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Nosso racismo um crime perfeitofevereiro 9, 2012 10:04O antroplogo Kabengele Munanga fala sobre o mito da democracia racial brasileira, a polmica com Demtrio Magnoli e o papel da mdia e da educao no combate ao preconceito no pasPor Camila Souza Ramos e Glauco FariaFrum O senhor veio do antigo Zaire que, apesar de ter alguns pontos de contato com a cultura brasileira e a cultura do Congo, um pas bem diferente. O senhor sentiu, quando veio pra c, a questo racial? Como foi essa mudana para o senhor?Kabengele Essas coisas no so to abertas como a gente pensa. Cheguei aqui em 1975, diretamente para a USP, para fazer doutorado. No se depara com o preconceito primeira vista, logo que sai do aeroporto. Essas coisas vm pouco a pouco, quando se comea a descobrir que voc entra em alguns lugares e percebe que nico, que te olham e j sabem que no daqui, que no como nossos negros, diferente. Poderia dizer que esse estranhamento por ser estrangeiro, mas essa comparao na verdade feita em relao aos negros da terra, que no entram em alguns lugares ou no entram de cabea erguida.Depois, com o tempo, na academia, fiz disciplinas em antropologia e alguns de meus professores eram especialistas na questo racial. Foi atravs da academia, da literatura, que comecei a descobrir que havia problemas no pas. Uma das primeiras aulas que fiz foi em 1975, 1976, j era uma disciplina sobre a questo racial com meu orientador Joo Batista Borges Pereira. Depois, com o tempo, voc vai entrar em algum lugar em que est sozinho e se pergunta: onde esto os outros? As pessoas olhavam mesmo, inclusive olhavam mais quando eu entrava com minha mulher e meus filhos. Porque uma famlia inter-racial: a mulher branca, o homem negro, um filho negro e um filho mestio. Em todos os lugares em que a gente entrava, era motivo de curiosidade. O pessoal tentava ser discreto, mas nem sempre escondia. Entrvamos em lugares onde geralmente os negros no entram.A partir da voc comea a buscar uma explicao para saber o porqu e se aproxima da literatura e das aulas da universidade que falam da discriminao racial no Brasil, os trabalhos de Florestan Fernandes, do Otavio Ianni, do meu prprio orientador e de tantos outros que trabalharam com a questo. Mas o problema que quando a pessoa adulta sabe se defender, mas as crianas no. Tenho dois filhos que nasceram na Blgica, dois no Congo e meu caula brasileiro. Quantas vezes, quando estavam sozinhos na rua, sem defesa, se depararam com a polcia?Meus filhos estudaram em escola particular, Colgio Equipe, onde estudavam filhos de alguns colegas professores. Eu no ia busc-los na escola, e quando saam para tomar nibus e voltar para casa com alguns colegas que eram brancos, eles eram os nicos a ser revistados. No entanto, a condio social era a mesma e estudavam no mesmo colgio. Por que s eles podiam ser suspeitos e revistados pela polcia? Essa situao eu no posso contar quantas vezes vi acontecer. Lembro que meu filho mais velho, que hoje ator, quando comprou o primeiro carro dele, no sei quantas vezes ele foi parado pela polcia. Sempre apontando a arma para ele para mostrar o documento. Ele foi instrudo para no discutir e dizer que os documentos esto no porta-luvas, seno podem pensar que ele vai sacar uma arma. Na realidade, era suspeito de ser ladro do prprio carro que ele comprou com o trabalho dele. Meus filhos at hoje no saem de casa para atravessar a rua sem documento. So adultos e criaram esse hbito, porque at voc provar que no ladro A geografia do seu corpo no indica isso.Ento, essa coisa de pensar que a diferena simplesmente social, claro que o social acompanha, mas e a geografia do corpo? Isso aqui tambm vai junto com o social, no tem como separar as duas coisas. Fui com o tempo respondendo questo, por meio da vivncia, com o cotidiano e as coisas que aprendi na universidade, depoimentos de pessoas da populao negra, e entendi que a democracia racial um mito. Existe realmente um racismo no Brasil, diferenciado daquele praticado na frica do Sul durante o regime do apartheid, diferente tambm do racismo praticado nos EUA, principalmente no Sul. Porque nosso racismo , utilizando uma palavra bem conhecida, sutil. Ele velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso no quer dizer que faa menos vtimas do que aquele que aberto. Faz vtimas de qualquer maneira.Revista Frum Quando voc tem um sistema como o sul-africano ou um sistema de restrio de direitos como houve nos EUA, o inimigo est claro. No caso brasileiro mais difcil combat-loKabengele Claro, mais difcil. Porque voc no identifica seu opressor. Nos EUA era mais fcil porque comeava pelas leis. A primeira reivindicao: o fim das leis racistas. Depois, se luta para implementar polticas pblicas que busquem a promoo da igualdade racial. Aqui mais difcil, porque no tinha lei nem pra discriminar, nem pra proteger. As leis pra proteger esto na nova Constituio que diz que o racismo um crime inafianvel. Antes disso tinha a lei Afonso Arinos, de 1951. De acordo com essa lei, a prtica do racismo no era um crime, era uma contraveno. A populao negra e indgena viveu muito tempo sem leis nem para discriminar nem para proteger.Revista Frum Aqui no Brasil h mais dificuldade com relao ao sistema de cotas justamente por conta do mito da democracia racial?Kabengele Tem segmentos da populao a favor e contra. Comearia pelos que esto contra as cotas, que apelam para a prpria Constituio, afirmando que perante a lei somos todos iguais. Ento no devemos tratar os cidados brasileiros diferentemente, as cotas seriam uma inconstitucionalidade. Outro argumento contrrio, que j foi demolido, a ideia de que seria difcil distinguir os negros no Brasil para se beneficiar pelas cotas por causa da mestiagem. O Brasil um pas de mestiagem, muitos brasileiros tm sangue europeu, alm de sangue indgena e africano, ento seria difcil saber quem afro-descendente que poderia ser beneficiado pela cota. Esse argumento no resistiu. Por qu? Num pas onde existe discriminao antinegro, a prpria discriminao a prova de que possvel identificar os negros. Seno no teria discriminao.Em comparao com outros pases do mundo, o Brasil um pas que tem um ndice de mestiamento muito mais alto. Mas isso no pode impedir uma poltica, porque basta a autodeclarao. Basta um candidato declarar sua afro-descendncia. Se tiver alguma dvida, tem que averiguar. Nos casos-limite, o indivduo se autodeclara afrodescendente. s vezes, tem erros humanos, como o que aconteceu na UnB, de dois jovens mestios, de mesmos pais, um entrou pelas cotas porque acharam que era mestio, e o outro foi barrado porque acharam que era branco. Isso so erros humanos. Se tivessem certeza absoluta que era afro-descendente, no seria assim. Mas houve um recurso e ele entrou. Esses casos-limite existem, mas no isso que vai impedir uma poltica pblica que possa beneficiar uma grande parte da populao brasileira.Alm do mais, o critrio de cota no Brasil diferente dos EUA. Nos EUA, comearam com um critrio fixo e nato. Basta voc nascer negro. No Brasil no. Se a gente analisar a histria, com exceo da UnB, que tem suas razes, em todas as universidades brasileiras que entraram pelo critrio das cotas, usaram o critrio tnico-racial combinado com o critrio econmico. O ponto de partida a escola pblica. Nos EUA no foi isso. S que a imprensa no quer enxergar, todo mundo quer dizer que cota simplesmente racial. No . Isso mentira, tem que ver como funciona em todas as universidades. necessrio fazer um certo controle, seno no adianta aplicar as cotas. No entanto, se mantm a ideia de que, pelas pesquisas quantitativas, do IBGE, do Ipea, dos ndices do Pnud, mostram que o abismo em matria de educao entre negros e brancos muito grande. Se a gente considerar isso ento tem que ter uma poltica de mudana. nesse sentido que se defende uma poltica de cotas.O racismo cotidiano na sociedade brasileira. As pessoas que esto contra cotas pensam como se o racismo no tivesse existido na sociedade, no estivesse criando vtimas. Se algum comprovar que no tem mais racismo no Brasil, no devemos mais falar em cotas para negros. Deveramos falar s de classes sociais. Mas como o racismo ainda existe, ento no h como voc tratar igualmente as pessoas que so vtimas de racismo e da questo econmica em relao quelas que no sofrem esse tipo de preconceito. A prpria pesquisa do IPEA mostra que se no mudar esse quadro, os negros vo levar muitos e muitos anos para chegar aonde esto os brancos em matria de educao. Os que so contra cotas ainda do o argumento de que qualquer poltica de diferena por parte do governo no Brasil seria uma poltica de reconhecimento das raas e isso seria um retrocesso, que teramos conflitos, como os que aconteciam nos EUA.