Nelson Rodrigues [=] Os jovens sem amor

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Nelson Rodrigues O O S S J J O O V V E E N N S S S S E E M M A A M M O O R R

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crônica de 1968

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Nelson Rodrigues OOSS JJOOVVEENNSS SSEEMM AAMMOORR [1] Outrodia,aquimesmo,fizestaconsta-taonostlgica:sumiuamulherfatal. Hoje, repito, a mulher fatal mais antiga, mais obsoleta, mais defunta do que a primei-raaudiodoDanbioazul.Noh,em lugarnenhumdomundo,umaoutraMata-Hari. No sei se vocs conhecem a sua hist-riaeasualenda.Noprincpiodosculo, Mata-Hariviviaateando,emcadaesquina, paixes e suicdios. Ointeressantequenemsemprefora fatal. Ou por outra: passou a ser fatal a partir do momento em que o seu relaes-pblicas espalhou por todo o Velho Mundo: Temumseios.Essamutilaopro-mocionalfoisuaglriafulminante.Eno houve,ataPrimeiraGrandeGuerra,uma mulher fatal to bem-sucedida. Foiinvejadapelasconcorrentese,at, [2] pelamulherhonesta.Anosdepois,erafuzi-lada como espi. Mas, eis a verdade: mor-reu sem pena de morrer, morreu sem sauda-dedesimesma.Paraafatal,avelhice, com suas varizes e sua asma, era pior do que opuro,simpleseaindapromocionalfuzila-mento.HojeseriainvivelumaMata-Hari e explico. Amulherfatalexigeohomemque mata ou se mata. Em nossos dias, os suicidas e os homicidas por amor s existem na man-chete de O Dia e da Luta Democrtica. Ou-trodia,dizia-meumpsicanalistaalarmado: Humamassaderapazesdedezoito, dezenove,vinteanos,quenoseinteressa por mulher. Como matar ou se matar, se o tdiocomeaantesdodesejo,seojovem esquece antes de amar? Todavia,nodesapareceudetodoa [3] mulher fatal. Ou antes: algum a subs-tituiu,algumtomouoseulugar:agr-fina.Aestafiguraobsessivadonosso tempo. (O que me pergunto se a gr-fina uma flor do subdesenvolvimento ou se todos ospovosatm.)Talvezlhefalteumpouco do pattico, talvez lhe falte o fogo da morte. Durantealgumtempoviviaeuagarrado a esta iluso: as gr-finas no morrem. E imaginavaquesmorremasdaclassem-dia. Lembro-me de uma fotografia de jornal, em cinco colunas. Era uma normalista. Esta-va na calada, em todo o esplendor dos seus dezesseteanos.Linda,linda.E,derepente, umautomveldesgarradoasfalto,trepano meio-fio e vem achat-la contra o muro. Morreunahora,comopeitoesmagado e orostointacto. Passouhoras, morta, es-peradapercia.Impossvelsermaisbonita. [4] Olhosentreabertoseumaexpressoquase deeuforia.Aoverafotografia,tiveasensa-opueril,asensaoabsurdadeques morrera porque era da classe mdia. Se fosse gr-fina, o automvel a teria poupado. Maistarde,porm,houveumepisdio quecomoveuacidade.Eisocaso:certa gr-finafoiamada.Noseiseamoutam-bm. S sei que viveu dois ou trs meses de lua-de-mel.E,umdia,quisacabar.Talvez estivessegostandodeumoutro,nosei.O rapazfoideumapolidezexemplar:Se vocquerassim,assimser.Masaconvi-dou para o adeus. E a gr-fina foi ao ltimo encontro. Elearecebeucomardentehumildade. Disse que a amava tanto como antes ou mais do que nunca. E comeou a chorar. Ela teve, diantedaqueleprantodehomem,afrivoli-[5] dade deliciosa e suicida de uma Maria Anto-nieta. Disse:Esquece,sim.Esquece.Es-tendeu-lheamo,queficounoar.Orapaz tiraorevlver,puxaogatilho,uma,duas, trs, quatro vezes. Quase sem espanto, ela foi varadadebalas.Nomeiodeumaconstela-odeestampidos,aindasorria.Dobrou-se, cruzouosbraossobreopeito.Emorreu sorrindo, sem tempo de corrigir o sorriso. Algumpodeperguntar:Eele?E ele?.Noimportaoquefezoassassino. Depoisdematar,ocriminososetornase-cundrio,ounulo,erepito:somecomo sejamaistivesseexistido.Tudoaconteceu num quarto. Talvez a gr-fina estivesse dian-tedoespelho,recolocandoumbrinco.No teve tempo nem para o espanto, nem para o medo,nemparaogrito.No,noestava [6] diantedoespelho.Dep,estendia-lhea mo. Era o adeus. E no estava de costas. No dia seguinte, eu lia tudo no jornal. E minha primeira reao foi, como j disse, de espantoinfantil.Sefossedaclassemdia, algumquemorassenaruaMarizeBarros ouCondedeBonfim,oimpactoseriame-nor.Maseraumagr-fina,quemoravaou na orla da Lagoa ou numa ladeira do Jardim Botnico. Com um sentimento de vergonha, entrei no seu velrio. Estavacrispadocomoocriminosoque volta ao local do crime. Eu queria sentir pe-na,respeito,quaseadorao,eoquehavia emmimeraumacuriosidademaligna.A mortedamulherbonitafascinaqualquer um. E percebiqueestavaml,espichandoo pescoo,sujeitosquenoeramnemparen-tes,nemamigos,nemconhecidos.Viuma [7] senhoragorda,bexiguenta,esbugalhando-se para a linda morta. Fizera-seumpavorosoalaridosobrea beleza da vtima. E eu a olhei. Aoprimeiroolhar,descobritodaaver-dade: no era bonita. A meu lado, a gor-da j citada cochichava: Serena, serena. Serena,sim,deumaserenidadeapaixonada, umaardentecalma.Masnoerabonita. Muitomaislindaeraanormalistaquefoi esmagadacontraomuro.Morta,semne-nhumsortilgiodamaquiagem,orostonu depintura,erafeia.Oseramadoamatara porumailusodebeleza.Maseraafalsa bonita. Fingia-se de linda; e por isso tantos a desejaram. S a morte soube olhar a gr-fina. (A mulher da classe mdia no nada miste-riosa:seusdefeitos,seusencantos,sonti-dos,soprecisos.Oufeia,oubonita,ou [8] simptica.Masnofaz,comoagr-fina, uma maravilhosa imitao de beleza.) Opovodesfilouataltamadrugada. Lembro-me de uma outra gorda, de filho de colo,que veiodeBrsdePina,Cordovilou Encantado, ver a bonita morta. Todos queri-am olhar uma Ins de Castro. E cada um, ao sair, sentia-se esbulhado de uma defunta ide-al que no estava ali. A morte tirara a msca-ra de beleza. Muitosanosdepois,casei-mecomuma gr-fina. De vez em quando digo a Lcia: Voc a nica gr-fina linda. Sobre as ou-tras,notenhomaisdvidas.Apartirda formosaassassinada,seidetodaaverdade. E,quandovejouma gr-finaimpressa,acho umagraatriste.Estalifingindobeleza. Maselapodeenganaroleitor,omarido,o Justino Martins, e a prpria e obtusa lente de [9] mquina fotogrfica. No enganar a morte, e repito: a morte sabe que ela uma falsa bonita, eternamente. [O GLOBO, 12. 01. 1968] APEDEUTEKA GUINEFORT, 2015