerccios calistnicos pareciampequenas camisas-de-fora. No conseguia perceber se aquelacriatura curiosa me estava a hipnotizar ou a acordar de umlongo sono. Fiquei a olh-lo e depois levantei-me e sa, semuma palavra a Calmou a Amman Singh. Na manh seguinte telefonei ao Dr. Merivale e comuniquei-lheque durante algum tempo o no procuraria. Comecei a percorreracidade, apenas a olhar as pessoas, as flores, as coisas. Porvezes, visitava Amman Singh: ele fazia ch de ervas esentvamo-nos sossegadamente a beb-lo. Quando um dia meperguntou o que andava a fazer, respondi-Lhe que estava espera, e ele assentiu, compreendendo. E ento, um dia, a dois quarteires do quarto de AmmanSingh, vi na montra de uma loja um cavalo de carrocel e parei,transfigurada. Contemplei as suas linhas, a curva da suacabea ajaezada que se inclinava, e uma profunda sensao deprazer fez-me saltar o corao. Era a primeira vez na minhavida que admirava alguma coisa sem ser influenciada pelosgostos de outrem. Entrei na loja, que se chamava Baixa-Mar, e comprei ocavalinho de carrocel ao vendedor de rosto sulcado de rugasque se encontrava no interior. Passei a semana que se seguiu entrega da encomenda no meu quarto, a mais feliz da minhavida, a pintar e a dourar novamente o cavalo, ao qual pusevidentemente - o nome de Pgaso.,. Durante toda essa semanadormi sem um pesadelo. Infelizmente, na semana seguinte a montra da loja Baixa-Marexibia um segundo cavalo de carrocel, e uma vez que o meuquarto media apenas quatro metros e meio por quatro metros emeio, era bvio que no podia adquirir tambm aquele. Noobstante entrei para o admirar e para explicar aoproprietrio, Mr. Georgerakis, o motivo por que no compraria aquele. Elerespondeu-me que no se importava, pois a loja estava vendae um cavalo de carrocel na montra constitua um bom reclamo. Pela primeira vez consciencializei que completara vinte e umanos e possua dinheiro. Perguntei-lhe quanto queria pelaloja. Ele respondeu-me que tinha um contrato de aluguer doprdio, que era alto e estreito, com um apartamento de doisquartos por cima da loja e um armazm e uma rea para entregade mercadorias na cave. Pelo negcio em si pedia doze mildlares. Comprei a loja nesse mesmo dia. A sua mais valiosamercadoria consistia em cinco cavalos de carrocel, duaspianolas, trs bonecas antigas, um fongrafo automtico demoedas, pilhas de roupas velhas e um realejo. Esfreguei, varrie pintei, mandei fazer um novo letreiro para o exterior daloja e pendurei por detrs da montra um cortinado s riscasazuis e brancas preso em argolas douradas. O que no consegui fazer foi ordenar a esmagadora quantidadede sucata que Mr. Gergerakis comprara, pelo que reduzi o seupreo e fiquei espera de a vender progressivamente. S mais tarde, depois de me ter mudado para o apartamento decima, encontrei o realejo, que estava novo, num recanto escuroda loja, tapado com serapilheira. Estava montado sobre umaforte barra de madeira e a correia para o transportarapresentava apenas ligeiro uso. A caixa era de um vermelhodesbotado com rebordos dourados e no centro ostentava umapintura alegre, um tanto banal, que reproduzia montes elevadose azuis, a garganta de um rio e um cu cor de nata. Quando fizgirar a manivela, ouviu-se um estalido, depois outro, e oinstrumento comeou efectivamente a tocar Lendas das FlorestasVienenses e depois o Danbio Azul. Compreendi que no me podiaseparar dele. Levei-o para cima, para o apartamento, e comeceia toc-lo nas noites em que no estava ocupada a aprender atocar banjo ou a fazer a contabilidade da loja. Uma noite, decorridas cerca de trs semanas, a manivela dorealejo ficou presa, silenciando o Danbio Azul segundanota. Arranjei uma chave de parafusos, abri a parte de trs doinstrumento e descobri um pedao de papel dobrado que entrarano mecanismo. Retirei cuidadosamente o papel com a pina das sobrancelhase accionei de novo a manivela. O Danbio Azul recomeouimediatamente a tocar. Repus a tampa no lugar e peguei entono pedao de papel que lanara para o cho. Alisei-o eencontrei-me ante um terror muito mais profundo do que o meu.Eis o que li: -- Eles vo matar-me em breve dentro de poucashoras, creio eu -, e ho-de proceder de forma tal que ningumjamais suspeitar que fui assassinada. Porque assinei euaquele papel a noite passada? Sentia tanta fome e estava to cansada... mas agora, demanh, sei que nunca deveria t-lo assinado. O que quer quefosse... foi a minha sentena de morte. Mas morrer de forma to estranha, prisioneira na minhaprpria casa! Porque no veio ningum? Que disseram esses doischeios de expediente e sem rosto a Nora, ou mesmo a Robin,para explicar o meu silncio? No importa, o que tenho deenfrentar agora a Morte. Talvez possa esconder estaspalavras num lugar diferente, na esperana de que um diaalgum as encontre - isso tornaria a Morte menos solitria. Eassim - para o caso de algum vir a encontrar esta nota -, omeu nome Hannah. O ltimo trao do h prolongava-se numa tremura, como se amulher aterrorizada tivesse ouvido uma voz ou passos que seaproximavam. Imaginei essa Hannah desconhecida a tremer talcomo eu tremia agora -, dobrando o papel, percorrendo o quartocom os olhos desmesuradamente abertos procura de umesconderijo e depois aproximando-se rapidamente do realejo,soltando-lhe a tampa traseira e enfiando-o atravs damanivela. Que espcie de pessoa possuiria um realejo? O papel em que avtima registara a sua mensagem de terror era um tipo de papelamarelo barato que rapidamente perde a cor. A escrita pareciacuidada, embora para o fim as palavras se unissem umas soutras. E havia tambm aquele ltimo pargrafo; no me parece que mefosse preocupar com um pargrafo se soubesse que iria serassassinada a qualquer momento. Que espcie de pessoa seriaela? A intensidade do desejo que me assaltava de averiguar averdade surpreendia-me. Ela no podia estar ainda viva. O realejo era meu h vriassemanas e pertencera anteriormente a Mr. Georgerakis. Estamulher devia ter enfrentado a morte com o pensamentoreconfortante de que deixara ficar aquelas palavras e algumas encontraria. Ela mesmo o explicitara: "Isso tornaria a Morte menossolitria". Como a teriam assassinado, esses a quem ela se referia comocheios de expediente e sem rosto? Teriam de facto provocado asua morte de modo que ningum percebesse que fora assassinada? Senti-me abalada. Coloquei o fragmento de papel amarelosobre a mesa e dirigi-me cozinha a fim de fazer cafinstantneo. De caf na mo, regressei sala de estar evitandocuidadosamente o fragmento de papel, que, pelo canto do olho,via minha espera. Dirigi-me a uma das duas janelas, abri-a e olhei para fora.A rua estava silenciosa e vazia; era uma rua onde outraspessoas viviam em apartamentos sobre lojas - a famlia dooutro lado da rua, que possuia o armazm de livros em segundamo, e o dono da loja de confeces, no edifcio contguo. Asluzes eram rectngulos brilhantes; um a um, vi-osextinguirem-se. Disse para comigo: Deve haver uma forma de saber quemescreveu aquele bilhete." No sejas ridcula, troou a minhametade contrria. Pode ter sido escrito h anos. E a pessoa que o escreveu nemsequer deixou o nome. Deixou metade dele... "Isso o que tupensas. Podia ter sido escrito por um homem chamadoHannahsburg ou parecido. Seja como for, neste momento elaprovavelmente est viva e de perfeita sade. No sejas parva." Se est viva, ento porque no recuperou o bilhete e orasgou?" Dava muito trabalho. O pesadelo tinha passado. Euestou habituada a pesadelos, observei secamente, e eles noacabam com essa facilidade. Ela dirigiu-me o bilhete a mimEscreveu-o para quem quer que o encontrasse, e eu encontrei-o.E no h mais ningum para se preocupar com o assunto. Volteias costas janela e percorri a sala com os olhos. Neste aposento criara o meu ambiente, como o Dr. Merivalediria- ele estava sempre a insistir para que eu criasse o meuambiente. Tinha lixado as velhas paredes de estuque abauladas,pintara-as de branco e contratara um homem para que polissecom uma mquina o soalho de madeira dura. Esta sala era agorao meu casulo; as suas paredes de um branco brilhante e as suascores vivas conferiam minha vida uma dimenso encantadora.Eu no queria perder esse prazer criador a que era tosensvel - nem sequer comeara a decorar a cozinha. No queriadedicar a minha ateno a outro assunto, o que me seriaexigido se me entregasse tarefa de procurar uma mulher queescrevera que iria ser assassinada e que, de qualquer modo,provavelmente agora j estaria morta. Porm, no mais fundo demim mesma, j sabia que ia fazer qualquer coisa. s duas horas apaguei a luz e enfiei-me na cama; depois,levantei-me, voltei a acender a luz e procurei dois endereosna lista telefnica. Sentindo-me melhor, deitei-me de novo. Esperava passar uma noite agitada, mas dormi tranquilamenteat o despertador me acordar, s 7 horas. CAPTULO II MR. GERGERAKIS olhou-me com uma expresso menos amistosa porta do seu apartamento. Envergava um daqueles roupes feitosde cobertas ndias que havia na loja e que devia ter adquiridoem grande quantidade anos atrs, visto existir ainda umadzia. No posso dizer que as cores berrantes favorecessem a suaforma volumosa, com a configurao de uma garrafa bojudadelgada no cimo e obesa em baixo. Lanou-me um olhar irado:Euavisei-a de que o negcio era lento. -- No me venha dizer quea enganei. Apressei-me a explicar o motivo da minha visita:inquirir acerca das origens do realejo. - Entre e sente-se - convidou-me, com uma piscadela de olho,como se me considerasse extremamente cmica.- Voc subiu asescadas a correr. Sente-se e tome uma chvena de caf. Quercom nata? -- No, muito obrigada, prefiro simples - respondi.Ele ergueu os olhos para o cu. - Diga l que histria essa do realejo. Respondi-lhe quetinha um cliente que estava muito interessado em comprar orealejo, mas que queria primeiro conhecer a histria doinstrumento, a partir do proprietrio original. E acrescentei: - Espero que consiga lembrar-se de quem Lho vendeu para eu oprocurar. - Lembrar, no me lembro - respondeu.