(Foto TV Brasil)Frum Que o argumento do Demtrio Magnoli.Kabengele Isso muito falso, porque j temos a experincia, alguns falam de mais de 70 universidades pblicas, outros falam em 80. J ouviu falar de conflitos raciais em algum lugar, linchamentos raciais? No existe. claro que houve manifestaes numa universidade ou outra, umas pichaes, negro, volta pra senzala. Mas isso no se caracteriza como conflito racial. Isso uma maneira de horrorizar a populao, projetar conflitos que na realidade no vo existir.Frum Agora o DEM entrou com uma ao no STF pedindo anulao das cotas. O que motiva um partido como o DEM, qual a conexo entre a ideologia de um partido ou um intelectual como o Magnoli e essa oposio ao sistema de cotas? Qual a raiz dessa resistncia?Kabengele Tenho a impresso que as posies ideolgicas no so explcitas, so implcitas. A questo das cotas uma questo poltica. Tem pessoas no Brasil que ainda acreditam que no h racismo no pas. E o argumento desse deputado do DEM esse, de que no h racismo no Brasil, que a questo simplesmente socioeconmica. um ponto de vista refutvel, porque ns temos provas de que h racismo no Brasil no cotidiano. O que essas pessoas querem? Status quo. A ideia de que o Brasil vive muito bem, no h problema com ele, que o problema s com os pobres, que no podemos introduzir as cotas porque seria introduzir uma discriminao contra os brancos e pobres. Mas eles ignoram que os brancos e pobres tambm so beneficiados pelas cotas, e eles negam esse argumento automaticamente, deixam isso de lado.Frum Mas isso no um cinismo de parte desses atores polticos, j que eles so contra o sistema de cotas, mas tambm so contra o Bolsa-Famlia ou qualquer tipo de poltica compensatria no campo socioeconmico?Kabengele interessante, porque um pas que tem problemas sociais do tamanho do Brasil deveria buscar caminhos de mudana, de transformao da sociedade. Cada vez que se toca nas polticas concretas de mudana, vem um discurso. Mas voc no resolve os problemas sociais somente com a retrica. Quanto tempo se fala da qualidade da escola pblica? Estou aqui no Brasil h 34 anos. Desde que cheguei aqui, a escola pblica mudou em algum lugar? No, mas o discurso continua. Ah, s mudar a escola pblica. Os mesmos que dizem isso colocam os seus filhos na escola particular e sabem que a escola pblica ruim. Poderiam eles, como autoridades, dar melhor exemplo e colocar os filhos deles em escola pblica e lutar pelas leis, bom salrio para os educadores, laboratrios, segurana. Mas a coisa s fica no nvel da retrica.E tem esse argumento legalista, porque a cota uma inconstitucionalidade, porque no h racismo no Brasil. H juristas que dizem que a igualdade da qual fala a Constituio uma igualdade formal, mas tem a igualdade material. essa igualdade material que visada pelas polticas de ao afirmativa. No basta dizer que somos todos iguais. Isso importante, mas voc tem que dar os meios e isso se faz com as polticas pblicas. Muitos disseram que as cotas nas universidades iriam atingir a excelncia universitria. Est comprovado que os alunos cotistas tiveram um rendimento igual ou superior aos outros. Ento a excelncia no foi prejudicada. Alis, curioso falar de mrito como se nosso vestibular fosse exemplo de democracia e de mrito. Mrito significa simplesmente que voc coloca como ponto de partida as pessoas no mesmo nvel.Quando as pessoas no so iguais, no se pode colocar no ponto de partida para concorrer igualmente. como voc pegar uma pessoa com um fusquinha e outro com um Mercedes, colocar na mesma linha de partida e ver qual o carro mais veloz. O aluno que vem da escola pblica, da periferia, de pssima qualidade, e o aluno que vem de escola particular de boa qualidade, partindo do mesmo ponto, claro que os que vm de uma boa escola vo ter uma nota superior. Se um aluno que vem de um Pueri Domus, Liceu Pasteur, tira nota 8, esse que vem da periferia e tirou nota 5 teve uma caminhada muito longa. Essa nota 5 pode ser mais significativa do que a nota 7 ou 8. Dando oportunidade ao aluno, ele no vai decepcionar.Foi isso que aconteceu, deram oportunidade. As cotas so aplicadas desde 2003. Nestes sete anos, quantos jovens beneficiados pelas cotas terminaram o curso universitrio e quantos anos o Brasil levaria para formar o tanto de negros sem cotas? Talvez 20 ou mais. Isso so coisas concretas para as quais as pessoas fecham os olhos. No artigo do professor Demtrio Magnoli, ele me critica, mas no leu nada. Nem uma linha de meus livros. Simplesmente pegou o livro da Eneida de Almeida dos Santos, Mulato, negro no-negro e branco no-branco que pediu para eu fazer uma introduo, e desta introduo de trs pginas ele tirou algumas frases e, a partir dessas frases, me acusa de ser um charlato acadmico, de professar o racismo cientfico abandonado h mais de um sculo e fazer parte de um projeto de racializao oficial do Brasil. Nunca leu nada do que eu escrevi.Kabengele Munanga responde a Demtrio Magnolin17_01a_inEm matria publicada no jornal O Estado de S. Paulo de 14 maio de 2009 , intitulada "Monstros tristonhos", o gegrafo Demtrio Magnoli critica e acusa agressivamente as Universidades Federais de Santa Maria (UFSM) e de So Carlos (UFSCAR) e tambm a mim, Kabengele Munanga, Professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. As duas universidades so criticadas e acusadas por terem, segundo o gegrafo, criado "tribunais raciais" que rejeitam as matrculas de jovens mestios que optam pelas cotas raciais. No caso da Universidade Federal de Santa Maria, trata-se apenas de Tatiana de Oliveira, cuja matrcula foi cancelada menos de um ms aps o incio do curso de Pedagogia.. No caso da Universidade Federal de So Carlos, trata-se do estudante Juan Felipe Gomes. O acusador acrescenta que um quarto dos candidatos aprovados na UFSCAR pelo sistema de cotas raciais neste ano de 2009 teve sua matrcula cancelada pelo "tribunal racial" dessa universidade. A questo que se pe saber se alm desses estudantes, cujas matrculas foram canceladas, outros alunos mestios ingressaram em cerca de 70 universidades pblicas que aderiram poltica de cotas. Se a resposta for afirmativa, os que tiveram sua matrcula cancelada constituem casos raros ou excepcionais que mereceriam a ateno no apenas de Demtrio Magnoli, mas tambm de todas as pessoas que defendem a justia e a igualdade de tratamento. Mas por que esses casos raros, que constituem uma exceo e no a regra, foram "injustiados" pelas comisses de controle formadas nessas universidades para evitar fraudes, comisses que o socilogo Demtrio rotula de "tribunais raciais"? Por que s eles? Por que no ocorreu o mesmo com os outros mestios aprovados? Houve realmente injustia racial ou erro humano na avaliao da identidade fsica dessas pessoas que foram simplesmente consideradas brancas e no mestias apesar de sua autodeclarao? Os erros humanos, quando so detectados, devem ser corrigidos pelos prprios humanos, como o foi no caso dos estudantes gmeos da UnB. As injustias, flagrantes ou no, devem ser apuradas e julgadas pela prpria justia que, num estado democrtico de direito como o Brasil, dever prevalecer. Acho que os estudantes Tatiana de Oliveira e Juan Felipe Gomes, e tantos outros que o socilogo menciona sem entretanto nome-los, devem procurar um advogado para defender seus direitos se estes tiverem sido efetivamente violados pelos chamados "tribunais raciais". Entendo que o gegrafo Demtrio tenha pena deles, considerando a sua sensibilidade humana. Se realmente houve erro humano na verificao da identidade desses estudantes, a explicao no est na citao intencionalmente deturpada de algumas linhas extradas de um texto introdutrio de trs pginas ao livro de Eneida de Almeida dos Reis, intitulado MULATO: negro-no-negro e/ou branco-no-branco, publicado pela Editora Altara, na Coleo Identidades, So Paulo, em 2002. Veja como interessante a estratgia de ataque do gegrafo Demtrio Magnoli. Ele escondeu de seus leitores o ttulo do livro de Eneida de Almeida dos Reis, assim como a casa editora e a data de sua publicao para evitar que possveis interessados pudessem ter acesso obra para averiguar direta e pessoalmente o fundamento das acusaes. De fato, ele no disse absolutamente nada sobre o contedo desse livro, e passa a impresso de ter lido apenas vinte linhas do total de trs pginas da introduo, a partir das quais constri seu ensaio e sua acusao. Com sua inteligncia genuna, acho que ele poderia ter feito uma pequena sntese desse livro para seus leitores; se ele o tivesse mesmo lido, entenderia que nada inventei sobre a ambivalncia gentica do mestio que no estivesse presente no prprio ttulo