Nelson Rodrigues [=] Apelo de uma fé perdida

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Nelson Rodrigues A A p p e e l l o o d d e e u u m m a a f f é é p p e e r r d d i i d d a a

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Nelson Rodrigues

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Imagino a seguinte cena: – d. Hélder chega à janela

e olha o céu. No verso do Chico Buarque não há janela

intranscendente, e explico: – qualquer janela nos põe em

relação direta, fulminante, com o infinito. Assim está certo

o poeta popular. É preciso usar as janelas com larga e

cálida abundância.

Mas volto a d. Hélder. Ele olha o céu, e por quê?

Minha infância foi a época dos valores nítidos, sim, dos

valores precisos. Céu era Céu. Deus era Deus. O Diabo era

o Diabo. Por outro lado, o céu era a evidência do

sobrenatural e, repito, por trás do azul residia o

sobrenatural. E, quando o sujeito olhava para o alto, um

arroubo subia de suas entranhas.

Continua de pé a pergunta: – Por que d. Hélder, na

cena imaginária, olha o céu? Será a nostalgia da vida

eterna? Sabemos que, em nosso tempo, a vida eterna

perdeu a sua função, e insisto: – é tão inatural, tão

obsoleta, tão fora de moda como o primeiro espartilho de

Sarah Bernhardt. Mas não importa. Há momentos em que

o homem recebe o apelo da fé perdida. E, por vezes, baixa

sobre nós o tédio do efêmero, do contingente, do perecível.

Quem sabe se d. Hélder quer provar, de novo, o mel

do eterno?

Não creio, eis a verdade, não creio na hipótese

mística. Acreditem: – d. Hélder só olha o céu para saber

se leva ou não o guarda-chuva. Põe-se na janela, como a

Carolina, mas com desígnios estritamente meteorológicos.

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Daí a abismal dessemelhança entre as duas épocas, entre

os anos de minha infância e os tempos atuais. Em 1919, o

mesmo d. Hélder seria outro, e outro o céu, e outro o

infinito. (Depois da tremenda aventura espacial, até o

infinito parece ter a domesticidade do cachorro velho.) Mas

pergunto: – que fará o brasileiro sem a sua fé? Somos um

povo de uma religiosidade profundíssima. Fui, certa vez,

testemunha de um episódio lindo. Esse fato, que já contei

várias vezes, merece outra reprise. Mas vamos lá. Um dia

entro na redação e vejo o Reynaldo Jardim curvado sobre

a máquina, batendo as quinze cópias de uma corrente. Era

um materialista feroz que, entretanto, cedia a um

formidável surto místico.

E, como Reynaldo Jardim, conheço uma infinidade de

patrícios.

Alguns têm cinco religiões ao mesmo tempo. Por

exemplo: um vizinho que, de vez em quando, me dá carona

para a cidade. Uma sexta-feira eu o convidei para jantar.

Respondeu-me: – “Hoje, não, hoje é dia da sessão

espírita”. Pergunto: – “Você não é católico?”. Olhou-me: –

“E daí?”. Insisto: – “E vai à sessão espírita?”. O outro

vacila na resposta. Explode: – “Sossega o periquito”. E

mais não disse.

Eis o que importa notar: – o brasileiro tem tão

formidável potencial de fé que pode aplicá-lo por toda

parte. E, súbito, nos tiram a vida eterna. Não há mais

sobrenatural, não há mais nada. Estamos reduzidos aos

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quinze minutos da vida terrena. Vamos e venhamos: esse

quarto de hora não basta para a nossa fome. Sem a sua

eternidade, o brasileiro anda por aí, errante e desgraçado.

Mas o que é que esse pobre povo recebe em troca?

Resposta: tem a sua fome promovida. Lembro-me de um

debate de católicos numa televisão de Recife. Bem. Eram

católicos inteligentíssimos, arejadíssimos etc. etc. E vejam

o tema: amor livre. O que se disse, o que se opinou, o que

se insinuou sobre liberdade sexual! Eram todos

superiormente compreensivos. Não houve, porém, uma

unanimidade. E o locutor, outro liberto, avisou

risonhamente que, no próximo programa, falaria “o nosso

arcebispo”.

E, de fato, no dia e hora marcados, compareceu d.

Hélder às câmaras e microfones. A cidade inteira parou.

Todos queriam conhecer a sua palavra sobre o direito que

temos de fazer a nossa vida sexual com a naturalidade de

um vira-latas de esquina ou de um gato de telhado. D.

Hélder ria, sorria, ficou de mãos postas. Então o locutor,

com uma pele de quem lavou o rosto há cinco minutos,

propõe a questão: – “O que é que o senhor acha, d.

Hélder, do amor livre?”.

Seria desprimoroso uma resposta fulminante. D.

Hélder faz um suspense. Em casa as senhoras tinham

palpitações, falta de ar. O arcebispo pensa, pensa, e súbito

recebe uma luz. De mãos postas, responde com outra

pergunta: – “Por que falar de amor livre se o Nordeste

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passa fome?”.

Depois disso, o speaker poderia insistir? Nunca. E,

ao mesmo tempo, não sabemos o que mais admirar em d.

Hélder: se a fina inteligência, se a cálida bondade. Uma

telespectadora resmungou: – “Não respondeu”.

Engano da santa senhora. Respondeu, ou por outra,

sua aparente evasiva era já uma resposta. Interrogado

sobre o amor livre, d. Hélder falou da “fome no Nordeste”.

Aí está dito tudo. Vou mais longe: mais do que uma

resposta, as palavras do caro arcebispo encerram uma

solução. É preciso saber ler nas entrelinhas. Não

precisamos namorar em portão, sala de visitas ou cinema.

Nada de andar de mãos dadas como em 1920. Estão

suspensos os beijos. D. Hélder disse que “o Nordeste passa

fome”. Portanto, o amor livre ou enjaulado perde a sua

função. Os problemas da carne e da alma estão resolvidos:

o Nordeste passa fome.

Vejam vocês: na primeira oportunidade eu estaria

disposto a perguntar a d. Hélder: – “Que me diz o senhor

ou que notícias me dá da minha vida eterna?”. Não farei,

porém, tal consulta, porque o querido arcebispo havia de

me atirar na cara a “fome do Nordeste”. Faz-se assim uma

promoção inédita da fome. Mas bolas: – e por que só a do

Nordeste? As outras não merecem uma fatia de pão e um

pouco de manteiga para lhes barrarem por cima? Por

outro lado, é uma visão utópica a desse Brasil, onde só o

Nordeste passa fome.

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E eis que volto à minha própria fome. Falei ontem do

período de 30 a 35. Disse eu que, nessa época, não havia

em mim um sentimento forte.

Engano, engano. Algo restou em mim, intacto: a fé.

Jamais acreditei tanto. Deus era alguém tão pessoal,

tangível como qualquer vizinho. Amava os santos. E pior:

a fome me dava, por vezes, a sensação de que eu próprio

era um santo. Eu, um santo vergado. Lembro-me de que,

uma noite, comecei a ler uma condensação de Freud. Lia

aquilo e voltava para reler. Não entendia nada ou entendia

muito pouco. Parecia-me que o sábio valorizava os

instintos e só os instintos. E, súbito, deixei de ser o homem

eterno. Reagi como se Freud fosse um veterinário e todos

nós, bezerros. Fechei o livrinho e comecei a chorar.

[O GLOBO, 29/12/1967]