Nem preto nem branco, com vocês: o c i n z...

3
epressão, re p ressão, penitência, beleza e até s t a t u s ; o cinza é muito mais que um meio termo entre o preto e o branco. Tudo que re p resenta a cor se torna relati- vo à introspecção, imparcialidade, inércia e uni- formidade. No mundo das cores, se a soma de duas tonalidades der cinza é porque elas se com- plementam. O mesmo ocorre com a soma das três c o res primárias: cian, magenta e amarelo. No mundo físico, o cinza do dia nublado equivale ao horário indefinido das 18h, quando não é dia e nem noite. Nos dias de chuva, tudo fica mais devagar, sóbrio e na mesmice. Tudo é mais cinza quando o sol não está por perto. “Dias de céu cinzento acentuam tendências à depressão, tornando as pessoas pre- dispostas à menor atividade”, explica a psicóloga Cristina Araújo. As pessoas andam mais cabis- baixas e os ânimos ficam menos exaltados. “Quem tem certo gosto pelo cinza mostra em seu compor- tamento o desgosto por valores mundanos e procu- ra se isolar do mundo, num ato de negação a esses valores.” A mitologia das cinzas A palavra cinza vem do latim cinisia e tem como significado literal “pó ou resíduos da combustão de certas substâncias”. Esta associação com a destru- ição, o desaparecimento da forma se faz presente em diversos mitos. Miriam Sutter, professora de Letras da PUC-Rio e doutora em Língua e Literatura Latina pela UFRJ, conta que, na Antigüidade Clássica, quando um lugar era atingido por um raio (arma de Zeus), era considerado sagrado e devia ser devidamente isola- do. Isso porque o fogo era um atributo divino, exis- tente somente no Olimpo. As cinzas eram, portanto, o vestígio de uma manifestação sagrada (ver box). Julho/Dezembro 2006 82 Nem preto nem branco, com vocês: o cinza As significações de uma cor que não é tão sombria assim ALEXANDRA BALDAQUE, ANNA PALLOTTINO, LARISSA SALOMÉ E LEANDRO MELASCO Dias de céu cinzento podem acentuar a depressão

Transcript of Nem preto nem branco, com vocês: o c i n z...

Page 1: Nem preto nem branco, com vocês: o c i n z apuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/22%20-%20nem%20preto%20nem%20... · e p ressão, re p ressão, penitência, beleza e até s t a t

e p ressão, re p ressão, penitência, beleza eaté s t a t u s; o cinza é muito mais que ummeio termo entre o preto e o branco.Tudo que re p resenta a cor se torna re l a t i-

vo à introspecção, imparcialidade, inércia e uni-f o rmidade. No mundo das cores, se a soma deduas tonalidades der cinza é porque elas se com-plementam. O mesmo ocorre com a soma das trêsc o res primárias: cian, magenta e amarelo. Nomundo físico, o cinza do dia nublado equivale aohorário indefinido das 18h, quando não é dia enem noite.

Nos dias de chuva, tudo fica mais devagar, sóbrioe na mesmice. Tudo é mais cinza quando o sol nãoestá por perto. “Dias de céu cinzento acentuamtendências à depressão, tornando as pessoas pre-dispostas à menor atividade”, explica a psicólogaCristina Araújo. As pessoas andam mais cabis-baixas e os ânimos ficam menos exaltados. “Quem

tem certo gosto pelo cinza mostra em seu compor-tamento o desgosto por valores mundanos e procu-ra se isolar do mundo, num ato de negação a essesvalores.”

A mitologia das cinzasA palavra cinza vem do latim cinisia e tem como

significado literal “pó ou resíduos da combustão decertas substâncias”. Esta associação com a destru-ição, o desaparecimento da forma se faz presenteem diversos mitos.

Miriam Sutter, professora de Letras da PUC-Rio edoutora em Língua e Literatura Latina pela UFRJ,conta que, na Antigüidade Clássica, quando umlugar era atingido por um raio (arma de Zeus), eraconsiderado sagrado e devia ser devidamente isola-do. Isso porque o fogo era um atributo divino, exis-tente somente no Olimpo. As cinzas eram, port a n t o ,o vestígio de uma manifestação sagrada (ver box).