da obra "Mulato: negro-no-negro e/ou branco-no-branco". Desde quando a palavra ambivalncia sinnimo de "monstro tristonho"? Estamos assistindo inveno, pelo gegrafo, de novos verbetes dos dicionrios da lngua portuguesa? O livro de Eneida de Almeida dos Reis resultou de uma pesquisa para dissertao de mestrado defendida na PUC de So Paulo sob a orientao de Antonio da Costa Ciampa, Professor do Programa de Estudos Ps-graduados em Psicologia da PUC So Paulo. Ele foi convidado a fazer a apresentao do livro, na qualidade de professor orientador, e eu para escrever a introduo, na qualidade de ex-professor na disciplina "Teorias sobre o racismo e discursos antirracistas", ministrada no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da USP. O livro se debrua sobre as peripcias e dificuldades vividas pelos indivduos mestios de brancos e negros, pejorativamente chamados mulatos, no processo de construo de sua identidade coletiva e individual, a partir de um estudo de caso clnico. uma pena que nosso crtico acusador no tenha tido a coragem de apresentar a seus leitores o verdadeiro contedo desse livro, resultado de uma meticulosa pesquisa acadmica, e no da minha fabulao.Para entender porque essas pessoas mestias foram consideradas brancas, apesar de terem declarado sua afrodescendncia, preciso voltar ao clssico "Tanto preto quanto branco: estudos de relaes raciais", de Oracy Nogueira (So Paulo: T.A. Queiroz, 1985). Se o gegrafo Demtrio tivesse lido esse livro, acredito que teria entendido porque as pessoas brancas que possuem algumas gotas de sangue africano so consideradas pura e simplesmente negras nos Estados Unidos - apesar de exibirem uma fenotipia branca - e brancas no Brasil. Ensina Nogueira que a classificao racial brasileira de marca ou de aparncia, contrariamente classificao anglo-saxnica que de origem e se baseia na "pureza" do sangue. Do ponto de vista norteamericano, todos os brasileiros seriam, de acordo com as pesquisas do geneticista Sergio Danilo Pena, considerados negros ou amerndios, pois todos possuem, em porcentagens variadas, marcadores genticos africanos e amerndios, alm de europeus, sem dvida. Quando essas pessoas fenotipicamente brancas e geneticamente mestias se consideram ou so consideradas brancas no decorrer de suas vidas e assumem, repentinamente, a identidade afrodescendente para se beneficiar da poltica das cotas raciais, as suspeitas de fraude podem surgir. Creio que foi o que aconteceu com os alunos cujas matrculas foram canceladas na UFSM e na UFSCAR. Se no houver essa vigilncia mnima, seria melhor no implementar a poltica de cotas raciais, porque qualquer brasileiro pode se declarar afrodescendente, partindo do pressuposto de que a frica o bero da humanidade.. Lembremo-nos de que no incio dos debates sobre as cotas colocava-se a dificuldade de definir quem negro no Brasil por causa da mestiagem. Falsa dificuldade, porque a prpria existncia da discriminao racial antinegro prova de que no impossvel identific-lo. Seno, o policial de Guarulhos no teria assassinado o jovem dentista identificado como negro pelo cidado branco assaltado, e os zeladores de todos os prdios do Brasil no teriam facilidade para orientar os visitantes negros a usar os elevadores de servio. Por sua vez, as raras mulheres negras moradoras dos bairros de classe mdia no seriam constantemente convidadas pelas mulheres brancas, quando se encontram nos elevadores, para trabalhar como domsticas em suas casas. Existem casos duvidosos, como o dos alunos em questo, que mereceriam uma ateno desdobrada para no se cometer erros humanos, mas no houve dvidas sobre a identidade da maioria dos estudantes negros e mestios que ingressaram na universidade atravs das cotas. Bem, o gegrafo Demtrio Magnoli leva ao extremo a acusao a mim dirigida quando me considera um dos "cones do projeto da racializao oficial do Brasil". Grave acusao! Infelizmente, ele no deu nomes a outros cones. Nomeou apenas um deles, cuja obra no leu, ou melhor, demonstra no ter lido. Mas por que s o meu nome mencionado? Porque sou o mais fraco, pelo fato de ser brasileiro naturalizado, ou o mais importante, por ter chegado ao ponto mais alto da carreira acadmica? Isso parece incomod-lo bastante! Um negro que chegou l, ao topo da carreira acadmica, numa das melhores universidades do pas, mas nem por isso esse negro deixou de ser solidrio, pois milita intelectualmente para que outros negros, ndios e brancos pobres tenham as mesmas oportunidades. De acordo com as concluses assinaladas no livro de Eneida de Almeida dos Reis, muitos mestios tm dificuldades para construir sua identidade por causa da ambivalncia (Mulato: negro-no-negro e/ou branco-no-branco), dificuldades que eles teriam superado se tivessem poltica e ideologicamente assumido uma de suas heranas, ou seja, a sua negritude, que o ponto nevrlgico de seu sofrimento psicolgico. Se o socilogo acusador tivesse lido este livro e refletido serenamente sobre suas concluses, ele teria percebido que no alimento nenhum projeto ou plano de ao para suprimir a mestiagem no Brasil. Isto s pode ser chamado de masturbao ideolgica, e no de anlise sociolgica, nem geogrfica! Como seria possvel suprimir a mestiagem, que um fato fundamental da histria da humanidade, desafiando as leis da gentica e a vontade dos homens e das mulheres que sempre tero intercursos interraciais? Nem o autor do ensaio sobre as desigualdades das raas humanas, Arthur de Gobineau, chegou a acreditar nessa possibilidade. Se as leis segregacionistas do Sistema Jim Crow no Sul dos Estados Unidos e do Apartheid na frica do Sul no conseguiram faz-lo, os cones da racializao oficial do Brasil, entre os quais nosso colega me situa, tero esse poder mgico e milagroso que ele lhes atribui?Entrando na vida privada, gostaria que o socilogo soubesse que tenho um filho e uma neta mestios que no so monstros tristonhos como ele pensa, pois so educados para assumir sua negritude e evitar assim os graves problemas psicolgicos apontados na obra de Eneida de Almeida Dos Reis, atravs da indefinida personagem Maria, (ver p.39-100). Como se pode dizer que os mestios so geneticamente ambivalentes e que poltica e ideologicamente no podem permanecer nessa ambivalncia e ser por isso taxado de charlato acadmico? Creio que se trata apenas de uma reflexo que decorre das concluses do prprio livro e que de per si no constituiria nenhum charlatanismo. No seria um contra-senso e um grave insulto USP que esse "charlato acadmico" tenha chegado ao topo da carreira acadmica? E que tenha orientado dezenas de doutores hoje professores nas grandes universidades brasileiras, como a USP, UNICAMP, UNESP, UFMG, UFF, UFRJ, Universidade Federal de Gois, Universidade Federal de So Luiz do Maranho, Universidade Estadual de Londrina, Universidade Candido Mendes, PUC de Campinas, etc. Creio que, salvo o gegrafo Demtrio, os que me conhecem atravs de textos que escrevi, de minhas aulas e de minhas participaes nos debates sociais e intelectuais no pas e no exterior, no me atribuiriam esse triste retrato. Disse ainda o gegrafo Demtrio que "do ponto mais alto da carreira universitria, o antroplogo professa a crena do racismo cientfico, velha de mais de um sculo, na existncia biolgica de raas humanas, vestindo-a curiosamente numa linguagem decalcada da cincia gentica". Sinceramente, no entendo como Demtrio conseguiu tirar tanta gua das pedras. Das 20 linhas extradas, de maneira deturpada, de um texto de trs pginas de introduo, ele conseguiu dizer coisas horrveis, como se tivesse lido tudo que escrevi durante minha trajetria intelectual sobre o racismo antinegro. A colonizao da frica, contrariamente s demais colonizaes conhecidas na histria da humanidade, foi justificada e legitimada por um corpus terico-cientfico baseado nas idias evolucionistas e racialistas produzidas na modernidade ocidental. Teria algum sentido para mim, que milito contra o racismo, professar o racismo cientfico para lutar contra o racismo brasileira? Acho que nosso gegrafo quer me transformar num demente que no sou. As pessoas que leram seu texto no jornal O Estado de S. Paulo podem pensar que eu sou esse negro ex-colonizado que professa as mesmas idias do racismo cientfico que postulou a inferioridade e a desumanidade dos africanos, includa a dele mesmo. Como entender que meus alunos de Ps-graduao, a quem ensino h vinte anos "As teorias sobre o racismo e discursos antirracistas", uma disciplina freqentada por alunos da USP, de outras universidades e outros estados, tm a coragem de ocupar um semestre inteiro para escutar profisses de f em favor do racismo cientfico?Se o gegrafo Demtrio quer saber mais sobre mim, ingressei