- Mas posso procurar. - Quer dizer que tem registos? Dirigiu-me um olhar de censura. - Os registos ofereci-lhoseu no cartrio do notrio. E voc tambm devia fazer registos,por causa da Polcia. s vezes as pessoas vendem coisasroubadas. Lembrei-me vagamente de ele me ter mencionado oassunto. parecera-me improvvel que qualquer objecto na lojamerecesse essa preocupao, pelo que aceitara apenas os nomesdas firmas leiloeiras em que ele comprara os cavalos decarrocel, e ficara por a... - Ento quer dizer que h, defacto, uma possibilidade? Ele encolheu os ombros. - Talvez sim, talvez no. Ergueu-se e dirigiu-se a outra diviso. Ouvi o murmrio deuma voz feminina, o que me surpreendeu, pois na altura em queLhe comprara a loja ele no era casado. Talvez ainda nofosse, o que emprestava a Mr. Georgerakis uma nova einteressante faceta. Um minuto depois, ele regressou trazendoum livro de apontamentos de capa preta. - Foi h cerca deseis, oito meses - declarou, folheando as pginas. Teve umgesto de assentimento.- C est, um realejo, cem dlares, 9 deNovembro...Oliver Keene...Costumava ir loja habitualmentepara me vender quadros quando estava sem dinheiro. pintor.No sei onde vive. -- Oliver Keene - repeti. Saquei do pequeno bloco-notas quecomprara no caminho e assentei o nome, sentindo o coraobater descompassadamente com esta vitria. ptimo,agradeo-lhe mesmo muito.-Guardando o bloco-notas, pergunteiinocentemente: - Vive aqui s, Mr. Georgerakis? Olhou-me atentamente por sob as suas espessas sobrancelhascinzentas. - Se eu vivesse s, acha que lhe tinha vendido aloja? claro que no. H dez anos que subo estes cincoandares para fazer a corte a Katina. Com doze mil dlares, elacasa comigo. E de novo piscou os olhos; constatava, agora quecompreendia o seu humor impassvel, que ele era realmente umhomem espirituoso. - Ainda bem - observei, enquanto ele meacompanhava at porta.- Desejo-lhe muitas felicidades a si ea Mrs. Georgerakis. Dirigi-me imediatamente cabina telefnica da esquina ondepercorri a letra K. Havia um Oliver Keene que vivia em DansonStreet e cuja direco copiei. Depois fui estao doscorreios e tirei duas fotocpias do bilhete de Hannah. Com umatesoura que levava comigo, de uma delas cortei excertos deduas frases: Sentia tanta fome que nem sei... e a seguir...para o caso de algum vir a encontrar esta nota - o meunome Hannah. Seguidamente, regressei Fleet Street. Eram Nessa alturaapenas nove e trinta e no havia clientes espera da aberturada loja. Suspendi na porta um letreiro com a indicao ABERTO TARDE e desci a rua at ao n.o 901, a morada de um graflogoque eu encontrara nas pginas amarelas nessa noite. Aps terpassado inmeras vezes em frente do seu letreiro, um dia, porpura curiosidade, procurara no dicionrio o significado dafrase:.O estudo da letra com o objectivo da anlise docarcter.,Nas pginas amarelas, a referncia revestia-se de umtom profissional: Joseph P. Osbourne, consultor autorizado.Esperava que ele me pudesse fornecer alguma indicao sobre apessoa que escrevera o bilhete. O quarteiro dos nmerosentre 900 e 1000 da Fleet Street assemelhava-seextraordinariamente ao dos nmeros entre 600 e 700, excepode que fora escorado, lavado, pintado at brilhar, e calculeique as suas rendas corresponderiam ao triplo das do meu. Joseph P. Osbourne, graflogo, ficava no segundo andar do n901, por cima de um consultrio mdico que ocupava o primeiroandar. Subi uns degraus que progressivamente se tornavam maisgastos e poeirentos, at que, ao chegar ao segundo piso, mesenti como em casa. No patamar depararam-se-me trs portas,todas entreabertas: uma para um WC, outra para um escritrio.com secretria e cadeiras e a terceira para um quartosoalheiro que dava para as traseiras e que, ao meu olharexperimentado, logo surgiu como a habitao de J. Osbourne.Uma vez que o escritrio se encontrava vazio, bati porta doquarto. Foi nesse instante que senti uma presciente sensaode terror por aquilo em que me ia meter. O facto que no meocorrera que esta busca quixotesca iria significar bater aportas estranhas e travar conhecimentos. O homem que veio porta no era muito mais velho do que eu,e no tive a certeza de que fosse J. Osbourne. Vestia bluejeans, uma camisa comprida e amarrotada e no trazia sapatos.Tinha cabelo escuro e um rosto simptico, arrapazado, comolhos azuis e uma expresso aguda e intensa. Ficou ali,passando a mo pelos cabelos e olhando-me com o sobrolhocarregado. - S atendo consultas marcadas - disse. - Ento o senhor Mr. Osbourne? Pensei que era mais velho. - s vezes sou mais velho - replicou. A observao que considerei ajuizada, no me surpreendeu. - J agora, pode entrar - continuou, relutante - e explicara sua sbita presena. Espero que no se importe que eu faaum ovo mexido. Ainda no tomei o pequeno-almoo. - claro que no - respondi. - Vim porque se tratava de umassunto urgente. Dirigiu-se ao fogo e partiu um ovo para uma frigideira. Olhei minha volta. Encontrava-me num aposento alegre eacolhedor, com um toque de desordem que me impedia de mesentir embaraada. - Muito bem, mostre-me l ento o que tem - disse ele,trazendo o seu prato com o ovo mexido para uma mesa esentando-se. Retirei da mala o meu sobrescrito e dispus sua frente osfragmentos de papel cortado. - Fotocpias! - comentou em tom desdenhoso. - E em pedaos !Se quer ver o seu dinheiro bem empregue... levo quinze dlarese vou precisar do original. Respondi friamente: - Preferia no mostrar o original. O telefone tocou. Lanou-me um olhar intrigado enquanto oatendia. Ouviu durante um minuto com uma expresso pensativa. - No, no concordo... Acho que a criana precisa deassistncia profissional... Sim. Tribunal de Menores, s duasda tarde. Desligou e, ao ver a expresso do meu rosto, sorriu. - Espero que no pense que a anlise grafolgica o mesmoque ler a sina - observou. - Sou licenciado em Psicologia etrabalho com os tribunais e as escolas, miss... miss... - Jones, Amlia Jones. Se eu pensasse que era ler a sina,no estava aqui. - ptimo. - Voltou-se na cadeira e olhou-me atentamente, como ovo apenas meio comido. - No sei por que motivo no querque eu veja o original, Amlia, mas preciso de mais linhaspara fazer uma avaliao. - Deve ter notado a obstinao nomeu rosto, porque acrescentou pacientemente: - Preciso deobservar as formas de ligao das letras e os espaos entre aspalavras. Tenho de analisar todos os aspectos da caligrafia. Os pontosnos ii, os traos dos tt, o tamanho das hastes e das pernasdas letras so muito importantes, bem como a regularidade ouirregularidade da caligrafia, o tamanho das margens, a pressoda caneta no papel, o espacejamento entre linhas.. - Ah... - fiz eu, pestanejando. - Com isto que me d no posso fazer um trabalho decente. Relutantemente, retirei o bilhete original da minha mala. - Obrigado. - Curvou-se sobre o papel. - Caligrafiainteressante - murmurou. - Escrito sob presso. - Homem ou mulher? - perguntei. Mas ele comeara a ler o bilhete. Baixei os olhos e fiteiintensamente o ovo esquecido, que arrefecia e secava. Aps ummomento, ele perguntou, numa voz em que transparecia aestupefaco: - Onde diabo arranjou isto? Quem foi que oescreveu? - Encontrei-o - respondi, com o olhar ainda fixo no ovo. --No sei quem o escreveu. - Mas no acha que deve levar isto Polcia? Detesto dar explicaes. Quando se no possui um carcterforte, facilmente se interiormente delapidado... Limitei-me a redarguir: - Quando comprei a loja Baixa-Mar,na Fleet Street, 688, havia um velho realejo entre ospertences da casa. A noite passada estava a toc-lo e eleemperrou, e encontrei este bilhete l dentro. O antigo proprietrio procurou nos seus registos e descobriuque tinha comprado o realejo h seis meses. Seis meses muitotempo. No vejo o que que a Polcia pode fazer, pois no? - No - concordou. - Mas ento que pensa fazer? Ergui com esforo os olhos do prato com o ovo e encontrei osdele intrigados mas amveis. Respondi: - Se eu for procurar ohomem que o vendeu a Mr. Georgerakis, talvez ele saiba quem a Hannah. Ou quem era. Fitou-me longamente. - Muito bem. No tenho nada com isso, no verdade? - Excepto que... - Voltou-se colericamente para mim. - Masse este bilhete verdadeiro, trata-se de um assassnio, jpensou nisso? Enrubesci. - No consigo explicar. qualquer coisa que eu acho quedevo descobrir. Voc no faria o mesmo? - No sei - respondeu, parecendo mais novo e menosprofissional. - Amlia... - Interrompeu-se. - Com mil diabos,o ovo est frio. Ri-me. - Bem sei. - Quer um caf? - Est bem. Fiquei sentada a beber caf enquanto ele estudava a nota etomava apontamentos numa folha de papel a seu lado. Aprendique a grafologia no pode determinar o sexo da pessoa, masapenas as suas caractersticas masculinas ou femininas. Hannahparecia possuir uma proporo razoavelmente equilibrada deambas, talvez com um ligeiro predomnio das femininas. Era atcerto ponto introvertida e tinha sem dvida alguma umapropenso para o recolhimento. A sua caligrafia era sensvel eartstica. Era basicamente uma pessoa generosa. Rica eeducada, possua um elevado grau de bom senso e, a par da suandole artstica, era dotada de inegveis qualidades dedeciso. - No era tola, a sua Hannah - concluiu J. Osbourne,pousando a caneta. - Posso dactilografar-lhe uma anlisepormenorizada esta noite, mas diria que uma pessoaperfeitamente saudvel; estou assumindo que se trata de umamulher. Gostava de Lhe poder dizer que era desequilibrada,doente ou louca, o gnero de pessoa que escreve bilhetinhos eos esconde em realejos todos os dias. Nesse caso voc ia para casa e esquecia-se dela, o que, emqualquer dos casos, espero que faa. Se o no fizer... bem,colocou-me numa posio incmoda. Agora tenho de me preocuparconsigo. - Oh, no precisa - atalhei com seriedade. - muito amvel da sua parte, mas no tem de modo nenhumque se preocupar. H uma hora nem sequer sabia que eu existia. No tem culpade eu lhe ter trazido um bilhete destes, embora eu de factotenha tentado evitar mostrar-lho - acentuei. - L isso verdade - concordou secamente. - Onde que vaiagora? - Vou ver Oliver Keene, a quem o realejo pertenceu. - Oia. Amlia... Hum... Voc vive com os seus pais? Sacudi a cabea negativamente. - Com amigos ntimos? Voltei a sacudir a cabea. - Raios - explodiu, voltando a passar a mo pelo cabelo. --Ento faa-me um favor, sim? Telefone-me esta noite e diga-meque est bem. - Rebuscou na secretria e encontrou um carto.