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REVISTA DE MANGUINHOS | JUNHO DE 2012 52 O Nordeste sem Anopheles gambiæ Livro que descreve campanha de erradicação do mais eficiente mosquito transmissor da malária ganha segunda edição em português, ainda mais completa do que a primeira, de 1945 Na foto acima, pesquisadores brasileiros e americanos que foram ao Nordeste combater a malária, na década de 1930

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O Nordeste semAnopheles gambiæLivro que descreve campanha de erradicação do mais eficientemosquito transmissor da malária ganha segunda edição emportuguês, ainda mais completa do que a primeira, de 1945

Na foto acima, pesquisadores brasileiros e americanos queforam ao Nordeste combater a malária, na década de 1930

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REVISTA DE MANGUINHOS: Noatual cenário epidemiológico brasi-leiro, qual a importância de divul-gar e tornar conhecido o trabalhohistórico de Fred L. Soper e D. Bru-ce Wilson?

Sergio Goes: O fato de ter sido aprimeira vez em que foi erradicadaintencionalmente uma espécie originá-ria de outra zona zoogeográfica faz dorelato da campanha uma peça impor-tante e seu sucesso já justifica a divul-gação dos procedimentos seguidos;sabemos que as campanhas sanitáriassão processos dificílimos, e eliminaruma doença ou erradicar um transmis-sor é uma ação quase heróica em simesma e que merece ser amplamen-te conhecida e reconhecida.

RM: Sanitaristas e demais pro-fissionais envolvidos com a erradi-cação ou o controle de doençastransmitidas por vetores têm liçõesa aprender com Soper e Wilson?

Goes: À primeira vista, não hámuitas semelhanças entre uma cam-

Fernanda Marques

m março de 1930, no RioGrande do Norte, foiconstatada pela primeiravez nas Américas a pre-sença do mosquito Ano-

pheles gambiæ, oriundo da África eapontado como o mais eficiente vetorda malária. Ele trouxe grande preocu-pação e acabou provocando gravesepidemias no Nordeste. Diante dessecenário, a Fundação Rockefeller, emconjunto com o governo brasileiro, ins-tituiu um serviço com o objetivo explí-cito de erradicar o A. gambiæ daregião. Fred L. Soper e D. Bruce Wil-son lideraram a campanha, que cul-minou com a erradicação do mosquitoem tempo inesperadamente curto:apenas 35 meses. Leitura obrigatóriapara os interessados em saúde públi-ca, o relatório original da campanhaaté hoje só era encontrado na seçãode obras raras de bibliotecas especi-alizadas. Uma nova edição da obra,revista e ampliada, foi organizada pelo

pesquisador Sergio Goes de Paula eacaba de ser lançada pela Editora Fio-cruz. O volume Anopheles gambiæ noBrasil – 1930 a 1940 é o mais novotítulo da Coleção História e Saúde –Clássicos & Fontes.

A campanha da Fundação Rocke-feller tinha também um objetivo im-plícito: disseminar nos sertões o espíritoda modernidade. “Suas ações espeta-culosas pretendiam não só enfrentaros agravos à saúde, mas também fun-cionar como exemplo, tanto de seusmétodos como do espírito do capita-lismo”, comenta Goes. Embora exito-sa na erradicação do mosquito, acampanha não atingiu seus propósitos“pedagógicos”. Para Goes, “o Nordes-te sem A. gambiæ continuou igual,sem pressa. A modernidade, cuja che-gada a Rockefeller pretendia acelerar,não aconteceu”.

