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  • Copyright 2014 desta edio by Editora LigaGrafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da LnguaPortuguesade 1990, em vigor no Brasil desde 1 de janeiro de 2009.Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610,de 19 de fevereiro de 1998. proibida a reproduo total ou parcial sem a expressa anuncia da editora.Revisor: DIO PULLIGEdio: AMANDA ALVESFoto de capa: PAULA KOSSATZOrganizao: AMANDA ALVESProjeto grfico de miolo e diagramao: JOHN LEE MURRAYCIP-BRASIL. CATALOGAO NA FONTE.SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.N194No por centavos : um retrato das manifestaes no Brasil / BrunoFiuza ... [et al.] ; organizao: Amanda Alves. Rio de Janeiro : Ed.Liga, 2014. Primeira edio90 p. ; 21 cm.ISBN: 978-85-67980-00-31. Movimentos sociais Brasil. 2. Participao social Brasil. 3.Participao poltica Brasil. I. Fiuza, Bruno. II. Alves, AmandaCDD- 303.4840981EDITORA LIGAAv. Joo Cabral de Melo Neto, 350, bloco 1, loja ABarra da Tijuca Rio de Janeiro RJCEP 22.775-057www.liga.etc.br

  • Sumrio

    IntroduoO Caminho Sem Fim da DemocraciaBruno BorgesMassas em busca de um cordeiroClaudio Julio TognolliBlack blocs, uma histriaBruno FiuzaLegitimao de violncia performativano Black Bloc paulistanoEsther Solano Gallego e Rafael AlcadipaniA Brecha de Junho est Aberta:Aprofundar a DemocraciaGiuseppe Cocco e Hugo AlbuquerqueQuem reprime manifestaes,as polcias ou os governos?Danillo Ferreira

  • Introduo

    Manifestaes surgiram do nada. No, asmanifestaes surgem do tudo. De uma ressaca deexcessos do governo, de uma escassez dedemocracia, de um conjunto de fatores, comocarncias do essencial, entre elas sade, educaoe transportes, e um excesso de outros fatores comocorrupo, violncia, injustia e desvalorizaodos valores que movem qualquer pas liberal.

    O pavio fica ali, frgil e exposto, prestes a seracesso, quando um despertar maior do que o daminoria decide dar um basta, ou pelo menos,tentar. Assim foi ao longo da histria, no s doBrasil, mas tambm do mundo. No se sabequando o pavio ser acesso, quando o ser humanodecide que no aguenta mais. Mas, quando decide,sai de seu suposto conforto e aparece nas ruas.Revindica seus direitos, seus sonhos de um pasideal, ou um pouco mais justo.

    Desta vez tudo foi despoletado pelo aumento

  • das passagens. Ningum poderia concordar compassagens ainda mais caras sem rastro demelhorias para o cidado de um transporte que sediz pblico. Mas, quando as pessoas chegaram narua, viram que no eram s os transportes. Eporque no dar voz a tudo o que h muito estavaengasgado nas gargantas e alma dos brasileiros.

    De uma manifestao pelo no aumento dostransportes, passaram a seguir-se outras tantasmanifestaes de insatisfaes. Todos queriam sefazer ouvir sobre algo que os incomodava naessncia do que se pressupe de um pasdemocrtico.

    Multides comearam a se reunir, cada vez emmaior nmero nos grandes centros das maiorescidades do Brasil. No eram s os chamadosmilitantes. Todos estavam dispostos a ir para asruas: crianas, famlias, professores, idosos, cadaum segurando sua bandeira. No, no bandeirapoltica, mas de seus ideais.

    A mdia passou a virar suas atenes para todasas manifestaes, revistas, jornais, televisespassaram a debater o tema e passou a ser o assunto

  • mais falado em todo o Brasil. Polticos tentavamdar resposta s acusaes, policiais passaram aestar no meio de tudo, julgados constantemente porexcessos ou parcimnias, grupos tticos emovimentos comearam a aparecer nasmanifestaes como os Black Blocs.

    O final das manifestaes passou a ser palco deviolncia e vandalismo e as opinies comearam atomar outras propores. Deixou-se de lado amotivao para dar lugar a debates sobre aviolncia nas manifestaes, sobre a ao dosgrupos, da polcia e at mesmo do posicionamentodas mdias sociais.

    Tudo comeou em junho de 2013 e chegamosem 2014. As manifestaes voltaram a surgir, apsuma pequena trgua na passagem do ano. A poucosmeses da Copa do Mundo de Futebol, mais umamotivao surge para as manifestaes ocorrerem.A morte de um cinegrafista por ocorrncia de umabomba caseira tomou a ateno dos jornalistas eda populao quanto s formas de atuao nasruas.

    So inmeros os questionamentos e os debates,

  • polticos e sociais, um pouco por todo o Brasil eem todos os meios. E no meio desse debate,dessa troca de ideias e ideais que esta obra surge.Numa juno de artigos de opinies, de pessoas dediferentes meios e com pensamentos diversos e/oudivergentes onde, o que se busca, no umacoeso de opinies e nem mesmo nenhumposicionamento de qualquer tipo. Apenas umaexposio das diferentes vises, onde cada umexpe seu olhar sobre o mesmo tema, sobre osmesmos acontecimentos, tanto enquanto brasileiroscomo pela profisso ou posio que assumiram emseus papis sociais.

    Uma obra rica, com grandes nomes epensadores, em que policiais, jornalistas,militantes e professores revelam o que pensamsobre esta onda de vozes que ganharam as ruas donosso pas e nos despertam para a nossa realidadeatual.

    Amanda Alves

  • O caminho sem fimda democracia

    As grandes manifestaes de junho de 2013 emnosso pas expuseram de modo claro um sintomade um mal-estar que, atualmente, atinge todo omundo democrtico. Dos Estados Unidos aospases europeus, da Amrica Latina aos pasesemergentes, parece surgir uma angstia quanto spossibilidades e aos resultados apresentados pelasdemocracias. Investimos muitas emoes e muitosangue foi derramado para que nos tornssemosdemocratas. Mas os resultados deixam a desejar.Esta frase poderia ser dita por cidados de muitosde pases, incluindo europeus, que passaram portrajetrias de horror durante o o sculo XX edemoraram muito para conquistar ou recuperaruma democracia inclusiva e respeitosa dosdireitos individuais. Em momentos de criseeconmica, social e poltica, vm tona aspreocupaes com o futuro e o questionamento das

  • possibilidades geradas pelo modelo social epoltico.

    Apesar disso, se o tal mal-estar nademocracia assume diversas formas e geradopor motivos diversos em cada pas, um fator osune a todos: ningum est genuinamente satisfeitocom a sua representao e com as respostas que ademocracia, em seu formato atual, est sendocapaz de gerar. A percepo de que os partidospolticos no so to representativos ou de que oscanais normais para a canalizao de demandas jno so capazes de funcionar como deveriam soreclamaes recorrentes daqueles nas ruas. Ocusto de vida, os servios pblicos, o papel dodinheiro na poltica ou a corrupo so todostemas presentes na malha de reclamaes. De ummodo ou de outro, a realidade da democraciaparece se distanciar cada vez mais do ideal queela evoca.

    Alguns exemplos disso podem ser dados. NosEstados Unidos, o desespero com a representaoacontece porque o sistema poltico do pas permitecada vez menos que vozes discordantes se

  • manifestem na representao. Calcada em umsistema eleitoral que incentiva o bipartidarismo, apoltica norte-americana tem uma dificuldadeenorme em representar minorias, que j no seveem mais refletidas nos dois principais partidos.Fenmenos como o Occupy Wall Street ou o TeaParty mostram que diferentes grupos ideolgicostentam pressionar por mudanas nos partidosprincipais, muitas vezes sem sucesso. Isso piorado pelo descolamento entre a representao eo dinheiro: cada vez em maior escala, aquantidade de dinheiro distribuda e aexclusividade de determinados grupos determina ofuncionamento do sistema poltico. A democraciasai diminuda e os eleitores saem cada vez maisdesiludidos.

    Na Europa, a situao similar. Os partidostradicionais de centro-esquerda e centro-direitaveem-se incapazes de oferecer respostas aosdilemas de uma crise econmica que se prolongah anos, sem perspectivas de resoluo no curtoprazo. Uma juventude educada, mas semoportunidade de emprego, no consegue

  • compreender como possvel viver emsociedades que um dia pensaram na redistribuiocomo soluo mas agora tm dificuldades em ter oque redistribuir. Os Estados de Bem-Estar Socialtransformam-se em mquinas impessoais,criticados por sua dificuldade em manterfuncionando em perfeitas condies os serviosque os caracterizam. Crescem as soluesantidemocrticas: os partidos de extrema direitaproliferam, substituindo o desespero por raiva ecanalizando a revolta para o outro, o diferente, oimigrante, o que no pertence.

    No nosso caso, o desespero tambm est l, porvezes mascarado, outras vezes aberto e rancoroso.Envolve um desprezo pelo tema da participao,uma esperana mutilada de pessoas que um dia ativeram, mas acabaram por perd-la. Um dosgrandes chaves que ouo repetidamente a ideiade que o Brasil nunca chegar l. Geralmente afrase vem acompanhada por explicaes quetentam qualificar a afirmativa com algumapseudoteoria. Entre elas, posso citar algumas: noBrasil s tem corrupto, fomos colonizados por

  • portugueses, o Brasil tem muitos partidospolticos, entre outras. Enfim, seramos umfracasso do incio ao fim, sem perspectivas nemfuturo possvel. Por incrvel que parea, no fimdas contas, as pessoas que dizem isso at estocertas, mas no pelos motivos que acreditam serverdadeiros.

    Normalmente peo s pessoas que meexpliquem melhor o que querem dizer. Nuncaconsegui mais do que olhares perdidos. Noentanto, o que mais gostaria de saber o quechegar l significa. Talvez se eu soubessemelhor do que estamos falando pudssemosdecidir sobre caminhos para atingir essa meta.Mas nunca fui muito adiante na minha empreitada esuponho por qu.

    Tenho pra mim que isso decorrente de umenorme dficit democrtico que ainda noconseguimos superar. Apesar dos quase trinta anosde democracia consolidada, boa parte das pessoasainda acha que a democracia funciona (e devefuncionar) no piloto-automtico: basta votar de vezem quando, esperar resultados e reclamar dos

  • polticos que, em algum momento, como num passede mgica, o Brasil se transformar de maneira toradical que no nos reconheceremos mais:seremos a Sucia com praias.

    Enfim, esperamos tanto da democracia que,quando no conseguimos rapidamente atingir umaideia de democracia perfeita, nos desesperamos eachamos que nunca dar certo. Esse imediatismo eessa impacincia se prestam a salvacionismos devrias espcies e ao mesmo tempo escondem eempobrecem as solues de verdade. Imaginar quealgum cavaleiro solitrio vir de fora do sistemapara resolv-lo imaginar que nossos problemasso compostos apenas por pessoas mal-intencionadas e que, uma vez removidas, tudo seresolver. H muitas variaes do argumento, masna sua essncia a esperana de se resolverquestes polticas fora da poltica. E isso noexiste.

    Pensemos na corrupo, por exemplo. Apesarde ser definida de maneira muito diversa ao redordo mundo, a corrupo presente, em maior oumenor grau, em todos os sistemas representativos

  • do mundo. Como qualquer crime, impossvelimaginar que algum dia eliminaremoscompletamente sua ocorrncia. Isso no significa,no entanto, que no possamos pensar em maneirasde diminu-la radicalmente. Para tanto, existe umasoluo que leva tempo, requer pacincia e deveser nutrida constantemente: investir cada vez maisem ampliar algo que os cientistas sociaisconhecem por seu nome original, a accountabilitydas instituies. Em uma traduo livre, o termosignifica a transparncia e a prestao de contasque devem orientar a criao de qualquer polticapblica e de qualquer agncia do governo.Promover a accountability no elimina acorrupo, mas a diminui, aumentandosensivelmente os custos para aqueles que pensamem comet-la. Mais accountability s vem commais poltica, no com menos.

