'Não domestiquemos os pobres, não façamos deles pessoas inofensivas'

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www.arquidiocesedesaopaulo.org.br | 6 a 11 de novembro de 2014 | Entrevista | 15 Padre Julio Lancellotti “Digamos juntos com o coração: nenhuma família sem moradia, ne- nhum agricultor sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o traba- lho dá.” Difundida em jornais, sites e nas redes sociais, a frase do Papa Fran- cisco é um pequeno trecho da men- sagem proferida durante o Encontro Mundial dos Movimentos Populares, que aconteceu entre os dias 27 e 29 de outubro, em Roma. Organizado pelo Pontifício Con- selho Justiça e Paz, em colaboração com a Pontifícia Academia das Ciên- cias Sociais e com os líderes de vários movimentos, o encontro reuniu líde- res dos movimentos populares. Do Brasil, estiveram representantes do Movimento dos Trabalhadores Ru- rais Sem Terra (MST) e da Via Cam- pesina e o secretario geral da CNBB, Dom Leonardo Steiner, participou entre os bispos convidados. O Papa insistiu nas palavras ter- ra, trabalho e moradia e baseou sua mensagem nestas três necessidades do ser humano, referindo-se sempre à Doutrina Social da Igreja (DSI). Para aproximar a mensagem de Fran- cisco à realidade paulistana, na qual está inserida a Arquidiocese, O SÃO PAULO conversou com Padre Julio Lancellotti, vigário episcopal para o Vicariato do Povo da Rua. O SÃO PAULO – Na mensagem do dia 28 de outubro, o Papa insistiu no protagonismo dos pobres. Como a Igreja pode favorecer isso? Padre Julio Lancellotti - Para mim, o que o Papa Francisco está mostrando é a importância de a Igreja apoiar os movimentos populares, não é se substituir a eles. Mas estar junto, ao lado. A urgência da reforma agrária, apontada por Francisco, diminuiria a migração para os grandes centros urbanos. Mas, e no que se refere à vida na metrópole? Esse tipo de colocação está ligada diretamente à reforma urbana e à função social da propriedade. Acredito que o Papa deixa bem claro: nenhum camponês sem terra, o que é um claríssimo apoio à reforma agrária. Nenhum trabalhador sem trabalho e nenhuma família sem casa. Isso aponta claramente para a reforma ‘Não domestiquemos os pobres, não façamos deles pessoas inofensivas’ NAYÁ FERNANDES [email protected] urbana, para a função social da propriedade. Na cidade, um grande vilão da moradia é a chamada especulação imobiliária... Sem dúvida. É o que a Doutrina Social da Igreja chama de primado do econômico sobre a pessoa. E o Papa ressalta o primado da pessoa. Por isso, esse encontro é bonito para o mundo, mas é também altamente comprometedor para a Igreja e coloca seriamente a questão de quais são as nossas opções pastorais. Também é interessante ver que, na nossa história, da Arquidiocese de São Paulo, o Papa coloca em evidência as questões que já foram as diretrizes pastorais da Arquidiocese, que são trabalho e moradia. É um texto provocativo e indicativo, que pede compromisso. E Ele insiste na aplicação da Doutrina Social da Igreja... Sim. O que Francisco ressalta é a Doutrina Social da Igreja (DSI) que, muitas vezes, fica relegada a um se- gundo plano. O Papa João Paulo II já falava da função social da proprie- dade e isso é uma tradição na DSI, então, nesse sentido, é um resgate importante. A grande novidade de Francisco é ter discutido a DSI com os movimentos sociais e populares. Ele não discutiu com a academia, com os políticos, os profissionais ou os governantes, ele discutiu com os protagonistas da ação de mudança. Foi por isso que o encontro con- tou com um grupo de pessoas escolhidas, já comprometidas com as causas sociais? Sim, de Buenos Aires, por exemplo, o Papa convidou um catador de papel, amigo dele. Lá chamado “Papeleiro do Papa”, ou o “Catador do Papa”, porque tem um trabalho de cooperativa entre os catadores de papel. O Pontífice critica também os eufemismos, ou seja, palavras elegantes que acabam por amenizar os problemas sociais. Na Itália, pessoa em situação de rua é chamada de senza fissa dimora, ou seja, sem moradia fixa. Sim, pois é bonito [...] politicamente correto dizer isso. Mas, atrás deste eufemismo, que é um “ficar em cima do muro”, se esconde um crime, o da pessoa sem dignidade, sem direito a nada. Ele diz que as cidades são bonitas, modernas, cheias de prédios, de belezas construídas modernamente e, no entanto, existem pessoas que estão na rua. Esse é um chamamento de atenção muito forte para o mundo, para a Igreja, para nossas pastorais. Ele insiste, porém, que os eufemismos, essas formas elegantes de falar, não mudam nada. Assim, o Papa enfatiza o primado da prática, da ação, e da mística da transformação. A mensagem insiste também na cultura do encontro e na eliminação do preconceito. Atitudes intolerantes atingiram as pessoas em situação de rua, sobretudo neste período pós- eleições? Nesse sentido, a polarização dos eleitores e as manifestações contra os nordestinos pós-eleição presidencial desembocaram no preconceito com as pessoas em situação de rua. Há uma tendência de identificar que, em São Paulo, os nordestinos são os moradores de rua. Estamos sentindo muitas ações de higienização, de preconceito, discriminação e violência contra a população que está nas ruas de São Paulo. E, como disse o Papa, essas pessoas estão nas ruas, pois lhes foi negado o direito a uma vida digna. Porém, Francisco ressalta muito que não domestiquemos os pobres, não façamos deles pessoas inofensivas. Temos que incomodar essa desordem que se estabeleceu, que nós chamamos de ordem. É uma desordem que tira a dignidade, tira as condições de vida das pessoas. É um texto que precisa ser lido mas também colocado em prática. O que o senhor sugere? Esse texto deve ser divulgado, multiplicado, deve chegar também às pessoas em situação de rua, pois a mensagem do Papa é uma palavra de ânimo, de esperança. É, acima de tudo, uma palavra de quem confia na caminhada do povo e de quem não quer caminhar se não for no meio do povo. Mas, como você disse, essas palavras têm que nos comprometer. Devemos tê-las, sobretudo os membros das pastorais sociais, como temos a Evangelii Gaudium. As pastorais sociais deveriam aprofundar esses textos e aprofundar pensando em como fazer disso uma realidade. Às vezes, as pastorais parecem estar separadas dos movimentos sociais. Mas o Papa está mostrando que a pastoral é a vida do povo. O encontro dele não foi com religiosos, mas com pessoas dos movimentos sociais. Ele está dando o exemplo, a fundamentação também. Agora, precisamos agir. Luciney Martins/O SÃO PAULO