Julho/Dezembro 200682

Nem preto nem branco,com vocês: o c i n z a

As significações de uma cor que não é tão sombria assimALEXANDRA BALDAQUE, ANNA PALLOTTINO, LARISSA SALOMÉ E LEANDRO MELASCO

Dias de céu cinzento podem acentuar a depressão

Page 2: Nem preto nem branco, com vocês: o c i n z apuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/22%20-%20nem%20preto%20nem%20... · e p ressão, re p ressão, penitência, beleza e até s t a t

Ainda na cultura grega, há omito do Orfismo, que fala dosurgimento da espécie humana.Nele, Zeus fulmina os Titãs comum raio, ao descobrir que eleshaviam devorado seu filhoDionísio. De suas cinzas terianascido a raça humana, com-posta por matéria titânica(corpo), mas contendo também

uma centelha da matéria de Dionísio, elementodivino (alma). Esta seria uma explicação para ocaráter ambíguo da natureza humana.

“O cinza, portanto, representa um estágio inter-mediário entre o divino (imortal) e o humano (mor-tal). Representa, pois, a própria condição humana:consciente/inconsciente; corpo/alma; vida/morte e,paradoxalmente, os opostos dessas dicotomias,para aqueles que, segundo suas culturas e graus deespiritualização, simbolicamente assumem ocinza”, revela a professora.

Miriam lembra ainda uma passagem da Bíblia,sobre o episódio da destruição de Sodoma: “Erespondendo, Abraão disse: uma vez que comecei,falarei ao meu Senhor, ainda que seja pó e cinza”;e cita outro versículo famoso, comum nas lápidesde nossos cemitérios: “Lembra-te de que és pó e aopó retornarás”.

As cinzas como penitênciaNa liturgia cristã, as cinzas significam o nada, a

nulidade da criatura perante seu Criador e são osímbolo da penitência. A Quarta-Feira de Cinzasanuncia o fim do Carnaval, festa pagã, e o início de

uma estação espiritual para o cristão. É o início daQ u a resma, a preparação para a vivência dochamado Mistério Pascal – paixão, morte e ressur-reição de Cristo.

Hoje em dia, o cristão mais devoto recebe umacruz na fronte com as cinzas obtidas da queima daspalmas usadas no Domingo de Ramos do ano ante-rior. Algumas ordens religiosas ainda adotam ocinza como cor de seus hábitos. Mas, na Roma anti-ga, era comum a penitência pública. Os pecadoreseram salpicados de cinzas, vestidos com saial eobrigados a manter-se longe até que se reconci-liassem com a Igreja, na Quinta-feira Santa .

Tempos sombriosA era cinzenta dos romanos terminou no século

VII, quando tais práticas caíram em desuso. Osanos de chumbo no Brasil, porém, são muito maisrecentes e correspondem a um dos períodos maisobscuros da história do país, geralmente situado noperíodo Médici (1969-74), devido à violentíssimarepressão promovida à oposição durante seu gover-no. Prisões, torturas e grupos de extermínio eramcomuns durante a ditadura.

O general Médici assumiu o poder exatamente nomomento em que as manifestações públicas daresistência estudantil haviam sido contidas pelare p ressão policial e os políticos da oposição silencia-dos pelo AI-5. O Ato Institucional nº 5 foi assinado em13 de dezembro de 1968, pelo general, e então pre s i-dente, Arthur da Costa e Silva. A partir dessa datai n s t a u rou-se a censura generalizada e o Congre s s oNacional foi dissolvido. Cinza era a cor pre d o m i n a n t enos uniformes dos militares re p re ssores.

P & B 83

O mito da FênixUm mito bastante conhecido é o da Fênix, a ave que ressurge das cinzas. Ele

tem origem no Egito antigo, na cidade de Heliópolis (Hélio, sol + polis, cidade).O pássaro era cultuado como símbolo das revoluções solares e associado ao ciclocotidiano do Sol e ao ciclo anual das cheias do Nilo. Acreditava-se que a Fênixvivia de 500 a 1000 anos. Ao sentir a aproximação da morte, ela construía umninho de ervas aromáticas, onde se deixava queimar pelo calor que emanava desi mesma. Depois, renascia de suas cinzas com vida renovada para repetir nova-mente o mesmo ciclo. O mito tem uma simbologia clara: a imortalidade pelorenascimento cíclico. Apesar de ser um mito bastante difundido, sua origem àsvezes é confundida. A professora Miriam Sutter esclarece: “Há outras narrativasmíticas, em que Fênix anuncia a aurora, rompendo com sua luminosidade aescuridão da noite. Outras culturas também possuem suas Fênix, como a chinesa, por exemplo”.