    A democracia tem em seu ncleo o exerccio daassociao, da discusso, da negociao. Esseembate de ideias, para que seja pleno, precisa deum grau elevado de igualdade. Tal afirmao jera feita por um pensador francs do sculo XIX,

  • Alexis de Tocqueville, ao se referir a umfenmeno que, para ele, seria inexorvel: o mundocaminharia para a democracia. Gosto de pensarque Tocqueville estava correto, mas chamoateno para outro aspecto de seu pensamento: aliberdade presente na democracia deve serexercida, como um msculo que no deve atrofiar.Se paramos de discutir, de argumentar, de lutar poralgo que achamos correto, deixamos de lado omais precioso elemento da democracia.

    Como exposto anteriormente, as pessoas emtodo o mundo esto insatisfeitas com ademocracia. Mas o paradoxal que ela feitaexatamente para isso! A democracia est longe deser um sistema acabado ela um sistema emconstruo permanente. como se tivssemos umcanteiro de obras que no acaba nunca. O queprecisamos entender que no existe a obraacabada. Nunca chegaremos l. E isso bom.

    Quando pararmos de pensar em termosabsolutos e entendermos melhor o pragmatismo dapoltica, viveremos a democracia de um modomuito mais realista e verdadeiro (vamos acabar

  • com a corrupo se transformar, por exemplo,em vamos monitorar constantemente aqueles queusam verbas pblicas para que a corrupodiminua, um objetivo bem mais vivel). Nostornaremos mais cticos, porm mais vigilantes.Infelizmente, para alguns, seremos menosidealistas, contudo, mais ativos.

    Ressalto que isso no matar utopias. Asutopias devem sempre permanecer vivas para quesirvam como faris a nos guiar. Mas utopias soconstrudas por pequenos atos que se transformamem grandes atos. A mudana comea na relaocom o local, com aqueles prximos, com a nossavida cotidiana. A democracia tambm assim, umprocesso que tem avanos (e, infelizmente,recuos!). Mas construda aos poucos e nutrida otempo todo.

    Chegar l no importante. O importante sempre andar. E para a frente.

  • Massas em buscade um cordeiro

    No existe terror no estrondo, apenas na antecipao dele.

    Alfred Hitchock

    As manifestaes que paralisaram o Brasil, em2013, bestificaram os estudiosos. As massas queforam s ruas deram o pontap inicial ao seinsurgirem contra os vinte centavos aumentadosnas passagens de nibus. Muitos tentaramidentificar se isso era apenas um aporte paraoutras demandas: mas todos erraram. At agora,ningum foi capaz de medir o pulso e a febre dasdemandas populares.

    Bem: fim de ideologia no novidade. O termo,originalmente, foi criado por Albert Camus. Geroun obras, dos anos 1950 para c: O Deus queFalhou, de R.H. Crossman (com textos deKoestler, Silone, Gide, entre outros), um punhadode ensaios de Arthur Koestler e Ignazio Silone, o

  • famoso O pio dos intelectuais, de RaymondAaron e The End of Ideology on the exhaustion ofPolitical Ideas in the Fifties, de Daniel Bell,lanado em 1960 e agora relanado pela HarvardUniversity Press.1 O problema que, hoje,avanou a interpretao do fim das ideologias, queora ganha o status de perda de sentido, deirracionalismo, sobre o que h o belssimo extratode Srgio Paulo Rouanet:

    No podemos falar em clima irracionalista semfalar em atores que o defendam ou em suportes queo sustentem. Um tanto impressionisticamente,diramos que esses suportes incluem, por exemplo,subculturas jovens, em que o rock funciona comoinstrumento de sociabilidade intragrupal e decontestao geracional do sistema. Nelas, osesteretipos de uma formao livresca socontrapostos a imagem da educao pela prpriavida. Reconstitui-se, espontaneamente, sem que osjovens saibam disso, a polarizao clssica entre avida e a teoria, que floresceu, por exemplo,n o Sturm und Drang, no romantismo, no atualmovimento ecologista e em outras correntes direta

  • ou indiretamente influenciadas pela mxima deGoethe cinzenta toda teoria, e verde apenas arvore esplndida da vida. Incluem tambm algunsintelectuais, que no hesitam em desqualificar arazo, de modo quase sempre indireto, sob ainfluncia de certos modismos, como a atual vaganeonietszchiana. E incluem determinadosmovimentos e partidos polticos, que tendem arecusar a teoria e fetichizar a prtica. Teramosassim, do ponto de vista dos atores, algo como umirracionalismo comportamental, um irracionalismoterico e um irracionalismo poltico.

    Poderia-se ainda teorizar o tema naquilo queNietzsche chamava de ketten-denken, ou pensadorem cadeia, o que serve para todo aquele queadapta, sua maneira, qualquer estrato ideolgicoperdido por a (ver aforisma 376 de Humano,demasiadamente humano).

    ***Cada poca cria a ideologia de que tem

    necessidade. Em sua biografia, Ozzy Osbournenota: sua banda Black Sabbath ensaiava, nos

  • primrdios, ao lado de um cinema, na periferia deLondres, que lotava somente quando filmes domais arrevesado terror eram exibidos. Foi assimque o Black Sabbath passou a adotar aindumentria das trevas. Ozzy comeou a ganharmuito dinheiro porque, refere, as pessoas temnecessidade de sentir medo: e pagam por isso.

    Martin Heidegger, quarenta anos antes, ia porum caminho semelhante. Diferenciava o medo daangstia. Para ele, o medo se assenta sobre umobjeto. A angstia repousa no nada. As pessoaspagam o que for, os diabos, para sarem do estadode angstia e irem para o de medo. Tecnicamente,busca-se um bode expiatrio sobre o qual purgam-se os males. Bruxa de Blair fez tanto sucessoporque explorava a angstia, o nada, talvez pelaprimeira vez em Hollywood: aquilo a que Freudchamava de objeto fbico no era mais umtubaro, um Jason: era o nada, o vento, a natureza(de resto, a palavra pnico vem de pan, o medoprimevo da natureza).

    Ditadores erigem seus discursos apontandobodes expiatrios palpveis. No falamos para

  • dizer algo, mas apenas para produzir algumefeito, notava o ministro da Propaganda de Hitler.Essa coisa chamada ser humano gosta de quem lheaponta o bode a ser culpado, o que nos d umaconscincia de palpabilidade. Medo sem cara noserve. Le Bon, Freud, Wilhelm Reich, EliasCanetti e Ortega Y Gasset falaram a mesma coisacom quinze anos de espao: o povo se rene eapoia o lder que lhe mostra o objeto sobre o qualpurgaremos nossos medos.

    A tese de doutorado do jornalista IgnacioRamonet, do Le Monde Diplomatique, escrita htantos anos, diz melhor e mais. Indica que, empocas de crise, o cinema atrai o populachopurgando-lhe os medos reais com medosimaginrios ainda mais terrveis. Foi depois dacrise da Primeira Guerra Mundial que a Repblicade Weimar produziu o clima para Nosferatu, paraFritz Lang e para os terrores e monstruosidades empreto e branco de Murnau. Os monstros clssicosdo cinema japons, Grgula, Monstro da Bomba He Godzilla, vieram depois de Hiroshima eNagasaki. A crise do petrleo de 1973 gerou a

  • primeira filmagem do Destino do Poseidon,Tubaro e Inferno na Torre , a partir de 1975. Omedo da virada do milnio, de 2000 para 2001,nos trouxe Mar em Fria e Independence Day.Hollywood tambm buscou outros panegricos:quando a autoridade federal entra em crise nosEstados Unidos, a partir de 1973, com o casoWatergate, a indstria de cinema gringo convida asminorias a serem, nas telinhas, heris federais: otira grego Kojak, o tira negro Shaft e os tirasitalianos Columbo e Serpico.

    H uma boa forma de se ganhar dinheiro comisso: escolha um inimigo, invada seu pas, escoe asua produo encalhada. Satanize o inimigo e gerelucro. Vejamos a obra Le bonheur economique, deFrancois-Xavier Chevallier (1998). Ele nos contacoisas nada animadoras, com base nas teorias dosciclos, do economista russo Kondratiev. Para oeconomista, avano tecnolgico e reduo detempo de produo resultam guerras einstabilidades bem localizadas para lastrear aproduo encalhada pela reduo de seu tempo demanufatura. Nessa viso, a Revoluo Industrial

  • teria gerado, a partir de 1783, e seguindo oeconomista, o crack na Bolsa de Londres e aRevoluo de 1830. A introduo da qumica doferro, a partir de 1837, deu empuxo Revoluode 1848, Guerra de Secesso nos EstadosUnidos e ao crack de Viena. A qumica pesada, noincio do sculo XX, teria potencializado e geradoa Primeira Guerra Mundial, o crack de 1929 emNova York e a Revoluo de 1930, no Brasil.

    Quando ocorreu a invaso de Kosovo, em abrilde 1999, para tirar-se da mdia o escndaloMonica Lewinsky (a tese e do brilhante jornalistaPhillip Knightley, autor de First Casualty), a entosecretria de Estado dos EUA, MadeleineAlbrigth, comemorou que a antiga Iugoslvia seriaum timo mercado para se escoar a produo dopas... Hosni Mubarak e Muamar Khadafi serviramaos Estados Unidos dentro daquela tica pela qualo ex-presidente Roosevelt definia o ditadornicaraguense como um filho da puta, mas o nossofilho da puta.

    Desde que Gustave Le Bon escreveu em 1905Psicologia das massas, obras correlatas, seja em

  • Freud, Reich, Ortega Y Gasset, Canetti, apontarampara o mesmo caminho: as massas se renem emtorno do lder que se lhes aponta um inimigo a sercombatido.

    H dez anos o jornalista americano BobGarfield se meteu na anlise do numerrio sobredoenas graves publicadas no espao de dozemeses nos jornais Washington Post , New YorkTimes e USA Today . Os nmeros eram de causarno s medo, mas, sobretudo, escrnio: 53 milhesde americanos com doenas cardacas, 53 milhescom enxaqueca, 25 milhes com osteoporose, 16milhes com obesidade, 3 milhes com cncer.Outros lotes de doentes compreendiam doenasno to comuns, como 10 milhes sofredores dedisfuno da articulao temporomandibular e 2milhes sofredores de distrbios cerebrais.2

    Ao somar os nmeros, Bob Garfield chegou concluso de que 543 milhes de americanos estomuitssimo doentes num ano em que a populaodos Estados Unidos era de 266 milhes de almas.E o escrnio no parou por a. Jim Windolf, entoeditor do New York Observer , notou que Garfield

  • havia subestimado os pacientes noticiados comenfermidades mentais, 53 milhes. Nas contas deWindolf, havia, segundo a mdia americana, mais10 milhes de sofredores de disfuno dapersonalidade limtrofe, mais 11 milhesacometidos de compulso sexual, outros 12milhes com o que se chama de sndrome daspernas inquietas. Ou seja: onde Garfield viu 53milhes, a partir da anlise das publicaes,Windolf encontrou um numerrio de 152 milhesde doentes. O que eleva o nmero de doentes dosEstados Unidos para quase trs vezes a populaodo pas. Todos esses nmeros constam na obraCultura do medo, do socilogo Barry Glassner.

