Nande ru

download Nande ru

of 284

Transcript of Nande ru

ande Ru MaRangatu:laudo antRopolgico e histRico sobRe uMa teRRa kaiowa na fRonteiRa do coM o

bRasil

paRaguai, Municpio de antnio Joo, Mato gRosso do sul

Jorge Eremites de Oliveira Levi Marques Pereira

ande Ru MaRangatu:laudo antRopolgico e histRico sobRe uMa teRRa kaiowa na fRonteiRa do coM o

bRasil

paRaguai, Municpio de antnio Joo, Mato gRosso do sul

Editora UFGD DOURADOS-MS, 2009

Universidade Federal da Grande Dourados Reitor: Damio Duque de Farias Vice-Reitor: Wedson Desidrio Fernandes COED Coordenador Editorial da UFGD: Edvaldo Cesar Moretti Tcnico de Apoio: Givaldo Ramos da Silva Filho Conselho Editorial da UFGD Aduto de Oliveira Souza Edvaldo Cesar Moretti Lisandra Pereira Lamoso Reinaldo dos Santos Rita de Cssia Pacheco Limberti Wedson Desidrio Fernandes Fbio Edir dos Santos Costa Capa Editora da UFGD Foto: Indgenas Kaiowa regressando para suas residncias no final da tarde de 23/01/2007, aps participarem dos trabalhos periciais naquele dia, fotografados por Jorge Eremites de Oliveira. Criao e design: Alex Sandro Junior de Oliveira. Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central UFGD980.41 O48n Oliveira, Jorge Eremites de ande Ru Marangatu: laudo percial sobre uma terra kaiowa na fronteira do Brasil com o Paraguai, em Mato Grosso do Sul. / Jorge Eremites de Oliveira, Levi Marques Pereira. Dourados, MS : UFGD, 2009. 284p. ISBN 978-85-61228-43-9

1. ndios Kaiowa. 2. ndios Kaiowa Histria Antonio Joo Mato Grosso do Sul. 3. Questes indgenas regionais. I. Pereira, Levi Marques. II. Ttulo.

Direitos reservados Editora da Universidade Federal da Grande Dourados Rua Joo Rosa Goes, 1761 Vila Progresso Caixa Postal 322 CEP 79825-070 Dourados-MS Fone: (67) 3411-3622 [email protected] www.ufgd.edu.br

Aos colegas antroplogos e antroplogas que atuaram ou atuam como peritos da Justia no Brasil. Aos nossos alunos e alunas de graduao e ps-graduao.

A crise que tanto aflige atualmente a antropologia euroamericana, e que impede os lderes da disciplina de se afirmarem perante os poderes polticos que distribuem as verbas para a cincia, no parece ter atacado a antropologia brasileira. Excessos poder ter havido; poder ter ocorrido at mesmo um certo desincentivar do discurso terico, todavia a riqueza que constitui o forte sentimento de insero social e relevncia cvica que hoje possui a antropologia brasileira um bem indiscutvel em face do estado da disciplina, tal com ela praticada em quase todas as outras reas do globo. Joo de Pina Cabral

SUMRIOAPRESENTAO................................................................. 15 INTRODUO ...................................................................... 21

1 2 3 4

QUESITOS DA UNIO/FUNAI .......................................... 33 QUESITOS DO MINISTRIO PBLICO FEDERAL .. 103 QUESITOS APRESENTADOS PELOS AUTORES ....... 159 INFORMAES COMPLEMENTARES ....................... 249 CONCLUSO ...................................................................... 269 FONTES E REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ......... 271

APRESENTAODesde a dcada de 1990 que a Justia Federal tem determinado a realizao de laudos periciais de natureza antropolgica, arqueolgica e histrica sobre terras reivindicadas por comunidades indgenas no estado de Mato Grosso do Sul. At o presente momento mais de uma dzia de percias deste tipo foram produzidas por profissionais com diferentes formaes acadmicas, estudos esses que tm servido para a tomada de deciso na esfera judicial. No entanto, apesar desses laudos serem de grande relevncia social e responsabilidade cientfica, nenhuma percia produzida no estado foi publicada na ntegra. Significa dizer que cientistas sociais, operadores do direito e o pblico em geral no tinham disponvel uma obra cujo contedo fosse uma percia judicial que tratasse de conflitos fundirios entre comunidades indgenas e produtores rurais nesta regio do Brasil. Foi a partir desta constatao que decidimos publicar os resultados de uma percia judicial, de natureza antropolgica e histrica, realizada no primeiro semestre de 2007, sobre uma rea reivindicada como terra indgena pela comunidade Kaiowa de ande Ru Marangatu. A rea em litgio est localizada no municpio sul-mato-grossense de Antnio Joo, na fronteira do Brasil com o Paraguai, conforme consta em dois mapas apresentados adiante. Trata-se de um estudo originalmente intitulado Percia antropolgica e histrica da rea identificada pela FUNAI (Fundao Nacional do ndio) como sendo a Terra Indgena ande Ru Marangatu, produzido em atendimento determinao feita pela Justia Federal, 1 Vara Federal de Ponta Por, 5 Subseo Judiciria de Mato Grosso do Sul. Esta percia foi originalmente estruturada sob forma de livro e a verso aqui publicada possui pequenas modificaes em relao que foi entregue Justia Federal, o que se deu basicamente por causa da necessidade de se fazer uma outra reviso ortogrfica do texto. Na Introduo constam os procedimentos cientficos empregados em campo, laboratrio e gabinete, bem como as questes centrais que nortearam os estudos periciais. Os procedimentos cientficos foram primeiramente apresentados ao Juzo em resposta primeira intimao recebida para a realizao do laudo pericial. Na ocasio nenhuma das partes envolvidas no litgio manifestou objees metodologia proposta pelos pesquisadores. Alm disso, como a Justia Federal no havia apresentado quaisquer quesitos nos

15

Autos, tomamos a precauo de registrar logo no incio as questes ou indagaes centrais que comumente norteiam este tipo de trabalho pericial. Em linhas gerais o propsito de um estudo desta magnitude consiste em responder ao Juzo e s partes se determinada rea ou no terra indgena. A resposta tem de ser clara e objetiva, e deve estar em consonncia com o que determina a legislao brasileira. Dito de outra maneira, se os peritos so especialistas em antropologia, arqueologia e histria, todas as suas interpretaes devem se dar a partir de uma relao de alteridade para com o mundo jurdico. O inverso tambm verdadeiro, pois os operadores do direito devem estar atentos para o fato de que em estudos dessa natureza a verdade objetiva dos fatos aquela vista a partir das cincias sociais, sobretudo da antropologia. Na sequncia seguem dois mapas teis para a localizao do municpio de Antnio Joo e da rea identificada pelo rgo indigenista oficial com sendo a Terra Indgena ande Ru Marangatu.

Figura 1: Estado de Mato Grosso do Sul com a localizao do municpio de Antnio Joo (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:MatoGrossodoSul_Municip_AntonioJoao.svg [acessado em 03/02/2009]).

16

Figura 2: rea de 9.317,2160 ha correspondente Terra Indgena ande Ru Marangatu.

17

Em se tratando de uma terra tradicionalmente ocupada por uma comunidade indgena, deve-se deixar claro ainda se os indgenas foram ou no expulsos da rea em litgio. Em caso positivo, imprescindvel dizer quais pessoas so apontadas como as responsveis por esse processo de esbulho, quando e porque isso teria acontecido. Mais, os peritos devem explicar de maneira cristalina se a rea em litgio ou no imprescindvel para a reproduo fsica e cultural da comunidade indgena envolvida na disputa judicial. O fato que respostas a questes de grande complexidade no podem se restringir a um simples sim ou no. preciso deixar explcito como os peritos chegaram s respostas e justific-las com dados empiricamente observveis luz dos procedimentos cientficos previamente informados nos Autos. Em situaes desse tipo, chaves e jarges polticos comuns no meio acadmico no servem para muita coisa. Uma crtica desse tipo no denota a priori um apego a qualquer tipo cientificismo exagerado. No entanto, certo que nas percias judiciais importa menos o discurso poltico do expert nomeado para a tarefa e o quanto ele pode sensibilizar as pessoas envolvidas na lide e o prprio magistrado. O mais relevante mesmo o rigor cientfico empregado na busca de respostas aos questionamentos apresentados pelo Juzo e pelas partes, alm do respeito para com os diferentes atores sociais envolvidos na disputa judicial, independentemente de sua origem tnica e de sua condio econmica e posio scio-poltica na sociedade nacional. Esta nossa preocupao, alis, foi percebida por um(a) parecerista por ns desconhecido(a) e para quem a Editora UFGD encaminhou o trabalho para ser avaliado:A obra demonstra o compromisso do(s) autor(es) na execuo criteriosa do levantamento do qual foi(ram) incumbido(s), apresentando dados consolidados, seguros e relevantes, visando munir os rgos competentes por julgar a questo com informaes recolhidas por meio de procedimentos cientficos [...]. A presente obra ser referncia obrigatria para os novos estudos para identificao de terras indgenas.

Outro(a) parecerista, cujo nome igualmente mantido em sigilo pela editora, foi ainda mais generoso(a) em sua avaliao:Obra de apresentao impecvel, teoricamente bem fundamentada, com citao da legislao atual sobre a temtica em seus vrios aspectos e conhecimento amplo e profundo do que j foi produzido e o que a academia tem produzido mais recentemente sobre o uso tradicional da terra pelos povos indgenas. Tambm eticamente responsvel nas citaes das pessoas envolvidas, na apreciao das informaes, na resposta a cada um

18

dos quesitos propostos pela [para a] Justia Federal. Academicamente bem elaborada, atendendo s normas mais criteriosas de um estudo desta natureza, alm de ser de leitura agradvel para a rea. Certamente esta obra ser utilizada por antroplogos, professores, operadores e alunos do Direito, historiadores, etnlogos, arquelogos e tambm por lideranas indgenas e representantes dos povos indgenas em suas futuras reivindicaes sobre as terras tradicionais.

No que se refere estruturao deste livro, o mesmo foi organizado em quatro captulos. Os trs primeiros so, respectivamente, respostas aos quesitos apresentados pelas partes envolvidas no processo: Unio/FUNAI, Ministrio Pblico Federal e Autores. No quarto e ltimo captulo constam informaes complementares importantes para a compreenso da lide e para a tomada de deciso por parte dos operadores do direito. Na Concluso, enfim, apresentado um resumo das concluses formuladas durante a percia, seguida da indicao das Fontes e Referncias Bibliogrficas utilizadas pelos autores. Por ltimo, registramos aqui que a ordem da apresentao do nome dos autores deste livro segue uma ordenao meramente alfabtica, pois o mesmo foi escrito a quatro mos e por meio de uma profcua parceria profissional entre iguais, porm com especializaes diferentes e complementares entre si.

19

INTRODUOO objetivo deste item apresentar ao Juzo e s partes, de forma sucinta, objetiva e didtica, alguns conceitos mais recorrentes no texto e os procedimentos cientficos utilizados durante a realizao da percia judicial. Trata-se de um estudo de natureza antropolgica e histrica sobre uma rea em litgio localizada no distrito de Campestre, municpio de Antnio Joo, estado de Mato Grosso do Sul, denominada pelo rgo indigenista oficial como sendo a Terra Indgena ande Ru Marangatu. Conforme consta registrado no Processo n. 2001.60.02.001924-8, para a realizao de uma percia antropolgica e histrica sobre a rea em litgio, os peritos propuseram a concatenao de procedimentos cientficos complementares e internacionalmente conhecidos e consolidados na prtica acadmica. Tais procedimentos situam-se no campo das cincias sociais, sobretudo nas reas de antropologia, arqueologia e histria, e foram aplicados de forma interdisciplinar, com imparcialidade e em conformidade com o conceito de terra indgena determinado no Artigo 231, 1, da Carta Constitucional de 1988:So terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios as por eles habitadas em carter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios a seu bem-estar e as necessrias a sua reproduo fsica e cultural, segundo seus usos, costumes e tradies (Magalhes 2003: 29).