na Faculdade em 1964, aos vinte e dois anos de idade. Tive aulas de Antropologia Fsica com um dos melhores bilogos e geneticistas franceses, Jean Hiernaux. Uma das primeiras coisas que ele me ensinou era que a raa no existe biologicamente. Atravs de suas aulas, li Franois Jacob, Nobel de Fisiologia (1965) e um dos primeiros franceses a decretar que a raa pura no existe biologicamente; e J.Ruffie, Albert Jacquard e tantos outros geneticistas antirracistas dessa poca. Portanto, sei muito bem, e bem antes de Demtrio que o racismo no pode ter mais sustentao cientfica com base na noo das raas superiores e inferiores, que no existem biologicamente. Sei muito bem que o contedo da raa enquanto construo social e poltico. Ou seja, a realidade da raa social e poltica porque tivemos na histria da humanidade povos e milhes de seres humanos que foram mortos e dominados com justificativa nas pretensas diferenas biolgicas. Temos em nosso cotidiano, pessoas discriminadas em diversos setores da vida nacional porque apresentam cor da pele diferente. Nosso sistema educativo eurocntrico e nossos livros didticos so repletos de preconceitos por causa das diferenas. No sou um novato que ingressou ontem na universidade brasileira. No Brasil, fui introduzido ao pensamento racial nacional por grandes mestres, como Joo Baptista Borges Pereira, que foi meu orientador no doutoramento, Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Oracy Nogueira, entre outros. No sei onde estava Demtrio nessa poca e em que ano ele descobriu que a raa no existe. Acho um exagero querer me dar lio de moral sobre coisas que eu conheo muito antes dele. Isto no quer dizer que ele no possa me ensinar temas pertinentes geografia, como por exemplo, o que se pode ler em seu livro sobre a frica do Sul - "Capitalismo e Apartheid", publicado pela Editora Contexto, So Paulo, 1998, que oferece algumas informaes interessantes sobre a histria do sistema do apartheid. Esse livro faz parte da bibliografia recomendada na disciplina ministrada na Graduao, no obstante algumas incorrees histricas nele contidas. Um dos maiores problemas da nossa sociedade o racismo, que, desde o fim do sculo passado, construdo com base em essencializaes scio-culturais e histricas, e no mais necessariamente com base na variante biolgica ou na raa. No se luta contra o racismo apenas com retrica e leis repressivas, no somente com polticas macrossociais ou universalistas, mas tambm, e, sobretudo, com polticas focadas ou especficas em benefcio das vtimas do racismo numa sociedade onde este ainda vivo. neste sentido que fao parte do bloco dos intelectuais brancos e negros que defendem as polticas de ao afirmativa e de cotas para o acesso ao ensino superior e universitrio. Na cabea e no pensamento de Demtrio Magnoli, todos os que fazem parte desse bloco querem racializar o Brasil, e isso faz parte de um projeto e de um plano de ao. Que loucura! Defendemos as cotas em busca da igualdade entre todos os brasileiros, brancos, ndios e negros, como medidas corretivas s perdas acumuladas durante geraes e como polticas de incluso numa sociedade onde as prticas racistas cotidianas presentes no sistema educativo e nas instituies aprofundam cada vez mais a fratura social. Cerca de 70 universidades pblicas estaduais e federais que aderiram poltica de cotas sem esperar a Lei ainda em tramitao no Senado entenderam a importncia e a urgncia dessa poltica. Acontece que essas universidades no so dirigidas por negros, mas por compatriotas brancos que entendem que no se trata do problema do negro, mas sim do problema da sociedade, do seu problema como cidado brasileiro. Podemos dizer que todos esses brancos no comando das universidades querem tambm racializar o Brasil, suprimir os mestios e incentivar os conflitos raciais? Afinal, podemos localizar os linchamentos e massacres raciais nos Estados onde se encontram as sedes das universidades que aderiram s cotas? Tudo no passa de fabulaes dos que gostariam de manter o status quo e que inventam argumentos que horrorizam a sociedade. Quem est ganhando com as cotas? Apenas os alunos negros ou a sociedade como um todo? Quem ingressou atravs das cotas? Apenas os alunos negros e indgenas ou entraram tambm estudantes brancos da escola pblica? Concluindo, penso que existe um debate na sociedade que envolve pensamentos, filosofias e representaes do mundo, ideologias e formaes diferentes. Esse pluralismo socialmente saudvel, na medida em que pode contribuir para a conscientizao de seus membros sobre seus problemas e auxiliar a quem de direito, o legislador e o executivo, na tomada de decises esclarecidas. Este debate se resume a duas abordagens dualistas. A primeira compreende todos aqueles que se inscrevem na tica essencialista, segundo a qual a humanidade uma natureza ou uma essncia e como tal possui uma identidade genrica que faz de todo ser humano um animal racional diferente dos demais animais. Eles afirmam que existe uma natureza comum a todos os seres humanos em virtude da qual todos tm os mesmos direitos, independentemente de suas diferenas de idade, sexo, raa, etnias, cultura, religio, etc. Trata-se de uma defesa clara do universalismo ou do humanismo abstrato, concebido como democrtico. Considerando a categoria raa como uma fico, eles advogam o abandono deste conceito e sua substituio pelos conceitos mais cmodos, como o de etnia. De fato, eles se opem ao reconhecimento pblico das diferenas entre brancos e no brancos. Aqui temos um antirracismo de igualdade que defende os argumentos opostos ao antirracismo de diferena. As melhores polticas pblicas, capazes de resolver as mazelas e as desigualdades da sociedade, deveriam ser somente macro-sociais ou universalistas. Qualquer proposta de ao afirmativa vinda do Estado que introduza as diferenas para lutar contra as desigualdades, considerada, nessa abordagem, como um reconhecimento oficial das raas e, conseqentemente, como uma racializao do Brasil, cuja caracterstica dominante a mestiagem. Ou, em outras palavras, as polticas de reconhecimento das diferenas podero incentivar os conflitos raciais que, segundo dizem, nunca existiram. Assim sendo, a poltica de cotas uma ameaa mistura racial, ao ideal da paz consolidada pelo mito de democracia racial, etc. Eu pergunto se algum pode se tornar racista pelo simples fato de assumir sua branquitude, amarelitude ou negritude? Como se identifica ento o gegrafo Demtrio: branco, negro, mestio ou Demtrio indefinido? Pelo que me consta, ele se identifica como branco, mas no aceita que os negros e seus descendentes mestios se identifiquem como tais e lutem por seus direitos num pas onde so as grandes vtimas do racismo. A menos que ele negue a existncia das prticas racistas no cotidiano brasileiro, e as diferenas de cor, sexo, classe e religies que exigiriam polticas diferenciadas. A segunda abordagem rene todos aqueles que se inscrevem na postura nominalista ou construcionista, ou seja, os que se contrapem ao humanismo abstrato e ao universalismo, rejeitando uma nica viso do mundo em que no se integram as diferenas. Eles entendem o racismo como produo do imaginrio destinado a funcionar como uma realidade a partir de uma dupla viso do outro diferente, isto , do seu corpo mistificado e de sua cultura tambm mistificada. O outro existe primeiramente por seu corpo antes de se tornar uma realidade social. Neste sentido, se a raa no existe biologicamente, histrica e socialmente ela dada, pois no passado e no presente ela produz e produziu vtimas. Apesar do racismo no ter mais fundamento cientfico, tal como no sculo XIX, e no se amparar hoje em nenhuma legitimidade racional, essa realidade social da raa que continua a passar pelos corpos das pessoas no pode ser ignorada. Grosso modo, eis as duas abordagens essenciais que dividem intelectuais, estudiosos, miditicos, ativistas e polticos, no apenas no Brasil, mas no mundo todo. Ambas produzem lgicas e argumentos inteligveis e coerentes, numa viso que eu considero maniquesta. Podero as duas abordagens se cruzar em algum ponto em vez de se manter indefinidamente paralelas? Essa posio maniquesta reflete a prpria estrutura opressora do racismo, na medida em que os cidados se sentem forados a escolher a todo momento entre a negao e a afirmao da diferena. A melhor abordagem seria aquela que combina a aceitao da identidade humana genrica com a aceitao da identidade da diferena. Para ser um cidado do mundo, preciso ser, antes de mais nada, um cidado de algum lugar, observou Milton Santos num de seus textos. A cegueira para com a cor uma estratgia falha para se lidar com a luta antirracista, pois no permite a autodefinio dos oprimidos e