    O pessoal papo-cabea costuma dizer que umdos piores males da mdia que, alm de mentir, adisposio de situaes-limite, para o espectador,acaba reforando a crena na autoridade o que igual, dizem, a autoritarismo. Vamos supor queessa teoria fosse falha, aviltante. Outro dia meconvenci dela. Assistindo, no canal AXN, ao TheMost amazing Videos, ou coisa que o valha, noseram mostrados cidados bem de vida, do meio

  • oeste americano. Estveis, quase gordos, rosados,carres, casa grande, filhos, ces to saudveisquanto os donos (ou mais que eles). De repente, naundcima hora do dia, acontece o pior: vem umtornado, um ciclone, colhe torpemente a famlia.Eles ficam tocaiados pela natureza. Depois dehoras de indeciso, pnico e sofrimento,autoridades devidamente paramentadas salvam acena aquilo que no teatro greco-romano sechama de Deus ex machina, a entidade que salva atudo e a todos, vinda dos ares, bem no finalzinhodo espetculo. No final da cena, com a famliadevidamente resgatada, eis que apareceu no AXNum xerifinho de meia-idade, queixo obsceno, olharrtilo, que, ao apontar um dedo pra cmera,repousa a mo sobre a estrela de xerife e dispara:Veja, confie sempre, sempre na autoridade.

    Se voc enveredar ainda pelo papo-cabea,mais profundo, ver que muita gente escreveusobre o medo de uma maneira sumamentefilosfica. Por exemplo: o filsofo alemo MartinHeidegger. Ele costumava se perguntar: Como sediferencia aquilo diante de que se angustia a

  • angstia diante daquilo de que se atemoriza omedo? Traduzindo: Heidegger notava que o medotem um objeto sobre o qual se erige. A angstiano: ela se constri sobre o nada. Da mesmaforma, psicanalistas diferenciam a nostalgia damelancolia: a primeira que fala ai, quesaudades da minha namorada; a segunda a quese pergunta como deve ser legal ter umanamorada. Portanto, a angstia est para amelancolia assim como o medo est para anostalgia. por isso que o filme A bruxa de Blairfez tanto sucesso. Aquilo no impe um medoerigido sobre um objeto real: uma angstia quese erige em torno do nada, de simples galhinhos dervore.

    Ao analisarmos num primeiro momento odiscurso de George Walker Bush, vemos que aretrica dos Estados Unidos, a partir de 11 desetembro de 2001, era construda sobre o medo:sobre terroristas de carne e osso que fizeram osatentados. Num segundo momento, o discursopassa a ser genrico: saem de cena osterroristas, entra o terror. o upgrade do

  • medo para a angstia. Da mesma forma, nossosapresentadores de assuntos policiais, ao esgotarama trapaa de mostrar a cara do bandido no ar,comeam a variar: trocam a cara do bandido peloemprego da criminalidade, dos criminosos.Trocar medo por angstia a estratgia que maistem dado certo para convencer o populacho do quequer que seja.3

    A falta de um objeto fbico, como notava Freud,inevitavelmente far com que as massasbrasileiras se voltem ao lder que se lhes apontar oque devem temer.

    As massas que protestaram contra os R$ 3,20 datarifa de nibus no pararam ali: seguem, em 2014,destruindo nibus, portas de vidro de bancos,carros, o diabo. Estamos a um passo de um climaque gerou o nazifascismo. O lder que souber lidarcom esse desassossego das massas conquistar oreino dos cus: ou um reich de mil anosNotas:

    1. Ver:http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/showNews/jd120220031.htm

  • 2. Ver:http://www.brasil247.com/pt/247/cultura/935/Medo-e-angstia-Ozzy-Osbourne.htm

    3. Ver:http://www.ucho.info/Colunistas/Tognolli/medo_terror.htm

  • Black blocs,uma histria

    As manifestaes que tomaram as ruas do Brasila partir de junho de 2013 deram uma projeoindita a uma ttica militante at ento poucoconhecida no pas: os black blocs. A atuao,durante os protestos, de grupos de ativistas com orosto coberto e vestidos de preto que passaram aenfrentar a polcia e destruir smbolos capitalistas,como bancos e lojas de luxo, deixou perplexa umaelite que por um momento acreditou que asmanifestaes poderiam ser instrumentalizadaspara derrubar o governo do PT.

    Ao se dar conta de que o movimento de junhono poderia ser transformado em uma rebeliopopular contra o governo federal, a direita sevoltou contra os mascarados infiltrados. Estesestariam desvirtuando as legtimas aspiraesdemocrticas dos cidados de bem que haviamtomado as ruas em junho. At a, nenhuma

  • novidade. O problema foi que parte da esquerdagovernista tambm passou a atacar os blackblocs, acusando esses militantes de estarem aservio da direita e, em alguns casos, chegandoao extremo de tax-los de fascistas eterroristas, tudo isso porque ousaram se insurgircontra certos desmandos do governo do Partidodos Trabalhadores (PT). O resultado desse duplomovimento foi uma verdadeira caa s bruxascontra os vndalos do black bloc, campanha queem seus momentos mais histricos chegou a clamarpela aprovao de uma lei antiterrorismo noBrasil.

    Essa histeria coletiva foi causada, em grandeparte, pela falta de disposio dos crticos emcompreender um fenmeno que eles julgam novo emisterioso. Ao no conseguir enquadrar essaforma de militncia poltica em esquemastradicionais, a direita e certos setores da esquerdamais tradicional se uniram no medo diante dodiferente. O black bloc, no entanto, no nem umanovidade, nem um mistrio. Trata-se de uma tticamilitante surgida h mais de trinta anos e sobre a

  • qual h vasto material de pesquisa disponvel.Conhec-lo melhor s uma questo de vontadepoltica.Ttica militante

    Um primeiro problema do debate sobre os blackblocs no Brasil uma incompreenso generalizadada natureza poltica do fenmeno. Acostumados areduzir a poltica ao universo das instituiestradicionais, a maior parte da imprensa e o sensocomum do pas teimam em ver o black bloccomo um grupo estvel do qual fariam parte umacerta quantidade de membros permanentes queestariam, em ltima anlise, agindo para de algumaforma ajudar ou prejudicar determinadas foraspolticas nas eleies presidenciais de 2014. Estaviso demonstra o grau de ignorncia dessessetores em relao ao fenmeno.

    O black bloc no uma organizaopermanente, mas sim um bloco de militantesvestidos de preto e com o rosto coberto que seorganizam temporariamente para proteger umamanifestao dos violentos ataques da polcia e

  • realizar aes diretas de destruio de smboloscapitalistas. A formao de um black bloc,portanto, uma ttica, uma ferramenta usada porcertos militantes para se defender da violnciapolicial e atacar os smbolos de uma ordem socialpor eles considerada injusta e absurda.

    O Black Bloc um evento, uma fora que seaglutina e se dissolve de acordo com o consensodos envolvidos na ao. [...] No um clube deelite, um convite a qualquer um que queiraparticipar da destruio de um sistema mundialinjusto e desnecessrio, escrevem Xavier Massote David van Deusen, membros do coletivoanarquista norte-americano Green Mountain eintegrantes de vrios black blocs formados nosEstados Unidos ao longo dos anos 1990 e 2000(Massot e Van Deusen, p.1).

    Como explicam Massot e Van Deusen, o blackbloc no , ele mesmo, uma organizao poltica,mas sim um grupo informal que atua como umaala de ao radical de um movimento de protestomais amplo. [...] Precisa ficar claro que aformao [dos primeiros black blocs] no

  • representou o nascimento de uma organizaoformal ou contnua. Eles simplesmente agem comoum agrupamento temporrio com o objetivoimediato de criar um contingente temporrio decombate de rua, que na prtica se dissolve com ofim da ao planejada (Massot e Van Deusen,p.9).

    Um black bloc, portanto, no um fim em simesmo, mas sim um instrumento de uma luta socialmais ampla. O surgimento da ttica black bloc fezparte de um processo muito maior dequestionamento das formas tradicionais departicipao poltica e de criao de novas formasde atuao no espao pblico que se desenvolveuno seio da contracultura europeia entre as dcadasde 1960 e 1980.O brao armado da contracultura

    O ponto de partida desse processo dequestionamento da velha poltica foi a crescenterejeio da juventude s formas tradicionais deorganizao poltica a partir do incio da dcadade 1960. Os acordos das duas grandes potncias

  • mundiais Estados Unidos e Unio Sovitica aofim da Segunda Guerra Mundial dividiram omundo em dois blocos estanques: o socialista, noLeste; e o capitalista, no Oeste. Em virtude do seualinhamento a essa geopoltica da Guerra Fria, ossindicatos e partidos da Europa Ocidental foramaos poucos perdendo sua legitimidade comoinstrumentos de transformao da sociedade.

    Na dcada de 1950, quando os militantessindicais e partidrios ainda eram sobreviventesda Segunda Guerra e se lembravam perfeitamentedos horrores do conflito, o pacto de no agressoentre Estados Unidos e Unio Sovitica pareciafazer todo o sentido. Mas, nos anos 1960, quandouma nova gerao nascida durante ou aps oconflito mundial comeou a entrar no mercado detrabalho, a poltica de convivncia pacfica que ospartidos e sindicatos transmitiam para seusmilitantes comeou a ser fortemente contestada.

    Apesar de as condies materiais de vida teremmelhorado muito na Europa com o boomeconmico do ps-guerra, as contradies internasdo sistema capitalista no foram eliminadas. O

  • sistema continuava a funcionar com base naexplorao da maioria em benefcio de umaminoria, s que agora a abundncia material nospases desenvolvidos permitia que o trabalhadorfosse integrado como consumidor. Os tempos depenria haviam passado (pelo menos em boa partedesses pases), e as desigualdades e injustiassociais agora podiam ser escamoteadas pelapromessa de acesso a um nmero cada vez maiorde mercadorias.

    A ideologia dominante passou a tentarconvencer o trabalhador de que ele no era maisexplorado, mas sim um feliz participante dasociedade de consumo, ainda que no tivessepoder para decidir os rumos dessa sociedade. Omodus operandi do capitalismo contemporneo amercantilizao e o consumismo. Assim, umaalienao intensificada, e no mais a pobreza(ainda que a pobreza continue a ser umaimportante fora motivadora), torna-se amotivao primria para a revoluo social. [...] Aalienao cria suas prprias brechasrevolucionrias (Massot e Van Deusen, p.22).

  • At a dcada de 1930, os sindicatos e partidosda classe trabalhadora haviam sido os principaisinstrumentos de luta contra o sistema capitalista,mas a geopoltica da Guerra Fria mudou isso naEuropa Ocidental. Tanto os partidos comunistas alinhados a Moscou quanto os social-democratas muitos deles alinhados aos Estados Unidos , eseus respectivos sindicatos, concordavam que oimportante era manter o equilbrio de forasmundial. Para isso, os impulsos anticapitalistas naesfera de influncia norte-americana tinham de sercontidos.

    Ao se deparar com essa situao, os jovenseuropeus da dcada de 1960 comearam a se darconta de que a poltica tradicional no era maiscapaz de dar vazo a seus anseios. Elesprecisavam criar formas prprias de organizao eexpresso, e esse movimento se deu inicialmenteno campo da cultura, por meio da contestao dosvalores da sociedade dominante.