Significa dizer que a questo central que norteou a realizao desta percia foi reunir elementos que permitissem responder, com segurana, se a rea em litgio ou no terra tradicionalmente ocupada pelos Kaiowa da comunidade de ande Ru Marangatu. Uma resposta deste nvel implica em outras tantas explicaes, tais como: (1) estabelecer os lugares e o perodo em que os ndios estariam ocupando a rea objeto da percia; (2) esclarecer se a ocupao teria sido ou no anterior titulao das terras em favor de particulares, o que foi feito pelo estado de Mato Grosso em fins da primeira metade do sculo XX; (3) descrever as atividades culturais que os Kaiowa estariam desenvolvendo na rea em litgio durante esse perodo; (4) explicar como e porque teria ocorrido a sada dos indgenas da rea por eles reivindicada como terra indgena; (5) se eles teriam sido ou no expulsos dali e quais os motivos de uma eventual expulso dos ndios da rea peri-

21

ciada; (6) se foram expulsos, quando isso se deu, quem teria perpetrado a expulso e onde os ndios se acomodaram depois de sarem das reas por eles ocupadas; (7) em sendo terra indgena, se a rea objeto da percia necessria para a reproduo fsica e cultural da comunidade de ande Ru Marangatu, de acordo com seus usos, costumes e tradies; etc. Questes deste tipo foram apresentadas pelo juiz federal Odilon de Oliveira em outro trabalho elaborado concludo pelos peritos neste Processo (ver Eremites de Oliveira & Pereira 2003) Essas questes centrais resumem grande parte dos quesitos apresentados pelas partes, sobretudo os formulados pela Unio/FUNAI e pelo Ministrio Pblico Federal, haja vista que muitos dos quesitos elaborados pelos Autores so mais de natureza jurdica e menos de carter antropolgico e histrico. Sem embargo a esta situao, no foram medidos esforos para responder a todos os quesitos apresentados pelas partes, porm assim o fazendo em conformidade com os procedimentos cientficos previamente comunicados ao Juzo e s partes. No caso da antropologia, cincia social que estuda a humanidade a partir, sobretudo, de sua dimenso cultural, os trabalhos de campo foram realizados por meio da tcnica denominada de observao participante, isto , da observao direta in loco da vida social de grupos humanos que vivem e interagem na rea periciada. Na opinio do experiente antroplogo Roberto Cardoso de Oliveira (1928-2006), um dos pioneiros da antropologia como profisso no Brasil, ex-professor da Universidade de Braslia (UnB), falecido em 2006 e autor do livro O trabalho do antroplogo, a pesquisa etnogrfica consiste em trs procedimentos bsicos: olhar, ouvir e escrever. O olhar e o ouvir constituem parte da primeira etapa dos trabalhos, aquela que feita em campo, qual seja, a relativa observao e ao registro etnogrficos, ao passo que o escrever faz parte da segunda, a interpretao etnolgica, isto , a anlise dos dados obtidos durante as diligncias periciais. De acordo o referido antroplogo:Examinados o olhar, o ouvir e o escrever, a que concluses podemos chegar? Como procurei mostrar neste incio, essas faculdades do esprito tm caractersticas bem precisas quando exercitadas na rbita das cincias sociais e, de um modo todo especial, na da antropologia. Se o olhar e o ouvir constituem a nossa percepo da realidade focalizada na pesquisa emprica, o escrever passa a ser parte quase indissocivel do nosso pensamento, uma vez que o ato de escrever simultneo ao ato de pensar. Quero chamar a ateno sobre isso, de modo a tornar claro que pelo menos no meu modo de ver no processo de redao de um texto que nosso pensamento caminha, encontrando solues que dificilmente aparecero

22

antes da textualizao dos dados provenientes da observao sistemtica (Cardoso de Oliveira 2000: 31-32).

Esta proposio do professor Roberto Cardoso de Oliveira vai ao encontro dos ensinamentos do antroplogo francs Marcel Mauss (18721950), reconhecido como um dos fundadores da antropologia moderna, mestre de muitos cientistas sociais, incluindo, por exemplo, o etnlogo Claude Lvi-Strauss (1908) e o arquelogo Andr Leroi-Gourhan (19111986). Ele assim registrou em seu clssico Manual de etnografia, escrito originalmente na primeira metade do sculo XX e publicado pela primeira vez em 19671:A cincia etnolgica tem como fim a observao das sociedades, como objeto o conhecimento dos fatos sociais. Registra estes fatos e, quando necessrio, estabelece a respectiva estatstica; e publica documentos que oferecem o mximo de certeza. O etngrafo deve ter a preocupao de ser exato, complexo; deve ter o sentido dos fatos e das relaes entre eles, o sentido das propores e das articulaes (Mauss 1993: 21-22).

Seguindo a linha argumentativa de Mauss, a pesquisa etnogrfica tem de ser exata, haja vista que a intuio no tem lugar na cincia etnolgica, cincia de verificaes e estatsticas (Mauss 1999:22). Neste sentido, preciso discernir que o trabalho de peritagem uma oportunidade sui generis para a pesquisa etnogrfica. Em ocasies desse tipo geralmente h a mobilizao de toda uma comunidade para facilitar o aceso a informaes que possam contribuir para o bom andamento da percia. Em estudos de outra natureza, como para fins de obteno de ttulos acadmicos, a situao diferente e os trabalhos comumente levam mais tempo, sendo muito difcil para o pesquisador conseguir a colaborao das pessoas. No por menos que muitos antroplogos permanecem dias, semanas, meses e at mesmo anos em convvio com a comunidade observada. Durante esse perodo eles analisam o modo de vida, a maneira de pensar e agir, a forma de organizao social, as relaes de parentesco, a histria de vida dos indivduos, das famlias e do grupo estudado. A observao direta constitui-se, portanto, um procedimento de suma importncia para a obteno de informaes para a produo de um laudo pericial seguro, objetivo e imparcial. No entanto, a pesquisa de campo em antropologia, feita por meio da observao direta in loco de uma comunidade, no algo to simples como pode parecer primeira vista, sobretudo em se tratando da realizao de uma percia judicial em um ambiente marcado por tenses e conflitos1 MAUSS, Marcel. 1967. Manuel detnographie. Paris, dition Payot.

23

pela terra. Ela requer, por exemplo, prvio conhecimento da bibliografia antropolgica e histrica, da etnografia do grupo e pleno domnio dos procedimentos cientficos a serem recorridos. Um pesquisador somente adquirir essa qualificao por meio de anos de formao acadmica (graduao e ps-graduao stricto sensu), acmulo de experincias em pesquisas de campo (treinamento etnogrfico) e conhecimentos etnolgicos e histricos sobre a comunidade envolvida no litgio. Do contrrio, seria praticamente impossvel realizar uma percia antropolgica e histrica dentro dos prazos comumente estabelecidos pela Justia, os quais via de regra so exguos se comparados com o tempo destinado para as pesquisas acadmicas. Por isso a Justia Federal em Mato Grosso do Sul tem acertado ao indicar dois experts para a elaborao, em conjunto, de percias sobre reas disputadas por comunidades indgenas e produtores rurais em vrias regies do estado. Se fosse apenas um perito, ainda que fosse um profissional experiente, por certo as dificuldades enfrentadas durante os trabalhos seriam maiores. Estar em convvio com um grupo tnico durante dias ou semanas, com o propsito de realizar uma percia judicial, no significa que os peritos estejam sendo antiticos ou imparciais. Na verdade, esta a condio sine qua non para que tenham acesso a dados que possam elucidar a verdade objetiva dos fatos, como, por exemplo, a respeito da constituio de uma comunidade indgena e os possveis vnculos tradicionais que ela mantm com determinado territrio. Por isso a observao direta um procedimento cientfico consolidado na prtica antropolgica e reconhecido mundialmente no campo das cincias sociais e das humanidades em geral. Sua realizao em um ambiente social marcado por tenses e conflitos fundirios constitui-se em um novo desafio para antroplogos e etno-historiadores no Brasil. Isto porque um ambiente social desse tipo no o ambiente tpico para a realizao de investigaes dessa natureza. Em contextos assim geralmente os peritos precisam estar dando constantes demonstraes de imparcialidade, o que ocorre, tambm, por meio de um comportamento tico de respeito s partes e a seus experts. Um gesto mal interpretado pode ser o motivo que alguns esperavam para criar um ambiente ainda mais tenso para dificultar a realizao dos trabalhos de campo ou mesmo para levantar uma eventual suspeio dos experts do Juzo. De todo modo, o fato que a observao direta um procedimento cientfico mais complexo do que muitos podem supor primeira vista. O antroplogo estadunidense Clifford Geertz, um dos maiores expoentes da antropologia mundial contempornea, autor de dezenas de obras traduzidas em vrios idiomas, dentre as quais o livro A interpretao das culturas, apresenta, com base em uma historieta narrada pelo filsofo Gil-

24

bert Ryle, da Universidade de Oxford, um interessante exemplo de como a prtica etnogrfica algo complexo. Ele descreve a situao hipottica de como o fato de dois meninos estarem, ao mesmo tempo, piscando o olho direito pode levar a diversas interpretaes, a saber:Num deles, esse um tique involuntrio; no outro, uma piscadela conspiratria a um amigo. Como movimentos, os dois so idnticos; observando os dois sozinhos, como se fosse uma cmara, numa observao fenomenalista, ningum poderia dizer qual delas seria um tique nervoso ou uma piscadela ou, na verdade, se ambas eram piscadelas ou tiques nervosos. No entanto, embora no retratvel, a diferena entre um tique nervoso e uma piscadela grande, como bem sabe aquele que teve a infelicidade de ver o primeiro tomado pela segunda. O piscador est comunicando e, de fato, comunicando de uma forma precisa e especial: (1) deliberadamente, (2) a algum em particular, (3) transmitindo uma mensagem particular, (4) de acordo com um cdigo socialmente estabelecido e (5) sem o conhecimento dos demais companheiros (Geertz 1989: 16).