Com um raio Zeusfulminou os Ti t ã s

Page 3: Nem preto nem branco, com vocês: o c i n z apuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/22%20-%20nem%20preto%20nem%20... · e p ressão, re p ressão, penitência, beleza e até s t a t

Nem tudo que reluz é ouro. Pode ser prataO cinza, porém, não está ligado apenas ao nega-

tivismo do governo ditatorial. Quando o cinza vemsob o brilho da prata, é associado a valor, beleza esofisticação. Depois de passar algum tempo embaixa, este metal nobre volta a ocupar um lugar dedestaque no mercado de jóias.

O designer de jóias Cláudio Quinderé explica quea prata reassumiu seu status de jóia, esquecido desdea Primeira Guerra Mundial, época em que deixou deter valor monetário: “Quando comecei, há 12 anos,a prata era considerada um metal menor. Algumasclientes diziam ‘Que bijuterias lindas!’”.

Demorou bastante para que as pessoas desvincu-lassem a prata da imagem de bijuteria. Hoje,grandes joalheiros, como Antonio Bernardo, JúniaMachado e o francês Van Din, têm obrigatoria-mente linhas de prata em suas coleções. Com odesenvolvimento do design e o uso de outros mate-riais agregados à joalheria, a prata retomou seulugar de poder e brilho. “Hoje a jóia acompanha amoda, o comportamento, e procura ir de encontroao desejo das pessoas. A prata é um material nobre,sofisticado e ao mesmo tempo moderno, ideal parao design contemporâneo”, completa Quinderé.

O historiador Eugênio Duarte explica que aprata, em seu estado natural, apresenta-se branca

e brilhante. Ao contrário do que muitos pensam, oescurecimento é uma prova de sua legitimidade. Aoxidação indica a certeza de que a jóia é, de fato,de prata. Mas o curioso é que cada pessoa oxida aprata de um jeito único. O motivo é simples: hádiferentes níveis de ácido úrico no organismo, o quetende a escurecer a prata mais rapidamente. “Aprata já foi muito utilizada na antiguidade como‘medidor’ da saúde, pois, ainda sem saber exata-mente o que provocava o escurecimento do metal,as civilizações antigas perceberam que isto estavaassociado a alguma falha no equilíbrio do corpo.Assim, muitas vezes começavam os tratamentosbaseando-se apenas no estado de suas jóias deprata”, acrescenta Duarte.

A prata pode ser considerada um metal nobre.Mas, por que seu preço é tão inferior ao ouro, teori-camente seu semelhante na tabela periódica (juntocom a platina, os três são considerados os maisnobres dos metais)? Houve época em que a prataera mais valorizada do que o ouro, tinha o dobrodo seu valor. Com a descoberta de novas jazidas,extraídas em grande abundância, seu valorcomeçou a cair. “No final do século XX, México,Peru, EUA e Canadá eram os grandes produtoresmundiais de prata. Somente a Rússia produziaquantidades comparáveis.”, completa Eugênio.

Julho/Dezembro 200684

A perda dos direitos democráticos e da liberdade de expressão não serestringiu apenas ao Brasil. Entre as décadas de 1960 e 1980, toda aAmérica Latina viveu tempos brutais de autoritarismo. Na Argentina,a presidente Isabel Perón foi deposta pelas Forças Armadas num golpeocorrido no dia 24 de março de 1976. O país mergulhou então em umdos mais sanguinários episódios da sua história. Quando a ditaduramilitar, denominada de Processo de Reorganização Nacional, deu-sepor encerrada, em 1983, contabilizou-se o desaparecimento de mais de8 mil pessoas, estimando-se ainda que o total de vítimas tenhaalcançado um tanto mais de 30 mil civis. No Chile, a CIA colaboroucom um golpe de Estado contra o presidente Salvador Allende, encontrado morto no Palácio de LaMoneda, depois de confrontos armados em 1973. O poder passou às mãos de uma junta militar chefiadapelo general Augusto Pinochet. Num clima de forte repressão, Pinochet dissolveu os partidos políticos eperseguiu os adversários do novo regime. Somente em 1989 o general deixaria o poder. No Paraguai, oditador Alfredo Stroessner ficou no poder de 1954 a 1989. Não existem dados oficiais, mas estima-se emalgumas dezenas o número de desaparecidos no Paraguai durante o período. Além disso, o governo deS t roessner é acusado por centenas de casos de tortura e pela participação ativa na Operação Condor (sistemade re p ressão com colaboração mútua entre os regimes militares de Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguaie Uruguai, nos anos 1970).

Anos de cinza na América Latina Pinochet