-- Est aqui o meu nmero de telefone. Eu estou em casa. -Quando me mostrei surpreendida sorriu ligeiramente. - Oia,no apenas isso. uma questo de curiosidade. Quero saber oque descobriu. - Est bem - respondi. - Eu telefono. Mas claro que no telefonaria. Contei quinze dlares, coloquei-os sobre a secretria e desapareci. CAPTULO III A Danson Street ficava na zona dos armazns, junto ao rio. Tomei um autocarro para atravessar a cidade e encontrei onmero 305, que ostentava numa decrpita fachada de madeirauma montra nova que exibia um quadro de inegvel nvelartstico: um trabalho de esptula, com a tinta espessa esuculenta e formando grumos de entontecedoras espiras de azul.No carto escrito mo, lia-se na sua base: COMPuLSO, POROLIVER KENtE.,:Gostei do quadro. Eu tambm tenho os meusmomentos compulsrios. Era possvel, embora no meinteressasse admiti-lo, que essa Hannah desconhecida emisteriosa estivesse a exercer sobre mim uma compulsocrescente. Toquei a campainha. A mulher que abriu a porta, uma amazonacom o rosto de boneca, tinha pelo menos um metro e oitenta dealtura. Vestia calas de montar e uma blusa branca abertaquase at ao umbigo, que lhe revelava as curvas sinuosas. Osmeus olhos devem ter soltado um assobio, porque ela sorriu. - Querida - disse ela -, uma ddiva de Deus, e eu nadaposso fazer seno esperar que aparea um homem com um milhode dlares. Que deseja? - Venho procura de Oliver Keene. O seu sorriso era to saudvel como um prato de corm flakes,mas continuava a fazer-me sentir uma idiota por ter abandonadoos exerccios para desenvolver o busto. - Olhe? melhor entrar e esperar. Ele saiu para comprarsene queimado. Abriu a porta e eu segui-a. - Chamo-me Daisy - declarou, voltando a cabea para trs. - Eu chamo-me Amlia Jones - repliquei, sentindo-me com dezanos de idade. Era um estdio agradvel. Sob uma clarabia via-se um enormecavalete de madeira, havia uma plataforma circular para osmodelos e pinturas encostadas s paredes. Um odor pungente aterebintina e a tinta impregnava o aposento. O cavalete estavavazio, mas havia desenhos numa mesa a um canto, todos nus,lascivos e todos de Daisy. Provavelmente rendiam bastante. Daisy olhou-me dos ps cabea. - Se vem oferecer-se para modelo, querida, a sua compleio boa, mas esta semana ele est a fazer calendrios sexy e nome parece que... - Aprecio o seu tacto - interrompi-a, sorrindo, pois eraimpossvel no simpatizar com ela -, mas eu vim por causa deum realejo que ele vendeu loja Baixa-Mar. Estou a procurar asua origem para um cliente. - Ah - fez ela. - verdade, ele vendeu-o, mas era meu e nodele. Tivemos uma discusso e ele vendeu-o. Regozijei. - ptimo. Assim no preciso de esperar por ele. Podedizer-me onde o comprou? - No o comprei. Foi uma prenda. - Ento, quem.. Mas agora Daisy olhava-me reticentemente.. - E se eu Lhe disser o nome do tipo, que vai fazer? - Telefonar-lhe e perguntar-Lhe onde que ele o comprou. Ela sacudiu a cabea. - De modo nenhum, pequena. Como lhe disse, o realejo foi umaprenda. Juntamente com um alfinete de diamantes, uns brincos euma recompensa em dinheiro por bons servios prestados. - Oh - pestanejei. - Eu no preciso de saber isso, pois no? - No seja estpida - retrucou ela. - Se eu lhe revelasse onome do tipo, ele presumia que eu contaria com a mesmafacilidade o que se passou entre ns mulher ou a qualqueroutra pessoa que mo viesse perguntar. preciso pensar nessascoisas. Gosto muito do Ollie, mas ele daqui a vinte anos vaicontinuar a fazer calendrios pornogrficos. Lamento, querida.Tenho de proteger o meu futuro. Ou acha que isto vai durarmuito? E baixou o olhar, contemplando o seu corpo voluptuoso. - Vai continuar a ter um metro e oitenta - notei secamente. Saquei o bilhete da mala que trazia a tiracolo eentreguei-lho. - Vou contar-lhe a verdade. No estou aprocurar a origem do realejo para um cliente. Ele pertence-mee a noite passada encontrei dentro dele este bilhete. - Est a tentar convencer-me, pequena? - perguntou em tomsimptico. Aproximou-se da luz e leu o bilhete. - Mas o que isto? Quem esta Hannah? - Isso o que eu quero descobrir - respondi-lhe. - O seuamigo j alguma vez mencionou algum chamado Hannah? Ela franziu as sobrancelhas. - A mulher dele chama-se Slvia; isso sei eu. Oia, sejaquem for, a esta hora est morta. - No apenas morta - acentuei. - Assassinada. Ela chupava o indicador, os olhos fixos no bilhete. - Gostava de saber o que voc imagina que pode fazer a esterespeito. - Algum a fechou na sua prpria casa - retorqui,observando-a. - No a alimentaram nem a deixaram dormirenquanto ela no assinou qualquer coisa. Era uma mulher e voc uma mulher. Ela baixou os olhos e fitou-me. - claro que voc louca, no sei se sabe - observou. - Talvez - respondi. Enfiei o bilhete na mala com os olhos marejados de lgrimasde frustrao. - Muito bem, pequena. Eu reconheo-me vencida, mas ponhocondies. Tem a papel? Saquei do meu bloco-notas, as mos a tremer. - As condies so as seguintes - declarou ela. - Vocdiz-Lhe que foi Miss Doris Tucci que a enviou. Estabelece comele um dilogo formal, muito formal. E eu comprei-lhe orealejo a ele, ouviu? Eu nem sequer conheo o homem.Prometido? - Prometido - respondi. - Que foi que a fez mudar de ideias? Depois de ter escrito o nome e a direco no meubloco-notas, ela baixou os olhos para mim e sorriu: - Pensoque, se alguma vez me encontrar na mesma situao, fechada porum tipo, mas no por causa das minhas jias, querida, seragradvel saber que posso contar consigo. Depois informe-mesobre o que descobriu. - Informo com certeza - garanti. - E muito obrigada. Acabara de sair quando ela me gritou em tom spero: - Etente escovar esse cabelo umas cem vezes por dia; no precisade ter esse aspecto, mida. ERA meio-dia e meio quando regressei loja, e nessa alturametade da sensao de triunfo e excitao que me possuradesvanecera-se. Daisy dera-me um endereo na Park Avenue, emNova Iorque, o que significava que eu teria de me aventurarainda mais longe do meu casulo. Creio que foi neste momentoque estive mais perto de desistir da ideia. No entanto, um decorador da parte alta da cidade entrou ecomprou dois dos cavalos de carrocel e um rolo de tecido develudo verde-esmeralda de antes da guerra. Quando saiu,declarou que voltaria com um tcnico para reparar o fongrafomecnico. Uma relao comercial com um decorador, que alm do maisparecia interessado em adquirir grande parte da minhamercadoria, oferecia perspectivas bastante promissoras.Obviamente, eu teria de comear a frequentar leiles,necessidade que colocou a viagem a Nova Iorque numa baseprtica que reduziu a minha ansiedade a seu respeito. Defacto, a confiana renascera novamente dentro de mim quando J.Osbourne entrou na minha loja perto das cinco horas. - Ol -, saudou-me. Vestia casaco e vinha com gravata, queLhe conferiam um aspecto cuidado e profissional. - Vim trazero relatrio escrito. - Obrigada - agradeci, pegando nas duas folhas de papeldactilografadas e colocando-as sobre a mquina registadora. - Pensei tambm que poderia saber que progressos fez. Subitamente, experimentei a sensao de que realizaraconsiderveis progressos. - Tenho outra pista, um novo nome. - Voc terrivelmente determinada. Sabe - disse, franzindoas sobrancelhas -, voc parece ter uns dezasseis anos, mas nopode ser. - Tenho vinte e dois. Ele assentiu com a cabea. - Eu tenho trinta e um. Se voc no fosse to magra-acrescentou em tom srio -, parecia mais velha. Come osuficiente? - Como como um lobo - respondi-lhe. - Mas no vejo o que que isso tem a ver com o assunto. - Estava a encaminhar a conversa para a convidar para jantarcomigo. Pode escolher comida italiana ou chinesa. Invadiu-me uma onda de pnico. Finalmente, acontecia, e euno estava preparada. Nem sequer tivera tempo de escovar cemvezes o cabelo. O restaurante chins estava cheio de pequenos budassorridentes e acocorados em nichos, separados por divisriasde vime pintadas de vermelho-vivo. Depois de Joe terencomendado o jantar, descrevi-lhe a minha manh. - Estou a ver que isto muito pedaggico para si - comentouele, parecendo divertido. - Essa Daisy deve ser uma rapariga eperas. Admiti cautelosamente a veracidade das suas afirmaes. Ele interrogou-me sobre a minha famlia. - O meu pai morreu h quatro anos, a minha me quando eutinha onze. Ele estremeceu. - Sinto muito. Deve ter custado bastante. - Custou um tanto, sim. - Voz normal, um sorriso aberto. Eusei que no sou a nica pessoa do Mundo que teve de enfrentarestas dificuldades, mas a recordao l est, como um ossoatravessado na garganta, uma dor que se no digere. - E a suafamlia? - perguntei. A famlia dele parecia sada de uma comdia de televiso: umpai advogado bem-humorado, uma me compreensiva, duas irmstravessas. Creio que eram este equilbrio e seguranafamiliares que o tornavam to agradvel. J antes de chegar sobremesa eu constatara quo agradvel era a sua companhia.Ele autodenominava-se um acidente dos anos 60 - participara emviglias e protestos a favor da paz -, mas, pelo que me eradado observar, o nico acidente que decorrera dessascircunstncias fora a desistncia da carreira de advogado queele substitura pela psicologia. - E depois? - perguntei. - Depois, dois anos de universidade, aps o que fui para aSua estudar grafologia no Instituto de Psicologia Aplicadade Zurique. Nada mais nada menos do que a Sua. Muito sofisticado. Eali estava eu, excitada pela simples ideia de uma viagem aNova Iorque, a menos de cento e cinquenta quilmetros. sobremesa perguntou-me se tencionava procurar o namoradodos diamantes de Daisy. - Tenciono, claro - respondi. - E aproveito para comprartambm umas coisas para a loja. - Ento quando vai? Eu j traara os meus planos. - Provavelmente, domingo