Segundo o autor, uma situao desse tipo pode se tornar ainda mais complexa se aparecer um terceiro menino piscando o olho direito:Todavia, isso apenas o princpio. Suponhamos, continua ele [Gilbert Ryle], que haja um terceiro garoto que, para divertir maliciosamente seus companheiros, imita o piscar do primeiro garoto de uma forma propositada, grosseira, bvia, etc. Naturalmente ele o faz da mesma maneira que o segundo garoto piscou e com o tique nervoso do primeiro: contraindo sua plpebra direita. Ocorre, porm, que esse garoto no est piscando nem tem um tique nervoso, ele est imitando algum que, na sua opinio, tenta piscar. Aqui tambm existe um cdigo socialmente estabelecido (ele ir piscar laboriosamente, superobviamente, talvez fazendo careta os artifcios habituais do mmico), e o mesmo ocorre com a mensagem. S que agora no se trata de uma conspirao, mas de ridicularizar. Se os outros pensarem que ele est realmente piscando, todo o seu propsito vai por gua abaixo, embora com resultados um tanto diferentes do que se eles pensassem que ele tinha um tique nervoso. Pode ir-se mais alm: em dvida sobre sua capacidade mmica, o imitador pode praticar em casa, diante do espelho, e nesse caso ele no est com um tique nervoso, nem piscando ou imitando ele est ensaiando. Entretanto, para a cmara [cmera], um behaviorista radical ou um crente em sentenas protocolares, o que ficaria registrado que ele est contraindo rapidamente sua plpebra direita, com os dois outros. As complexidades so possveis, se no praticamente infindveis, pelo menos do ponto de vista da lgica. O piscador original poderia, por exemplo, estar apenas fingindo, para levar outros a pensarem que havia uma conspirao, quando de fato nada havia, e nesse caso nossas descries do que o imitador est imitando e o ensaiador ensaiando mudam completamente (Geertz 1989: 16-17).

25

O exemplo didtico descrito por Geertz, se trazido para o contexto de uma percia judicial, serve para demonstrar como em um trabalho judicial os peritos devem tomar cuidado com os seus gestos e, sobretudo, com as suas palavras. Uma piscadela, por exemplo, mesmo que tenha sido feita por causa de um cisco que entrou em seu olho direito, pode ser interpretada de vrias maneiras, inclusive como sinal de descrdito narrativa feita por determinado informante de uma das partes. O mesmo vale para o gesto de balanar a cabea, o qual pode denotar a compreenso de uma narrativa que se est ouvindo ou mesmo a concordncia com algo que est sendo narrado, e assim por diante. Por outro lado, uma piscadela ou uma balanada de cabea para os Kaiowa pode ter sentidos bem diferentes em relao aos que poderiam ter para a nossa sociedade, dependendo do contexto em que os gestos forem feitos. No trabalho de campo em antropologia, o registro da narrativa requer a construo de um clima de empatia e respeito entre entrevistador ou analista e entrevistado ou interlocutor. Dessa forma comum o pesquisador manifestar concordncia com o contedo da fala do narrador, indicando que compreende seus argumentos, o que o estimula a prosseguir em sua narrativa. Entretanto, no ato de escrever, como indicado anteriormente, ele ter a oportunidade de exercer a reflexo crtica sobre o contedo da narrativa, explorando suas significaes, ambiguidades e contradies. So questes como essas que justificam a adoo de procedimentos comuns na antropologia, como a observao direta ou mtodo etnogrfico, como sendo de fundamental importncia para a compreenso do idioma cultural de uma comunidade indgena que sequer tem no portugus seu idioma materno, mas sim uma lngua franca. Portanto, faz-se necessrio pontuar que o rigor cientfico na aplicao de teorias, mtodos e tcnicas que assegura a imparcialidade da percia para a elucidao daquilo que em direito positivo se entende por verdade objetiva dos fatos. Ocorre que o trabalho de peritagem judicial um laudo de carter tcnico-cientfico, solicitado e avaliado pelo judicirio para a tomada de decises sobre direitos. Seu objetivo traduzir melhor a realidade que est sendo tematizada no caso examinado pelo juiz, conforme recentemente explicou o antroplogo Lus Roberto Cardoso de Oliveira (2004: 40), professor da UnB, especialista em antropologia do direito e da poltica e presidente da Associao Brasileira de Antropologia (ABA) durante a gesto 2006-2008. Com vistas elaborao de respostas seguras aos quesitos formulados pelo Juzo, Ministrio Pblico Federal, Unio/FUNAI e Autores, os peritos se deslocaram a campo por um tempo suficiente para observar como os indgenas agem, pensam e quais os motivos que alegam para a

26

reivindicao da rea em litgio. Da mesma forma, mantiveram dilogo com proprietrios na rea periciada e com regionais que convivem h vrias dcadas com os ndios e produtores rurais envolvidos na lide judicial. Para um trabalho dessa natureza, a antropologia desenvolveu, como dito amide, um conjunto imprescindvel de procedimentos que visam garantir o grau de objetividade na observao, registro e interpretao das informaes. Um desses procedimentos foi a pesquisa genealgica. Atravs da aplicao do mtodo genealgico foi possvel averiguar a constituio dos grupos de parentesco, definindo as relaes de ancestralidade, consanguinidade, afinidade e aliana. Este mtodo, inicialmente desenvolvido na dcada de 1910 pelo antroplogo britnico Willian Halse Rivers (18641922), permitiu aferir o grau de proximidade dos indgenas em termos da constituio de um grupo humano com vnculos biolgicos, histricos e sociais, conforme exigido pela Constituio Federal. Nos estudos genealgicos so confeccionados diagramas de parentesco em que indivduos so representados por alguns smbolos, conforme explicado no quadro a seguir. Quadro 1: Smbolos usados nos diagramas de parentesco.SMBOLO Homem Mulher Conjugalidade Conjugalidade desfeita Descendncia ou filiao Germanidade (filhos do mesmo pai e mesma me) ou Ego (eu em latim; pessoa de referncia na genealogia) Indicador de filhos independente da quantidade e do sexo dos indivduos SIGNIFICADO

NOTA: Cada plano horizontal do diagrama, como no caso do smbolo correspondente germanidade, corresponde a uma gerao de indivduos.

Outro procedimento foi o estudo da memria genealgica e histria da vida. Por meio de entrevistas individuais e/ou coletivas, registradas em

27

gravador digital e em dirios de campo, foi apurado e analisado a histria de vida das principais lideranas indgenas e a memria genealgica do grupo. Dados como local de nascimento, filiao, formao, grupos de referncia, tipos de vnculos do grupo, grau de compreenso e insero junto s instituies da sociedade nacional etc., trouxeram importantes subsdios para a compreenso da situao atual da comunidade Kaiowa de ande Ru Marangatu e suas lideranas. As histrias de vida e a memria genealgica foram controladas por meio de diagramas de parentesco, nos quais diversas informaes foram sistematicamente cruzadas para dirimir, por exemplo, as eventuais dvidas e informaes que pudessem ser contraditrias. No estudo etnogrfico de grupos indgenas, um mtodo dessa natureza imprescindvel visto que se trata de grupos humanos de tradio oral e no de tradio escrita, os quais possuem um idioma cultural prprio e distinto do nosso, o da sociedade nacional. No caso da histria propriamente dita, aquela que feita pelos historiadores, aqui entendida como a cincia dos homens no tempo, tal qual definiu o historiador alemo Marc Bloch (1987: 29), foi utilizado o mtodo interdisciplinar da etno-histria, cuja palavra poderia ser escrita, antes do Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa que entrou em vigor a partir de 2009, de duas maneiras: etnoistria e etno-histria, conforme grafado, respectivamente, nos dicionrios Aurlio e Houaiss. No Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa, esse termo foi grafado com hfen e h e definido da seguinte maneira:1. Estudo da histria de um povo ou grupo social, geralmente grafo, a partir das tradies orais, dos restos arqueolgicos, dos dados lingusticos etc. 2. Conjunto das narrativas, vezes mitolgicas, que um povo ou grupo social, geralmente grafo, mantm acerca da sua histria e dos acontecimentos passados (Houaiss & Villar 2001:1272).

O Novo Aurlio Sculo XXI: o dicionrio da lngua portuguesa, por sua vez, grafou esse vocbulo sem hfen e h e apresenta o seguinte conceito:1. Disciplina que se dedica reconstituio da histria dos povos no-letrados, recorrendo, para isto, a tradies orais, evidncias arqueolgicas e dados lingusticos, alm de documentao histrica. 2. O conjunto das narrativas, representaes, etc. que um grupo mantm a respeito de seu passado (Holanda Ferreira 1999: 849).

Embora houvesse duas formas de grafia, o conceito e a abrangncia da etno-histria grafia que parece ter sido consolidada hoje em dia so mundialmente conhecidos, de modo especial nas Amricas. De acordo com

28

o que um dos peritos tem explicado em artigos cientficos de sua autoria, essa palavra deriva do ingls ethnohistory e conhecida em espanhol como etnohistoria (Eremites de Oliveira 2001, 2003; Alves da Silva & Eremites de Oliveira 2005). Tem sido comumente definida como um mtodo interdisciplinar ou uma disciplina hbrida dedicada ao estudo da histria de grupos tnicos, como as etnias indgenas. Sua nfase maior est na histria dos contatos intertnicos e as mudanas scio-culturais deles advindas. Como mtodo interdisciplinar a etno-histria muito popular em pases como Estados Unidos, Mxico, Guatemala, Chile e Argentina, apenas para citar alguns exemplos. Sua proposta maior estudar a histria de grupos tnicos a partir de fontes variadas: etnogrficas, histricas, arqueolgicas, lingusticas, orais, geogrficas etc. Nesse caso, a etno-histria se apresenta, pois, como uma importante ferramenta metodolgica para a elaborao de laudos periciais pautados pelo rigor cientfico. Alm da utilizao do mtodo da etno-histria, para responder os quesitos os peritos propuseram a aplicao de outros procedimentos metodolgicos. Um deles foi a leitura e anlise de documentos contidos nos Autos e outro se refere ao levantamento e anlise de publicaes diversas (livros, artigos, monografias acadmicas, mapas etc.). Por meio deste segundo procedimento foram arrolados e estudados trabalhos cientficos e indicaes bibliogrficas e documentais sobre a presena dos indgenas (Kaiowa) e dos no-ndios (Autores e outros) na rea em litgio. Em complementao fizeram-se o levantamento e anlise de outras fontes textuais, sendo que neste aspecto a percia priorizou, por exemplo, as fontes produzidas pelo SPI (Servio de Proteo aos ndios), FUNAI (Fundao Nacional do ndio) e outros rgos pblicos e privados, cujos arquivos encontram-se organizados e disponveis no pas. Documentos dessa natureza encontram-se em arquivos da FUNAI (Braslia-DF), Museu do ndio (Rio de Janeiro-RJ), Arquivo Pblico de Mato Grosso (Cuiab-MT), Centro de Documentao Regional/UFGD (Dourados-MS) e Universidade Catlica Dom Bosco (Campo Grande-MS), muitos dois quais j levantados e analisados em estudos de natureza acadmica. Tambm foram consultados cartrios, arquivos particulares etc., desde que estivessem acessveis e pudessem conter documentos relevantes elaborao do laudo pericial. Para esta etapa dos trabalhos os peritos solicitaram das partes que elas colaborassem com a percia, principalmente no que se refere ao acesso a documentos no constantes nos Autos e que pudessem contribuir para o esclarecimento dos fatos. Aplicou-se ainda o mtodo da histria oral. Trata-se de um procedimento metodolgico de grande importncia para o registro de entrevistas coletivas e/ou individuais com os Autores e outros atores sociais no-n-