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Ele anda por aí ajudando as pessoas que vivem nas ruas, que foram, como ele mesmo diz, privadas da dignidade. É padre, mas é, sobretudo humano e sensível ao que a maioria das pessoas simplesmente ignora. Ele defende, enfrenta, grita, mas também ouve, acolhe, abraça. Aqui, nesta entrevista, fala sobre as mensagem do papa Francisco aos movimentos populares. Obrigada padre Julio Lancellotti.

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www.arquidiocesedesaopaulo.org.br | 6 a 11 de novembro de 2014 | Entrevista | 15

Padre Julio Lancellotti

“Digamos juntos com o coração: nenhuma família sem moradia, ne-nhum agricultor sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o traba-lho dá.”

Difundida em jornais, sites e nas redes sociais, a frase do Papa Fran-cisco é um pequeno trecho da men-sagem proferida durante o Encontro Mundial dos Movimentos Populares, que aconteceu entre os dias 27 e 29 de outubro, em Roma.

Organizado pelo Pontifício Con-selho Justiça e Paz, em colaboração com a Pontifícia Academia das Ciên-cias Sociais e com os líderes de vários movimentos, o encontro reuniu líde-res dos movimentos populares. Do Brasil, estiveram representantes do Movimento dos Trabalhadores Ru-rais Sem Terra (MST) e da Via Cam-pesina e o secretario geral da CNBB, Dom Leonardo Steiner, participou entre os bispos convidados.

O Papa insistiu nas palavras ter-ra, trabalho e moradia e baseou sua mensagem nestas três necessidades do ser humano, referindo-se sempre à Doutrina Social da Igreja (DSI). Para aproximar a mensagem de Fran-cisco à realidade paulistana, na qual está inserida a Arquidiocese, O SÃO PAULO conversou com Padre Julio Lancellotti, vigário episcopal para o Vicariato do Povo da Rua.

O SÃO PAULO – Na mensagem do dia 28 de outubro, o Papa insistiu no protagonismo dos pobres. Como a Igreja pode favorecer isso?

Padre Julio Lancellotti - Para mim, o que o Papa Francisco está mostrando é a importância de a Igreja apoiar os movimentos populares, não é se substituir a eles. Mas estar junto, ao lado.

A urgência da reforma agrária, apontada por Francisco, diminuiria a migração para os grandes centros urbanos. Mas, e no que se refere à vida na metrópole?