institui os valores do grupo dominante e, conseqentemente, ignora a realidade da discriminao cotidiana. A estratgia que obriga a tornar as diferenas salientes em todas as circunstncias obriga a negar as semelhanas e impe expectativas restringentes. Se a questo fundamental como combinar a semelhana com a diferena para podermos viver harmoniosamente, sendo iguais e diferentes, por que no podemos tambm combinar as polticas universalistas com as polticas diferencialistas? Diante do abismo em matria de educao superior, entre brancos e negros, brancos e ndios, e levando-se em conta outros indicadores socioeconmicos provenientes dos estudos estatsticos do IBGE e do IPEA, os demais ndices do Desenvolvimento Humano provenientes dos estudos do PNUD, as polticas de ao afirmativa se impem com urgncia, sem que se abra mo das polticas macrossociais. No conheo nenhum defensor das cotas que se oponha melhoria do ensino pblico. Pelo contrrio, os que criticam as cotas e as polticas diferencialistas se opem categoricamente a qualquer poltica de diferena por consider-las a favor da racializao do Brasil. As leis para a regularizao dos territrios e das terras das comunidades quilombolas, de acordo com o artigo 68 da Constituio, as leis 10639/03 e 11645/08 que tornam obrigatrio o ensino da histria da frica, do negro no Brasil e dos povos indgenas; as polticas de sade para doenas especficas da populao negra como a anemia falciforme, etc., tudo isso considerado como racializao do Brasil, e virou motivo de piada. Convido o gegrafo Demtrio Magnoli a ler o que escrevi sobre o negro no Brasil antes de se lanar desesperadamente em crticas insensatas e graves acusaes. Se porventura ele identificar algum trao de defesa do racismo cientfico em meus textos, se encontrar algum projeto ou plano de ao para suprimir os mestios e racializar o Brasil, j que ele me acusa de cone desse projeto, ele poderia me processar na justia brasileira, em vez de inventar fbulas que no condizem com minha tradicionalmente pblica e costumeira postura.A autora do livro mestia, psiquiatra e estuda a dificuldade que os mestios entre branco e negro tm pra construir a sua identidade. Fiz a introduo mostrando que eles tm essa dificuldade justamente por causa de serem negros no-negros e brancos no-brancos. Isso prejudica o processo, mas no plano poltico, jurdico, eles no podem ficar ambivalentes. Eles tm que optar por uma identidade, tm que aceitar sua negritude, e no rejeit-la. Com isso ele acha que eu estou professando a supresso dos mestios no Brasil e que isso faz parte do projeto de racializao do brasileiro. No tinha nada para me acusar, soube que estou defendendo as cotas, tirou trs frases e fez a acusao dele no jornal.Frum O senhor toca na questo do imaginrio da democracia racial, mas as pessoas so formadas para aceitarem esse mitoKabengele O racismo uma ideologia. A ideologia s pode ser reproduzida se as prprias vtimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa ideologia. Alm das prprias vtimas, outros cidados tambm, que discriminam e acham que so superiores aos outros, que tm direito de ocupar os melhores lugares na sociedade. Se no reunir essas duas condies, o racismo no pode ser reproduzido como ideologia, mas toda educao que ns recebemos para poder reproduzi-la.H negros que introduziram isso, que alienaram sua humanidade, que acham que so mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de ocupar os postos de comando. Como tambm tem os brancos que introjetaram isso e acham mesmo que so superiores por natureza. Mas para voc lutar contra essa ideia no bastam as leis, que so repressivas, s vo punir. Tem que educar tambm. A educao um instrumento muito importante de mudana de mentalidade e o brasileiro foi educado para no assumir seus preconceitos. O Florestan Fernandes dizia que um dos problemas dos brasileiros o preconceito de ter preconceito de ter preconceito. O brasileiro nunca vai aceitar que preconceituoso. Foi educado para no aceitar isso. Como se diz, na casa de enforcado no se fala de corda.Quando voc est diante do negro, dizem que tem que dizer que moreno, porque se disser que negro, ele vai se sentir ofendido. O que no quer dizer que ele no deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que negro, no precisa branque-lo, torn-lo moreno. O brasileiro foi educado para se comportar assim, para no falar de corda na casa de enforcado. Quando voc pega um brasileiro em flagrante de prtica racista, ele no aceita, porque no foi educado para isso. Se fosse um americano, ele vai dizer: No vou alugar minha casa para um negro. No Brasil, vai dizer: Olha, amigo, voc chegou tarde, acabei de alugar. Porque a educao que o americano recebeu pra assumir suas prticas racistas, pra ser uma coisa explcita.Quando a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinio em 1995, perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de 80% disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: voc j discriminou algum?. A maioria disse que no. Significa que h racismo, mas sem racistas. Ele est no ar Como voc vai combater isso? Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que reage: voc que complexado, o problema est na sua cabea. Ele rejeita a culpa e coloca na prpria vtima. J ouviu falar de crime perfeito? Nosso racismo um crime perfeito, porque a prpria vtima que responsvel pelo seu racismo, quem comentou no tem nenhum problema.Revista Frum O humorista Danilo Gentilli escreveu no Twitter uma piada a respeito do King Kong, comparando com um jogador de futebol que saa com loiras. Houve uma reao grande e a continuao dos argumentos dele para se justificar vai ao encontro disso que o senhor est falando. Ele dizia que racista era quem acusava ele, e citava a questo do orgulho negro como algo de quem racista.Kabengele Faz parte desse imaginrio. O que est por trs dessa ilustrao de King Kong, que ele compara a um jogador de futebol que vai casar com uma loira, a ideia de algum que ascende na vida e vai procurar sua loira. Mas qual o problema desse jogador de futebol? So pessoas vtimas do racismo que acham que agora ascenderam na vida e, para mostrar isso, tm que ter uma loira que era proibida quando eram pobres? Pode at ser uma explicao. Mas essa loira no uma pessoa humana que pode dizer no ou sim e foi obrigada a ir com o King Kong por causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos no so por dinheiro na nossa sociedade? A velha burguesia s se casa dentro da velha burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da sociedade.Essas jovens brancas, loiras, tambm pulam a cerca de suas identidades pra casar com um negro jogador. Por que a corda s arrebenta do lado do jogador de futebol? No fundo, essas pessoas no querem que os negros casem com suas filhas. uma forma de racismo. Esto praticando um preconceito que no respeita a vontade dessas mulheres nem essas pessoas que ascenderam na vida, numa sociedade onde o amor algo sem fronteiras, e no teria tantos mestios nessa sociedade. Com tudo o que aconteceu no campo de futebol com aquele jogador da Argentina que chamou o Grafite de macaco, com tudo o que acontece na Europa, esse humorista faz uma ilustrao disso, ou uma provocao ou quer reafirmar os preconceitos na nossa sociedade.Frum que no caso, o Danilo Gentili ainda justificou sua piada com um argumento muito simplrio: por que eu posso chamar um gordo de baleia e um negro de macaco, como se fosse a mesma coisa.Kabengele interessante isso, porque tenho a impresso de que um cara que no conhece a histria e o orgulho negro tem uma histria. So seres humanos que, pelo prprio processo de colonizao, de escravido, a essas pessoas foi negada sua humanidade. Para poder se recuperar, ele tem que assumir seu corpo como negro. Se olhar no espelho e se achar bonito ou se achar feio. isso o orgulho negro. E faz parte do processo de se assumir como negro, assumir seu corpo que foi recusado. Se o humorista conhecesse isso, entenderia a histria do orgulho negro. O branco no tem motivo para ter orgulho branco porque ele vitorioso, est l em cima. O outro que est l em baixo que deve ter orgulho, que deve construir esse orgulho para poder se reerguer.Frum O senhor tocou no caso do Grafite com o Desbato, e recentemente tivemos, no jogo da Libertadores entre Cruzeiro e Grmio, o caso de um jogador que teria sido chamado de macaco por outro atleta. Em geral, as pessoas jornalistas que comentaram, a diretoria gremista argumentavam que no campo de futebol voc pode falar qualquer coisa, e que se as pessoas fossem se importar com isso, no teria como ter jogo de futebol. Como voc v esse tipo de situao?Kabengele Isso uma prova daquilo que falei, os