29

dios. Durante as entrevistas foi feita a coleta de dados sobre a histria de vida de indivduos, famlias e grupos sociais; e averiguado o vnculo que possuem com a rea em litgio. As entrevistas foram preferencialmente registradas em gravadores digitais, desde que assim autorizado pelos interlocutores. Essas gravaes seguiriam em CD para constar nos Autos e ficar disposio da Justia Federal. Contudo, grande parte das entrevistas assim registradas atravs de gravador digital foi filmada pelos experts dos Autores, sobretudo pelo assistente tcnico Hilrio Rosa, os quais assumiram o compromisso de enviar uma cpia das filmagens s partes e ao Juzo. As filmagens e gravaes so recursos importantes para assegurar o carter de publicidade dos trabalhos periciais, mas deve-se observar que elas no representam totalidade dos procedimentos cientficos adotados em campo. Isto porque a tambm devem ser includos os registros fotogrficos, registros manuscritos de muitas falas no gravadas, genealogias, impresses e registros da observao direta que nem sempre so cobertos pelas filmagens e gravaes. De todo modo, durante os trabalhos de campo os peritos registraram repetidas vezes que o registro gravado das falas e as filmagens das entrevistas no deveriam ser percebidos pelas partes como depoimentos tomados em Juzo, visto que os mesmos no so magistrados para assim procederem durante as diligncias periciais. Enfim, importante ficar claro que a produo das provas periciais no se restringiu ao que foi gravado ou filmado, como se procurou evidenciar na explicao do mtodo etnogrfico. Recorreu-se tambm ao levantamento e anlise de evidncias arqueolgicas. Neste aspecto os trabalhos periciais foram direcionados para averiguar a eventual tradicionalidade da ocupao indgena na rea em litgio. Este tipo de pesquisa foi feito com base em procedimentos da etnoarqueologia, definida como uma arqueologia voltada para o estudo de grupos humanos do presente, devendo ser consideradas as diferenas culturais e as distintas historicidades. Neste caso em particular, preciso explicitar que a percia no esteve centrada na busca de stios arqueolgicos do perodo pr-colombiano, visto que no a imemorialidade que est em anlise, mas a possvel tradicionalidade da ocupao kaiowa na rea em litgio, conforme determina a Carta Magna. No entanto, quando stios arqueolgicos desse tipo foram encontrados na rea periciada, procurou-se saber se eles possuem algum sentido de tradicional para a comunidade indgena envolvida na lide. Feitas essas consideraes de natureza terico-metodolgica, faz-se necessrio explicar o uso de alguns termos recorrentes neste trabalho, uma vez que seu entendimento relevante para a compreenso do texto produzido pelos peritos do Juzo.

30

A primeira diz respeito ao fato de que, segundo normas estabelecidas em uma conveno internacional de antroplogos, ocorrida em 1954 no Rio de Janeiro, o nome de etnias indgenas grafado como nome prprio e no singular, independentemente do gnero e nmero, desde que empregado como substantivo, como na expresso os Kaiowa. Quando usado como adjetivo, o mesmo nome permanece no singular, porm em minscula, a exemplo de as casas kaiowa. A segunda se refere grafia das palavras em lngua guarani. Nesta percia essas palavras esto grafadas em itlico e seguindo a fontica das palavras: ch = ch e x (como em portugus chcara e xcara); h = h aspirado (como em ingls house e help); j = jd (como em ingls jump e jeep); k = c (como em portugus casa); = nh (como portugus ninho e cozinha); y = i gutural (como em guarani che sy, que significa minha me, cujo som inexiste na lngua portuguesa); etc., conforme observado no conhecido Diccionrio Castellano-Guaran y Guarani-Castellano, de Antonio Guasch & Diego Ortiz (2001). Ocorre tambm que boa parte das palavras em guarani oxtona e no acompanha acento agudo, diferentemente do que ocorre em portugus com as palavras terminadas em a, e e o. Apenas as paroxtonas e proparoxtonas foram acentuadas. Registra-se ainda que o idioma guarani dos Kaiowa e Guarani uma lngua tribal, ao passo que o falado no Paraguai uma lngua colonial, emergida no contexto de conquista e colonizao da regio platina. Exemplo: entre os ndios a palavra karai costumeiramente empregada para se referir ao indivduo que no indgena; no Paraguai o mesmo vocbulo possui sentido de senhor, tratamento respeitoso dispensado a autoridades, pessoas de maior idade etc. A terceira trata do nome das etnias indgenas. No caso dos Guarani, cumpre esclarecer que em Mato Grosso do Sul esse povo indgena se autodenomina com o mesmo nome de sua lngua nativa, a guarani, e tambm chamado de andeva. No Paraguai eles so mais conhecidos como AvaGuarani ou simplesmente Ava. No caso dos Kaiowa, sabe-se que esta a autodenominao de um povo indgena que tambm se reconhece como Pa-Tavyter, ou simplesmente Pa, sobretudo naquele pas vizinho. Kaiowa e Pa-Tavyter ou Pa so, portanto, uma mesma etnia indgena. Por isso, os peritos do Juzo optaram por se referir a esses povos indgenas como, respectivamente, Guarani e Kaiowa, e no como Guarani-andeva ou Guarani-Kaiowa, pois consideraram a maneira como eles se auto-identificam no Brasil e o fato de serem duas etnias distintas. Ademais, os Kaiowa no apreciam ser chamados de Guarani, tampouco os Guarani gostam de ser chamados de Kaiowa.

31

A quatro ltima explicao, refere-se ao uso recorrente da expresso antigo sul de Mato Grosso, mencionada repetidas vezes ao longo da percia. Sobre o assunto, deve-se explicar que a criao do estado de Mato Grosso do Sul, a 22 unidade da federao, se deu por meio da Lei Complementar n 31, de 11/10/1977, promulgada na poca do governo Ernesto Geisel, o penltimo general a assumir a Presidncia da Repblica na poca do regime militar (1964-1985). Este novo estado surgiu do desmembramento da parte meridional do antigo Mato Grosso, precisamente de uma rea de 358.159 km2, e foi implantado a partir de 1/01/1979. Por isso na historiografia regional comum o emprego do termo antigo sul de Mato Grosso para se referir regio compreendida pelo atual Mato Grosso do Sul antes da data de sua criao. Tambm recorrente a expresso antigo Mato Grosso para se referir ao Mato Grosso antes da diviso e por vezes antes mesmo do desmembramento de uma parte de seu territrio que serviu para a criao de Rondnia , chamado de Mato Grosso uno. Por fim, os peritos esclarecem que trabalharam com procedimentos cientficos complementares durante toda a realizao da percia, por meio dos quais responderam os quesitos e discorreram sobre outros assuntos que julgaram relevantes para a compreenso da lide. Ao entregarem esta percia para ser juntada aos Autos, ratificaram a disposio de prestarem esclarecimentos que o Juzo julgar necessrios para a tomada de deciso.

32

QUESITOS DA UNIO/FUNAI1.1. A rea em disputa prxima de aldeamento indgena j existente desde o ano de 1970?2 A rea periciada no fica prxima a nenhum aldeamento indgena existente no Brasil desde o ano de 1970. Por aldeamento indgena entende-se uma unidade administrativa organizada pelo Estado ou por instituio missionria, com o objetivo de organizar a vida social de determinada populao indgena dentro de um espao delimitado e reconhecido oficialmente como destinado a essa populao. Este esclarecimento importante porque a inexistncia de aldeamento indgena oficial no implica, necessariamente, na ausncia de assentamentos de famlias ou mesmo de comunidades indgenas, vivendo sua maneira tradicional ou em outros arranjos organizacionais, como resultado da acomodao convivncia com ocupantes no-indgenas em determinado territrio3. Na resposta ao quesito dos Autores, de n 3.15, tambm foram apresentadas informaes complementares resposta dada a esta pergunta feita pela Unio/FUNAI. No lado brasileiro, a comunidade Kaiowa mais prxima da comunidade de ande Ru Marangatu a de Pirakua, cuja terra foi reconhecida como indgena pelo governo brasileiro na segunda metade da dcada de 1980, embora desde muito antes j houvesse relatos e registros da presena indgena no local. Pirakua somente foi reconhecida como terra indgena a partir do estudo realizado pela FUNAI, o qual foi regulamentado pela Portaria n 1.828/E, de 04/02/1985, e tambm pelo Ofcio n 023/GD/9 DR/85, que criou o grupo de trabalho para levantamento daquela rea indgena. O grupo foi composto por Manoel Barbosa Filho (Engenheiro Agrimensor DPI/ FUNAI), Ozires Ribeiro Soares (Tcnico em Agricultura e Pecuria DPI/2 Para este quesito os peritos apresentaram alguns esclarecimentos introdutrios necessrios compreenso das respostas redigidas a outros quesitos desta percia. 3 Nesta percia o termo assentamento ou estabelecimento comumente empregado para designar qualquer lugar ocupado por um ou mais indivduos, temporariamente ou no. Normalmente corresponde ao lugar de residncia das famlias Kaiowa.

1

33

FUNAI), Pedro Nunes Csar (Tcnico em Agricultura e Pecuria do INCRA, Campo Grande), Elio de Melo Palmeira (Tcnico Indigenista Posto Indgena Amambai/FUNAI) e Rubem F. Thomaz de Almeida (Antroplogo Assessor Presidncia/FUNAI). O antroplogo coordenador do Grupo de Trabalho (GT) que realizou a identificao de Pirakua, Rubem F. Thomaz de Almeida, o mesmo pesquisador que cerca de vinte anos depois realizou a identificao da terra indgena ande Ru Marangatu, objeto da presente percia. Entretanto, nesse lapso de tempo ocorreram mudanas significativas na legislao que orienta a identificao de terras indgenas. Por este motivo os dois relatrios apresentam formatos bastante distintos. Mesmo assim, no primeiro relatrio existem vrias passagens que foram fundamentais para a compreenso de fatos referentes comunidade de ande Ru Marangatu. No relatrio de Pirakua o referido pesquisador fez a seguinte referncia quela comunidade indgena:Tekoha referido ao Cerro Marangatu. Comunidade de 45 pessoas incrustada entre a populao da vila de Campestre, a onze quilmetros da sede do Municpio de Antonio Joo. Ocupam perto de 10 ha. Inmeros intentos realizados desde 1973 para que se mudassem para Pysyry (Paraguay) ou Dourados (Brasil). Recusam-se terminantemente a sair dali onde vivem em permanentes conflitos e rusgas com regionais. Foi ai que morreu assassinado em 25.11.1983 o lder Maral de Souza. Alegam que no abandonam a regio de Cerro Marangatu, e s em suas adjacncias aceitariam demarcao de rea, o que permitiria que abandonassem a dramtica situao vivida em Campestre o que deve ser realizado pela FUNAI. Este Tekoha foi sendo paulatinamente deslocado e empurrado dos lugares que ocupou at que se assentou de forma definitiva onde se encontra (Thomaz de Almeida 1985: 29).