    Massot e Van Deusen explicam o processo daseguinte maneira: Esse aumento necessrio daalienao em massa abriu um novo (e mais

  • maduro) front social dentro da contnua lutarevolucionria. Assim, a ascenso damercantilizao e do consumismo radicais foiacompanhada pela ascenso da contracultura. Issono coincidncia. A contracultura uma reaonatural contra esse sistema e tambm aencarnao viva da revoluo social comconscincia de classe. Ela se desenvolve comouma resposta natural alienao intensificadaproduzida por esse sistema. A contracultura setorna uma base de vida rebelde habitada poraqueles [...] que se tornaram ou foram tornadosconscientes das falcias bsicas e da naturezaopressiva do sistema econmico e social maisamplo (Massot e Van Deusen, p.23).

    Desse ponto de vista, a ideia de cultura no seresume a um conjunto de expresses artsticas. Elase refere a um modo de vida, a um conjunto deprticas que engloba todos os aspectos daexistncia cotidiana. Sociologicamente, acontracultura se manifesta como uma unidadeorgnica e consciente de todas as atividades queconstituem a forma natural, inspiradora, da

  • identidade humana. Diferentes aspectos da vidacotidiana, como relaes sociais, moradia,economia, lazer, e, finalmente, a poltica, sotodos integrados em uma nica, porm diversa,comunidade alternativa [...] baseada na rejeio damercantilizao, do consumismo e doautoritarismo (Massot e Van Deusen, p.23).

    Entendida dessa forma, a contracultura umanegao da sociedade dominante no interior dessaprpria sociedade. Nesse contexto, acontracultura s pode se realizar plenamente serejeitar a sociedade dominante como um todo. [...]Assim, pela sua prpria existncia, a contracultura uma fora de oposio ao seu outro socialmentedominante. Nesse sentido, uma fora destrutiva.No entanto, para de fato ser uma fora deoposio, ela tambm precisa construiralternativas criativas a esse sistema. [...] Sem secomprometer com essa construo, a contraculturaseria incapaz de desafiar o vazio sobre o qualrepousa todo o sistema de opresso. [...] Nesse atode criao, ela busca materializar as relaessociais que a queda do atual sistema tornar

  • plenamente realizveis. Nesse sentido, acontracultura um experimento social delibertao. [...] a formao da revoluo socialantes da revoluo poltica (Massot e VanDeusen, p.24-5). Ou, seja: trata-se da formaoda nova sociedade no seio da antiga, como diziaum slogan dos International Workers of the World(IWW), sindicato revolucionrio surgido nosEstados Unidos no comeo do sculo XX.

    Como se desenvolve no interior da sociedadedominante, a contracultura restringida pelas leise foras repressivas desta. Por isso, deverepresentar uma ameaa constante ao sistemadominante, pois precisa buscar a eliminaodessa fora opositora para se realizar plenamente.Nesse sentido, ela mais do que uma deciso dese organizar de uma determinada maneira. umafora revolucionria (Massot e Van Deusen,p.25). Uma contracultura que no busca aeliminao da sociedade dominante torna-se umasubcultura que, apesar de se orientar por algunsvalores prprios, facilmente absorvida pelosistema e torna-se um gueto mais ou menos extico

  • (Massot e Van Deusen, p.25).Para confrontar a sociedade dominante, as

    comunidades alternativas da contraculturaprecisam de um instrumento de luta, e a queentram os black blocs. [ aqui que certas pessoase coletivos] devem transcender sua relativapassividade por meio da resistncia violentacontra a represso que sofre assim como contra arepresso dirigida contra os pobres e a classetrabalhadora como um todo. [...] Esta uma dasformas de sua expresso poltica direta. Ela diferente da maior parte das suas outras atividadespolticas, que normalmente giram em torno decampanhas especficas e trabalho comunitrio. Eaqui [essas pessoas e coletivos] se fortalecem aovivenciar experincias de luta direta, concreta,contra certas facetas de seu inimigo (Massot eVan Deusen, p.28).

    Dentro da perspectiva apresentada por Massot eVan Deusen, portanto, o black bloc pode serconsiderado uma espcie de brao armado dacontracultura. Mas quais foram as condiessociais, polticas e histricas concretas que

  • levaram ao surgimento desse fenmeno? Pararesponder a esta pergunta preciso fazer umaviagem cidade onde a geopoltica da Guerra Friano era apenas uma abstrao, mas uma realidadeabsolutamente concreta e sufocante: a Berlim dosanos 1960.A contracultura na AlemanhaOcidental

    Em nenhum outro pas a diviso do mundo entreas esferas de influncia norte-americana esovitica foi to profunda quanto na Alemanha. Aprpria nao europeia foi dividida em duas umaparte ocidental capitalista e uma parte orientalsocialista e Berlim, a capital alem, quepermaneceu sob ocupao estrangeira por todo operodo da Guerra Fria, tambm foi dividida emum setor capitalista e outro socialista. A cidade,alis, abrigava a encarnao mais palpvel dageopoltica do ps-Segunda Guerra Mundial: oMuro de Berlim. Se nos outros pases da EuropaOcidental os acordos entre as grandes potnciaspesavam sobre a vida poltica, na Alemanha eles

  • eram praticamente uma clusula ptrea. Pois foijustamente ali que o questionamento da velhapoltica atingiu um dos mais altos nveis deradicalismo.

    Aps o fim da Segunda Guerra Mundial, oespao para a contestao poltica na Alemanhacomo um todo era restrito. No lado oriental,alinhado Unio Sovitica, essa margem erapraticamente inexistente, pois o governo stalinistado pas perseguia ferozmente qualquer tipo deoposio. No lado ocidental, alinhado aos EstadosUnidos, foi implantado um regime teoricamentedemocrtico que garantia espao oposiopoltica, desde que esta no questionasse osprincpios da Guerra Fria.

    ***Durante vinte anos aps o fim da Segunda

    Guerra Mundial, a Alemanha Ocidental foigovernada pela Unio Democrata-Crist (CDU, nasigla em alemo), o partido da direita local.Durante esse perodo, o Partido Social-Democratada Alemanha (SPD, na sigla em alemo),

  • representante da esquerda moderada, foi a voz daoposio oficial. Em 1966, no entanto, o SPDentrou para o governo, formando uma grandecoalizo com a CDU que praticamente acaboucom o dissenso no interior do Parlamento. Dali emdiante, qualquer voz dissonante s poderia vir dasruas (Katsiaficas, p.99). E ela veio.

    A oposio extraparlamentar na AlemanhaOcidental comeou a ser articulada pelomovimento estudantil organizado na FederaoAlem dos Estudantes Socialistas (SDS, na siglaem alemo). Inicialmente, a SDS era a ala jovemdo SPD, mas com a entrada dos socialistas para ogoverno a entidade comeou a se tornar cada vezmais independente de qualquer partido poltico(Katsiaficas, p.99).

    A ciso se aprofundou a partir do momento emque a SDS passou a se engajar em campanhas quedesafiavam abertamente os acordos do ps-Segunda Guerra Mundial, como mobilizaescontra a Guerra do Vietn que comearam aquestionar a ingerncia dos Estados Unidos napoltica interna da Alemanha Ocidental e a

  • denncia da presena de ex-nazistas nas fileirasdos partidos governantes (Katsiaficas, p.99).

    Esse distanciamento das organizaes polticastradicionais levou a SDS a seguir uma linha cadavez mais autnoma, organizando crescentesmanifestaes contra o governo que culminaram narevolta estudantil de maio de 1968 na AlemanhaOcidental. Passado o clmax das manifestaes, oaumento da represso e divises internas levaram dissoluo da SDS em 1970. Mas a disporada entidade deu origem a diversos grupos quecontinuariam a desafiar o status quo no pas.

    Um grupo abraou abertamente o militarismo efundou, em 1970, a Frao do Exrcito Vermelho(RAF, na sigla em alemo), guerrilha urbana cujosobjetivos declarados eram combater oimperialismo (representado pela ingerncia norte-americana) e o governo da Alemanha Ocidental,que eles consideravam a continuao de um Estadofascista, devido presena de ex-nazistas naadministrao pblica.

    Enquanto isso, outra ala da antiga SDS passou ase engajar no movimento contracultural

  • antiautoritrio que, no comeo dos anos 1970,comeou a promover ocupaes de imveisabandonados nas principais cidades da AlemanhaOcidental, como Munique, Frankfurt, Colnia,Hamburgo e Berlim. O movimento se tornouparticularmente forte em Kreuzberg, bairro deBerlim com uma grande comunidade de imigrantesturcos (Katsiaficas, p.100).

    Outra importante vertente contracultural queemergiu das mobilizaes da SDS foi o movimentofeminista. A partir da militncia nos meiosestudantis e influenciadas pelos debatesinternacionais, um grupo de mulheres se deu contade que as situaes de opresso vividas pelo sexofeminino no eram devidamente reconhecidascomo um trao a ser combatido por seus colegashomens, e percebeu que era preciso abrir umafrente de luta especificamente pelos direitos damulher. A primeira grande campanha na qual osgrupos feministas se engajaram foi peladescriminalizao do aborto, a partir de 1969.

    A mobilizao pela descriminalizao doaborto criou um meio militante formado por

  • diversos grupos feministas que no se sentiamrepresentados por nenhum partido. As mulheresenvolvidas na campanha perceberam na prticaque no podiam esperar grande coisa dasinstituies e mesmo das organizaes polticastradicionais, e por isso, a partir de 1974,comearam a criar centros femininos autnomos eautogestionrios onde no era permitida a entradade homens (Katsiaficas, p.105).

    Finalmente, uma terceira vertente dacontracultura alem comeou a se formar emmeados da dcada de 1970: o movimento contra aconstruo de usinas nucleares. Para o governo, oinvestimento em centrais de energia atmica erauma medida necessria para abastecer a indstriada Alemanha Ocidental e sustentar o enormecrescimento que o pas havia experimentado desdeo fim da Segunda Guerra Mundial. Logo, o temafoi tratado apenas como uma questo tcnica, equando a poltica de energia atmica foiapresentada ao Parlamento, em 1975, os deputadosmal se deram ao trabalho de debat-la(Katsiaficas, p.112).

  • O desinteresse dos polticos, no entanto, foiacompanhado por uma preocupao crescente dapopulao. J em 1972 comeou a se formar ummovimento de oposio construo da usina deWyhl, na regio da trplice fronteira entreAlemanha, Frana e Sua, e quando a centralcomeou a ser erguida, em fevereiro de 1975,centenas de ativistas ocuparam o canteiro de obraspara interromper os trabalhos. Nos dias seguintes,alguns dos manifestantes construram umacampamento no local, tornando a ocupaopermanente (Katsiaficas, p.113). Graas mobilizao, a construo da usina foi suspensa.

    A ocupao de Wyhl se tornou uma refernciapara o movimento antinuclear e foi reproduzida emoutros locais onde estava programada a construode usinas nos anos seguintes. O movimento foicrescendo at culminar na mobilizao paraimpedir a construo de um depsito de lixoatmico no municpio de Gorleben, na regio deWendland, em 1980.

    No dia 3 de maio daquele ano, cerca de 5 milativistas comearam a construir um acampamento

  • no local onde o depsito estava sendo construdo.O canteiro logo se transformou em uma verdadeiracidade formada por casas feitas dos restos dasrvores j derrubadas durante a obra e a rea foitransformada na Repblica Livre de Wendland,uma comunidade alternativa que durante um msaboliu qualquer sistema de governo ou trocamonetria.