Esse tipo de colocação está ligada diretamente à reforma urbana e à função social da propriedade. Acredito que o Papa deixa bem claro: nenhum camponês sem terra, o que é um claríssimo apoio à reforma agrária. Nenhum trabalhador sem trabalho e nenhuma família sem casa. Isso aponta claramente para a reforma

‘Não domestiquemos os pobres, não façamos deles pessoas inofensivas’

Nayá [email protected]

urbana, para a função social da propriedade.

Na cidade, um grande vilão da moradia é a chamada especulação imobiliária...

Sem dúvida. É o que a Doutrina Social da Igreja chama de primado do econômico sobre a pessoa. E o Papa ressalta o primado da pessoa. Por isso, esse encontro é bonito para o mundo, mas é também altamente comprometedor para a Igreja e coloca seriamente a questão de quais são as nossas opções pastorais. Também é interessante ver que, na nossa história, da Arquidiocese de São Paulo, o Papa coloca em evidência as questões que já foram as diretrizes pastorais da Arquidiocese, que são trabalho e moradia. É um texto provocativo e indicativo, que pede compromisso.

E Ele insiste na aplicação da Doutrina Social da Igreja...

Sim. O que Francisco ressalta é a Doutrina Social da Igreja (DSI) que, muitas vezes, fica relegada a um se-gundo plano. O Papa João Paulo II já falava da função social da proprie-dade e isso é uma tradição na DSI, então, nesse sentido, é um resgate importante. A grande novidade de Francisco é ter discutido a DSI com os movimentos sociais e populares.

Ele não discutiu com a academia, com os políticos, os profissionais ou os governantes, ele discutiu com os protagonistas da ação de mudança.

Foi por isso que o encontro con-tou com um grupo de pessoas escolhidas, já comprometidas com as causas sociais?

Sim, de Buenos Aires, por exemplo, o Papa convidou um catador de papel, amigo dele. Lá chamado “Papeleiro do Papa”, ou o “Catador do Papa”, porque tem um trabalho de cooperativa entre os catadores de papel.

O Pontífice critica também os eufemismos, ou seja, palavras elegantes que acabam por amenizar os problemas sociais. Na Itália, pessoa em situação de rua é chamada de senza fissa dimora, ou seja, sem moradia fixa.

Sim, pois é bonito [...] politicamente correto dizer isso. Mas, atrás deste eufemismo, que é um “ficar em cima do muro”, se esconde um crime, o da pessoa sem dignidade, sem direito a nada. Ele diz que as cidades são bonitas, modernas, cheias de prédios, de belezas construídas modernamente e, no entanto, existem pessoas que estão na rua. Esse é um

chamamento de atenção muito forte para o mundo, para a Igreja, para nossas pastorais. Ele insiste, porém, que os eufemismos, essas formas elegantes de falar, não mudam nada. Assim, o Papa enfatiza o primado da prática, da ação, e da mística da transformação.

A mensagem insiste também na cultura do encontro e na eliminação do preconceito. Atitudes intolerantes atingiram as pessoas em situação de rua, sobretudo neste período pós-eleições?

Nesse sentido, a polarização dos eleitores e as manifestações contra os nordestinos pós-eleição presidencial desembocaram no preconceito com as pessoas em situação de rua. Há uma tendência de identificar que, em São Paulo, os nordestinos são os moradores de rua. Estamos sentindo muitas ações de higienização, de preconceito, discriminação e violência contra a população que está nas ruas de São Paulo. E, como disse o Papa, essas pessoas estão nas ruas, pois lhes foi negado o direito a uma vida digna. Porém, Francisco ressalta muito que não domestiquemos os pobres, não façamos deles pessoas inofensivas. Temos que incomodar essa desordem que se estabeleceu, que nós chamamos de ordem. É uma desordem que tira a dignidade, tira as condições de vida das pessoas.

É um texto que precisa ser lido mas também colocado em prática. O que o senhor sugere?

Esse texto deve ser divulgado, multiplicado, deve chegar também às pessoas em situação de rua, pois a mensagem do Papa é uma palavra de ânimo, de esperança. É, acima de tudo, uma palavra de quem confia na caminhada do povo e de quem não quer caminhar se não for no meio do povo. Mas, como você disse, essas palavras têm que nos comprometer. Devemos tê-las, sobretudo os membros das pastorais sociais, como temos a Evangelii Gaudium. As pastorais sociais deveriam aprofundar esses textos e aprofundar pensando em como fazer disso uma realidade. Às vezes, as pastorais parecem estar separadas dos movimentos sociais. Mas o Papa está mostrando que a pastoral é a vida do povo. O encontro dele não foi com religiosos, mas com pessoas dos movimentos sociais. Ele está dando o exemplo, a fundamentação também. Agora, precisamos agir.

Luciney Martins/O SÃO PAULO