Na citao apresentada h meno palavra tekoha, sobre a qual se deve fazer um importante esclarecimento inicial. Tekoha a maneira como as comunidades Kaiowa se referem, em guarani, ao espao ocupado por uma determinada comunidade. Etimologicamente a palavra composta pela fuso de teko + ha. Teko o sistema de valores ticos e morais que orientam a conduta social, ou seja, tudo o que se refere natureza, condio, temperamento e carter do ser e proceder kaiowa. Ha, por sua vez, o sufixo nominador que indica a ao que se realiza. Assim, tekoha pode ser entendido como o lugar (territrio) onde uma comunidade Kaiowa (grupo social composto por diversas parentelas) vive de acordo com sua organizao social e seu sistema cultural, isto , segundo seus usos, costumes e tradies. Esta explicao est registrada na tese de

34

doutorado em antropologia defendida por Levi Marques Pereira (2004), na Universidade de So Paulo (USP). O relatrio de identificao da terra indgena Pirakua foi datado no Rio de Janeiro, em 25 de julho de 1985, poca em que o antroplogo Rubem F. Thomaz de Almeida ocupava o cargo de Assessor I da presidncia da FUNAI. Naquele perodo ele havia sido destacado de Braslia para fazer o trabalho de campo e a redao do relatrio de identificao da terra indgena Pirakua. A citada passagem de seu relatrio atesta que a FUNAI j tinha conhecimento da reivindicao da comunidade de Marangatu h mais de vinte anos, pois um estudo dessa natureza um documento oficial do rgo, reconhecido pelo seu representante mximo, o prprio presidente da FUNAI. Entretanto, o tempo passou e apenas mais recentemente o trabalho de identificao foi realizado para averiguar a legitimidade da alegada ocupao tradicional daquela terra por parte da comunidade de Marangatu, atualmente rebatizada de ande Ru Marangatu, cuja traduo para o portugus algo como Nosso Pai Celestial. No entanto, onze anos antes da publicao do relatrio de Pirakua, precisamente em fevereiro de 1974, a antroploga Llia Valle, atualmente professora aposentada da Universidade Federal Fluminense (UFF), instituio sediada Niteri, estado do Rio de Janeiro, esteve na rea em litgio realizando pesquisas acadmicas. Seus estudos fariam parte de uma dissertao de mestrado que ela apresentaria ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP, sob orientao da Prof. Dr. Lux B. Vidal, uma renomada antroploga brasileira. Naquele mesmo ano de 1974, Llia Valle elaborou um relatrio sobre a situao dos Kaiowa de ande Ru Marangatu e o encaminhou FUNAI, dando cincia ao rgo indigenista oficial da situao vivida por aquela comunidade indgena. Em suas palavras:Em fevereiro de 1974 tive a oportunidade de conhecer um grupo de ndios que vive no municpio de Antnio Joo, M.T., e permaneci com eles durante um ms, recolhendo material para um trabalho que pretendo apresentar como tese de mestrado. Estou concluindo os cursos de Ps-Graduao em Antropologia Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, sob a orientao da Dra. Lux B. Vidal.

O carter exclusivamente antropolgico de minha pesquisa, que trata das relaes de parentesco e chefia na formao de uma aldeia foi, num primeiro contto [sic.], particularmente propcio observao de certos problemas. Considero importante levlos ao conhecimento da FUNAI, por motivos que se evidenciaro no desenrolar deste relatrio.

35

Meu objetivo apresentar estes problemas, resultado a urgncia de uma soluo, e me colocando a disposio da FUNAI para maiores esclarecimentos ou colaborao (Valle 1974: 1). [destaques nossos]

A estruturao do relatrio de Llia Valle foi feita por meio de cinco tpicos bsicos: (1) O grupo indgena; (2) Localizao e distribuio da populao na rea; (3) O segmento de Campestre; (4) Problema de terras; (5) Problema de sade. Alm de permanecer semanas com a comunidade de ande Ru Marangatu, a antroploga tambm esteve por dez dias com a de Pysyry, no Paraguai. Naquela aldeia ela assistiu a preparao da chicha (bebida fermentada tradicional feita de milho branco) para uma festa que os ndios estavam organizando as vsperas de um mutiro, algo que bastante comum entre os Kaiowa. Ainda constatou o seguinte: Muitos ndios de Pysyry trabalham em fazendas brasileiras e j moraram deste lado da fronteira (Valle 1974: 1). No por menos: na dcada de 1970, parte da populao Kaiowa de ande Ru Marangatu, outrora conhecida como Cerro Marangatu, vivia em Pysyry porque se viu obrigada a deixar a rea em litgio e buscou abrigo entre seus parentes residentes do outro lado do rio Estrela tambm conhecido como Estrelo , no pas vizinho, conforme explicado em outras partes desta percia. Segundo consta no relatrio, naquela poca os Kaiowa j mantinham contatos com os regionais de Antnio Joo. Esses contatos no eram isentos de preconceito mtuo, como se deduz da citao transcrita a seguir:Contto [sic.]. Vivem cercados de regionais, com quem mantm relaes cordiais, inclusive de visitao, mas que no esto isentas de preconceito recproco. Em Antnio Joo, sede do municpio, os ndios so tidos como preguiosos, bebados [sic.] e desordeiros. Estas opinies seriam menos parciais se fossem extensivas populao branca (sertanejos). Todos os homens da regio andam armados e nos fins de semana bebem muito, fazendo arruaas e atirando para o ar. Isto as [sic.] vezes degenera numa briga sria, e morre algum (Valle 1974: 2).

Sobre a presena dos Kaiowa no distrito de Campestre, Llia Valle observou o seguinte:Apresentao. Campestre um aglomerado de casas margeando a estrada que liga Ponta Por e Bela Vista, no muito distante da sede do municpio, Antnio Joo. Andando-se uns 500 metros por uma estradinha lateral, chega-se ao segmento da aldeia. Trata-se de um terreno de 7560 metros quadrados, oito lotes que a prefeitura passou para o nome do Capito Alziro Vilalba, chefe da aldeia, para que os ndios sassem das terras

36

de Pio Silva, o maior fazendeiro da regio. Anexados a estes oito lotes existem mais dois, prometidos a um sobrinho do Capito por servios prestados, sem escritura definitiva.

A vivem 8 famlias nucleares e alguns agregados, 37 pessoas ao todo. A terra, no total de menos de 10000 metros quadrados, insuficiente para alimentar tanta gente, embora esteja sendo muito bem aproveitada (Valle 1974: 4). [destaques nossos]

Neste outro trecho do relatrio pode-se constatar, por exemplo, que na dcada de 1970 muitos Kaiowa residentes no distrito de Campestre teriam sido para l levados, com apoio da Prefeitura Municipal de Antnio Joo, para que sassem das terras de Pio Silva, isto , da antiga fazenda Fronteira, posteriormente dividida em outras (Fronteira, Cedro e Barra). Esta situao foi a vivida pela prpria famlia de cacique Alziro Vilhalba (ou Vilalba). No entanto, a famlia Vilhalba resistiu a este processo de sada das terras que os Kaiowa ocupavam tradicionalmente e conseguiu, gradualmente e com o apoio de outros parentes e aliados, reorganizar a comunidade de ande Ru Marangatu para retomar, como assim entendem os indgenas, parte de seu territrio naquela regio fronteiria. Contata-se, ainda, que desde aquele tempo o rgo indigenista oficial j tinha conhecimento da realidade dos Kaiowa em Antnio Joo, inclusive da necessidade de uma rea maior para sua reproduo fsica e cultural4. Contudo, a FUNAI nada teria feito para resolver o impasse, exceto tentando transferir os indgenas de ande Ru Marangatu para a Reserva Indgena de Dourados ou para outra reserva existente no estado. A referida antroploga ainda escreveu um item falando sobre a questo fundiria, o qual consta transcrito a seguir na ntegra, dado sua relevncia para o conhecimento dos fatos:4 PROBLEMA DE TERRAS - Histrico. Esta regio de colonizao recente. At a dcada de trinta os ndios viviam numa grande aldeia, Mborei [Mborevi]. Os primeiros colonos brancos comearam a se estabelecer por perto, e do [sic.] quartel de Bela Vista providenciou um contto [sic.] permanente com os ndios. Eles se lembram com muito carinho de um certo capito Daniel, que os visitava mensalmente, levando armas e outros presentes. Depois o exrcito contratou Pio Gonalves, um sertanejo que ainda morava em Campestre, para ser o chefe dos ndios e tomar de volta as armas. Na mesma poca da demarcao de terras para o Posto Indgena de Dourados [dcadas de 1910 e 1920], o S.P.I., fz [sic.] uma medio em volta de Cerro Marangatu. Era para ser uma reserva destes Pa, e ningum sabe porque isto no aconteceu. J menos numerosos, eles se transferiram par4 Llia Valle constatou vrias enfermidades enfrentadas pela comunidade de ande Ru Marangatu, tais como, por exemplo, amarelo, crie e doenas de pele (Valle, 1974: 8-9).

37

- Pretendo continuar a trabalhar com este grupo, e vejo com muita preocupao a situao difcil que atravessam, basicamente por falta de terra. As fazendas, principalmente de gado, ocupam toda a regio, embora grande parte dos terrenos aparentemente no estejam [sic.] sendo aproveitados. Como Antnio Joo faz fronteira com o Paraguai e rea de segurana nacional, talvez a prefeitura disponha de terras em quantidade, que poderiam ser cedidas a estes ndios, mas nada sei de concreto a respeito destes assuntos (Valle, 1974: 6-7). [destaques nossos]

outro local [Pirakua?], onde permaneceram alguns at 1968, quando mudaram para Campestre. Esta histria foi relatada tanto por Pio Gonalves como pelo Capito Alziro; as duas verses coincidem exceto em pequenos detalhes, aqui omitidos. - Reivindicaes. Alziro no se conforma com a situao em que vivem, com a falta de terras e o descaso oficial. Vivia falando nisso. J foi duas vezes at a 9 DR. da FUNAI, em Campo Grande, tentando conseguir terras e assistncia mdica para sua gente. Vai constantemente aos quartis de Bela Vista e Ponta Por, com a mesma finalidade. Apesar dos fracassos, ele no tinha perdido as esperanas e estava juntando dinheiro para ir novamente at Campo Grande. Dizia que ia aproveitar para conhecer Dourados. Eles tm muita noticia [sic.] de dourados [sic.], e diziam que gostariam de estar numa situao semelhante, pois a assistncia que os ndios de l recebem do governo e o adiantamento em que vivem aparece como algo muito desejvel. - Alternativas. Alziro trabalhava para um comprador de terras, seu Antonio, que tinha um stio em Campestre. Este seu Antonio me disse ser amigo do advogado da FUNAI em Campo Grande, e que por intermdio dele esperava conseguir que os ndios do municpio fossem transferidos para um dos P.I. [Posto Indgena] de Aquidauana, onde existia muita terra desocupada. Forneci a ele uma relao de pessoal que estaria disposto a mudar, de acordo com informaes a pedido de Alziro, a quem esta soluo no agradava muito. Dizia que Aquidauana ficava muito longe, que eles preferiam terras por ali mesmo, e que de qualquer forma precisaria conhecer o local antes de tomar qualquer deciso.