brasileiros so educados para no assumir seus hbitos, seu racismo. Em outros pases, no teria essa conversa de que no campo de futebol vale. O pessoal pune mesmo. Mas aqui, quando se trata do negro J ouviu caso contrrio, de negro que chama branco de macaco? Quando aquele delegado prendeu o jogador argentino no caso do Grafite, todo mundo caiu em cima. Os tcnicos, jornalistas, esportistas, todo mundo dizendo que assim no futebol. Ento a gente no pode educar o jogador de futebol, tudo permitido? Quando h violncia fsica, eles so punidos, mas isso aqui uma violncia tambm, uma violncia simblica. Por que a violncia simblica aceita a violncia fsica punida?Frum Como o senhor v hoje a aplicao da lei que determina a obrigatoriedade do ensino de cultura africana nas escolas? Os professores, de um modo geral, esto preparados para lidar com a questo racial?Kabengele Essa lei j foi objeto de crtica das pessoas que acham que isso tambm seria uma racializao do Brasil. Pessoas que acham que, sendo a populao brasileira uma populao mestia, no preciso ensinar a cultura do negro, ensinar a histria do negro ou da frica. Temos uma nica histria, uma nica cultura, que uma cultura mestia. Tem pessoas que vo nessa direo, pensam que isso uma racializao da educao no Brasil.Mas essa questo do ensino da diversidade na escola no propriedade do Brasil. Todos os pases do mundo lidam com a questo da diversidade, do ensino da diversidade na escola, at os que no foram colonizadores, os nrdicos, com a vinda dos imigrantes, esto tratando da questo da diversidade na escola.O Brasil deveria tratar dessa questo com mais fora, porque um pas que nasceu do encontro das culturas, das civilizaes. Os europeus chegaram, a populao indgena dona da terra os africanos, depois a ltima onda imigratria dos asiticos. Ento tudo isso faz parte das razes formadoras do Brasil que devem fazer parte da formao do cidado. Ora, se a gente olhar nosso sistema educativo, percebemos que a histria do negro, da frica, das populaes indgenas no fazia parte da educao do brasileiro.Nosso modelo de educao eurocntrico. Do ponto de vista da historiografia oficial, os portugueses chegaram na frica, encontraram os africanos vendendo seus filhos, compraram e levaram para o Brasil. No foi isso que aconteceu. A histria da escravido uma histria da violncia. Quando se fala de contribuies, nunca se fala da frica. Se se introduzir a histria do outro de uma maneira positiva, isso ajuda. por isso que a educao, a introduo da histria dele no Brasil, faz parte desse processo de construo do orgulho negro. Ele tem que saber que foi trazido e aqui contribuiu com o seu trabalho, trabalho escravizado, para construir as bases da economia colonial brasileira. Alm do mais, houve a resistncia, o negro no era um Joo-Bobo que simplesmente aceitou, seno a gente no teria rebelies das senzalas, o Quilombo dos Palmares, que durou quase um sculo. So provas de resistncia e de defesa da dignidade humana. So essas coisas que devem ser ensinadas. Isso faz parte do patrimnio histrico de todos os brasileiros. O branco e o negro tm que conhecer essa histria porque a que vo poder respeitar os outros.Voltando a sua pergunta, as dificuldades so de duas ordens. Em primeiro lugar, os educadores no tm formao para ensinar a diversidade. Estudaram em escolas de educao eurocntrica, onde no se ensinava a histria do negro, no estudaram histria da frica, como vo passar isso aos alunos? Alm do mais, a frica um continente, com centenas de culturas e civilizaes. So 54 pases oficialmente. A primeira coisa formar os educadores, orientar por onde comeou a cultura negra no Brasil, por onde comea essa histria. Depois dessa formao, com certo contedo, material didtico de boa qualidade, que nada tem a ver com a historiografia oficial, o processo pode funcionar.Frum Outra questo que se discute sobre o negro nos espaos de poder. No se veem negros como prefeitos, governadores. Como trabalhar contra isso?Kabengele O que um pas democrtico? Um pas democrtico, no meu ponto de vista, um pas que reflete a sua diversidade na estrutura de poder. Nela, voc v mulheres ocupando cargos de responsabilidade, no Executivo, no Legislativo, no Judicirio, assim como no setor privado. E ainda os ndios, que so os grandes discriminados pela sociedade. Isso seria um pas democrtico. O fato de voc olhar a estrutura de poder e ver poucos negros ou quase no ver negros, no ver mulheres, no ver ndios, isso significa que h alguma coisa que no foi feita nesse pas. Como construo da democracia, a representatividade da diversidade no existe na estrutura de poder. Por qu?Se voc fizer um levantamento no campo jurdico, quantos desembargadores e juzes negros tm na sociedade brasileira? Se voc for pras universidades pblicas, quantos professores negros tem, comeando por minha prpria universidade? Esta universidade tem cerca de 5 mil professores. Quantos professores negros tem na USP? Nessa grande faculdade, que a Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas (FFLCH), uma das maiores da USP junto com a Politcnica, tenho certeza de que na minha faculdade fui o primeiro negro a entrar como professor. Desde que entrei no Departamento de Antropologia, no entrou outro. Daqui trs anos vou me aposentar. O professor Milton Santos, que era um grande professor, quase Nobel da Geografia, entrou no departamento, veio do exterior e eu j estava aqui. Em toda a USP, no sou capaz de passar de dez pessoas conhecidas. Pode ter mais, mas no chega a 50, exagerando. Se voc for para as grandes universidades americanas, Harvard, Princeton, Standford, voc vai encontrar mais negros professores do que no Brasil. L eles so mais racistas, ou eram mais racistas, mas como explicar tudo isso?120 anos de abolio. Por que no houve uma certa mobilidade social para os negros chegarem l? H duas explicaes: ou voc diz que ele geneticamente menos inteligente, o que seria uma explicao racista, ou encontra explicao na sociedade. Quer dizer que se bloqueou a sua mobilidade. E isso passa por questo de preconceito, de discriminao racial. No h como explicar isso. Se voc entender que os imigrantes japoneses chegaram, ns comemoramos 100 anos recentemente da sua vinda, eles tiveram uma certa mobilidade. Os coreanos tambm ocupam um lugar na sociedade. Mas os negros j esto a 120 anos da abolio. Ento tem uma explicao. Da a necessidade de se mudar o quadro. Ou ns mantemos o quadro, porque se no mudamos estamos racializando o Brasil, ou a gente mantm a situao para mostrar que no somos racistas. Porque a explicao essa, se mexer, somos racistas e estamos racializando. Ento vamos deixar as coisas do jeito que esto. Esse o dilema da sociedade.Revista Frum como o senhor v o tratamento dado pela mdia questo racial?Kabengele A imprensa faz parte da sociedade. Acho que esse discurso do mito da democracia racial um discurso tambm que absorvido por alguns membros da imprensa. Acho que h uma certa tendncia na imprensa pelo fato de ser contra as polticas de ao afirmativa, sendo que tambm no so muito favorveis a essa questo da obrigatoriedade do ensino da histria do negro na escola.Houve, no ms passado, a II Conferncia Nacional de Promoo da Igualdade Racial. Silncio completo da imprensa brasileira. No houve matrias sobre isso. Os grandes jornais da imprensa escrita no pautaram isso. O silncio faz parte do dispositivo do racismo brasileiro. Como disse Elie Wiesel, o carrasco mata sempre duas vezes. A segunda mata pelo silncio. O silncio uma maneira de voc matar a conscincia de um povo. Porque se falar sobre isso abertamente, as pessoas vo buscar saber, se conscientizar, mas se ficar no silncio a coisa morre por a. Ento acho que o silncio da imprensa, no meu ponto de vista, passa por essa estratgia, o no-dito.Acabei de passar por uma experincia interessante. Sa da Conferncia Nacional e fui para Barcelona, convidado por um grupo de brasileiros que pratica capoeira. Claro, receberam recursos do Ministrio das Relaes Exteriores, que pagou minha passagem e a estadia. Era uma reunio pequena de capoeiristas e fiz uma conferncia sobre a cultura negra no Brasil. Saiu no El Pais, que o jornal mais importante da Espanha, noticiou isso, uma coisa pequena. Uma conferncia nacional deste tamanho aqui no se fala. um contrassenso. O silncio da imprensa no um silncio neutro, um silncio que indica uma certa orientao da questo racial. Tem que no dizer muita coisa e ficar calado. Amanh no se fala mais, acabou.Essa matria parte integrante da edio impressa da Frum de agosto. Nas bancas.MAGNOLI ATACA COTAS E PREV FIM DA UNIVERSIDADEEm artigo, socilogo afirma que ingresso em massa de cotistas ter efeito devastador nas instituies pblicas de ensino superior16 