    Os fazendeiros locais, 90% dos quais eramcontra o depsito de lixo atmico, forneciamcomida e outros materiais aos milhares deresidentes-ativistas para ajudar a construir arepblica. Passaportes foram expedidos com onome da nova repblica, programas de rdioclandestinos eram transmitidos e jornais eramimpressos e distribudos por todo o pas. Falandopessoalmente, Gorleben foi um dos poucosmomentos em que me senti em casa na vidapblica alem. Ao contrrio da vida cotidiananormal, eu no me senti um forasteiro. Ningum metratava como um turco ou me censurava por eu sernorte-americano. Na verdade, as identidadesnacionais foram temporariamente suspensas, dado

  • que todos ramos cidado da Repblica Livre deWendland e no devamos lealdade a nenhumgoverno. Nos tornamos seres humanos no maisprofundo sentido do termo, dividindo comida emoradia fora do sistema de trocas monetrias. [...]Os wendlanders viviam juntos no s paraconstruir uma forma de confrontao, mas tambmpara criar um espao autnomo de autogovernopor meio da discusso poltica, conta GeorgeKatsiaficas, socilogo e ativista norte-americanoque participou da Repblica Livre de Wendland(Katsiaficas, p.114).

    Finalmente, no dia 3 de junho de 1980, o maiorcontingente policial mobilizado na Alemanhadesde os tempos de Hitler chegou a Gorleben paraexpulsar os ativistas. Cerca de 8 mil policiaisatacaram violentamente ativistas que resistiamsentados pacificamente no canteiro de obras dodepsito de lixo atmico. Por fim, o local foievacuado, as casas da Repblica Livre deWendland, destrudas, e a rea foi completamentecercada com arame farpado (Katsiaficas, p.115).

    No entanto, as imagens da violncia policial

  • chocaram a Alemanha Ocidental e provocaramuma onda de solidariedade aos ativistas deGorleben. Imediatamente, manifestaes em apoioao movimento pipocaram pelo pas, e ao final deuma marcha em Berlim, representantes daRepblica Livre de Wendland convocaram apopulao a ocupar parques e prdios vazioscomo forma de dar continuidade luta. A luta emGorleben tinha criado um ncleo radical deresistncia que contava com uma filiao nacional.Uma mistura heterognea de ecologistas,feministas, estudantes, jovens e agricultores sefundiu em um movimento extraparlamentar deresistncia poltico-cultural no s s usinasnucleares, mas a todo o sistema que estava por trsdelas (Katsiaficas, p.115). A partir de ento,esses diferentes grupos passaram a se identificarcomo o movimento autnomo. Assim surgiram osautonomen (autnomos, em alemo). Eles noesperariam mais sentados a polcia avanar comseus cassetetes. Daquele momento em diante,dariam o troco.O surgimento do Black bloc

  • Como qualquer fenmeno social noinstitucionalizado, difcil situar com preciso onascimento do black bloc. De acordo com umrelato publicado em 2005 na revista eletrnicaTrend por um annimo que assina como sturmund drang (tempestade e mpeto, em alemo referncia ao movimento romntico germnico dosculo XVIII), a primeira vez que o termoschwarzer Block (bloco negro, em alemo) foiusado para designar esse tipo de ttica foi em umaconvocatria lanada por um grupo anarquista deFrankfurt para a marcha de 1 de maio na cidadeem 1980.

    Segundo o relato, a convocatria para participardo schwarzer Block foi lanada depois de umviolento enfrentamento ocorrido no ano anteriorentre a polcia e um grupo de militantesantifascistas que haviam impedido uma marchaanual de neonazistas. Esses militantes se vestiamde preto, usavam capacetes e carregavam bastes(Sina Rahmani).

    ***

  • Independentemente da data exata de nascimentodo black bloc, o fato que, depois de Gorleben, omovimento autnomo na Alemanha Ocidentalcomeou a se organizar cada vez maisinternamente e a se preparar para enfrentar apolcia. Em 1980, j havia 165 imveis ocupadosem Berlim, a maioria deles no bairro deKreuzberg. Em maro daquele ano foi criado oconselho das ocupaes da cidade para coordenarmelhor as aes do movimento, e em dezembro apolcia lanou um violento ataque contra asocupaes de Berlim. Em uma nica noite, 12 dedezembro de 1980, mais de cem pessoas forampresas e mais de duzentas foram feridas nosenfrentamentos e barricadas que tomaram as ruasda cidade (Katsiaficas, p.119).

    Assim como a desocupao de Gorleben, oataque da polcia s ocupaes de Berlim desatouuma onda de solidariedade em toda AlemanhaOcidental, e um grupo de squatters (expresso emingls usada para identificar quem participa deuma ocupao) de Freiburg convocou um dia demanifestaes em solidariedade s ocupaes em

  • todo o pas e contra os ataques policiais. No diamarcado sexta-feira, 13 de maro de 1981 protestos pipocaram por todas as grandes cidadesda Alemanha Ocidental e foram acompanhados porviolentos enfrentamentos entre manifestantes e apolcia. Em Berlim, uma sofisticada rea decomrcio no centro da cidade foi depredada pelosativistas. Devido violncia dos confrontos, o diaficou conhecido como sexta-feira negra(Katsiaficas, p.120).

    Na mesma poca, a nova atitude do movimentoautnomo diante da represso se manifestoutambm nas mobilizaes antinucleares. Emfevereiro de 1981 foi retomada a construo deuma usina no municpio de Brokdorf, no norte daAlemanha Ocidental a obra havia sidointerrompida por uma mobilizao popular em1976. Ao saber do reincio dos trabalhos no local,os ativistas organizaram uma marcha de 100 milpessoas que chegou ao canteiro de obras no dia 28de fevereiro. Cerca de 20 mil policiais forammobilizados para defender a rea, mas dessa vezos militantes no estavam dispostos a

  • simplesmente fazer uma ao direta pacfica. Elespartiram para cima dos agentes do Estado echegaram at as grades que protegiam o canteirode obras, atacando-o com paus, pedras e coquetismolotov. No fim do dia, o canteiro de obraspermanecia intacto, mas o movimento contra aenergia nuclear havia atingido um novo nvel deresistncia. A passividade e a no violncia deGorleben havia dado lugar confrontao ativa(Katsiaficas, p.115). O black bloc havia entradoem cena.A globalizao da resistncia

    Da Alemanha, a ttica se difundiu pelo restanteda Europa, e, no fim dos anos 1980, chegou aosEstados Unidos, onde o primeiro bloco negro foiorganizado em 1988, para protestar contra osesquadres da morte que o governo americanofinanciava em El Salvador (Massot e Van Deusen).Ao longo dos anos 1990, outros black blocs seorganizaram nos Estados Unidos, mas a tticapermaneceu praticamente desconhecida do grandepblico at que um bloco negro se organizou para

  • participar das manifestaes contra a OrganizaoMundial do Comrcio em Seattle em novembro de1999. Graas ao desse black bloc, a tticaganhou as pginas dos grandes jornais no mundointeiro, principalmente porque, a partir de Seattle,os black blocs passaram a realizar ataquesseletivos contra smbolos do capitalismo global.

    A mudana se explica pelo contexto em que seformou o black bloc de Seattle. A dcada de 1990foi a era de ouro das marcas globais, quando oslogos das grandes empresas se transformaram naverdadeira lngua franca da globalizao. Nessecontexto, o ataque a uma loja do McDonalds ouda Gap tinha um efeito simblico importante, demostrar que aqueles cones no eram topoderosos e onipresentes assim, de que por trs dafachada divertida e amigvel da publicidadecorporativa havia um mundo de explorao eviolncia materializado naqueles logos. Ou seja: oblack bloc de Seattle inaugurou uma dimenso deviolncia simblica que marcaria profundamente attica a partir de ento. Daquele momento emdiante, os black blocs, at ento um instrumento

  • basicamente de defesa contra a represso policial,tornaram-se tambm uma forma de ataque masum ataque simblico contra os significados ocultospor trs dos smbolos de um capitalismo que sepretendia universal, benevolente e todo-poderoso.Foi nesse contexto que a ttica chegou ao Brasil.Os primeiros black blocs no Brasil

    Os acontecimentos de Seattle levaram grupos demilitantes brasileiros a se articular em coletivospara construir no pas o movimento de resistnciamundial globalizao neoliberal. Assim surgiramos ncleos brasileiros da Ao Global dos Povos,uma rede de movimentos sociais surgida em 1998que criou os Dias de Ao Global, articulaesmundiais para organizar protestos simultneos emvrias partes do planeta contra as reunies dasinstituies internacionais que sustentavam aglobalizao neoliberal.

    O primeiro Dia de Ao Global que contou comaes no Brasil foi 26 de setembro de 2000,marcado contra a reunio do Fundo MonetrioInternacional (FMI) em Praga. Neste dia, em So

  • Paulo, um grupo de manifestantes atacou o prdioda Bovespa, o que gerou confronto entre policiaise ativistas. Na poca, o incidente no ganhoudestaque na imprensa e o termo black bloc nofoi mencionado, mas a lgica da ao dessesmilitantes, em sua maioria ligados ao movimentoanarcopunk de So Paulo, seguia a lgica da tticablack bloc.

    O segundo Dia de Ao Global que contou comatos no Brasil foi 20 de abril de 2001. Em SoPaulo, foi organizada uma manifestao na avenidaPaulista como parte dos protestos convocados emtodo o mundo contra a Cpula das Amricas,reunio realizada na cidade de Quebec, noCanad, na qual lderes dos pases do continentediscutiram a criao da rea de Livre Comrciodas Amricas (Alca).

    Esta foi a primeira vez que uma manifestaocontra a globalizao neoliberal realizada noBrasil ganhou as manchetes da imprensa nacional.O relato da manifestao, publicado na edio de21 de abril de 2001 da Folha de S. Paulo, no fazreferncia ao termo black bloc, mas poderia

  • perfeitamente se referir aos atos que acontecemhoje no Brasil: O primeiro confronto ocorreu emfrente ao prdio da Fiesp, onde os policiaistentaram impedir que os manifestantes ocupassema avenida. Os policiais usaram bombas de gslacrimognio e os manifestantes responderam compedradas e tiros de rojo. O grupo de estudantesatravessou a avenida em direo aos prdios doBanco Central e da CEF (Caixa EconmicaFederal), onde novamente houve confrontos com apolcia. Os manifestantes picharam os prdios eapedrejaram o edifcio da CEF. No mesmoquarteiro, a loja do McDonalds, para osmanifestantes o smbolo do imperialismo norte-americano, foi apedrejada e teve as vidraasquebradas.A oposio das ruas

    A pergunta que fica, portanto, : se a tticablack bloc no exatamente uma novidade noBrasil, por que s agora ela ganhou tamanhaprojeo? No h uma resposta correta para estapergunta. Aqui entramos no campo das hipteses e

  • teorias, mas me arrisco a dizer que isso se deve aofato de o Brasil estar vivendo um processopoltico parecido com o que deu origem ao blackbloc na Alemanha Ocidental.

    Em 2001, quando os grupos que lutavam contraa globalizao neoliberal comearam a usar attica no Brasil, o PT e os demais movimentossociais que orbitavam ao seu redor (Central nicados Trabalhadores, Unio Nacional dosEstudantes, Movimento dos Trabalhadores SemTerra) ainda eram vistos pela maioria dapopulao como uma alternativa real ao sistemapoltico dominante. Muita gente acreditava queuma vitria eleitoral do PT poderia abrir caminhopara as profundas transformaes de que o pasprecisava. O PT unificava a esquerda, desde osgrupos anticapitalistas mais radicais at osreformistas mais moderados. Se o Brasil iriamudar, teria de ser pela mo do PT. Nessecontexto, um grupo de radicais falando emautonomia, apartidarismo e coisas do gnero noteve grande eco no pas.