Neste item do relatrio, Llia Valle explica, de maneira sucinta e objetiva, o problema fundirio enfrentado pela comunidade de ande Ru Marangatu e, sobretudo, a persistncia do cacique Alziro Vilhalba em prosseguir defendendo os direitos da comunidade que liderava. A prpria antroploga tambm procurou somar foras com rgos pblicos e com alguns regionais para juntos encontrarem uma soluo que pudesse equacionar o problema da terra vivido pelos Kaiowa. Percebe-se ainda o registro do fato de que os ndios j estavam na rea em litgio quando da chegada dos primeiros colonizadores brancos, o que foi constatado pelo relatrio

38

de identificao da rea, produzido pelo antroplogo Rubem F. Thomaz de Almeida (2000), e pela prpria percia aqui apresentada. Nota-se ainda que autora registrou que at a dcada de trinta os ndios viviam numa grande aldeia, Mborei, cuja grafia correta Mborevi (Valle 1974: 6-7). Os Kaiowa com os quais os peritos mantiveram interlocuo tambm apontaram esta localidade como um de seus antigos stios de ocupao. O local denominado Mborevi, que em guarani significa anta, fica na rea periciada, em torno de uma das nascentes da margem direita do rio Estrela. Segundo explicaram os Kaiowa, ali viviam vrias famlias indgenas at serem desalojadas por pecuaristas, o que ocorreu a partir da dcada de 1940. Cumpre ainda explicar que na dcada de 1970 o Brasil passava por um regime de exceo, o regime militar instalado com o golpe de Estado de 1964. Naquele contexto histrico e poltico a FUNAI no prestava a devida assistncia aos Kaiowa estabelecidos em Antnio Joo. Por isso os ndios iam constantemente procurar o exrcito brasileiro para registrar suas reclamaes e solicitar providncias para os problemas que enfrentavam. No exrcito vez ou outra eles faziam alguns aliados, como o capito Daniel, o que no de se estranhar por causa das influncias dos ideais humanistas do marechal Cndido Mariano da Silva Rondon naquele setor das foras armadas, sobretudo entre o oficialato (ver Bigio 2003). De um modo geral, as informaes constantes no relatrio produzido por Llia Valle vo ao encontro da memria social coletiva da comunidade de ande Ru Marangatu, segundo foi possvel averiguar durante os trabalhos de campo para a realizao desta percia judicial e conforme explicado ao longo deste trabalho. Retomando a questo da proximidade em relao a algum aldeamento indgena, colocada no quesito em apreo, registra-se que a rea periciada delimitada pela fronteira com o Paraguai, sendo que do lado paraguaio existe a comunidade Kaiowa de Pysyry, localizada no Departamento de Amambay, distrito de Pedro Juan Caballero. O governo paraguaio reconheceu Pysyry como terra indgena em meados da dcada de 1970, conforme consta na publicao Etnografa guaran del Paraguay contemporneo: los Pa-Tavyter, de 1976, trabalho reconhecido internacionalmente como um clssico da etnologia guarani, de autoria dos antroplogos Bartomeu Meli, Friedl Paz Grunberg & George Grunberg (ver tambm resposta dada ao quesito dos Autores de n 3.17). Eles registram a seguinte descrio da comunidade de Pysysy ou Esperanza, como tambm conhecida:

39

El tekoha se ubica entre los arroyos Estrella, Esperanza con el Takuara y el Pysyry llegando al sur hasta los cerros. Al mismo tekoha pertenecen tambin las tierras al norte del Estrella, en el Brasil (Municipio Antnio Joo, Mato Grosso), con los ncleos Pa en Campestre (Guapoyrapo), Cerro Marangatu, Cabeceira Cumprida, Rama-kue, Jardim y Cabeceira do Apa5. Al lado Paraguayo est en trmite de donacin una superficie mensurada de 2.418 Has. como C.I.6 Pysyry que incluye la poblacin Pa que vive al sur del Arroyo Estrella (frontera) bajo el liderazgo de Cacildo Benitez y Rufino Valiente. Poblacin: 46 familias, con 230 personas (Meli et al. 1976: 192).

Nas pginas 200 e 201 do mesmo trabalho, Meli, Grunberg & Grunberg apresentam mais detalhes sobre a comunidade de Marangatu, que ocupava o lado brasileiro da fronteira, conforme transcrito a seguir:31. Campestre (Guapoyrapo, Cerro Marangatu) Este tekoha se ubica al norte del Estrella y llega hasta las cabeceras del ro Apa y guarda relaciones muy ntimas con el tekoha de Pysyry. No existe puesto de la FUNAI ni Misin evanglica en la zona, tampoco una reserva de tierras para los Pa. Est liderado por Alciro Castro Correa Villalba, que tiene un ttulo sobre 7,5 Has. en Campestre. El tekoha incluye los lugares Campestre, Cabeceira Cumprida, Mbakaiowa, Ramakue, Jardim y Cabeceira de Apa. Poblacin: 45 familias, 225 personas (Meli et al. 1976: 200-201).

O levantamento que resultou nessa publicao produto de detalhada pesquisa de campo realizada no incio da dcada de 1970, mais especificamente entre os anos de 1972 e 1975, cuja preocupao foi apresentar as condies gerais de vida nas comunidades Kaiowa e suas principais caractersticas culturais. Pelo grau de preciso e detalhamento, a obra se constitui at hoje na principal referncia etnogrfica sobre os Kaiowa, sendo consultada por antroplogos, arquelogos e etno-historiadores interessados nos mais diversos campos da cultura dessa etnia. Os referidos autores registraram alguns fatos importantes que merecem destaque na resposta formulada a este quesito. Primeiro, a percepo indgena de que sua rea de ocupao (tekoha) apresentava-se cindida pela fronteira territorial entre Brasil e Paraguai. Segundo, a existncia de ncleos de populao Kaiowa vivendo do lado brasileiro, tais como Campestre (Guapoyrapo), Cerro Marangatu, Cabeceira Cumprida, Rama-kue, Jardim y Cabeceira do Apa, mas que se sentiam participantes da5 Isso permite notar que desde a dcada de 1970 a regio descrita como composta por vrias comunidades relacionadas, compondo o que se denomina de tekoha guasu, termo que ser discutido adiante. 6 C.I. a abreviao de Colnia Indgena, que como se denominam as reservas indgenas no Paraguai.

40

histria comum da comunidade de Pysyry, pois compartilhavam o mesmo tekoha. Tem-se assim, segundo a forma de territorializao dos Kaiowa, uma comunidade disposta entre diversos grupos locais que ocupam espaos distintos, mas contguos, pois em termos de morfologia social apresentam-se interligados por relaes de parentesco e aliana poltica e religiosa. Terceiro, a presena, j naquele tempo, do lder Alziro Castro Correa Vilhalba7, que liderou as famlias at recentemente, sendo, Loretito Vilhalba, o atual lder da comunidade, neto do prprio Alziro. E quarto, o fato da populao dos dois lados da fronteira ser praticamente idntica em termos numricos. Os citados autores tambm afirmaram o seguinte: Los datos que se refieren al tekoha de Campestre fueran recogidos por el P.P.T. em 1974 (Meli et al. 1976: 200). A sigla P.P.T. designa o Proyecto Pa-Tavyter, no qual os prprios autores trabalhavam, sendo eles mesmos os etngrafos que recolheram os dados junto comunidade de Marangatu. Este projeto foi um grande programa de desenvolvimento social direcionado para o atendimento das comunidades indgenas Kaiowa no Paraguai. Em 1974 contou com o patrocnio da Misin Amistad e da Asociacin Indigenista del Paraguay, e, ainda, com a colaborao do Instituto de Bienestar Rural, Ministerio de Defensa Nacional, Ministerio de Salud y Bienestar Social e da Conferencia Episcopal Paraguaya. Assim sendo, as atividades desenvolvidas pelo P.P.T. tinham um carter institucional e pblico, com apoio e anuncia do governo paraguaio. Durante a realizao das pesquisas periciais, foram levantadas e devidamente analisadas vrias publicaes e relatrios do P.P.T. Contatou-se que no Informe sobre ubicacin y reserva de tierras indgenas en el Departamento de Amambay, de 1973, foi feito um importante informe sobre Pysyry:1.2. Pysyry/Esperanza Es una comunidad de 46 familias nucleares de los lugares de: - Pysyry 24 familias - Campestre 4 familias - Ramakue 9 familias - Cabecera puku 9 familias

Se ubica en una propiedad del seor Jeremas Lunardelli, brasileo, radicado en San Pablo, Brasil. El Gerente autorizado del propietario nos manifest verbalmente su acuerdo de mensurar 500 has. y permutar por otra parcela fiscal que linda con su propiedad (Proyecto Pa Tavyter 1973: 1).7 O nome Alciro Castro Correa Villalba a grafia que os autores usaram para o nome de Alziro Corra Fernandes Vilhalba, mais conhecido como capito Alziro Vilhalba.

41

Neste informe fica cristalino a presena de famlias Kaiowa provenientes de Campestre em Pysyry, assim como de outros tekoha localizados no Brasil, como o de Ramakue e Cabeceira Puku, que ficam na regio, mas fora da rea periciada. No perodo anterior ocupao agropastoril da regio, cada uma dessas localidades abrigava uma comunidade Kaiowa. Muitas delas acabaram se recolhendo nos espaos onde foi possvel assegurar alguma poro de terra reservada aos indgenas. As famlias de Campestre foram para o outro lado rio Estrela, no Paraguai, por conta dos conflitos fundirios existentes na rea em litgio. Uma dessas famlias foi a de Ciriaco Ribeiro, quem chegou a ser cacique em Pysyry e depois de algum tempo voltou definitivamente para seu lugar de origem, ande Ru Marangatu. Seu retorno para a rea em litgio ocorreu cerca de oito anos atrs. Assim como Ciriaco, muitos dos Kaiowa que regressaram de Pysyry e de outras localidades para a rea em litgio so vistos como ndios paraguaios por parte de alguns regionais. Atribuir aos Kaiowa de Marangatu uma nacionalidade paraguaia tem sido um argumento deliberadamente recorrido no texto do contraditrio apresentado pelo assistente tcnico dos Autores, Hilrio Rosa, ao contestar o relatrio de identificao assinado pelo antroplogo Rubem F. Thomaz de Almeida (2002). Ciriaco Ribeiro ou Ava Poty Mir, seu nome de batismo em guarani, nasceu em 1936 na regio de Marangatu, s margens do rio Estrela ou Estrelo (em oposio ao crrego Estrelinha) e viveu por anos nas proximidades do morro de mesmo nome, na rea que depois foi transformada na antiga Fazenda Fronteira. Assim como a maioria dos ndios mais idosos da comunidade de ande Ru Marangatu, ele demonstrou dominar pouco a lngua portuguesa e, por este motivo, preferiu falar em guarani durante boa parte dos trabalhos periciais. Por vezes assim o fez demonstrando receio em ser mal interpretado ao valer-se de uma lngua que no era o seu idioma materno.

42

Figura 3: Morro Marangatu ou Cerro Marangatu.

Segundo explicou, na dcada de 1950 ele e sua esposa, Edila Arce ou Kua Rendyju, nascida na Reserva Indgena de Dourados, com que teve nove filhos, tiveram de deixar a regio por conta da ao do senhor Pio Silva, natural de Minas Gerais, amigo e compadre de Milton Corra, quem teria sido o padrinho de seu filho mais velho, Pio Queiroz Silva. Assim como Ciriaco Ribeiro, os indgenas mais idosos, com as quais os peritos mantiveram interlocuo, indicaram Milton Corra e Pio Silva como os principais responsveis pelo processo de esbulho que alegam ter sido vtimas. Isso teria ocorrido a partir dos primeiros anos da dcada de 1950, o que coincide com a chegada desses brasileiros de Minas Gerais regio. Muitas vezes os Kaiowa utilizaram os termos Milton kuera e Pio kuera para se referirem, respectivamente, a gente de Milton Corra ou Milton Corra e seus companheiros ou parentes e a gente de Pio Silva ou Pio Silva e seus companheiros ou parentes. Assim o fizeram para indicar que eles dois no teriam agido sozinhos para expuls-los daquela rea, pois teriam contado com o apoio de outras pessoas, muitas das quais so chamadas pelos ndios de capangas; parte delas teria vindo do Paraguai para trabalhar nas fazendas que ali estavam sendo formadas, como o caso da Fazenda Fronteira e da Fazenda Primavera. Na poca da percia, por exemplo, dos nove filhos de Ciriaco Ribeiro e Edila Arce, apenas seis estavam vivos, dois homens e quatro mulheres. Leonardo Ribeiro, por exemplo, um de seus filhos mais velhos, nasceu em Marangatu e vivia em Pysyry com sua esposa, Clariana Silva, com quem

