Narrador - Memorial do Convento

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O estatuto do narrador O estatuto do narrador em Memorial do Convento reveste-se de grande complexidade. Caracterizando-se pelo seu carácter polifónico, “lugar de encontro de vozes” na definição de Manuel Gusmão, sentimos a sua presença contínua e controladora ao longo da narrativa. Como declara Saramago: “eu não me vejo a usar um narrador que seja ele próprio unilinear e que conte e que narre unilinearmente aquilo que, digamos, tem a dizer”. São inúmeros os momentos em que a instância narrativa desliza da 3ª pessoa do singular para a 1ª do plural verificando-se, deste modo, uma cumplicidade e proximidade com o narratário e a implicação deste no relato ou uma colagem à personagens. É o que acontece nas seguintes passagens: Estranhou o pio homem, e estranharíamos nós se lá estivéssemos(…)” e “fica apenas a luz do lampadeiro vigiando, e a dama que ali passará a noite, num leito baixo, não tarda que adormeça, sonhe se quiser, que importância hão-de ter os sonhos que por trás das suas pálpebras se estão sonhando, a nós o que nos interessa é o trémulo pensamento que ainda se agita em D. Maria Ana, à beira do sono” ou “Foi mandado embora do exército por já não ter serventia nele, depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso, estraçalhada por uma bala em frente de Jerez de los Caballeros, na grande entrada de onze mil homens que fizemos em Outubro do ano passado e que se terminou com perda de duzentos nossos e debandada dos vivos” , “Matará adiante um homem, de dois que o quiseram roubar, mesmo tendo-lhes ele gritado que não levava dinheiros, porém vindo nós de uma guerra onde vimos morrer tanta gente, não é este caso que mereça relato singular”. Também neste aspecto se nota, como aponta Helena Kaufman, um afastamento em relação ao modelo tradicional da ficção histórica, o que leva, por um lado à metatextualidade e, por outro, a uma reinterpretação da História. Nos comentários metatextuais, o narrador reflecte sobre o próprio processo de escrita, desmistificando, assim, o seu papel, como se pode verificar nos seguintes exemplos:

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Pequeno resumo acerca do Narrador da obra Memorial do Convento - 12º ano

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O estatuto do narrador

O estatuto do narrador em Memorial do Convento reveste-se de grande complexidade. Caracterizando-se pelo seu carácter polifónico, “lugar de encontro de vozes” na definição de Manuel Gusmão, sentimos a sua presença contínua e controladora ao longo da narrativa. Como declara Saramago: “eu não me vejo a usar um narrador que seja ele próprio unilinear e que conte e que narre unilinearmente aquilo que, digamos, tem a dizer”. São inúmeros os momentos em que a instância narrativa desliza da 3ª pessoa do singular para a 1ª do plural verificando-se, deste modo, uma cumplicidade e proximidade com o narratário e a implicação deste no relato ou uma colagem à personagens. É o que acontece nas seguintes passagens:

“Estranhou o pio homem, e estranharíamos nós se lá estivéssemos(…)” e “fica apenas a luz do lampadeiro vigiando, e a dama que ali passará a noite, num leito baixo, não tarda que adormeça, sonhe se quiser, que importância hão-de ter os sonhos que por trás das suas pálpebras se estão sonhando, a nós o que nos interessa é o trémulo pensamento que ainda se agita em D. Maria Ana, à beira do sono” ou “Foi mandado embora do exército por já não ter serventia nele, depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso, estraçalhada por uma bala em frente de Jerez de los Caballeros, na grande entrada de onze mil homens que fizemos em Outubro do ano passado e que se terminou com perda de duzentos nossos e debandada dos vivos”, “Matará adiante um homem, de dois que o quiseram roubar, mesmo tendo-lhes ele gritado que não levava dinheiros, porém vindo nós de uma guerra onde vimos morrer tanta gente, não é este caso que mereça relato singular”.