DE AGOSTO DE 2012 S 07:43247 O socilogo Demetrio Magnoli, um dos mais cidos crticos da poltica de cotas e ao afirmativa, publicou artigo nesta quinta-feira, no jornal Estado de S.Paulo, prevendo a destruio da universidade pblica, caso a poltica seja levada adiante. Leia:Os amigos do povo contra o mritoDemtrio MagnoliA assinatura da deputada Nice Lobo - campe em faltas na Cmara e esposa do ministro Edison Lobo, protegido de Jos Sarney - no projeto de lei de cotas nas instituies federais de ensino superior e mdio um desses acasos repletos de significados. Por intermdio de Nice, a nova elite poltica petista se abraa s elites tradicionais numa santa aliana contra o princpio do mrito. Os aliados exibem o projeto como um reencontro do Brasil consigo mesmo. De um modo perverso, eles tm razo.Nunca antes uma democracia aprovou lei similar. Nos EUA as polticas de preferncias raciais jamais se cristalizaram em reservas de cotas numricas. ndia e frica do Sul reservaram parcelas pequenas das vagas universitrias a grupos populacionais especficos. O Brasil prepara-se para excluir 50% das vagas das instituies federais da concorrncia geral, destinando-as a estudantes provenientes de escolas pblicas.O texto votado no Senado, ilustrao acabada dos costumes polticos em voga, concilia pelo mtodo da justaposio as demandas dos mais diversos "amigos do povo". Metade das vagas reservadas contemplar jovens oriundos de famlias com renda no superior a 1,5 salrio mnimo. Todas elas, em cada "curso e turno", sero repartidas em subcotas raciais destinadas a "negros, pardos e indgenas" nas propores de tais grupos na populao do Estado em que se situa a instituio. Uma extravagncia final abole os exames gerais, determinando que os cotistas sejam selecionados pelas notas obtidas em suas escolas de origem.Gueto o nome do jogo. S haver uma espcie viciada de concorrncia entre "iguais": alunos de escolas pblicas concorrem entre si, mas no com alunos de escolas privadas. Jovens miserveis no concorrem com jovens pobres. "Pardos" competem entre si, mas no com "brancos" ou "negros", detentores de suas prprias cotas. Cada um no seu quadrado: todos tm um lugar ao sol - mas o sol que ilumina uns no o mesmo que ilumina os outros. No fim do arco-ris, cada cotista portar o rtulo de representante de uma minoria oficialmente reconhecida. O "branco" se sentar ao lado do "negro", do "pardo", do "indgena", do "pobre" e do "miservel" - e todos, separados, mas iguais, agradecero a seus padrinhos polticos pela vaga concedida.Nice Lobo apenas um detalhe significativo. O projeto reflete um consenso de Estado. Nasce no Congresso, tem o apoio da presidente, que prometeu sancion-lo, e a bno prvia do STF, que atirou o princpio da igualdade dos cidados lixeira das formalidades jurdicas ao declarar a constitucionalidade das cotas raciais. O Estado brasileiro desembaraa-se do princpio do mrito alegando que se trata de critrio "elitista". Na verdade, o avesso disso: a meritocracia difundiu-se no pensamento ocidental com as Luzes, junto com o princpio da igualdade perante a lei, na hora do combate aos critrios aristocrticos de promoo escolar e preenchimento de cargos no servio pblico. Naquele contexto, para suprimir a influncia do "sangue azul" na constituio das burocracias pblicas, nasceram os concursos baseados em exames.O princpio do mrito no produz, magicamente, a igualdade de oportunidades, mas registra com eficincia as injustias sociais. Os vestibulares e o Enem revelam as intolerveis disparidades de qualidade entre escolas privadas e pblicas. Entretanto, revelam tambm que em todos os Estados existem escolas pblicas com desempenho similar ao das melhores escolas particulares. A constatao deveria ser o ponto de partida para uma revoluo no ensino pblico destinada a equalizar por cima a qualidade da educao oferecida aos jovens. No lugar disso, a lei de cotas oculta o fracasso do ensino pblico, evitando o cotejo entre escolas pblicas e privadas. Os "amigos do povo" asseguram, pela abolio do mrito, a continuidade do apartheid educacional brasileiro.O ingresso em massa de cotistas ter impacto devastador nas universidades federais. Por motivos bvios, elas esto condenadas a espelhar o nvel mdio das escolas pblicas que fornecero 50% de seus graduandos. Hoje quase todos os reitores das federais funcionam como meros despachantes do poder de turno. Mesmo assim, eles alertam para os efeitos do populismo sem freios. O Brasil queima a meta da excelncia na pira de sacrifcio dos interesses de curto prazo de sua elite poltica. Os "amigos do povo" convertem o ensino pblico superior em ferramenta de mistificao ideolgica e fabricao de clientelas eleitorais.No STF, durante o julgamento das cotas raciais, Marco Aurlio Mello pediu a "generalizao" das polticas de cotas. A "lei Lobo" atende ao apelo do juiz que, como seus pares, fulminou o artigo 208 da Constituio, no qual est consagrado o princpio do mrito para o acesso ao ensino superior. Mas a virtual abolio do princpio surtir efeitos em cascata na esfera do funcionalismo pblico, que interessa crucialmente elite poltica. As prximas leis de cotas trataro de desmoralizar os concursos pblicos nos processos de contratao, nos diversos nveis de governo.A meritocracia o alicerce que sustenta as modernas burocracias estatais, traando limites ao aparelhamento poltico da administrao pblica. Escandalosamente, a elite poltica brasileira reserva para si a prerrogativa de nomear os ocupantes de centenas de milhares de cargos de livre provimento, uma fonte inigualvel de poder e corrupo. A ofensiva dos "amigos do povo" contra o princpio do mrito tem a finalidade indireta, mas estratgica, de perpetuar e estender o controle dos partidos sobre a administrao pblica.O pas do patrimonialismo, do clientelismo, dos amigos e dos favores moderniza sua prpria tradio ao se desvencilhar de um efmero flerte com o princpio do mrito. Nice Lobo um retrato fiel da elite poltica remodelada pelo lulismo.* SOCILOGO, DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USPO Brasil e a nao diasprica, um artigo de Demtrio MagnoliPublicado no Globo desta quinta-feiraDEMTRIO MAGNOLIA gloriosa Comisso de Constituio e Justia (CCJ) da Cmara dos Deputados aprovou uma Proposta de Emenda Constituio (PEC) que estabelece cotas raciais na representao parlamentar do povo. Ignorando tanto a Constituio quanto a Justia, a CCJ aprova qualquer coisa que emane de um grupo de interesse organizado, o que um sintoma clamoroso da desmoralizao do Congresso. Nesse caso, viola-se diretamente o princpio fundamental da liberdade de voto. Por isso, a PEC de autoria dos petistas Joo Paulo Cunha (SP) e Luiz Alberto (BA) provavelmente dormir o longo sono dos disparates nos escaninhos da Cmara. Mas ela cumpre uma funo til: evidencia o verdadeiro programa do racialismo, rasgando a fantasia com que se adorna no debate pblico.O argumento ilusionista para a introduo de cotas raciais no ingresso s universidades residia na suposta desvantagem escolar prvia dos negros algo que, de fato, uma desvantagem prvia dos pobres de todas as cores de pele. A fantasia da compensao social comeou a esgarar-se com a extenso das cotas raciais para cursos de ps-graduao, cujas vagas so disputadas por detentores de diplomas universitrios. A PEC aprovada na CCJ comprova que as polticas de raa no so motivadas por um desejo de corrigir distores derivadas da renda. O racialismo exibe-se, agora, como ele realmente : um programa de diviso dos brasileiros segundo o critrio envenenado da raa.De acordo com a PEC, na Cmara dos Deputados e nas Assembleias Legislativas estaduais, ser reservada uma parcela de cadeiras para parlamentares negros equivalente a dois teros do percentual de pessoas que se declaram pretas ou pardas no mais recente censo demogrfico. As bancadas negras no sero inferiores a um quinto ou superiores metade do total de cadeiras. Os deputados proponentes operam como despachantes de ONGs racialistas e expressam, na PEC, a convico poltica que as anima: o Brasil no uma nao, mas um espao geopoltico no qual, sob a hegemonia dos brancos, pulsa uma nao africana diasprica. A presena parlamentar de bancadas negras representaria o reconhecimento tcito tanto da inexistncia de uma nao brasileira quanto da existncia dessa nao na dispora.Os eleitores, reza a PEC, daro dois votos: o primeiro, para um candidato de uma lista geral; o segundo, para um candidato de uma lista de negros. A proposta desvia-se, nesse ponto, de uma frrea lgica racialista. Segundo tal lgica, os eleitores deveriam ser, eles tambm, bipartidos pela fronteira da raa: os negros votariam apenas na lista de candidatos negros e os demais, apenas na lista geral. A