    Uma contestao radical do sistema poltico

  • como um todo s poderia ter eco quando nohouvesse mais nenhum partido que representasseuma alternativa real a tudo que est a. Essasituao s se tornou possvel a partir da decepode grandes parcelas da populao com o PT nopoder. Esse sentimento comeou a germinar j em2004, com as denncias dos primeiros casos decorrupo no governo Lula, mas ainda havia umabarreira geracional que impedia um ataque abertode grandes setores da esquerda ao governo do PT:para o bem ou para o mal, eram seus antigoscompanheiros de luta que estavam no poder, e amemria das lutas comuns ainda era muito recente.Para essa gerao, que sempre teve o PT comouma esperana de transformao radical dasociedade, era muito difcil enxergar o governocomo um inimigo mortal.

    Foi preciso que uma nova gerao chegasse adolescncia, ou ao incio da idade adulta, pararomper de vez os laos com o antigo partido daesperana. Um dado notvel que a maioria dosque hoje adotam a ttica black bloc formada porjovens na faixa dos vinte anos ou menos. Esta

  • uma gerao que j cresceu com o PT no poder,que no faz a mais plida ideia do que era opartido antes da vitria de Lula em 2002, e queno conhece os estragos sociais causados peloneoliberalismo dos governos FHC. Eles no tmtermos de comparao para avaliar os avanossociais promovidos pelos governos petistas. Paraeles, o PT s mais um entre os inmeros partidoscorruptos que dominam a poltica brasileira.

    A situao se torna ainda mais dramtica paraesses jovens pois hoje no existe nenhum outropartido capaz de se apresentar como umaalternativa vivel s foras que esto no poder.Eis a a chave para entender a fora dos blackblocs: chegamos a um ponto em que a polticainstitucional se descolou de tal maneira dosanseios polticos reais da sociedade que a disputaeleitoral se tornou uma espcie de batalha surreal adversrios fechados em seus castelos emBraslia que perderam qualquer contato com opensamento das pessoas de carne e osso. E quandoo poder se torna impermevel aos desejos dopovo, a nica oposio verdadeira a das ruas.

  • BibliografiaBILLI, Marcelo. Manifestao na Paulista

    termina em pancadaria. Folha de S. Paulo, SoPaulo, 21 abr. 2001.

    KATSIAFICAS, George. The Subversion ofPolitics: European Autonomous Movements andthe Decolonization of Everyday Life. New Jersey:Humanities Press, 1997. Disponvel em:http://www.eroseffect.com/books/subversion_download.htm

    MASSOT, Xavier; VAN DEUSEN, David. TheBlack Bloc Papers: An Anthology of PrimaryTexts From The North American Anarchist BlackBloc 1999-2001 The Battle of Seattle (N30)Through Quebec City (A20). Shwanee Mission:Breakinh Glass Press, 2010. Disponvel em:http://www.infoshop.org/amp/bgp/BlackBlockPapers2.pdf

    RAHMANI, Sina. Macht Kaputt Was EuchKaputt Macht: On the history and the meaning ofthe Black Block. Politics and Culture,Poughkeepsie, n. 4, nov. 2009. Disponvel em:http://www.politicsandculture.org/2009/11/09/macht-kaputt-was-euch-kaputt-macht-on-the-history-and-

  • the-meaning-of-the-black-block/. Acesso em:26/02/2014.

  • Legitimao de violnciaperformativa no Black Bloc paulistano

    Aprendam que existem diferenas entre passeatae protesto...

    BLACK BLOC NO CONCORDA COMPASSEATAS!!!

    (Facebook Black Bloc So Paulo)

    Um dos aspectos mais relevantes e talvez piorentendidos da dinmica Black Bloc (BB) o papelque a violncia (denominada ao direta) exercenos protestos. Longe de ser um assunto trivial, asnarrativas de legitimidade da ao direta soelementos centrais para a anlise apurada dofenmeno BB.

    Como em toda discusso terica de processossociais que envolvem algum tipo de aoconceituada como violenta, devemos comearrelembrando a ntima conexo entre violncia ecultura (Barbeiro, 1998) e a importncia deentender a primeira desde sua matriz cultural. Se

  • os jovens adeptos da ttica BB utilizam a aodireta como forma de expresso reivindicativa,isto no deve ser avaliado como um fato isolado, esim como um sintoma de uma sociedade queenxerga na violncia uma forma de relao social.Por tanto, a discusso sobre a ao direta BB deveser levada a cabo desde a perspectiva maisabrangente do conjunto social. Por que para estesjovens, que esto comeando suas experinciaspolticas, a violncia um instrumento legtimo deao? Como afirmam Schmidt e Schrder (2001),a existncia de narrativas e performances deviolncia determinada socialmente e implicanormas e padres culturais.

    A maioria das falas dos adeptos ttica BBcoincidem em que a violncia utilizada umaviolncia com significado. Seguindo a linha deBlok (2000), no que ele denominada o paradoxodo enigma da violncia sem sentido, a violnciaproposta nos discursos do BB no pode serdefinida como irracional, meramente emocional oucarente de sentido e argumentao. Nasce de umcontexto cultural determinado e se desenvolve

  • segundo certos parmetros sociais. , portanto, umelemento social, que deve ser analisado eentendido dentro das caractersticas do conjuntoda sociedade. Rapport (2000) afirma que, paraexplicar este tipo de violncia, devemos levar emconsiderao a relao do indivduo, sua definiocomo sujeito, a construo de sua identidadedentro da estrutura social

    Para estes jovens, a ao direta vista comouma forma de comunicao, que canaliza ainsatisfao e a absoluta descrena nas instituiese nas formas de manifestao poltica clssicas.Diante do que, para eles, um total descasopblico, a violncia a nica forma de seexpressar que chega a ouvidos do poder.

    As manifestaes pacficas no tmresultado. Todo o mundo saiu em junho, eutambm estava l e ai? Alguma coisa mudou?Mudou nada! A violncia a nica forma de serescutados pelo governo (1/8/2013)

    So anos de movimentos sociais e nada estsendo feito. Problemas com a sade, com aeducao, com a segurana e os polticos

  • corruptos... No d mais. O povo no aguentamais. O sistema no funciona. O cidado umescravo. Trabalha o dia todo, para seusimpostos, e para qu? Para no ter nenhumservio de qualidade, para que os polticosroubem tudo? (8/9/2014)

    um teatro, uma alerte para o governo.Muitos movimentos sociais j chegaram a esteponto de radicalizao. a nica forma demudar as coisas. Levamos anos protestandopacificamente e nada, tudo continua igual! Euno acredito mais neles, nem em partidos, nemem polticos. S roubam ou povo. O descasopblico a razo do Black Bloc agir(25/1/2014)

    A ao direta nasce, portanto, de um contextosocial de elevada indignao, que deslegitima apoltica e suas estruturas convencionais. Por outrolado, num pas com elevadssimos ndices deviolncia sistmica, perpetrada tanto pelo cidadocomum como pelas instituies, a justificativa doBB sobre o uso da violncia recebe eco entre osjovens.

  • Mas, segundo as narrativas, de que tipo deviolncia estamos falando? Como estes jovens acaracterizam, a denominam? Ao longo dasconversas com eles, os adjetivos simblica,teatral e dramtica se repetem de formarecorrente. Uma violncia espetacular que servepara chamar a ateno tanto da sociedade como dopoder assunte:

    A violncia a nica forma de que elesenxerguem nossa revolta. Mas uma violnciafocada, simblica, contra smbolos, edifcios dogoverno, banco. A gente ataca prdio de banco,McDonals, smbolos do capitalismo, prdios dogoverno. Nunca atacamos pessoas, pequenoscomrcios. Quem faz isso no sabe o quesignifica Black Bloc. algum que vai aoprotesto, aproveita o momento e faz o que elequer, sem ideologia. Queremos chamar a atenodo governo, da sociedade. As coisas tem quemudar. Queremos provocar um debate.(8/9/2013)

    Performative violence, aquela cuja nfase estna comunicao, na dramatizao de ideias e

  • valores (Jeffrey, 2005), aquela que, alm deelementos prtico-instrumentais, possui efeitosimblico, expressivo, como parte da estratgia deinterao social do grupo (Riches 1988). umaviolncia iconoclasta que atua como linguagemno verbal (Beeman, 1993).

    Paralelamente, a violncia tem um papel decoeso coletiva, de definio de fronteirasidentitrias (Bowman, 2001). O jovem segue attica BB porque compartilha um discurso e seafirma enquanto sujeito poltico, justificando o usoda violncia simblica. A violncia performativaatua como definidor de identidade, estratgia einstrumento de expresso poltica. A posio dosujeito em termos de debate ideolgico definidapela sua legitimao da denominada ao direta.

    Como bem lembra Riches (1986), uma questoessencial a da legitimidade. Se para o BB suaao direta argumentada em termos de ser anica alternativa de comunicao sociopoltica,para a maioria do conjunto social, esta violncia continuamente deslegitimada e designada comovandalismo, baderna ou crime. uma

  • disputa de sentidos hegemnicos, dialticasencontradas entre diversas legitimidades. Esta lutade sentidos se faz evidente na utilizao dacategoria vandalismo que aplicada ao BB mas,pela sua vez, reaplicada pelo BB ao sistemapoltico e econmico.

    Nos chamam de vndalos porque botamosfogo num banco, mas e os juros do banco, issono vandalismo? (7/9/2013)

    Ns somos vndalos? E o Estado que deixapacientes morrer na fila do SUS, que paga umamisria a seus professores? Os verdadeirosvndalos so eles, esto em Braslia e ns osvotamos a cada quatro anos. (2/8/2013)

    Os discursos sobre a ao direta, a relaoentre imagem, linguagem e violncia so centraispara entender a complexidade do BB (Feldmam,1995). A partir disso se deriva a importncia deestudar as narrativas destes jovens sobre suaprpria percepo da violncia como instrumentode protesto para avaliar o que, de fato, significa oBB, um fenmeno que tem causado, tanto nasociedade como nas instituies brasileiras, tanta

  • perplexidade.Beeman, W. The Anthropology of Theater and

    Spectacle, Annual Review of Anthropology, n.22,1993, p.369-93.

    Bowman, G. The Violence in Identity inSchmidt, B. e Schroder, I. (orgs.). Anthropology ofViolence and Conflict. Oxford: Routledge, 2001,p.25-46.

    Feldman, A. Epilogue: Ethnographic states ofemergency in Nordstrom, C. e Robben, A. (orgs.).Fieldwork Under Fire: Contemporary Studies ofViolence and Survival, University of CaliforniaPress, Berkeley, 1995, p.224-52.

    Juris, J. Violence Performed and Imagined:Militant Action, the Black Bloc and the MassMedia in Genoa, Critique of Anthropology 25(4), 2005, p.413-32.

    Rapport, N. J. Criminals by Instinct: On theTragedy of Social Structure and the Violence ofIndividual Creativity in Aijmer, G. e Abbink, J.(orgs.). Meanings of Violence: A Cross-CulturalPerspective. Oxford: Berg, 2000, p.39-54.

    Riches, D. The Phenomenon of Violence in

  • Riches, D. (org.). The Anthropology of Violence .Oxford New York: Blackwell, 1986, p.1-27.

    Schmidt,B., Schroder,I.Introduction: ViolentImaginaries and Violent Practices. , in Schmidt, B.e Schroder, I. (orgs.). Anthropology of Violenceand Conflict. Oxford: Routledge, 2001, p.1-24.

  • A brecha de junho est aberta:aprofundar a democracia

    A proposta de escrever esse artigo veio a partirdos debates sobre o movimento de junho de 2103que aconteceram em novembro, em ocasio doseminrio Construindo o Comum. Desde ento,aos debates e polmicas sobre as significaes domovimento de junho se juntaram mais doisdesdobramentos: a polarizao em torno daquesto da Copa (entre o #novaitercopa e o#vaitercopa) e a multiplicao dos rolezinhos. Aesses dois desdobramentos, poderemos juntar acrise da penitenciria do Maranho e tambm asprises de dirigentes petistas na penitenciria daPapuda.