43

teve quatro filhos, dos quais dois viviam em Pysyry e dois em ande Ru Marangatu. Os outros cinco filhos de Ciriaco e Edila (Aparecida, Andressa, Ito, Jlia e Marcelina) estavam em Marangatu com seus cnjuges, filhos e netos. Os pais de Ciriaco Ribeiro so Mximo Ribeiro ou Ava Poty Veraju e Roberta Lopes ou Jetei Mir. Seu pai teria nascido em Marangatu e ali falecido antes da chegada de Pio Silva regio, tendo sido sepultado s margens do crrego Estrelinha; era rezador e foi uma importante liderana em seu tempo. Sua me teria nascido prximo s margens do referido crrego, onde viveu com seu pai; ela morreu e teria sido sepultada naquele lugar. Isso tambm teria ocorrido antes da chegada de Pio Silva em Marangatu. Hoje em dia, por exemplo, os membros da parentela de Ciriaco Ribeiro esto distribudos em Pysyry e ande Ru Marangatu, e enfrentam dificuldades em manterem visitaes peridicas, haja vista que alegam que no possuem mais a liberdade de circular na rea em litgio, por eles entendida como terra indgena. Na interpretao dos Kaiowa, a perda dessa liberdade de ir e vir atribuda, em linhas gerais, ao fato de seu territrio ter sido titulado a pessoas oriundas de outras regies, como dos estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e So Paulo. Esta apenas uma dentre as muitas histrias de vida que foram registradas durante os trabalhos periciais, analisadas segundo o idioma cultural dos Kaiowa. Outras trajetrias vividas pelos indgenas constam nesta percia e esto demonstradas sob forma de diagramas de parentesco, com as devidas explicaes histricas e scio-culturais. Sobre este assunto, por exemplo, o cacique Loretito Vilhalba reclama amide que quando os karai (termo usado pelos Kaiowa para designarem os colonizadores brancos) chegaram regio, a Justia ou o governo de Mato Grosso no pediu nenhuma percia antropolgica para saber se aquela terra devoluta era ou no terra indgena. Hoje em dia, porm, para eles retornarem regio que consideram como parte de seu grande territrio tradicional, a Justia demonstra no confiar na palavra dos ndios; por isso teria exigido uma percia dessa natureza com o propsito de averiguar se ande Ru Marangatu ou no terra indgena. Este ponto de vista demonstra que para boa parte da comunidade de ande Ru Marangatu, assim como para muitos trabalhadores rurais da vila Campestre, a concluso desta percia seria como a prpria sentena pronunciada pelo Juzo, o que evidentemente no condiz o que determina a legislao brasileira. No entanto, este olhar sobre o processo judicial serve para ilustrar um pouco o cenrio de tenso e conflitos em que os trabalhos periciais foram realizados. Alm disso, Loretito Vilhalba repetidas vezes explicou para os peritos e para a comunidade que lugar de mineiro Minas Gerais, de paulista

44

em So Paulo, de gacho no Rio Grande do Sul e de Kaiowa em Marangatu. Ao dizer isso ele no estava instigando o cerceamento do direito de ir e vir das pessoas, mas firmando a posio de que os Kaiowa estavam na rea em litgio antes da chegada dos brancos e que no esto dispostos a renunciar aos direitos que entendem possuir sobre aquele territrio. O senhor Pio Silva e sua famlia, por sua vez, afirmaram aos peritos que os ndios no estavam estabelecidos na rea em litgio quando eles chegaram quela regio e requereram terras ao governo do antigo Mato Grosso. Entretanto, na poca em que foi feito o estudo de identificao da chamada Terra Indgena ande Ru Marangatu, muitos regionais teriam dito ao antroplogo Rubem F. Thomaz de Almeida que na rea em litgio, como nas fazendas Fronteira e Primavera, no havia aldeia alguma, mas apenas algumas famlias indgenas vivendo por ali, o que corresponde exatamente maneira tradicional dos Kaiowa se organizarem do ponto de vista scio-poltico e espacial, conforme explicado mais adiante. No livro intitulado Situacin sociocultural, econmica, jurdicopoltica actual de las comunidades indgenas en el Paraguay, de Miguel Chase-Sardi, Augusto Brun & Miguel Angel Enciso, publicado em 1990, tambm constam algumas informaes interessantes sobre Pysyry. Elas atestam que em fins da dcada de 1970 aqueles ndios tiveram soluo para seus problemas fundirios mais emergenciais, diferentemente do que ocorreu com os de ande Ru Marangatu:Los miembros del Proyecto Pa Tavyter atienden a un grupo de 66 familias que est afincado en un terreno de 1.312 Hs., ubicado dentro de un gran latifundio de 180.000 Hs. Este grupo constituye la comunidad de Pysyry y se encuentra en la localidad de Estrella, distrito de Pedro Juan Caballero (Amambay). Es un grupo Mberyogua, con fuerte influencia de los Kaiowa o Pa brasileos y de algunos evangelizadores, tambin del vecino pas. Las pautas culturales se han debilitado, pero siguen manteniendo algunos rasgos caractersticos. En lo socio-poltico se registran conflictos, a raz de la falta de cohesin y la puja por el liderazgo. Esta situacin es aprovechada por los acopiadores de madera, corrompiendo a los lderes, para comprarles los rollos. [] En los hechos referidos a las tierras ocupadas por los indgenas, cabe mencionar que en principio el propietario de las 180.000 Hs., un ciudadano brasileo [Jeremias Lunardelli], estaba dispuesto a donar una fraccin de 1.000 Hs. para el asiento de la comunidad; sin embargo, luego de realizada la mensura, el resultado arroja que la fraccin ocupada abarca una superficie de 1.312 Hs. Esto induce al propietario a solicitar al IBR el levantamiento de un censo de poblacin del tekoha. La donacin se efectiviz el 18 de diciembre de 1978 y la fraccin ocupada por los nativos est identificada con el Padrn N 3.309 desprendido del

45

N 582. La misma est en gestin de transferencia a travs de la Escribana de Rafael E. Prado (Chase-Sardi et al. 1990: 444-445). [destaques nossos]

No ano de 2002, segundo consta no II Censo Nacional Indgena de Poblacin y Viviendas 2002, organizado pela Direccin General de Estadstica, Encuestas y Censos (DGEEC), do Paraguai, a populao de Pysyry era de 337 indivduos, sendo 164 homens e 173 mulheres, distribuda em 66 moradias (Mora 2003: 655). Surpreendentemente nessa publicao no constam informaes sobre a situao fundiria de Pysyry e das demais comunidades indgenas recenseadas, embora este tenha sido um assunto averiguado pelos pesquisadores paraguaios. Feita esta explicao, ressalta-se que o presente quesito mencionou a ideia de aldeamento indgena, sobre a qual j se prestaram alguns esclarecimentos. No obstante a esta indagao, para facilitar ainda mais a leitura e o entendimento do presente relatrio, assegurando maior clareza e coeso s respostas dadas aos prximos quesitos, far-se- a discusso de alguns termos que reaparecero nos enunciados de vrios quesitos e nas respostas a eles formuladas. A ideia propor um sentido mais apurado a esses termos, conceituando-os de acordo com as exigncias para a produo de textos cientficos. Considera-se que essa preciso fundamental para a construo de uma compreenso segura dos fatos que a presente percia tem por atribuio esclarecer. Neste sentido, segue a preciso dos conceitos de aldeamento indgena, aldeia, reserva indgena, posto indgena, terra indgena, tekoha e comunidade indgena. Segundo o dicionrio do Aurlio, aldeamento se refere: 1. Ato ou efeito de aldear. 2. Bras. Povoao de ndios dirigida por missionrios ou por autoridade leiga (Holanda Ferreira 1996). A prtica de aldear ndios foi intensamente promovida pelo Estado desde o perodo colonial, caracterizando a poltica indigenista oficial, em suas diversas formulaes, at a promulgao da Constituio Federal de 1988. A partir desse novo texto constitucional se previu a demarcao das terras indgenas segundo seus usos, costumes e tradies, o que implicam em demarcar os territrios que tradicionalmente ocupam8. Segundo amplamente conhecido, at o incio do sculo XX era comum o Estado delegar Igreja Catlica a atribuio de gerir os aldeamentos indgenas. Esta prtica comeou a arrefecer-se com a criao, em 1910, do Servio de Proteo aos ndios (SPI), rgo indige8 Procedimentos visando regularizao fundiria de terras ocupadas por indgenas so anteriores atual Constituio Federal, pois estavam previstos em diversas leis desde o perodo do Brasil Colnia. Mesmo o Estatuto do ndio (Lei n 6.001/73), ainda em vigor, atribua ao Estado a obrigao de assegurar terras aos ndios. Entretanto, no se previa que isto deveria assegurar a reproduo fsica e cultural dos indgenas, nem que eles teriam direito s terras de ocupao tradicional.

46

nista oficial ligado aos militares de orientao positivista que postulavam o indigenismo laico (Ver Carneiro da Cunha 1992; Grupioni 1995; Lopes da Silva & Grupioni 1994). O aldeamento indgena estava intimamente associado s aes e interesses dos representantes das frentes de expanso agropecuria no territrio brasileiro. Para isto era necessrio delimitar o espao destinado aos indgenas e convenc-los por vezes at for-los a neles se recolherem. Isso era visto como ao humanista porque no aldeamento os ndios teriam suas vidas preservadas e poderiam receber assistncia e orientao para se tornarem cristos e civilizados. Desta forma, uma vez restritos ao espao do aldeamento, os agentes indigenistas da sociedade nacional imaginavam que os indgenas iriam gradativamente abandonar seus padres culturais e assimilar a cultura dos novos ocupantes, considerada mais evoluda. O aldeamento indgena era visto, portanto, como o espao privilegiado para o desenvolvimento da prtica missionria, de programas de educao escolar e introduo de prticas econmicas voltadas para o atendimento das necessidades do mercado. Acreditava-se que o conjunto dessas aes iria preparar gradativamente a populao indgena para o destino irrefutvel da diluio da contrastividade tnica, resultando em sua plena assimilao. A ideia era que os ndios iriam se tornar colonos ou trabalhadores urbanos e rurais, enfim, serem completamente incorporados sociedade nacional, o que efetivamente no ocorreu com a maioria dos grupos indgenas. Nesse contexto histrico e cultural o termo aldeamento foi incorporado linguagem corrente, sendo encontrado em muitos registros histricos e mesmo em documentos do rgo indigenista oficial, com ou sem a preocupao de se referir ou reconhecer oficialmente determinada terra como de ocupao indgena. Aldeia, por sua vez, termo do qual deriva aldeamento, originalmente era utilizada para designar pequenos vilarejos ou distritos rurais. Na lngua portuguesa falada no Brasil, esse vocbulo corresponde a uma categoria lingustica forjada na situao do contato das populaes indgenas com o Estado Nacional. Normalmente a palavra utilizada para designar o local de maior concentrao de famlias indgenas, prevalecendo no imaginrio social a ideia de que essas famlias viveriam agrupadas na forma de vilarejo, dirigidas por um lder denominado cacique9. Um imaginrio as-

9 O termo originrio de lnguas indgenas aruk, faladas por grupos que habitavam a Amrica Central em fins do sculo XV e primeiras dcadas do XVI. Foi incorporado inicialmente ao espanhol e depois ao portugus. Chefe, por sua vez, a designao homloga em lngua inglesa (chief), usual nos Estados Unidos e bastante difundida em filmes estadunidenses.