e volto segunda-feira ao fim dodia. Assim aproveito no s um dia de fim-de-semana como umdia de semana. Eu percebera, ao pensar em leiles, que teria eventualmentede comprar um carro para transportar os objectos adquiridos, eassim Joe e eu comemos a falar acerca de automveis e dequais tinham menos consumo. - Sabe guiar? - perguntou ele. - Ah, sim, esse era um dos projectos do Dr. Merivale. - Dr. Merivale? Assim chegmos ao Dr. Merivale, assunto que eu consegui noaprofundar. Detectei, porm, uma expresso de surpresa no seuolhar, perguntei-lhe: - Ficou chocado por eu ter frequentadoum psiquiatra? - No - respondeu. - Simplesmente, fico contente por terdeixado de o consultar, pois detestaria a ideia de a verperder essa qualidade evasiva que voc tem. Gosto dela. - Evasiva? Ele sorriu. - Voc deixa-me a fazer conjecturas. Quando a conheci estamanh, mostrava-se muito confiante. E depois, quando aconvidei para jantar, ficou aterrorizada: Avano e recuo. Asua honestidade, objectividade e calor humano tocam-me;basicamente, voc parece-me um bocado doida. Ri-me. Ele pagou a conta e seguimos vagarosamente a p atao meu apartamento, onde lhe mostrei o realejo, que ele tocouvrias vezes. Gostou tambm do cavalo de carrocel. Ouvimosalguns discos, aps o que ele declarou que tinha ainda dedactilografar vrios relatrios antes de se deitar. Quando sedespediu, estendeu a mo e tocou-me hesitantemente no cabelo,como que a tacte-lo, depois beijou-me ao de leve na testa esaiu. CAPTULO IV Trs dias depois, no domingo tarde, passei sob o toldo doHeathcliffe Arms, na Park Avenue, sorri agradavelmente aoporteiro e toquei a campainha do apartamento 1023, coronelMorgan Alcourt. Embora calasse as minhas botas altas decamura demasiado quentes para um dia de Maio - e vestisse umsaia-e-casaco de veludo ctel castanho, tremia. Uma voz soou,spera, ao meu ouvido. Quem ?,, e eu respondi pelointercomunicador: - Amlia Jones, por causa de um realejo. - Jones? Realejo? - Jones, realejo. Mantive a conciso, na esperana de que fossesuficientemente mistificadora para me fazer entrar. - Chame Alphonse - berrou a voz. - O porteiro. Chamei o porteiro, que se encarregou do assunto. - uma senhora nova. De aspecto muito agradvel. -Piscou-me o olho. - Qualquer coisa acerca de um dessesinstrumentos musicais que o senhor colecciona. Ento o coronel coleccionava realejos? No admirava que apalavra o no tivesse perturbado. - Sim senhor. Eu fao-a subir - disse Alphonse. E em breve o elevador me levava silenciosamente at aoapartamento. Quando as portas do elevador se abriram, encontrei-me numvestbulo - ele tinha um vestbulo s para si - onde meesperava um homem de casaco branco. No era o coronel; esteera asitico e parecia muito distante. - Por aqui, minha senhora - indicou, conduzindo-me ao longode uma espessa alcatifa, atravs de um pequeno corredor, atuma enorme sala cuidadosamente arrumada de onde se desfrutavauma vista soberba sobre a cidade. E l estava o coronel. Em nada correspondia imagem que dele criara. Tinha cercade um metro e sessenta de altura e naquela ampla sala pareciaainda mais pequeno, um pouco perdido, quase pattico. - Mas eu no a conheo - exclamou em tom de surpresa, comoque magoado. Eu sentia-me extremamente satisfeita por ele ter dinheiro,pois, de uma maneira difcil de descrever, pareciacompletamente indefeso. - No - assenti no tom de voz mais seguro e tranquilizadorpossvel -, e fico-lhe imensamente grata por me receber. Souproprietria da loja Baixa-Mar, de curiosidades eantiguidades, em Trafton, na Pensilvnia, Amlia Jones. Estendi-lhe a mo, que ele relutantemente aceitou. - Hum... Compreendo - murmurou. - Estou a tentar averiguar a origem de um realejo -expliquei-lhe em tom profissional. Ele largara-me a mo e fitava-me agora especulativamente obusto. Quando os seus olhos desceram at s ancas, decidi nome mostrar to tranquilizadora. - Uma Miss Doris Tucci indicou-me o seu nome. Esta referncia f-lo erguer os olhos apressadamente. Revelou sucessivamente estupefaco, temor e em seguidairritao, e subitamente deixou de parecer pattico; a ira foirpida e causticante. - Miss Tucci informou-me que o comprou - demorei-me aprosseguir a frase, deixando a palavra calar dentro dele. -exactamente ao senhor h cerca de um ano. Embora ela noconseguisse lembrar-se em que circunstncias nem em que data,recordava-se do seu nome. Senti que nesse momento preservara o futuro de Daisy emborao sangue se me gelasse nas veias ideia dela com aquelehomem, e acrescentei: - Tenho uma fotografia do realejo - eretirei-a da minha mala. - Ah, sim... Hum - murmurou, fitando-a. - Miss Tucci, sim,acho que a conheci num cocktail... - Desferiu-me, de vis, umolhar ardiloso. - Mas, francamente, sabe, este instrumento pouco valioso, serve apenas como tema de conversa. Diz queest a tentar averiguar-lhe a origem? Respondi de modo incisivo: - Estou. Tornou-se um assunto queinteressa tanto aos seguros como Polcia. No posso ser maisespecfica, posso apenas assegurar-lhe que importante parans encontrar o seu primitivo dono. - Hum... compreendo, sim - assentiu, pestanejando. -- Bem,eu desconheo quem foi o seu primeiro dono. Comprei-o ao actorRobert Lamandale. No sei onde que ele vive agora, mas estc em Nova Iorque. de uma ptima famlia. Quando me viu assentar o nome, descontraiu-se subitamente etornou-se malicioso. - Mas tenho de esclarecer um pormenor, minha queridasenhora. Isso - disse, apontando a fotografia que euconservava na mo - no um realejo. - Como? - Venha, tenho de a instruir. Agarrou-me o brao, puxando-me mais para junto de si do queeu desejaria. Acertei o passo pelo dele e, praticamente com asnossas coxas tocando-se, atravessmos um par de portas demogno e entrmos numa sala que parecia de museu. No centro dadiviso viam-se vrias vitrinas e suspensos das paredesobjectos exticos de toda a espcie. - Ora aqui esto alguns realejos verdadeiros - disse ele,soltando-me misericordiosamente. -O instrumento cuja origemvoc est a procurar uma rabeca, um mero instrumento de rua,uma total corrupo do verdadeiro realejo. Muito diferente. Os lbios torceram-se-lhe desdenhosamente, revelandopequenos dentes de coelho. Era declaradamente um purista, masa razo que Lhe assistia estava patente: as diferenas erambvias. Os instrumentos para os quais ele apontava,semelhantes a violinos ou alades bojudos e de dimensesreduzidas, para alm do facto de parecerem ter pegas numa dasextremidades, no apresentavam qualquer analogia com o meurealejo - a rabeca. - Um instrumento incrivelmente antigo, o realejo - declarouele, falando agora como uma autoridade no assunto -, masdurante a maior parte da sua existncia chamou-se-lheorganistro. S comeou a ser chamado realejo no sculodezoito. - Ah, sim? - murmurei, tentando expressar uma nota deinteresse. - Pode ver-se a crescente sofisticao medida que o tempofoi passando - acrescentou, apontando de uma caixa de vidropara outra. - Este realejo do sculo treze tem apenas trscordas. No sculo dezoito, os instrumentos eram consideravelmenterequintados. Possuam seis cordas e uma escala cromtica deduas oitavas. - Espantoso - comentei. Estava a adquirir mais conhecimentossobre realejos do que os que me eram necessrios. - Quando que eles se tornaram rabecas? - Bem - respondeu -, foram provavelmente adulterados nosculo dezanove pelos garotos das ruas italianas, quepercorriam com eles a cidade e a certa altura o rejeitaram atroco de uma espcie de rgo a que podiam acrescentar umacorreia e um arco por uma questo de mobilidade. - Compreendo. Chegramos extremidade da sala e encontrvamo-nos perantealguns horrorosos instrumentos suspensos na parede. Eledirigiu-me um olhar astuto:- Interessa-se por tortura, MissJones? Surpreendida, respondi: - No, no especialmente. - Ao longo dos anos - confidenciou com considervel deleite- coleccionei uma quantidade muito aprecivel de instrumentosde tortura, e penso que os acharia fascinantes. Quer tomar umabebida comigo? - No, muito obrigada - agradeci, recuando um passo. --Tenho de ir andando... deixei l em baixo um amigo minhaespera... agradeo-lhe imenso. E, deixando-o ali no meio da sala, atravessei apressadamenteo aposento, passei pela sala de estar, segui pelo corredor atao trio, premi o boto do elevador e s me senti seguraquando me vi de novo na rua. Dirigi-me a uma cabina telefnica a fim de procurar oendereo de Robert Lamandale e em seguida tomei um txi. Mr. Lamandale vivia na East North Street; to grande era aminha ingenuidade que acreditava que qualquer edifcio na zonaleste de Nova Iorque seria forosamente mais requintado que nazona oeste. Consequentemente, medida que o automvel seguiapela parte baixa da cidade, esperava que se materializasse umbairro elegante. Tal no sucedeu. Detivemo-nos diante de umafila de lates de lixo que espalhavam resduos pelo passeio. Onmero 218 era um edifcio alto, de tijolos, rodeado deentulho. Todo o quarteiro parecia extrado de um filme deguerra. O motorista concordou em esperar por mim. Subi apressadamente os degraus semi-desconjuntados e premi acampainha sob o nome LAMANDALE, APARTAMENTO 12. Como noobtivesse resposta, comecei a tocar todas as campainhas, atque finalmente algum me abriu a porta. Principiei a subir asescadas e chegara ao segundo andar quando passou por mim umhomem que descia os degraus a dois e dois. No momento em quenos cruzvamos, perguntei-lhe: - Pode dizer-me onde fica oapartamento doze? - Doze? Quem que procura? - Robert Lamandale. Deteve-se dois degraus mais abaixo e fitou-me. Deveria tercerca de quarenta e cinco anos. Era baixo, elegante e deaspecto slido, com um rosto alegre e simptico, um narizarrebitado e lbios finos, entreabertos num sorriso. Maspintava o cabelo de um castanho muito escuro, tinhaprotuberncias de carne sob os olhos e pequenas rugassulcavam-lhe o rosto em torno da boca. - Oia, querida - disse -, eu sou Robert Lamandale, masrecebi uma chamada do meu agente. No posso esperar. Quedeseja? - acerca de um realejo que o senhor uma vez teve