    Tudo isso da ainda mais fora, e acreditamostambm que ainda mais interesse, s reflexes quequeramos propor aqui. Nossa reflexo organizada em trs momentos: (1) o debate sobrejunho, a violncia e a paz; (2) a perspectiva da

  • Copa na virada do ano; (3) os rolezinhos.Em junho de 2013 findou-se o ciclo poltico-

    institucional aberto pela transio da ditadura democracia: esse ciclo, sempre governado pelaselites e possuindo (ainda tem) em seu cerne oPartido do Movimento Democrtico Brasileiro(PMDB) (por um bom momento foi o Partido daFrente Liberal [PFL] e s ver a trajetria demuitos lderes do PMBD para apreender ofuncionamento desse bloco do biopoder), tevecomo marco formal a Constituio de 1988 e suaconstituio material foi preenchida peladomesticao do novo sindicalismo. Junhodecretou seu fim: que pode aparecer comoaprofundamento democrtico (o que o movimentocomeou a constituir) ou como explicitao docontedo neoescravagista, autoritrio e racista dademocracia formal brasileira (o que parece ainteno do governo). Para o Partido dosTrabalhadores (PT), enquanto partido dotado deum histrico de esquerda, isso coloca desafiosurgentes.

    Os ventos de junho continuam soprando: a

  • construo da pazNo debate que seguiu a palestra do filsofo

    italiano, Antonio Negri, no dia 19 de novembro2013, entre outras consideraes, foram colocadasduas questes bem importantes.

    Em primeiro lugar, um advogado ativista relatouque um ex-ministro do Supremo Tribunal Federal(STF), respondendo-lhe sobre o problema damultiplicao de aes incompatveis com aConstituio e a democracia mais em geral comoforma de represso s manifestaes, teria feitouma declarao surpreendente: Nunca viu umestado em guerra (!) respeitar plenamente asconvenes de Genebra. Em segundo lugar,algum disse que a violncia praticada pelosjovens adeptos da ttica black bloc no era umproblema moral, e sim poltico, e sua dimensonegativa estaria no fato de ela ter afastado osmanifestantes das manifestaes e enfraquecido omovimento de junho.

    O interesse dessas duas colocaes aparececlaramente quando as juntamos e ao mesmo tempoas fazemos funcionar pelo avesso, ou seja na

  • perspectiva que os ventos de junho lhe deram. Noque diz respeito primeira anedota, qual seja adeclarao explcita de um alto magistrado de queestaramos numa guerra, inevitvel lembrar oque disse o ento ministro da Justia francs eeste era, ningum mais, ningum menos do que osocialista Franois Mitterand sobre o movimentopela independncia da Arglia: Pra guerra comona guerra ( la guerre comme la guerre).Ambas as declaraes foram de uma rarasinceridade: o Estado e a elite se consideram,sempre que postos em xeque pelas demandas damultido, numa guerra que travam sem respeitarnenhum estado de direito, nenhuma regra. Claro, estarrecedor que algum que at ontem julgava emnome dos princpios constitucionais, hoje possafalar to abertamente e associar as mobilizaesde rua a um conflito armado. Contudo, o cinismodessa fala tem um lado interessante, pois tornaexplcito o incmodo da elite diante da ameaademocrtica.

    Esse lado se torna explcito quando ns opassamos ao crivo da verdade. Com efeito, como

  • qualquer pessoa s sabe, o embate no comeouem junho. Muito pelo contrrio, trata-se de umadura e triste realidade que foi se amplificando como por acaso juntamente ao processo deabertura democrtica. Samos da ditadura formale generalizada para uma ditadura de fato exercidacontra os jovens, pobres e negros das favelas, dasperiferias e dos subrbios. Na ditaduraformalizada havia uma relao ntidaamigo/inimigo, oriunda do mundo bipolar dacompetio entre os blocos: a guerra (fria equente) era travada entre dois modelos. Naditadura de fato, no se sabe mais quem o amigoe o inimigo. Na primeira, o conflito tinha umaformulao ideolgica e queria ser entre projetoantagnicos, entre duas teleologias: a atualpresidenta Dilma era massacrada enquantoinimiga do Brasil. Na segunda, o conflito seorganiza a partir da proibio de determinadassubstncias (chamadas de drogas ouentorpecentes) e acontece na mais total falta desentido (a ex-presa poltica chama osmanifestantes que criticam o modelo elitista e

  • neocolonialista da Copa de sabotadores doBrasil, transformando o debate democrtico emuma guerra psicolgica). Nas duas ditaduras,tortura-se, mata-se e faz-se desaparecer (inclusivee sobretudo quem deveria estar sob a custdia doEstado).

    Paradoxalmente, a ditadura de fato mata, torturae prende mais do que a outra e no respeita, faztempo, nenhuma regra de direito nem sequer daconveno nenhuma. A ditadura formal produziaarquivos (que ainda no foram abertos). Aditadura de fato sequer os arquivos de seu horrorest produzindo. Nem haver como abri-los umdia: a ossada do Amarildo nunca foi encontrada.Matando, torturando e roubando, seus atores deelite se tornaram tropa de cinema e especialistade TV. Os nmeros dessa guerra so absurdos eultrapassam as estatsticas de mortalidade dosterritrios atravessados por guerras oficialmenteconflagradas.

    Pois bem: nem com esse cinismo escancarado oalto magistrado falou a verdade, pois a guerra semregras que trata os pobres como o inimigo ocorre

  • h muito tempo. A novidade o movimento dejunho e seus desdobramentos, em particular no Riode Janeiro. E a novidade vai exatamente no sentidocontrrio da segunda colocao que mencionamosanteriormente: a novidade do levante de junho estno apenas em sua massificao, mas tambm nadeterminao que a multido teve de resistir. Se oestopim da massificao foi os vinte centavos, omote geral de uma luta por uma vida semcatracas continha muito mais, ou seja, uma nova einesperada capacidade de preencher a liberdadede uma nova efetividade. Pela primeira vez, houveuma ntida correlao inversa entre o nvel detruculncia da represso estatal e a propagaodas mobilizaes para todas as cidades e todas asperiferias. Ousando saber, a multido produziu noapenas uma nova luz, mas resistindo ela soubeousar, dando a essa luz uma significao diferente.A novidade de junho mesmo a abertura de umagrande brecha democrtica, dentro da qual osjovens das periferias e das favelas, juntando-se aonovo alunado superior massificado (mas tambmprecarizado), encontraram uma alternativa potente

  • guerra insensata que o poder lhe move. No poracaso, a cidade em que o movimento mais semanteve foi o Rio de Janeiro, onde essa ttica aquela dos black blocs foi a mais presente. Ondeela esteve presente e combativa, as ruas ficarammais mobilizadas, a ponto de a multidomassificar-se e fechar a avenida Rio Branco duasvezes nos dias 7 e 15 de outubro. H uma mentirae uma mistificao que foram veiculadas pelagrande mdia, dessa vez firme aliada do governofederal (o que deveria levar a todos refletirem). Amentira ocorreu ao dizer que o esvaziamento dasruas se deu por causa da presena dos mascarados,quando, na realidade, as ruas se mantiveramfirmemente articuladas s redes no Rio de Janeiro,onde os mascarados conduziram as ocupaes daCmara Municipal, do Leblon e as manifestaesno Palcio Guanabara, durante a visita do Papa, ena Assembleia Legislativa (Alerj), at que seconstrusse esse sincretismo com a greve dosprofessores, erigindo na resistncia o embrio deuma nova institucionalidade, de tipometropolitano, radicalmente democrtica. A

  • mistificao clssica e consistiu em atribuir aosmanifestantes a violncia. Contudo, se trata de umaoperao ironicamente difcil: o nvel de violnciado poder em particular, de seu sistema de justia tornou-se to grande e explcito que a repressodos manifestantes no consegue alcanar qualquernvel de legitimidade.

    Na realidade, as manifestaes de rua emparticular no Rio de Janeiro e inclusive a tticablack bloc se constituram como uma grandebrecha democrtica, uma potente linha de fuga,fora do regime de guerra e terror que o Estadoimplanta para regular os pobres. Contrariamenteao que o poder, a mdia e at alguns intelectuais degabinete tentaram dizer, a ttica black bloc no seconfigura como violncia mas comodesconstruo da guerra da qual falou cinicamentee como um absurdo soldado o alto magistrado eisso por meio da construo de experincias dedemocracia radical. A da resistncia praticada nasmanifestaes do Rio tem uma dimenso tica queenvergonha o sistema institucional brasileiro: atortura, as chacinas, os presdios e sua justia

  • injusta. No houve nenhum tipo de agresso fsicas pessoas, a proteo foi feita unicamentequeimando lixo e lixeiras e as destruies sosimblicas: caixa eletrnicos ou smbolos docapitalismo multinacional (ou seja, figurassimblicas estigmatizadas no que sobre na retricada esquerda, inclusive naquela do governo!). Nodia 20 de junho, na avenida Presidente Vargas,manifestantes chegaram a passear em cima docaveiro, a mquina mortfera da Polcia Militardo Estado do Rio de Janeiro que entra na favelascom sua caveira semeando o terror. So cenas delibertao sonhadas por milhes de jovens: osmesmos que agora do um rol nos shoppingcenters. Muito raramente foram queimados carrose sempre de funo ou nibus. Nada secomparado ao que as indignaes populares fazeme continuam fazendo.

    O que os manifestantes afirmaram foi a verdadedo poder e aqueles que adotaram a ttica blackbloc deram coragem a essa fala verdadeira: elesdisseram e dizem que, por meio dos megaeventos,rios de dinheiro pblico foram, e so, usados para

  • encher o bolso de alguns sempre os mesmosprivados e hierarquizar ainda mais a cidade; elesdizem que a corrupo do poder no desvio dasregras mas seu pleno funcionamento; dizemtambm que possvel lutar: ousar ter a coragemde produzir verdade, isto , narrar do ponto devista, e da dor, dos oprimidos.

    A verdade diz que o poder no produz nada, ano ser destruio e dor: o poder vazio, niilismototal. O poder diz, apenas e to somente, no, semparar; ter poder apenas exercer vetos, interditarfluxos que a vida produz. A coragem de dizer essaverdade passa pela desconstruo da violnciaestatal: cad o Amarildo? A luta dos mascarados amor e construo da paz, da nica verdadeirapaz. Sem rostos, eles so o escudo, a antimilciada classe sem nome.(No) Vai ter Copa?

    O futebol o esporte das multides pelo mundo.Cria bastarda da aristocracia britnica, ele setornou o desporto dos operrios de Manchester eTurim e do terceiro mundo, do negro, do mestio,

  • do excludo e deveio global. Isso no apenasporque mobiliza um sem nmero de pessoas emtorno de si, enquanto evento, mas porque, em si,abre espao para n biotipos, n jeitos desinestesia: do alto ao baixo, do forte ao veloz, massempre do mltiplo, de um agenciamento mpar dempares. Futebol das mais intensas paixes dasgentes ao redor do planeta e, no toa, dosbrasileiros: , pois, das mximas expresses docio criativo local, da arte da multido.