hiptese coerente no violaria o princpio da liberdade de voto, pois estaria ancorada num contrato constitucional de reconhecimento da nao diasprica. Como inexiste esse contrato, os racialistas optaram por um atalho esdrxulo, que escarnece da liberdade de voto com a finalidade de, disfaradamente, inscrever a nao diasprica no ordenamento poltico e jurdico do pas.Naes no so montanhas, rios ou vales: no existem como componentes do mundo natural. Na expresso certeira de Benedict Anderson, naes so comunidades imaginadas: elas podem ser fabricadas na esfera da poltica, por meio das ferramentas do nacionalismo. A PEC no caiu do cu. A nao africana na dispora surgiu no nacionalismo negro do incio do sculo XX com o americano W. E. B. Du Bois e o jamaicano Marcus Garvey. No Brasil, aportou cerca de trs dcadas atrs, pela nau do Movimento Negro Unificado, entre cujos fundadores estava Luiz Alberto. No incio, a verso brasileira do nacionalismo negro tingia-se com as cores do anticapitalismo. Depois, a partir da preparao da Conferncia de Durban, da ONU, em 2001, adaptou-se ordem vigente, aninhando-se no colo bilionrio da Fundao Ford. Afro-americanos, nos EUA, e afrodescendentes, no Brasil, so produtos identitrios paralelos dessa vertente narrativa.O acento americano do discurso racialista brasileiro to bvio quanto problemtico. Nos EUA, o projeto poltico de uma identidade negra separada tem alicerces slidos, fincados nas leis de segregao que, depois da Guerra de Secesso, traaram uma linha oficial entre brancos e negros, suprimindo no nascedouro a possibilidade de construo de identidades intermedirias. No Brasil, em contraste, esse projeto choca-se com a noo de mestiagem, que funciona como poderoso obstculo no caminho da fabricao poltica de raas. A soluo dos porta-bandeiras do nacionalismo negro impor, de cima para baixo, a diviso dos brasileiros em brancos e negros. As leis de cotas raciais servem para isso, exclusivamente.As diferenas histricas entre EUA e Brasil tm implicao direta na gramtica do discurso poltico. L, o nacionalismo negro uma proposio clara, que provoca um debate pblico informado e, quando Barack Obama se define como mestio, emerge uma resposta desconcertante no cenrio conhecido da polaridade racial. Aqui, os arautos do nacionalismo negro operam por meio de subterfgios, escondendo-se atrs do pretexto fcil da desigualdade social e encontram polticos oportunistas, juzes populistas e intelectuais preguiosos o suficiente para conceder-lhes o privilgio da prestidigitao.Tirem a mscara! eis a exigncia que deve ser dirigida aos nossos racialistas, na hora em que apresentam a PEC do Parlamento Racial. Saiam luz do dia e conclamem o Brasil a escrever uma nova Constituio, redefinindo-se como um Estado binacional. Digam aos brasileiros que vocs no querem direitos iguais e oportunidades para todos numa repblica democrtica, mas almejam apenas a condio de lderes polticos de um movimento racial. Vocs no tm vergonha de ocultar seu programa retrgrado sombra da persistente runa de nossas escolas pblicas?A maldio da linguagem racialPOR DEMTRIO MAGNOLI27/03/2014 0:00Carolus Linnaeus (Lineu), o pai fundador da taxonomia biolgica, sugeriu uma diviso da espcie humana em quatro raas: europeanus (brancos), asiaticus (amarelos), americanus (vermelhos) e africanus (negros). Naturalmente, explicou Linnaeus, a raa europeia era formada por indivduos inteligentes, inventivos e gentis, enquanto os asiticos experimentavam inatas dificuldades de concentrao, os nativos americanos deixavam-se dominar pela teimosia e pela irritao e os africanos dobravam-se lassido e preguia. Isso foi em meados do sculo XVIII, na antevspera do surgimento do racismo cientfico. Como admitir que uma linguagem paralela seja utilizada por Ricardo Noblat, um jornalista culto e respeitado, na segunda dcada do sculo XXI?O presidente do STF, Joaquim Barbosa, moveu representao contra Noblat, acusando-o dos crimes de injria, difamao e preconceito racial. Trs frases numa coluna do jornalista publicada no GLOBO (18 de agosto de 2013) formam um alvo legtimo da representao criminal: Para entender melhor Joaquim acrescente-se a cor sua cor. H negros que padecem do complexo de inferioridade. Outros assumem uma postura radicalmente oposta para enfrentar a discriminao. Noblat resolveu explicar Joaquim Barbosa a partir de presumidos traos gerais do carter dos negros: Lineu, no sculo errado...As trs frases deplorveis e preconceituosas, sim! oferecem aos negros as alternativas de sofrerem de complexo de inferioridade ou de arrogncia, que seria a postura radicalmente oposta. Contudo, no conjunto do raciocnio, h algo pior: a cassao da personalidade de Joaquim Barbosa, a anulao de sua individualidade. Joaquim no existe como indivduo, mas como representao simblica de uma raa; ele o que pois sua cor esculpe sua alma eis a mensagem de Noblat. Podemos aceitar assertivas sobre carter e atitudes baseadas na raa dos indivduos? Essa a questo que Joaquim Barbosa decidiu repassar para tribunais criminais.O problema de fundo da representao que o Estado brasileiro oficializou as raas, por meio de polticas raciais adotadas pelo Executivo, votadas pelo Congresso e avalizadas pelo Judicirio inclusive, pessoal e diretamente, por Joaquim Barbosa. De acordo com as polticas raciais em vigor, fundaram-se direitos raciais ligados ao ingresso no ensino superior, na ps-graduao e em carreiras do funcionalismo pblico. Os indivduos beneficirios das cotas privilegiadas so descritos como representantes de uma raa do presente e, tambm, do passado histrico dos negros. Foi o prprio Estado que introduziu a raa (e, com ela, a linguagem racial!) no ordenamento poltico brasileiro. Os juzes que daro um veredicto sobre a ao contra Noblat provavelmente circundaro o problema de princpio mas isto no o suprime.Na democracia, a linguagem tem importncia maior que a fora. A linguagem racial introduziu-se entre ns a partir do alto. Pais so compelidos a definir a raa de seus filhos nas fichas de matrcula na escola. Jovens estudantes devem declarar uma raa nos umbrais de acesso s universidades. Na poltica, a cor e a raa converteram-se em referncias corriqueiras. Lula da Silva invocou a cor da pele de Joaquim Barbosa como motivao para sua indicao ao Supremo (algo mencionado, alis, em outra linha da coluna de Noblat). Brancos e negros, essas entidades da imaginao racial, transformaram-se em objetos discursivos oficializados. Joaquim Barbosa tem sua parcela de responsabilidade nisso, junto com seus colegas do STF.Cotas raciais no existem para promover justia social, mas para convencer as pessoas a usarem rtulos de identidade racial. Anos atrs, um amigo dileto confessou-me que, para produzir artigos contrrios s polticas de raa, tinha de superar uma profunda contrariedade ntima. Perdemos cada vez que escrevemos as palavras branco e negro, explicou-me com sabedoria, pois contribumos involuntariamente na difuso da linguagem racial. Raas no existem mas passam a existir na conscincia dos indivduos quando se cristalizam na linguagem cotidiana. Caminhamos bastante na estrada maldita da naturalizao das raas, como atesta a coluna de Noblat.Na sua defesa, Noblat talvez argumente que apenas jogou de acordo com as regras implcitas nas polticas de raa julgadas constitucionais por um STF pronto a ignorar as palavras da Lei sobre a igualdade entre os cidados. Seu advogado poderia dizer que o jornalista no inventou a moda de julgar as pessoas pela cor da pele que isso, agora, prtica corrente das autoridades pblicas e das universidades. Mas ele continuar errado: a resistncia racializao da sociedade brasileira exige, antes de tudo, que se rejeite a linguagem racial. Temos a obrigao de ser subversivos, de praticar a desobedincia civil, de colocar os termos raa, brancos e negros entre as devidas aspas.A pedagogia da raa entranhou-se nas polticas de Estado. Dez anos atrs, um parecer do Conselho Nacional de Educao, que instruiu o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana, alertou os professores sobre equvocos quanto a uma identidade humana universal. Segundo o MEC, os princpios da Declarao Universal dos Direitos Humanos constituem, portanto, equvocos: humanidade uma abstrao; a realidade encontra-se nas raas. As trs frases de Noblat, que abolem a individualidade de Joaquim Barbosa, situam-se no campo de fora daquele parecer. A resposta antirracial a elas pode ser formulada em duas frases simples mas, hoje, subversivas:1) Joaquim Barbosa igual a todos os demais seres humanos, pois existe, sim, uma identidade humana universal;2) Joaquim Barbosa um indivduo singular, diferente de todos os demais seres humanos, que so diferentes entre si.