e vendeu. Estou a tentar descobrir-lhe a origem. muitssimoimportante. - Tambm o teste que eu vou fazer , querida; j no hmuita procura de gals romnticos quarentes. Eu alguma veztive um realejo? Mostrei-lhe a fotografia e ele soltou uma gargalhada. - Ah, sim... isso. No h dvida de que me recorda diasmelhores. Uma minha prima vendeu em leilo todos os seushaveres no Maine. Comprei o realejo como recordao. Foi umsimples favor. - Sim, mas como se chama ela? Ele encontrava-se j seis degraus mais abaixo. - Leonora Harrington - respondeu por sobre o ombro. - Ainda viva? - perguntei, descendo atrs dele. - Apenas parcialmente, pobre pequena - respondeu,voltando-se para me fitar ao chegar ao patamar seguinte. Estnuma clnica psiquitrica particular, perto de Portland,algures no Maine. Experimente o Hospital Greenwood. Greenqualquer coisa. Prazer em conhec-la - acrescentou em tom encorajador,desaparecendo. Sa atrs dele, regressei ao txi e dei ao motorista oendereo do meu hotel. Fiz votos para que Robert Lamandaleobtivesse o papel. Tinha gostado dele. Captulo v REGRESSEI a Trafton na segunda-feira noite, levandocomigo, entre outras coisas, uma primeira edio de OLabirinto no Castelo, por H. M. Gruble. Considerara-a umapechincha por sessenta e cinco dlares, mas certamente noobteria quaisquer lucros com a compra de uma primeira edioesgotada de um livro que j possua e que lera e relera emcriana. Sabia que nunca o quereria vender. Consolei-me com a ideia de que vinham a caminho,transportados por camio, alguns relgios de cuco da Baviera evrios caixotes com servios de loia - tudo acabado decomprar no meu primeiro leilo. Passava das dez horas quando subi as escadas at ao meupequeno apartamento de duas divises por cima da loja. Abriuma lata de ensopado, fiz uma cafeteira de caf, barrei demanteiga duas fatias de po e sentei-me mesa da cozinhafolheando o livro que to temerariamente comprara. Ali estavamas mesmas ilustraes que me haviam encantado aos onze anos,do encontro de Colin com o Grande Odlum, do combate de Colincontra os Wos e do Conjurador construindo um arco-ris paraColin. O meu captulo favorito fora sempre o que relatava oencontro de Colin com os Despas. Quando ele iniciara a suabusca, o Grande Odlum aconselhara-o: Se tens de procurar, ste posso dar um conselho: o importante levares o solcontigo, dentro de ti, a cada instante, contra a escurido.Pois haver uma enorme e aterrorizadora escurido. , Os Despassimbolizavam a escurido, razo por que me regozijava quandoColin os superava em astcia. Quando os alcanou, Colinsentia-se exausto e doente, e os Despas abrigaram-no nas suascavernas escuras, alimentaram-no e aconselharam-no a desistirdo seu propsito de prosseguir, ingnuo e louco. Colin ouviu eacreditou, at que um dia se recordou das palavras do GrandeOdlum e compreendeu que os Despas quase haviam extinguido osol no seu corao, pois no tinham nenhum no deles. S quando conheci o Dr. Merivale compreendi por que motivoos Despas tanto me haviam afectado; eu vivera com um - a minhame - durante metade da minha existncia. Cuidadosamente, afastei o livro e voltei-me para a pilha debrochuras sobre automveis e furgonetas que reunira, poisdecidira utilizar um carro para viajar at Portland. Por ummotivo ignorado, no sentia vontade de telefonar a Joe ecomunicar-Lhe que regressara. No queria esperar nada dele, oque evidentemente significava que j estava a esperardemasiado. Desejava voltar a v-lo e aterrorizava-me a ideiade tal no suceder. A insegurana cria tenses desmedidas. Como no soube de Joe na manh seguinte, hora de almoosa determinadamente e fui ver automveis sozinha. Estaatitude reduziu as minhas defesas o suficiente para lhetelefonar. - Pensei que nunca mais me telefonava - disse ele. - Quantotempo vai brincar? Voltou ontem noite, no foi? - Sim, mas era tarde e eu pensei... - Pensou que eu ia perguntar: que Amlia?! Decidi ignorar este comentrio. Comuniquei-lhe que vira umautomvel e uma furgoneta e que contava com os seus conselhospara me decidir. - Passo por a s cinco. Que tal Nova Iorque? Teve sorte? - Falei com duas pessoas, um coleccionador de realejos e umactor - contei-lhe -, e gora tenho de ir ao Maine. - Isso parece uma gincana - observou ele. - At s cinco. Foi uma tarde muito ocupada. O decorador chegou com umtcnico a fim de reparar o velho fongrafo de 1940. Acampainha sobre a porta da entrada tocou freneticamente. Vendium dos estranhos roupes de Mr. Georgerakis, bem como umacabea empalhada de alce com chifres. Subitamente, s duashoras, o fongrafo iluminou-se com luzes de non intermitentese comeou a tocar a Polca do Barril de Cerveja. Havia seis pessoas na loja ao mesmo tempo. Parecia umafesta. Toda esta agitao aumentou o dinamismo que eu trouxera deNova Iorque, e no intervalo das vendas comecei a traar planospara a minha deslocao ao Maine, antes de perder a coragem. Ponderei sobre a forma de conseguir manter-me quatro oucinco dias afastada da loja. O carregamento de Nova Iorquechegaria o mais tardar quinta-feira. Concedendo-me um dia paraestipular preos e catalogar os novos artigos, poderia partirpara Portland na manh de sbado. Telefonei a Mr. Georgerakis. - Pensei que nunca me poderia - disse ele. - Hoje li ojornal toda a manh e tarde aspirei a casa a pedido deKatine. isto a vida de um aposentado? - Quanto quer para vir para c? - Por mim, no lhe levava nada - retrucou. - Mas tenho aminha dignidade; pague-me dez dlares por dia, mas no meobrigue a aspirar. Estou a no sbado, s oito em ponto damanh. Quando Joe chegou, s cinco horas, perguntei a mim mesmaporque me sentira to receosa; ele nem sequer era atraentecomo a imagem que dele conservava, era apenas um homem ossudo,agradvel, alegre e de certo modo muito real. - Voc est com ptimo aspecto - declarou ele. - Que tal otipo na Park Avenue? - Um velho sujo, penso eu. Joe sorriu. - Inocente Amlia, est a adquirir experincia. Espero que otenha tratado com habilidade. - Disparei a correr. - E o actor? - Oh, muito simptico, embora s tivssemos falado nasescadas. Foi ele quem comprou o realejo a uma prima, uma talMiss Harrington, que vendeu os seus haveres e que est numhospital psiquitrico de Portland, no Maine. Pode ser queesteja doida varrida, mas tenho de tentar. Ele assentiu. - Evidentemente, uma vez que a definio de doida varridavaria de pessoa para pessoa - afirmou com uma solenidadetrocista, pegando-me na mo enquanto caminhvamos. Gastmos as duas horas seguintes entrando e saindo deautomveis e mais uma hora a discutir excitadamente as suasvantagens e inconvenientes frente de almndegas comesparguete, e no final eu era dona de uma furgoneta. Era umafurgoneta realmente singular; algum a encomendaraexpressamente e depois desistira dela. Era negra como um carro funerrio, com vigias laterais, etanto nos lados como na retaguarda fora pintado um farol aoluar. Embora o efeito dos azuis e brancos fantasmagricossobre o negro fosse diablico, a furgoneta tinha umacapacidade que lhe permitia transportar uma moblia inteira. - Isto vai com certeza divertir os meus pais - comentou Joe.- Mas eu ainda no a convidei, pois no? - Convidar-me? Eu acabara de abrir a loja; as campainhas ainda tilintavam,enquanto estendia a mo para o interruptor. Quando acendi as luzes, constatei que Joe estava satisfeitoconsigo prprio. - Os meus pais festejam no sbado trinta e cinco anos decasamento e eu disse-lhes que a levava. Se fechar a loja ameio da tarde de sbado, podemos estar l a horas de jantar.Estou impaciente, quero que eles a conheam. Olhei-o sem expresso. - Este fim-de-semana? Mas, Joe, eu vou para o Maine sbadode manh! Ele mostrou-se surpreendido. - Pode adiar isso, no pode? Engoli a custo. - No me parece que possa. Fitou-me com incredulidade. - Mas, Amlia, vai ser divertido, podemos nadar, hbadminton, e vai gostar da minha irm Jenny. No pode estar afalar a srio. - Estou - afirmei desamparadamente. - Tenho mesmo de ir aoMaine. J fiz todos os preparativos, e Mr. Georgerakis vemtomar conta da loja enquanto eu estiver fora. - Amlia, no estar a deixar-se ultrapassar pelosacontecimentos? - Tenho muita pena - disse, sentindo-me profundamenteinfeliz. - Tenho mesmo. - Tem muita pena! - explodiu ele. - Eu consigo finalmentetempo livre, tenho esperanas de que ns... pensava que nsnos entendamos realmente e, que diabo... Amlia, essa mulherest morta. Tem de estar. Mas eu no estou. - No posso evit-lo - insisti obstinadamente. - No possode todo. Tenho de ir ao Maine procura de Hannah. Olhmos um para o outro atravs de um enorme abismo. - No compreendo - declarou ele, furioso -, mas espero quese divirta muito na sua maldita viagem. Saiu da loja e bateu a porta to violentamente que ascampainhas suspensas sobre ela ficaram a tilintar um longominuto. Bem, claro que eu j sabia que chegaramos a estasituao. Uma parte de mim mesma segredava-me: Depressa, corre atrsdele e diz-lhe que vais,, mas no me movi, sentindo-meentorpecida. Encontrava-me perante uma reaco humanageneralizada: quando nos afirmamos, os outros abandonam-nos,tal como a minha me fizera para me castigar. Porque no Joetambm? Eu h muito que aprendera que tudo aquilo a que meprendia se afastava, mudava ou morria. Subitamente, senti-meculpada por ousar afirmar a minha vontade, ferida por termagoado Joe e, pior que tudo, receosa de vir a enlouquecernessa busca insana de uma mulher morta. Assustada, vesti um pulver e fechei a porta da loja. H umasemana que no via Amman Singh. Frente sua porta, o cheiro a caril e especiariasimpregnava a atmosfera. Ele estava s, excepo dosomnipresentes parentes que eu ouvia movimentando-se nacozinha. Aps os cinco lanos de escada, disse, ofegante: -Amman Singh, preciso de falar consigo. Por favor! - Tenho estado sua espera - disse ele cortesmente,convidando-me com um gesto a sentar-me a seu lado. Sentei-me defronte dele, de pernas cruzadas. Contei-lhe tudosobre o bilhete que encontrara no realejo e as pessoas queconhecera desde a ltima vez que o vira. Ele fechou os olhospara me