47

sim reforado pela indstria cinematogrfica de Hollywood e por imagens de aldeias xinguanas veiculadas pela mdia nacional. Faz-se necessrio chamar a ateno para o fato de que esse imaginrio no corresponde realidade das formas de assentamentos praticadas pela maioria das populaes indgenas no Brasil, como o caso da populao Kaiowa que reivindica a rea em litgio. Os Kaiowa, como uma formao social especfica, possui sua prpria organizao social e seu sistema de representao poltica. Esta observao se baseia em trabalhos antropolgicos desenvolvidos por estudiosos das morfologias sociais indgenas, tais como Eduardo Viveiros de Castro (1986), Peter Rivire (2001 [1984]) e um dos autores da presente percia, quem dedicou sua dissertao de mestrado e sua tese de doutorado ao estudo do parentesco, morfologia e organizao social dos Kaiowa (Pereira 1999, 2004). A aldeia no dicionrio do Aurlio registrada com o sentido de:1. Pequena povoao, de categoria inferior a vila; povoao rstica; povoado. 2. Bras. Povoao constituda exclusivamente de ndios; maloca. 3. Unidade social que consiste numa habitao coletiva multifamiliar, ou num conjunto de habitaes reunidas em um mesmo local, e organizada poltica e espacialmente de forma especfica, conforme a sociedade a que pertence (Holanda Ferreira 2004).

O problema de aplicar o termo aldeia como sinnimo de local de habitao de ndios que nem todos os ndios que vivem em territrio brasileiro moram em maloca, termo que normalmente entendido como aglomerado de casas comunais onde vive uma famlia extensa. Acontece ainda de muitos grupos indgenas terem abandonado o uso da casa comunitria. Esse o caso dos Kaiowa, que a partir do contato com as frentes de expanso agropecuria abriram mo do uso da casa comunal, chamada oga pysy, e adotaram o padro de residncia cabloca, habitada por uma famlia nuclear, composta pelo casal, filhos e, eventualmente, por alguma criana adotada10. Esta mudana no padro de residncia no representou a perda do sentimento tnico, nem mesmo da maior parte das regras de convivialidade que se desenvolvia na casa comunal11. Com o incio da ao do rgo indigenista na regio sul do atual estado de Mato Grosso do Sul, o SPI e depois a FUNAI passaram muitas vezes a denominar como aldeia os espaos demarcados para os ndios10 A respeito da prtica da adoo entre os Kaiowa, ver Pereira (2002). 11 O abandono se deu, principalmente, devido ao preconceito a que ficavam expostos, pois os novos ocupantes do territrio, a maioria do sexo masculino, pensavam que a residncia comum implicava na ausncia de regras de parentesco, o que os levava a imaginar que os Kaiowa viviam em completa promiscuidade. A partir desse entendimento, as mulheres Kaiowa ficavam a merc do assdio e violncia dos homens (no-ndios) que chegavam ao territrio indgena sem mulheres.

48

ou mesmo os locais em que existiam comunidades indgenas. Assim, em muitos documentos do SPI e mesmo da FUNAI esse termo utilizado para designar as unidades administrativas do prprio rgo, ou seja, aquelas terras reservadas para os ndios que estavam sob sua jurisdio. Em Mato Grosso do Sul as terras demarcadas pelo SPI, na primeira metade do sculo XX, mas especificamente entre 1915 e 1927, tambm passaram a ser denominadas de reservas indgenas. Isto porque naquele momento no existia a preocupao em demarcar as terras que os ndios j vinham ocupando, haja vista que a legislao da poca se preocupava apenas em reservar algumas reas para os ndios. O critrio principal para reservar terras aos ndios durante a ao do SPI (1910-1967) foi principalmente o quesito de a rea ser terra devoluta, ou seja, de no existir nenhum requerimento de particular interessado nela. As comunidades indgenas que se encontrassem vivendo ao entorno da rea demarcada como reserva deveriam ser atradas para aquele lugar. Nas reservas destinadas aos Kaiowa em Mato Grosso do Sul, o rgo indigenista oficial instituiu ainda o Posto Indgena, unidade administrativa dirigida pelo chefe do posto, um funcionrio do SPI designado a implantar, naquela rea, uma nova forma organizacional capaz de tornar vivel a existncia da populao da recolhida na reserva. Tambm era comum o chefe de posto nomear um capito indgena, que funcionava como seu ajudante de ordens, e tambm uma guarda indgena para manter a ordem interna, sob a responsabilidade do capito, mas da qual ele era o comandante mximo. Na reserva a autoridade mxima era o chefe de posto, que detinha a prerrogativa de substituir a liderana indgena sempre que julgasse necessrio. Ele tambm interferia em todos os assuntos internos da comunidade, decidindo sobre a convenincia ou no da realizao de festas, venda de madeira e contratos de trabalho para a prestao de servios aos proprietrios rurais, alm de planejar e organizar mutires para atender as necessidades produtivas do Posto Indgena. Esse formato de organizao poltico-administrativa, implantado pelo antigo SPI, tinha o intuito de facilitar a implantao das atividades assistenciais e administrativas do rgo indigenista oficial junto populao kaiowa. O capito estava assim diretamente subordinado ao chefe de posto, sendo uma espcie de auxiliar na atividade de mobilizar e organizar a comunidade para as aes que o rgo pretendia desenvolver. Os capites se acostumaram a ser extremamente enrgicos com a populao da reserva, visto que estavam investidos da autoridade a eles delegada pelo chefe de posto e contavam com um grupo de homens armados que compunham a guarda indgena.

49

O controle enrgico da populao, imposto nas reservas pelos chefes de postos, levou muitas famlias indgenas a preferirem continuar morando em fazendas instaladas em seus territrios. Ali passaram a trabalhar como pees, negando-se a se submeterem aos excessos de autoritarismo do chefe de posto e do capito. Conforme explicado em outras partes desta percia, este foi o caso da relutncia do antigo capito Alziro Vilhalba, lder falecido da comunidade de ande Ru Marangatu, em se mudar com o grupo de famlias que liderava para uma das reservas ento demarcadas, deixando para trs a rea em litgio12. Acrescenta-se a esta situao o apego que os indgenas possuem em relao ao local de origem (sentimento de pertencimento), o que tambm fundamentou a recusa em se submeter forma organizacional imposta nas reservas. Essas so duas razes que explicam a recusa dos Kaiowa de ande Ru Marangatu em no atenderem aos repetidos e insistentes convites que funcionrios da FUNAI lhes fizeram para se transferirem para a Reserva Indgena de Dourados. No estado de Mato Grosso do Sul, diferentemente do que acontece na regio amaznica, a FUNAI tem demarcado reas descontnuas, reconhecidas como espaos restritos a comunidades especficas. Essas demarcaes de terras reconhecidas como indgenas se orientam pela legislao indigenista oficial e as unidades assim constitudas tem sido administrativamente nomeadas como terra indgena. A terra indgena pertence Unio, que deve assegurar comunidade indgena que nela vive o usufruto permanente de seus recursos, conforme estabelece a legislao em vigor. No caso dos Kaiowa, a demarcao de uma rea como terra indgena est sempre ligada ao atendimento da demanda de uma comunidade especfica, desde que comprovada sua legitimidade, motivo pelo qual na documentao da FUNAI ela tambm identificada pelo nome da comunidade, como, por exemplo, a comunidade Kaiowa da Terra Indgena Panambizinho. Esse padro adotado no reconhecimento de terras indgenas no Estado tem levado ao uso recorrente da categoria nativa dos Kaiowa e Guarani denominada tekoha. Nos documentos administrativos seu uso cada vez maior, pois ela expressa ao mesmo tempo a comunidade (grupo social), o espao geogrfico (territrio) em que essa comunidade vive e o modo especfico de suas prticas culturais (sistema cultural) (Pereira 2004). No foi possvel identificar na lngua portuguesa uma palavra que agregue, ao mesmo tempo, os trs sentidos reunidos em um s termo em lngua guarani. Por12 Na verdade o ttulo de capito, que ao que tudo indica, ele mesmo se atribua, talvez no passasse de uma tentativa de conseguir respeito e autoridade enquanto lder de uma comunidade, j que ele no vivia em reserva e no estava diretamente ligado a nenhum chefe de posto ao qual servisse.

50

este motivo se mantm seu uso em vrias partes das respostas aos quesitos da percia, sempre que estiver se referindo s trs dimenses semnticas acima apontadas. Considerando o uso corrente do termo tekoha, tanto na literatura acadmica (produo antropolgica atual) quanto nos documentos administrativos da FUNAI (a exemplo do relatrio circunstanciado de identificao e delimitao da terra indgena ande Ru Marangatu), bem como o fato de existir uma grande polmica em torno dos possveis sentidos e usos polticos a que o termo se presta (como est implcito em vrios enunciados dos quesitos formulados pelos Autores), avalia-se pertinente discorrer sobre a semntica do termo e seus diversos usos, antecipando e complementando as respostas a vrios quesitos que versam sobre o tema. Tekoha uma categoria nativa prpria aos Kaiowa e Guarani, cuja compreenso fundamental para o entendimento da organizao social e disposio territorial de suas comunidades. Os pesquisadores que se dedicam realizao de estudos acadmicos sobre essas etnias, so unnimes em reconhecer que s a partir da noo de tekoha que se podem entender as formas de organizao espacial das figuraes sociais constitudas pelos Kaiowa e Guarani. Trata-se, como um dos peritos do Juzo enfatizou no Captulo 2 de sua tese de doutorado, de uma categoria nativa polissmica cuja nfase em alguns de seus diversos significados varia consideravelmente de acordo com as motivaes dos narradores, os cenrios de interao e a situao scio-histrica vivida (Pereira 2004). A histria das comunidades Kaiowa nas ltimas dcadas tem levado a maior parte de seus atuais lderes polticos a enfatizarem a dimenso territorial do termo tekoha. Isto porque esto convencidos, a partir da leitura crtica que fazem dos processos histricos vividos nas ltimas dcadas, que a ausncia de uma base territorial constitui hoje o principal entrave para a reproduo fsica e cultural de suas comunidades. Dessa forma, dimenses semnticas dessa categoria, que enfatizam aspectos relacionais que dizem respeito a formas de sociabilidade internas ao grupo, so atualizadas mais no mbito restrito da comunidade, regendo sua estruturao e dinmica de relaes entre as parentelas e, especialmente, no campo dos discursos religiosos proferidos pelos xams. Na relao com a sociedade nacional e suas instituies, o termo tekoha tem adquirido o significado quase que exclusivo de terra, ou espao fsico, entendido com a poro de terra tradicionalmente ocupada por uma comunidade. Grosso modo poder-se-ia traduzir o termo por aldeia em toda a sua dimenso comunitria, territorial e cultural, como explicado antes. Entretanto, importante no negligenciar as implicaes semnticas multifacetadas originais na lngua guarani. Para o antroplogo Bartomeu Meli,

51

em trabalho publicado em 1990, intitulado Los Pa-Tavyter del Amambay 15 aos despues, a semntica do termo est diretamente relacionada ao modo de produo da cultura em todas as suas formas de expresso: econmica, social, poltica, religiosa etc., e, claro, territorial (Meli 1990). No perodo jesutico (sculo XVII) a palavra foi registrada como sendo composta por teko, que o dicionrio de Antonio Ruiz de Montoya descrito como reunindo os significados de modo de ser, modo de estar, sistema, lei, cultura, norma, comportamento, hbito, condio, costume, religio,.... Acrescenta-se aqui que ha, que como sufixo nominador (teko + ha = tekoha), indica, no idioma guarani, a ao que se realiza. Portant