    No toa, o futebol precisa ser colonizado,capturado, posto em funo de algo. Ele prova queo cio est a favor da vida e no contra, o ciono a morte, ao contrrio do que o pai, a escola eo Estado nos dizem. Contra isso, o futebolresponde: trabalhe para viver e no viva detrabalhar, seu neurtico! Seu potencial demagnetizao fez com que ele no pudesse serapagado, primeiro sendo tolerado, depois,moldado aos interesses do Capital: futebol comoprmio ao dia de descanso do trabalhador, aqueleque deve trabalhar todos os dias, bnus paraestudante que vai bem nas aulas e por isso pode

  • jogar na hora certa futebol narrado como outorgano capitalismo industrial e, hoje, como negcio docapitalismo cognitivo.

    Mesmo na captura, o futebol mantm abertasbrechas que nos permitem pensar: a positividade,a vida, est no cio, a morte est no neg-cio, seuantnimo. Essa inverso, um verdadeirodesentendido ontolgico, a prpria tentativa decaptura, por inverso dos polos, do esporte breto.Nesse sentido vem Copa do Mundo no Brasil:desejo das multides em ver a competio mximade seu esporte favorito, e o esporte que asfavorece, em seu solo comum, mas desejocapturado. Nenhum problema em uma Copa noBrasil: desde que fosse, claro, uma Copa doMundo pelo Brasil e uma Copa no Brasil peloMundo, mas justamente o fato dessaoportunidade ter sido jogada pela janela quandoela existiu que torna tudo mais grave.

    A oportunidade de ver legados como um esportede base servindo, ao mesmo tempo de umaeducao para o cio e de uma pr sadepreventiva, de alguma mobilidade nas metrpoles

  • ou, no microcosmo, de ver um elogio jinga doscorpos e cultura do cio foi abandonada pelosnegcios: tudo se tornou o dever infinito derealizar o evento, faz-lo a qualquer custo emnome da paranoia de ser civilizado,desenvolvido ou, ao menos, parecer isso dianteda comunidade internacional. A partir da, no espantoso ver um incio de 2014 marcado pelaparanoia, nas redes e nas ruas, com o anncio, porparte do governo federal, de uma tropa de choqueimensa para conter manifestaes, avies-rob como os drones americanos de espionagem epatrulhamento, centrais de flagrante prontas ajulgar (e condenar) sumariamente quem sair dalinha durante o evento, alm das grandes obraspblicas com as terrveis remoes de pobres em prol dos poucos proprietrios dos espaosurbanos.

    No Rio de Janeiro, cidade sede da final daCopa e das Olimpadas, onde uma orgia de obrassuntuosas realizada, continua faltandoinfraestrutura bsica, a ponto de prejudicar os taisnegcios que deveriam ser o legado dos

  • megaeventos. A gua falta por semanas e noregular em favelas e bairros pobres. O saneamentobsico no existe em favelas que receberamtelefrico faranico e intil e as praias tursticasso grandes esgotos. Depois da tragdia dobondinho de Santa Teresa, o trenzinho doCorcovado funciona mal, com filas de quatro horasno meio de um calor infernal. A luz intermitenteem todos os bairros, sobretudo os mais pobres.Mas os mais chiques e tursticos no fogem daregra. Em janeiro, por exemplo, restaurantes,hotis e supermercados de Ipanema funcionam comgeradores particulares de energia. Os nibuscirculam lotados e em velocidade absurdas e oprprio Tribunal de Contas do Municpio no temacesso s suas contas. Vndalo mesmo o poder.Essa a verdade. S os manifestantes e os blackblocs tm a coragem de diz-la. Critic-losignifica encontrar o jeito de ter essa coragem eno juntar-se ao poder mafioso que vive damentira.

    O legado da Copa, a partir da, passa a sermais excluso habitacional, um aparato de

  • espionagem que fica e, a exemplo do STFmontado nos anos Lula, pode se voltar contra seusprprios criadores, justa ou injustamente, antesmesmo de se voltar contra a sociedade e umesporte dominado por oligarcas endinheirados.Mas existe um outro legado, que o que nosinteressa, expresso na forma dos comitspopulares da Copa, articulados em rede e desdebaixo pelo pas, e no grito do #NoVaiTerCopa: um no que no como o do poder, mas sim umaafirmao de que possvel acontecer outra coisaalm do real, do necessrio e do esperado; umsurrealismo poltico a favor de um porvir desonhos vivos, na qual as coisas so mais do queaquilo que pensado pela cabea do Rei, o ditoreal.Os rolezinhos.

    Entre o final de 2013 e o incio deste 2014, osrolezinhos agitaram o pas. So flashmobs demultido convocados nas redes sociais, nos quaisjovens da periferia marcam de se encontrarem nosshoppings: querem namorar, passear, viver E

  • fazem isso no por lhes faltar algo as taisopes de lazer na periferia nem por seremcarentes, mas pelo que lhes sobra: desejo! Essesjovens so parte, pois, da primeira geraobrasileira de excludos que se sentem autorizadosa desejar, que no aceitam o confinamento nosbairros pobres como em coisas como o fabulosorodoanel de pobreza em torno de So Paulo equerem ser felizes imediatamente e no no alm.

    No h como entender o rolezinho sem pensar,de forma conjunta, as novas formas de convivnciatrazidas pelas internet e suas redes sociais e, naoutra ponta, a dinmica da nova composio declasse resultante dos ltimos anos: embora o PT eo governo Dilma no saibam coexistir e cocriarcom a vida desejante que produziram, fato que,mais do que alavancagem financeira, houve umagenciamento desejante potente nos ltimos anos,fazendo de uma multido de resignados em genteativa. Mas tanto a presidenta quanto o partido dogoverno agem como um Dr. Frankenstein,perseguidor paranoico de sua prpria criatura.

    A novidade dessa nova composio de classe

  • uma classe sem nome, incontrolvel,indisciplinvel e impondervel, pronta para fazermovimentos livres, no homologveis a qualquermomento. Ela no vai pedir autorizao para fazero que j seu de direito. Foi-se o tempo dossalamaleques com o poder. O rolezinho , pois, oinverso da Copa no Brasil: o cio investindodiretamente contra o negcio, tempo livre contraroubo de tempo de vida, ocupao de espaoversus confinamento.

    justamente a, entre a m conscincia da velhaesquerda nossa de cada dia, que v nos rolezinhosuma escravido ao consumo, e a direita, quesurta em ver os bons costumes e a propriedadeameaada, que o fracasso do velho socialismo deEstado e a verdade sobre o capitalismo emergemna prtica: o velho bolchevique ele sim oescravo de um empreendimento negocial s quecoletivizado e a tal economia de mercado no direito propriedade ou ao lucro, mas sim formade controle e roubo de tempo de vida fosse ocontrrio, e os rolezinhos seriam aclamados, poisno ameaariam a propriedade privada nos

  • shoppings e poderiam at aumentar-lhes as vendas;mas no disso que os negcios se tratam, dehierarquia, comando de corpos sobre corpos,mobilidade de uns assentada na fixao de outros,de privao de propriedade, de exclusividade, domeu mando sobre a sua vida. Socialismo ecapitalismo como formas dos poucos teremtempo de vida custa da negociao, da negativaao sossego de muitos. O Brasil ps-junho nosmostra como o socialismo de Estado e ocapitalismo, j como os vimos na relao perversaentre o stalinismo e fordismo, so na realidade asduas faces de uma mesma desrazo: aquela de umprogresso linear e teleolgico que acabadestruindo a prpria vida.Concluses

    Em junho acabou o perodo de transio que seabriu no fim dos anos 1970, teve na Constituiode 1988 seu auge e nas ambivalncias da dcadade 2000 seu maior desdobramento. O potente cicloconstituinte de direitos dos anos 1970-80, e deefetivao de diretos na primeira dcada do sculo

  • XXI, no ocorreu sem a mediao do PMDB, aexpresso onipresente do cordialismo, do projetomisterioso de Estado e do Poder Constitudo doBrasil pronto para neutralizar tudo o que forintenso.

    Esse esgotamento no contm nenhumdeterminismo, mas abre uma alternativa: por umlado, o mais provvel, a explicitao dasdimenses racistas, totalitrias e demofbicas daelite: o que estamos assistindo nos presdios doMaranho, nos anncios do governo (centrais deflagrantes) e leis (de exceo) que esto sendodiscutidas para coibir as manifestaesdemocrticas. No entanto, por outro lado, temos adeflagrao de um novo ciclo democrtico, aprtica de novos modos de existncia e novasestratgias de resistncia. 2014 ser o teatro desseembate.

    O Brasil Maior est em convulso. As certezasgarantidas e homologadas a partir da verdadetranscendente, e prescritiva, das pesquisas deopinio das quais emanam os rtulos conceituaisdos cientistas e filsofos rgios , das polticas de

  • pacificao e do grande consenso poltico-gerencial, com vistas conciliao entre classes o acordo entre agressores e agredidos enquantoagressores e agredidos , caram por terra nosltimos meses. Esse trip, alis, a prpria formado desenvolvimentismo, a arte de governo pelaqual se resolveu dar um jeito nas perturbaes ordem que as polticas do governo federal, nosltimos dez anos, direta ou colateralmentecausaram.

    As manifestaes ocorridas desde o ms dejunho por todo Brasil consistem, no toa, em umponto de convergncia das diversas lutas em cursono sentido de divergir da ordem imperial global,processo o qual, na especificidade da realidadebrasileira atual, trata-se de um combate contra umprojeto de futuro no qual cada um ter o seu lugar,mas apenas e to somente como engrenagem deuma mquina. Antes, no entanto, precisorelembrar como chegamos aqui.

    O processo poltico que desemboca no governoLula nasce, em 2002, de uma campanha eleitoralvitoriosa na qual, no toa, o grande mote era uma

  • falcia: a esperana sobreveio, pela primeira vez,como remdio para o medo que nos impedia de serfelizes. Esperana e medo, todavia, so um parafetivo que jamais esteve desvinculado namodernidade. O discurso hegemnico desde ento, precisamente, que estamos voltados realizaode um futuro necessrio, que sujeita assim o aqui-agora, logo mesmo as nossas paixes presentesesto deslocadas; nada de alegria ou tristeza, masesperana e medo. Fazemos e deixamos de fazer ascoisas em nome dessas virtualidades que, ressalte-se, jamais estiveram separadas.

    Mas o governo Lula no foi apenas isso. Houve,no entanto, espao para um lapso de alegria eatualidade, que permitiram, para alm dos dogmasde velhos e novos socialismos, do burocratismodo partido e do Estado. Um movimento antipoderno poder que permitiu processos curiosos como adiminuio da desigualdade social inclusiveracial , o aumento da vida mdia do brasileiro, oempoderamento dos mais pobres no apenas porpolticas salariais, mas, tambm, de constituiode biorrendas como o Bolsa Famlia ou os Pontos

  • de Cultura, entre outras coisas.Esse furo nos cannones modernos, de esquerda

    e de direita, causado em grande parte pormovimentos empricos e pragmticos,transformaram o Brasil, causando um significativoabalo. o que chamamos de ascenso selvagem daclasse sem nome: um processo no qual as minoriasbrasileiras, no contexto do capitalismo global ecognitivo, se afirmaram a despeito de rtulos quebuscaram lhes imputar nova classe mdia, classeC e tantos outros e das convenes decordialidade cruel que marcam estas terras htempos o efeito pedra no lago igualmenteevaporou: a classe mdia j no mais formaopinio dos seus subordinados, os mais pobrespassaram a frequentar aeroportos, redes sociais etudo mais.

    Tudo isso, dentro de uma aliana poltica entreum partido nascido das revoltas operrias do finaldos anos 1970, das pastorais catlicas e dosmovimentos sociais com, vejamos ns, setoresrelevantes do empresariado nacional frustradoscom os descaminhos do capitalismo brasileiro.

  • Nada revolucionri