ouvir, e eu perguntei a mim mesma que inflexesdetectaria ele na minha voz destinadas a afastarem as minhasdvidas e o meu sbito terror. Quando terminei, perguntei: -Amman Singh, tenho razo em fazer isto? No compreendo esta...esta coaco. Hannah j est com certeza morta. Ele abriu os olhos e estendeu a mo procura da minha. - Quando o vento liberta a semente de uma flor e a semente levada pela brisa atravs dos campos, no coaco. A sementeobedece a leis que ns no vemos nem conhecemos. Confia novento. Um dia compreenders. - Mas encontr-la-ei? - perguntei. Ele respondeu: - Encontrars alguma coisa. - Mas Hannah que eu devo encontrar! - gritei. Ele olhou-me com um sorriso terno: - Achas que ? -perguntou em voz suave. - Achas que ? SENTI-ME melhor depois de deixar Amman Singh, embora notivesse apreendido o significado das suas palavras, pelo menosnessa altura. Embora ele me tivesse afirmado que encontrariaalguma coisa, a minha vida parecia-me espantosamenteempobrecida sem Joe. Tudo parecia envolto numa nvoa cinzenta. Na tarde de quarta-feira a mercadoria que eu comprara chegoude Nova Iorque, e eu decorei de novo a montra da loja, na qualexpus algumas peas de loua, e coloquei etiquetas com preosnos relgios de cuco. Na quinta-feira, depois de jantar, disquei o nmero dotelefone de Joe, apenas para ouvir a sua voz, tencionandodesligar mal ele atendesse. Mesmo isso me foi negado; noobtive resposta. Liguei de novo meia-noite e mais uma vez ningum atendeu.Obviamente, ele encontrara conforto noutro lugar. Com umamulher, pensei eu sombriamente. No dia seguinte sexta-feira levantei-me j sensata, se queo desgosto se pode chamar uma forma de insensatez. Joe chegarae partira; no importava. Tinha vinte e dois anos e umapromessa a cumprir. Uma promessa feita a Hannah. Mr.Georgerakis apareceu ao meio-dia, para eu lhe mostrar ondeguardava os diversos artigos. Tommos juntos uma chvena de caf e ele bateu-meamigavelmente na mo, declarando-me que a loja estava tal qualcomo eu - soalheira, alegre e colorida. Como eu acabara deemergir de um poo negro, o cumprimento agradou-mesobremaneira. - At amanh, s oito - despediu-se ele. Amanh, s oito. Lembrei-me do que esta despedidasignificava - Portland no Maine - e quase entrei em pnico.Tive de voltar a ler o bilhete de Hannah para reassumir o meusentido de misso e afugentar as minhas ansiedades.Acondicionei na mala alguns pares de jeans, camisolas grossas,o meu bluso desportivo, pijama, uma escova de dentes e, soito horas da manh seguinte, envergando o meu fato de veludoctel castanho, desta vez animado com um leno de pescoo corde laranja, saudei Mr. Georgerakis. Meia hora mais tarde, quando levava a mala parao beco onde a furgoneta ficara estacionada durante a noite,detive-me subitamente. Encostado furgoneta, estava Joe. - Ol! - saudou em tom animado. - Se tivesse deixado esteseu monstro aberto, tinha-me escondido nele. Fitei-o, confusa. - Vou consigo ao Maine. - Apontou para uma mochila a seusps, na qual eu, na minha surpresa, nem sequer reparara. - Ano ser que no queira... - Que no queira? - perguntei, a voz entrecortada. - Mas osseus pais... Encolheu os ombros. - Fui at l quarta-feira para Lhes desejar outros trinta ecinco anos de felicidade conjugal e voltei ontem noite. A estupefaco que eu sentia devia reflectir-se na minhaexpresso - alm do mais, por essa altura j eu o perdera,chorara e enterrara -, pois ele acrescentou pacientemente: -Ouve, Amlia: se Hannah agora a tua principal prioridade,vou fazer com que seja tambm a minha. Posso ter de estar devolta na quarta-feira para um julgamento, mas at l sou todoteu. Acho que isto a que se chama comprometimento. Tive um sorriso aberto e disse: - Estou to contente por tever, Joe! Guias tu ou eu? CAPTULO VI NO existia qualquer Hospital Greenwood em Portland, mashavia um hospital psiquitrico particular a oito quilmetrosda cidade, chamado Greenacres. Era um edifcio em que os anoshaviam deixado marcas, construdo em tijolo cor-de-rosa erodeado por relvados improvavelmente verdes. Arrumei afurgoneta no local reservado ao estacionamento, onde se lianum letreiro: s VISITANTES. - Pronto - disse alegremente. - C estamos. - C estamos e o hospital est tua disposio. Boa sorte!-- desejou Joe, sacando de um exemplar brochado de Astronomiapara o Leigo. Pronunciou as ltimas palavras muito secamente, pois apsdiscutirmos o assunto durante horas nenhum de ns imaginavacomo poderia eu entrar e falar com Leonora Harrington, casoela estivesse l. Subi os longos degraus de cimento. Quando entrei no trio,constatei que era igual ao de qualquer hospital. Do ladoesquerdo havia um balco de recepo brilhantemente iluminado,com cartes presos por molas e um PBX, e do lado direito haviauma sala de espera. A nica pessoa vista era uma enfermeira,com um uniforme branco primorosamente engomado, por detrs dobalco. Parecia jovem, sria e nova no lugar. Delicadamente, dirigi-me a ela: - Boa tarde. O meu nome Amlia Jones. Vim visitar Miss Leonora Harrington. O sorriso da jovem transformou-se numa expresso desurpresa. - Miss Harrington?! - Sim. A no ser, evidentemente, que ela... - Oh, no, s que ela nunca... - A jovem interrompeu-se,enrubesceu e recomeou: - Isto , habitualmente ningum, a noser... Tenho de verificar. Importa-se de esperar na sala? A seguir apareceu uma enfermeira de meia-idade. - Sou Mrs. Dawes. da famlia de Miss Harrington? A sua voz era a voz fria da autoridade, e o seu olhar erasuficientemente penetrante para retirar a qualquer umpretenses, iluses e confiana. Estou habituada a este gnerode pessoas. Sabendo que gostam de fazer os outros sentirem-sedesamparados, no vi razo para a frustrar. - Oh, espero poder v-la s por um minuto! - disse. - Notenho nenhum direito, claro, mesmo nenhum, mas vim aqui porindicao do primo dela, Robert Lamandale, de Nova Iorque. um assunto de natureza legal - acrescentei, num gestodesesperado. - to importante que ela identifique estafotografia de um realejo... Tenho notado que algum que se prepara para informar outrode que ele no tem o direito de fazer qualquer coisa ficaconfundido quando o interlocutor o primeiro a expressar essaopinio. Mrs. Dawes pestanejou. - O Dr. Folks est no gabinete - informou friamente. --Sinceramente, no sei... Deixou-me, para voltar pouco depois com um homem de casacobranco, aspecto cansado, papada pendente e todas as linhas dorosto descendentes, o que lhe conferia uma estranha semelhanacom um co so-bernardo. Inclinou levemente a cabea. - A enfermeira Jordan ter de a acompanhar na visita, queno pode durar mais de cinco minutos. Miss Harrington est soba aco de sedativos, mas bastante lcida. Miss Jordan? - Sim, Sr. Doutor - respondeu a jovem enfermeira. - Poraqui, minha senhora. Congratulei-me por ter decidido dizer a verdade, uma vez queia ter uma testemunha a presenciar a minha entrevista. Noelevador perguntei enfermeira Jordan h quanto tempo MissHarrington vivia em Greenacres. - Ela j c estava h oito anos, quando a minha metrabalhava no turno da noite e ramos todos crianas -respondeu alegremente a enfermeira Jordan. - Estranho - comentei. - Diz-se que ela gastou na bebida toda a sua fortuna. --acrescentou em voz baixa a enfermeira Jordan, medida que oelevador abrandava. - Diz-se tambm que ela paranica, maseu nunca... As portas do elevador abriram-se no terceiro andar. MissJordan bateu porta fronteira ao elevador, abriu-a eprecedeu-me, entrando num quarto cujos cortinados seapresentavam semicorridos. - Eu no toquei - disse uma voz petulante. - Mas eu trouxe-lhe uma visita - respondeu a enfermeiraJordan. Uma mulher que se encontrava deitada numa cama encostada parede da esquerda mexeu-se e sentou-se. Na semiobscuridadeera difcil calcular-lhe a idade. Podia ter trinta ou quarentaanos - no era certamente mais velha; mas a sua face era umaforma oval vazia de qualquer emoo ou vida. S os olhosviviam, e queimavam como se contemplassem - frequentemente oinferno. Devia ter sido bela, uma dessas frgeis louras cor decinza; a estrutura ssea mantinha-se. O cabelo caa-Lhe sobreos ombros, mas despenteado, como se ela muitas vezes passasseraivosamente as mos por ele. Ao ver-me, inclinou a cabea interrogativamente. - Esta Miss Jones - apresentou-me a enfermeira Jordan. - amiga do seu primo de Nova Iorque. O rosto de Miss Harrington iluminou-se. - Robin? Esteve com o Robin? Robin. Fiquei to surpreendida que quase dei um salto. Robin - e o nome dela era Leonora. Evidentemente - Robin eNora, os dois nomes mencionados no bilhete de Hannah! Era comopeneirar procura de ouro e subitamente encontrar uma valiosapepita. Embora s com dificuldade contivesse a minhaexcitao, respondi calmamente: - Estive. Ele manda-Lhesaudades e disse que a podia interrogar sobre isto. Coloquei a fotografia do realejo sobre a mesa-de-cabeceira. Ela acendeu a luz e examinou-a. - Ah, o realejo da tia Hannah - observou suavemente, osolhos marejados de lgrimas. - Como ns gostvamos dele quandoramos crianas! Contemplava a fotografia, perturbada, com as lgrimas adeslizarem-lhe pelas faces encovadas. - O seu primo, Robin, disse-me que posteriormente o realejolhe pertenceu, mas que foi seu durante algum tempo - dissecautelosamente, presa de verdadeira excitao, mas sem aquerer assustar. - verdade? Ela assentiu com a cabea. - Escolhi-o como lembrana sabe? depois de tudo terdesaparecido. Tudo. Oh, detestei ter de vender, mas precisavado dinheiro - disse numa ira sbita. Perguntei rapidamente: - Onde que a senhora e Robintocavam o realejo, Miss Harrington? Quero dizer, onde vivia asua tia? - Em Carleton. - Em Carleton, no Maine? Ela assentiu com uma expresso ausente, contemplando, muitopara alm da fotografia, um passado perdido. - E o apelido da sua tia Hannah era Harrington tambm?... Ou talvez Lamandale? Ela afastou rapidamente os olhos da fotografia do realejo eolhou-me. - Claro que no. Hannah Meerloo. Como que no sabe isso? -perguntou, desconfiada. - Ela devia saber isso declarouimpertinentemente enfermeira. - No gosto dela. No