As explicações para o sucesso naerradicação do mosquito incluíam agestão meticulosa da campanha e aadministração do tempo segundo osprincípios tayloristas. Havia tarefas e

metas a serem cumpridas em prazodeterminado, dentro de um rígido sis-tema de hierarquia e de fiscalizaçãosemelhante ao usado em uma linhade produção industrial. A realidade doNordeste, porém, era bem mais com-plexa e, mesmo depois de erradica-do o A. gambiæ, a região continuoucom malária – a doença já ocorria pormeio de outras espécies de mosqui-tos anofelinos lá presentes e pela cir-culação de protozoários trazidos nasidas e vindas de retirantes em decor-rência da seca. Contudo, limitaçõesà parte, a campanha trouxe contribui-ções inegáveis, demonstrando a via-bilidade de se erradicarem mosquitostransmissores de doença. “Por isso aFiocruz se orgulha de, 66 anos depoisda primeira edição em português, lan-çar esta nova publicação, mais com-pleta que a primeira”, sublinha opresidente da Fundação, Paulo Gade-lha, no prefácio do livro. O pesquisa-dor Sergio Goes de Paula conversoucom a Revista de Manguinhos so-bre o lançamento.

panha realizada nas décadas de 1930e 1940 e uma atual. As tecnologias dehoje são muito superiores às daqueletempo; e o respeito aos direitos de tra-balhadores e moradores é tambémmuito maior hoje do que então. Sãodiferenças intransponíveis. Porém,quando examinamos melhor, vemosque alguns princípios fundamentais queorientaram a campanha contra o A.gambiae continuam válidos: a imensaimportância dada ao tempo em seusdiversos ciclos – o ciclo do trabalho, ociclo natural dos insetos, o ciclo astro-nômico das estações; o cuidado com ainformação e a comunicação; e o rigorno controle das etapas de trabalho. Sãofatores subjacentes que devem ser en-tendidos e respeitados em qualqueração sanitária de grande porte, quais-quer que sejam os métodos utilizados.

RM: A edição original do relató-rio de Soper e Wilson foi publica-da, em inglês, em 1943. Em 1945, otrabalho ganhou uma edição emportuguês, mas não se tratava de

ENTREVISTA - SERGIO GOES

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uma tradução fiel. A obra agora lan-çada pela Editora Fiocruz é fruto deum cotejamento das duas edições:o texto de 1943 foi retraduzido naíntegra e a ele foram incorporadaspartes presentes na versão de 1945.Por que optou por esse caminho?

Goes: O lançamento da primeiraedição brasileira tão pouco tempo apósa edição original em inglês, e aindapor cima em um período tão difícil (emplena 2ª Guerra Mundial), é uma mos-tra da importância atribuída então aolivro. A maior parte era uma versãoem português do livro americano, masfoi incorporada muita coisa nova e tam-bém foram eliminados documentostextuais e iconográficos constantes dooriginal em inglês. As divergênciasmostram as diferenças de ponto devista entre os médicos brasileiros e osamericanos, e por isso aproveitei osmateriais acrescentados naquela pri-meira edição em português. Na obraque organizei também foram incluídoso depoimento de um participante dacampanha, o doutor Leônidas Deane

(1914-1993); um cordel da época so-bre o mosquito, recolhido pela histori-adora Ângela Porto; um belo prefáciode Paulo Gadelha; e um texto meuapresentando o que, para mim, sãoos pontos principais na campanha. Decerta forma, é um livro novo.

RM: Para as pesquisas em his-tória das ciências da saúde, queoutras obras raras o senhor gosta-ria de ver reeditadas e por quê?

Goes: Cada pesquisador terá sem-pre seu rol de obras raras que gostariade ver novamente publicadas. Sou daopinião de que a ênfase seja posta napublicação virtual, com liberdade deacesso. Esta parece ser a tendência atu-al, e já se pode ler muita coisa na inter-net, especialmente em inglês e francês.Seria bom se tivéssemos mais obras emportuguês. A meu ver, a reedição empapel de obras antigas – que exige maistempo, recursos financeiros e trabalho– só se justifica quando alguma inter-venção é feita, como tradução, agre-gação de outros textos, análises etc.

No alto, guarda-medicador doServiço de Malária do Nordeste,em 1939. Acima, expurgo domiciliarcom compressor, durante acampanha contra o Anophelesgambiae no Nordeste, em 1940