Também neste aspecto se nota, como aponta Helena Kaufman, um afastamento em relação ao modelo tradicional da ficção histórica, o que leva, por um lado à metatextualidade e, por outro, a uma reinterpretação da História. Nos comentários metatextuais, o narrador reflecte sobre o próprio processo de escrita, desmistificando, assim, o seu papel, como se pode verificar nos seguintes exemplos:

“O mar está longe e parece perto, brilha, é uma espada caída do sol, que o sol há-de embainhar devagarinho quando descer no horizonte e enfim se sumir. São comparações inventadas por quem escreve para quem andou na guerra, não inventou Baltasar” e “(…) e se o padre Bartolomeu Lourenço algumas vezes parou, foi parar e andar, não mais que o tempo de uma bênção que lhe pediam, a quantos destes irá suceder entortar-se-lhes a história que tinham para entrarem nesta que vamos contando” e ainda “O padre Bartolomeu de Gusmão apoiou os cotovelos no tampo do cravo, olhou demoradamente Scarlatti, e, enquanto não falam, digamos nós que esta fluente conversação entre um padre português e um músico italiano não será provavelmente invenção pura, mas transposição admissível de frases e cumprimentos que sem dúvida trocaram um com o outro durante estes anos, no paço e fora dele, como adiante continuará a ver-se” ou expõe o estatuto fictício e inverosímil das personagens, denunciando o processo de criação literária: “Não é possível que Blimunda tenha

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pensado esta subtileza, e daí, quem sabe, nós não estamos dentro das pessoas, sabemos lá o que elas pensam, andamos é a espalhar os nossos próprios pensamentos pelas cabeças alheias e depois dizemos, Blimunda pensa, Baltasar pensou, e talvez lhes tivéssemos imaginado as nossas próprias sensações”. Estamos, portanto, perante uma escrita auto-reflexiva, “em que a ficção se dá a ler como tal e se mostram os seus processos”. Ao revelar aos leitores estes mecanismos da ficção, “a metaficção historiográfica acaba com a ilusão da narrativa objectiva que se narra por si mesma (…) Portanto este tipo de ficção histórica não aspira à objectividade, não pretende alcançar uma arbitrária verdade histórica, apesar de respeitar e aproveitar o conhecimento histórico sobre a época que descreve”.

O controlo da narrativa por parte do narrador é facilmente verificável não apenas nos comentários valorativos ou depreciativos, juízos de valor e no tom moralístico que perpassa pelos inúmeros aforismos, provérbios ou profecias mas também nas advertências ao leitor ou nas “instruções de leitura” que vai tecendo: “(…) podemos apostar que a eles os não cingem os rins tão ciliciosamente, isto se devendo ler com muita atenção para que não escape ao entendimento”. A focalização omnisciente implica uma vertente subjectiva e permite ao narrador seleccionar o que deve narrar. “A sua omnisciência não se limita às capacidades que lhe atribuía o Realismo. Constitui antes um tipo de transcendência cultural e temporal, permitindo uma visão da realidade que abrange o presente, o futuro e o passado. Por outras palavras, o narrador declara-se explicitamente contemporâneo ao leitor, inserindo esta sua perspectiva entre os detalhes e pormenores históricos da época passada que descreve”.

Como já vimos, o narrador opta por uma postura irreverente no modo como relata os acontecimentos evocados. O tom frequentemente irónico ou sarcástico serve a intenção de parodiar o passado histórico. Um exemplo elucidativo da postura irónica do narrador é a descrição do auto-de-fé onde revela a sua discordância em relação ao narrado através do humor que “concede ao leitor o espaço do julgamento inteligente, porque confia na sua perspicácia. A derrisão é muito mais devastadora que o discurso panfletário, porque ridiculariza aquilo que era sacralisado”. Mas o discurso do narrador é também anti-épico pois dá voz aos que não são considerados heróis, ou seja um soldado maneta, uma vidente e um padre que duvida, assumindo, deste modo, uma postura de contra-poder. Postura do contra que se revela no discurso dessacralizador não apenas do poder régio e do poder religioso mas também do literário através das inúmeras referencias parodísticas a outros escritores, nomeadamente Camões, Padre António Vieira e Pessoa. Os textos destes autores consagrados são reconstruídos adquirindo outras significações no novo contexto. Como explica Teresa Cerdeira da Silva “não se trata de peráfrase, de reduplicação mas de uma filtragem irónica que dilui o tom quase sempre nobre e laudatório do texto de origem.

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O discurso do narrador é anti-épico quando rebaixa os heróis que a História glorifica e nos apresenta como heróis gente anónima em que se incluem personagens com defeitos físicos, como Baltasar, ou homens andrajosos, como os operários que foram obrigados a trabalhar na construção do Convento de Mafra.

Narrador saramaguiano

Presença contínua e controladora, oscilando entre a 3ª p.

Emite juízos de valor, assumindo-se como contra-poder

Tece comentários metatextuais, reflectindo sobre o processo de escrita.

Promove a Intertextualidade

Sentencia, aproveitando ou reinventando provérbios e aforismos populares.

Parodía o passado histórico

Move-se entre o passado, o presente e o futuro

Proximidade com o narratário, implicando-o no relato

Heterodiegético

Focalização omnisciente