gostoque ela me faa perguntas e me faa chorar. Leve-a daqui. A enfermeira Jordan tocou-me no brao, e quando amos a sairLeonora Harrington exclamou em tom zangado: - Diga a Robin quepara a outra vez venha ele, diabos o levem! - Ela agora vai chorar e adormecer - disse a enfermeiraJordan ao entrarmos no elevador. - No Lhe fez mal. Amanhest l fora, no relvado das traseiras, sentada a fazer triccomo as outras. - Mas se ela to pobre - perguntei -, como que podepagar as despesas do internamento aqui em Greenacres? - Oh, um amigo da famlia paga-lhe a conta. o nico que avem ver, por isso que eu fiquei surpreendida. Vem c uma vezpor ms, to regular como um pndulo. As portas abriram-se, revelando Mrs. Dawes nossa esperacomo um abutre: - Muito bem. - Acenou com a cabea para aenfermeira Jordan. - Precisamente cinco minutos. - Os seusolhos fitaram-me, numa despedida. - Bom dia, Miss Jones. Segui sozinha at ao trio e subitamente reparei numa placade bronze na parede: HOSPITAL PSIQUITRICO PARTICULARGREENACRES OfERECIDO EM RECORDAO DE JASON M. MEERLOO PORHANNAH G. MEERLOO. Segui pensativamente at furgoneta e reuni-me a Joe, queme olhou interrogativamente, pondo o livro de lado. - No demorou muito tempo. Amlia, ests com um aresquisito. Eu respondi vagarosamente: - Leonora Harrington a Nora...tem de ser, pois chamou Robin a Robert Lamandale, e o realejopertencia sua tia Hannah, cujo apelido era Meerloo. Ohospital foi uma doao de Hannah Meerloo. - Uma pesquisa lucrativa, safa! - observou Joe, assobiando.- E depois? - No sei mais nada, excepto que Hannah vivia em Carleton,no Maine. - Pareces assustada - observou ele. Eu concordei. - Agora sei o nome dela e no sei que hei-de fazer. Joe sorriu. - Ento ainda bem que eu vim, porque sei exactamente o quehei-de fazer. Entra, que eu guio. Procurei assinalar Carleton no mapa da estrada e descobri-oa cerca de cento e sessenta quilmetros para norte, numa dasbaas que recortam o litoral do Maine. Em tom duvidosocomentei: - Diz aqui que a populao de quatrocentos esessenta e trs pessoas. - Ento com certeza algum se lembrar de uma mulher chamadaHannah Meerloo - observou Joe. - Qual a cidade de tamanhodecente que fica mais prximo? - A cidade mais prxima Anglesworth, e a sua populao de apenas quatro mil seiscentos e oitenta e sete pessoas. Joe virou para a Estrada n.o 1 e consultou o relgio. - Vamos direitos a Anglesworth; j so quase duas e meia. Calculei o que ele estava a pensar. Na noite anteriorpernoitramos numa modesta estalagem, em quartos separados,situados em lados opostos do edifcio: Miss A. Jones, Mr. J.Osbourne. Mas isso fora no New Hampshire. Nesta poca do ano poucasestalagens estavam abertas no Maine, e quanto mais pequenaseram as cidades mais limitados eram os servios de hotelaria.Em breve teramos de consciencializar o que nos esperava. - Na realidade - observou Joe, apontando para mais um hotelcom o letreiro ENCERRADO AT 30 DE MAiO -, acho que devemosparar no L. L. Bean's, em Freeport, e comprar algumequipamento para acampar, s para o caso de ser preciso. Eutrouxe um saco-cama, mas tu no, e talvez precisemos de nosservir da furgoneta. A sua voz era to impessoal - como Peary a planear umaviagem ao Plo Norte - que no pude deixar de me descontrair. Havia uma parada em Freeport nessa tarde de domingo, com umabanda escolar que marchava alegremente, tocando um tantodesafinadamente Strike up the Band, e um desfile de homens emulheres empunhando cartazes em que se lia: VOTA ANGUS TUTfLEPARA SENADOR DOS EUA. Um grupo pequeno e cordial acompanhava aparada ao longo do passeio, agitando cartazes em que se lia:SILAS WHITNEY PARA SENADOR DOS EUA. Nos Armazns L. L. Bean's comprei o meu primeiro saco-cama, um par de botasgrossas, uma lanterna, um termo e copos articulados. Horas mais tarde detivemo-nos em Anglesworth para um jantarrpido, mandmos encher o termo de cacau quente e seguimosimediatamente para Carleton, onde pretendamos chegar antesque o armazm da terra fechasse. Era a, na opinio de Joe -que provou ser verdadeira -, que se podia saber tudo daregio. Havia duas bombas de gasolina e um letreiro poucontido em que se lia: ARMAZM PRITCHETT, PROPRIETRIO, SIMONPRITCHEtT. Entrmos e deparou-se-nos Mr. Pritchett, que lia umjornal por detrs do balco. - Boa noite - saudou -, precisam de alguma coisa? - Precisamos - respondeu Joe. - Esta minha amiga est procura da casa onde vivia Mrs. Hannah Meerloo. - Uma amiga muito querida da minha famlia nessa altura. --acrescentei eu, notando o olhar penetrante e cauteloso que ocomerciante me lanava. Mr. Pritchett ficou calado, encarando-nos especulativamentedurante um longo minuto. Finalmente, assentiu com a cabea erespondeu: - uma velha casa chamada Whitney. Foi outra vezposta venda pelos veraneantes que a compraram h trs anos.Os Keppels. - Keppel - repeti. - Desa a estrada at bifurcao. Depois siga peladireita, pela Estrada Tuttle, e encontra a casa suaesquerda, perto do rio. Um casaro; v-se bem o letreiro a anunciar que est paravenda. - Mrs. Meerloo... hum... morreu... isto , claro que estmorta, mas... - interrompi-me, hesitante. - Est enterrada no nosso cemitrio - informou comnaturalidade. - No pode estar mais morta do que est. Asenhora uma dessas investigadoras de genealogias de que euoio falar? - Sim, uma coisa parecida - respondeu Joe, vontade. -Talvez nos possa indicar onde fica o cemitrio. - Do outro lado da estrada, por detrs da igreja metodista. E assim, ao escurecer de uma quente tarde de Maio,percorramos o cemitrio de Carleton procura da sepultura deHannah. O Sol quase posto, coado obliquamente atravs das rvores,emprestava erva um matiz cintilante verde-esmeralda. Caminhmos, envolvidos no silncio imperturbvel, atencontrarmos a sepultura; havia, porm, duas pedras tumulares,muito simples, colocadas lado a lado. Na pedra da esquerdalia-se: JASON M. MEERLOO, NASCIDO A 23 DE JANEIRO DE 1920,MORTO EM FRANA EM DeZEMBRO DE 1945. MuitO QUERIDO DE HANNAH. - Meu Deus - observei -, s tinha vinte e cinco anos. O Sol desaparecera e sob as rvores a escurido era agoratotal. Ajoelhei junto outra pedra. - Hannah G. Meerloo - li em voz baixa. - Nascida a 27 deMaio de 1925, morta a 25 de Julho de 1965... Joe, ela s tinhaquarenta anos. Tambm Joe fazia clculos mentalmente. - Isto significa tambm que, quando ficou viva, em 1945,tinha vinte anos. Mais nova do que tu s agora, Amlia. Maseu olhava para a inscrio abaixo das datas: "E assim elapassou para l do horizonte, para o pas da alvorada.",Estranhas palavras... estranhas, poticas e de certa formafamiliares para mim. - com certeza uma citao - disse a Joe. - Conhece-la? Ele abanou a cabea. - Mas, seja como for, gosto dela. Creio que significa... -Hesitou e depois disse calmamente: - Creio que significa queela deixou algum que a amava. Foi nesse momento, ao ouvi-lo pronunciar estas palavrasnessa voz, que eu penso ter-me apaixonado por Joe. - Anda - disse ele, colocando-me uma mo sobre o ombro. -So quase oito horas. Acho que a altura de encontrarmos umlugar para estacionar a furgoneta, bebermos um pouco de cacaue dormirmos. Estou estafado. Olhei-o e perguntei impacientemente: - Mas deve haverregistos, no achas, Joe? Os jornais tm registos, no tm? Etalvez haja uma certido de bito em qualquer stio! - Amanh - respondeu ele. - Amanh, Amlia. Ajudou-me a erguer-me e arrastou-me com firmeza para longeda campa. ENCONTRMOs um caminho arborizado abandonado, bebemos onosso cacau e enrolmo-nos nos nossos sacos-camas no interiorda furgoneta, Joe de um lado e eu do outro. Adormeciimediatamente, cansada de dois dias de conduo e tenso.Devia estar a dormir havia vrias horas quando ele voltououtra vez... eu vagueava atravs de salas longas, vazias,geladas, chamando "Me!?" e olhando para dentro de quartosvazios e frios e subindo depois vagarosamente as escadas dosto - vagarosamente, vagarosamente, como acontece em sonhos-, e l estava ela no cimo das escadas, suspensa de uma viga,balouando e girando suavemente os seus olhos... Gritei, voltei a gritar e, ao acordar, encontrei a lanternaacesa e Joe lutando para sair do seu saco-cama. - Amlia, que foi? H muito tempo que eu deixara de chorar a seguir a estepesadelo, mas, como habitualmente, tremia violentamente. Joeolhou-me, depois envolveu-me nos seus braos e apertou-me deencontro a si. Quando parei de tremer, expliquei: - Tive um pesadelo. - Isso calculei eu. Queres contar-mo? Ajuda, no sei sesabes. De dentes cerrados, falei: - A minha me morreu quando eutinha onze anos, mas no to simplesmente como te contei.Enforcou-se. E quando tenho estes pesadelos vejo-a pendurada,o pescoo partido e... Ele perguntou incredulamente: - Ela enforcou-se e tuencontraste-a? - Encontrei. - Oh, meu Deus. - Estremeceu. - E tens sido obrigada a vivercom isso? - Agora j estou bem - tranquilizei-o. - J passou. - Que queres dizer j passou? - perguntou. - No sejasbem-educada, Amlia. Bebe cacau, que ainda h algum no fundodo termo. - Comeou a procurar o copo luz da lanterna, queprojectava sombras longas e cavernosas nas paredes dafurgoneta. - Alguma vez... soubeste por que motivo a tua mese matou? Respondi delicadamente: - Bem... ela desistiu... Desistiu deviver, quero eu dizer. - Sim, mas tinha uma filha de onze anos e um marido, notinha? Que espcie de mulher poderia ser-lhes to indiferente?-- perguntou, trazendo-me o cacau. - Uma mulher com uma incapacidade infinita para viver. - Eras muito amiga dela? Pensei no assunto enquanto sorvia o cacau. - claro que eu queria ser amiga dela, mas tinha sempre depagar um preo elevado para o conseguir. Penso que quando eunasci ela pensou: "Finalmente, algum para me dedicar um amortotal e absoluto". Mas acabou por suceder que nada do que eufazia era suficiente. - Ento o que ela queria era a possesso total? - Talvez - admiti. - Parece-me que havia uma tragdia navida dela - acrescentei lealmente. - Uma vez ouvi o meu paidizer minha tia Stacey que a minha me nunca o tinha amado eque nunca deixara de amar um homem chamado Charles, que atinha rejeitado e casado com outra. Ela nunca deixou de ochorar. - E tentou faz-lo? - perguntou Joe brutalmente. Ri-me sem grande vontade. - No creio que tenha tentado muito. Agora, quando olho paratrs, constato que ela viveu durante muito tempo obcecada pelamorte. Quando eu era muito nova, visitvamos frequentementecemitrios. E ela s vezes parava e dizia numa voz sonhadora:Pensa s, Amlia, que todas as pessoas que aqui esto um diaestiveram vivas, tal como tu e eu, e que um dia ns tambm...acho que ela considerava a vida destituda de qualquerobjectivo. Joe perguntou asperamente: - E o teu pai no sabia nem seimportava com o que ela te estava a fazer? - Ele estava muito tempo fora. - Estava fora de casa no dia em que ela se enforcou? - Estava. - Ento a tua me sabia que tu a encontrarias? Olhei-o repentinamente. - Porque perguntas? - Porque - observou ele com simplicidade - se ela sabia queserias tu a encontr-la, foi a suprema rejeio relativamentea ti. A suprema rejeio... Ningum colocara jamais a questonestes parmetros, to cruamente, mas evidentemente que eraesse o cerne do problema, que era esse aspecto que sempre meafectara, muito mais do que o facto de a ter encontrado morta. - O supremo castigo tambm - acrescentei calmamente por noter sido o suficiente para ela. - E, subitamente, as lgrimasque eu h tanto tempo no chorava dominaram-me e solucei nosbraos de Joe. Finalmente, reduzida a soluos, endireitei-me eolhei-o atravs das lgrimas tardias que me cegavam.Sorri-lhe. -- Obrigada. Era do que eu precisava. Ele riu. - Agora vais ficar bem, sabes? nisso que deves acreditar,Amlia. Quanto a mim, j ests bem. A falta de amor muitocorrente neste mundo, mas os padres podem quebrar-se, sabes? - Espero que sim - respondi. - E citei Amman Singh: "Umarvore pode ser vergada por ventos agrestes, mas no menosbela do que a rvore que cresce num recanto abrigado, e muitasvezes produz melhor fruto.", Ele olhou-me gravemente. - s uma pessoa encantadora e muito especial, Amlia, sabes? Olhei-o e depois inclinei-me e beijei-o impulsivamente, numgesto de gratido, mas quando os nossos lbios se encontraramos nossos corpos enlaaram-se e estreitmo-nos sofregamente. - Joe - murmurei em voz entrecortada. Interrogativamente, quase desesperadamente, ele disse"Amlia", e um momento depois estvamos ambos dentro do meusaco-cama, as nossas roupas espalhadas pelo cho, e euaprendia pela primeira vez a nova e extica linguagem do amor. Mais tarde, acariciando o meu cabelo emaranhado, Joe disse:- Nunca podemos ser indiferentes um para o outro, pois no,Amlia? Promete. Porque o que aconteceu agora entre ns demasiadamente importante. - Sim - respondi, sonhadora. Como a vida era, afinal assombrosa! To assombrosa que quaseme fazia esquecer Hannah, a Hannah que passara para l dohorizonte, para o pas da alvorada... Fechei os olhos e, subitamente, no preciso momento em que iamergulhar no sono, a fonte da citao surgiu-me claramente naconscincia, atingindo-me com toda a fora. excepo damudana do gnero, era, textualmente, uma citao de OLabirinto no Castelo - a frase final do livro: "E assim elepassou para l do horizonte, para o pas da alvorada." CAPTULO VII - Ela tambm deve ter gostado do livro - disse a Joe,incredulamente, na manh seguinte, ao pequeno-almoo.Estvamos sentados num caf em Anglesworth e eram dez horas. - espantoso. Joe deu uma dentada na torrada. - Tens a certeza de que a citao gravada na pedra tumular a mesma? J foi com certeza h anos que leste esse livro pelaltima vez. - No, no - expliquei-lhe impacientemente. - Isto , almde o reler sempre todos os anos, comprei uma primeira ediodele em Nova Iorque na semana passada. - O livro significava assim tanto para ti? - Salvou-me a vida. Eu era muito nova, sabes, e toderrotada. Deu-me uma espcie de filosofia, um sentimento deque talvez no fosse suposto a vida ser fcil. A vida seriauma espcie de peregrinao ou de campo de lide, onde temos decombater como guerreiros para viver. Isto , para viver bem. - Como guerreiros - repetiu Joe, mostrando-se interessado. Inclinei afirmativamente a cabea e disse com solenidade:-Acho que gosto muito desta nossa Hannah, Joe. Joe trouxe-me de novo realidade, dizendo: - Certamente conveniente que gostes dela, mas estamos aqui para averiguarse ela foi ou no assassinada, lembras-te? E segunda-feirade manh. Tenho ainda hoje de ligar para o servio de registode mensagens para saber se preciso ou no de estar no tribunalna quarta-feira. - que acontece na quarta-feira? - o dia em que o caso Griselda pode ou no ser julgado -informou. - Griselda tem dez anos e foi afastada da av,porque a av tem setenta e trs e, por amor de Deus, no podesaltar corda com ela. Foi entregue a um lar adoptivo, ondemudou tanto no espao de dois anos que eles decidiram que ela esquizofrnica e deve ser internada. - Oh, no! - exclamei. Ele assentiu. - A av dela esperta e contratou um advogado, que mecontratou a mim. Obtivemos amostras da caligrafia da crianade h alguns anos e pensamos poder provar: primeiro, que ospais adoptivos so os loucos e, segundo, que Griselda setornou uma introvertida porque no tem nem estabilidade nemamor na sua vida. Ela precisa da av. - Acabou de beber ocaf. - Ainda no acabaste? Temos uma longa lista de coisas a fazer hoje, Amlia. - Pronto - disse, engolindo o resto da minha torrada. -Primeiro, certido de bito ou registos? - Acho prefervel a certido de bito primeiro - opinou Joe.- Alm do mais, se chegarmos concluso de que Hannah morreude pneumonia num hospital ou foi fulminada por um ataquecardaco vista de uma multido de pessoas, podemos passar oresto do dia a fazer turismo. - Joe, tu com certeza no pensas que... - Verifica, Amlia, verifica - interrompeu-me com umsorriso. - Parte do esprito legalista do meu paicontagiou-me. Verificar tudo. O caf em que nos encontrvamos era ordinrio, com umespelho rachado por detrs do balco. Enquanto Joe liquidava aconta, observei as decoraes decrpitas que incluam o mesmotipo de cartazes polticos que vramos na parada em Freeport.Num lia-se: "PARA SENADOR DOS EUA ELEGE ANGUS TUTtLE, QUATROANOS SENADOR DO ESTADO, UM HOMEM DE EXPERINCIA, UM HOMEM DEVISO". O cartaz exibia uma fotografia do candidato usando umfato de tweed e sentado numa cadeira de braos, que pareciaanunciar uma pasta dentfrica. Tinha um rosto jovem, cabeloprematuramente branco, sobrancelhas bem recortadas e umsorriso largo, aberto e atraente. No outro cartaz lia-se: "VOTA EM SILAS WHITNEY pARA SENADORDOS EUA, UM HOMEM DO POVO; UM HOMEM DE BOM SENSO". Tambm seexibia uma fotografia deste. Tinha um rosto longo, estreito eanguloso e olhos negros, firmes. Parecia de facto sensato eser um homem do povo, mas no me pareceu que Silas Whitneytivesse qualquer hiptese contra aquele rasgado sorriso dentalde Angus Tuttle. - Que diabo ests a fazer? - perguntou Joe, ao notar que osmeus lbios se mexiam silenciosamente. - Estou a contar dentes. - E apontei para o cartaz deTuttle. - O sorriso dele mostra doze dentes superiores. incrvel. - Tu tambm s - disse ele, pegando-me na mo. Quando samos para o sol, Joe olhou-me e sorriu-me. Foi umsorriso terno, que reflectia tudo quanto ambos partilhramos,e eu compreendi nesse momento que nunca at ento foraacarinhada ou me sentira verdadeira e completamente feliz. O tribunal, um velho edifcio com colunas corntias,situava-se numa rua lateral. Encontrmos a Conservatria doRegisto Civil e tivemos depois de comprar uma cpia dacertido de bito para a ver! Tremendo de expectativa, pagueios dois dlares e debrumo-nos sobre o documento. Os meusolhos deslizaram pelo nome Meerloo, descendo at causa damorte. Li: Hemorragia intercraniana; fractura craniana basal.Era assinado por Timothy Cox, licenciado em Medicina. - No foi pneumonia - observei calmamente. - Nem ataquecardaco. Joe sacudiu a cabea. - Fractura do crnio. - Causada, por exemplo, por uma pancada na cabea. Joe,vamos redaco do jornal consultar a notcia da morte. A redaco do jornal de Anglesworth, situada na ruaprincipal, era de dimenses to exguas que receei que notivessem registos arquivados. Enganava-me: os arquivos estavamna cave. - melhor virem comigo se esto a fazer qualquer pesquisa -disse-nos a empregada. - Disse 1965? O Tribune de Anglesworth era um semanrio, o que explicava afacilidade com que apenas uma pessoa podia levar para a mesa ovolume com capa de plstico. A empregada subiu as escadas, eJoe e eu comemos a folhear avidamente as pginas. - Necrologia, necrologia - murmurava eu, passando os dedospelo ndice da edio de 28 de Julho. Foi ento que Joe observou numa voz estranha:- No precisasde procurar a necrologia, Amlia. Segui a direco indicada pelo seu dedo, que apontava paraum ttulo na primeira pgina: RESIDENTE NOTVEL MORRE NUMACIDENTE BIZARRO. - Acidente bizarro - repeti em voz baixa. - Joe, eles devemter conseguido mat-la. A Seguir li O Subttulo: HANNAH GRUBLE MEERLOO, FILANtROPA EESCRITORA, MORTA AOS QUARENTA ANOS. Atraiu-me a ateno a palavra escritora" e o nome Gruble. Depois, continuei a percorrer a pgina, o corao batendodescompassadamente, e l estava, perto do fim da coluna: Em1950, Mrs. Meerloo, usando o seu nome de solteira, Gruble,publicou um livro para jovens intitulado O Labirinto noCastelo, sobre o qual o jornal The New York Times escreveu:"Um pequeno clssico, um livro tanto para adultos como paracrianas, cheio de profundidade e fascnio. a nica obra quese conhece da autoria de Mrs. Meerloo". Murmurei: - Joe, ela H. M. Gruble. Escreveu o livro. - Tem calma, por amor de Deus - disse Joe. - Ests como sefosses desmaiar, Amlia. Sentes-te bem? Limitei-me a olh-lo, com os pensamentos turbilhonando naminha mente... "Se tens de procurar, s te posso dar umconselho: o importante levares o sol contigo, dentro de ti,a cada instante..." "Pois haver uma enorme e aterrorizadora escurido." E AmmanSingh a dizer-me: "Confia no vento. Um dia compreenders." Emvoz forte e clara respondi: - Sinto-me perfeitamente bem. Depois sentei-me mesa e comecei a ler a coluna