Neo-realismo Italiano, o cinema político · PDF fileNeo-realismo Italiano, o cinema ......
Transcript of Neo-realismo Italiano, o cinema político · PDF fileNeo-realismo Italiano, o cinema ......
Neo-realismo Italiano, o cinema político
Cleuber Inácio Amaro*
O texto de Mariarosaria Fabris, “Neo-realismo Italiano” procura
contextualizar a experiência do Neo-realismo às condições políticas vividas na
Itália da década de 40. Uma tese central é a de que a arte é dependente de
seu contexto e dos problemas que ele apresenta. Os olhares e intenções
lançadas à arte que se produz – no caso o cinema, cujo estatuto de arte é bem
controverso – vão além da simples contemplação. Dizem mais, ao revelar que
mesmo o prazer por esta suposta contemplação não é ingênito e que suas
raízes não são nada ingênuas. Recheado de propósitos, de escolhas e padrões
que se inserem, em última instância, ao movimento comunista, o Neo-realismo
Italiano é um bom exemplo para a tese de que a estética não é alheia a
posicionamentos políticos.
O artigo é dividido em dez capítulos (Uma nova sociedade? ; Os anos do
centrismo; Traindo o neo-realismo?; O que foi o neo-realismo?; Características
técnicas e estilísticas do neo-realismo; A técnica do documentário; Quando as
câmeras ganharam as ruas; Os atores não profissionais; A língua falada nas
telas e O neo-realismo morreu, viva o neo-realismo). E, recorrendo à história
italiana cujo foco está no pós-guerra, seus antecedentes e suas implicações,
bem como a partir da avaliação das obras cinematográficas inseridas neste
contexto e de algumas declarações feitas pelos próprios cineastas, Mariarosaria
Fabris pretende explicitar as controvérsias ligadas ao neo-realismo ao mesmo
tempo em que busca defini-lo seja temporal, seja caracteristicamente.
Uma nova sociedade? Pretende introduzir-nos à realidade do pós-guerra,
1945, em que as ruínas materiais e morais assolavam a Itália, de maneira que
os intelectuais sentiam a efervescência de saírem da “torre de marfim” nas
quais se refugiaram no vicênio fascista. Fabris comenta que as manifestações
culturais foram tomadas pelo PCI – Partido Comunista Italiano -, uma vez que
o PSI preocupava-se muito mais com as lutas institucionais e alinhamentos
políticos. Afirma ainda que a literatura e as artes plásticas encontraram o
caminho de imediato, mas somente em 1946 o cinema encontraria em si a
possibilidade de “formação de uma nova consciência democrática”1. Conta
ainda, que a esquerda não soube explorar o duplo aspecto de manifestação
artística e de produto comercial. Os católicos, por sua vez, controlaram os
pontos-chave da indústria cinematográfica e encaravam o cinema como
organização de massa. O Centro Católico Cinematográfico, responsável por
decidir sobre 90% dos filmes em cartaz, somente aprovava aqueles “que
respondiam aos princípios morais e educativos da Igreja”, que, já podemos
imaginar, não era o caso da proposta neo-realista – apesar de seus primeiros
filmes terem logrado êxito comercial -, mas que prestigiava muitas obras
norte-americanas. Fabris defende a idéia de que a esquerda só veio a entender
o potencial das obras cinematográficas nas discussões e conscientização
quando saiu do poder, derrotada por 48,5% dos votos confiados ao partido da
Democracia Cristã (DC), em 18 de abril de 1948.
Os anos do centrismo é um capítulo destinado a expor o que se passou
com a indústria cinematográfica nacional italiana ao se submeter ao novo
governo da DC. Se num primeiro momento os filmes de Rossellini (Roma,
Cidade Aberta, 1945) e outros representantes do neo-realismo obtiveram
aceitação – e, conseqüentemente, identificação – junto ao público, em outro
momento os filmes destes diretores foram proibidos de serem exibidos. Além
disso, houve uma rápida ruptura entre o público e o cinema italiano, de modo
que em 1947 já não havia obras neo-realistas entre as campeãs de bilheteria.
Algo difícil de ser assimilado à esquerda, cuja palavra de ordem era defender o
cinema nacional, sob a “afirmação de Lênin de que o cinema (…) podia levar
um povo a mudar seu modo de pensar”. Depois de 1948, o que restava nos
filmes italianos eram temas e estilemas de neo-realismo, mas estes se
diferenciaram do primeiro propósito porque celebravam o conformismo social.
Fabris chama atenção para certo desprezo que a esquerda lançou sobre o
cinema, que não soube aproveitá-lo para debater as questões sociais e mesmo
quando veio a reivindicar maior liberdade para o cinema nacional, não teria
entendido que isso só se dá pela dominação dos meios de produção
*Estudante do curso de filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista do projeto “Contribuições didático-pedagógicas ao ensino de filosofia na escola média: ação extensionista do grupo cinema e educação”(CINEDUC-UFMG)
1 FABRIS (2006), p.191.
cinematográfica.
Traindo o neo-realismo? Mariarosaria introduz brevemente a discussão
entre os ditames do neo-realismo e o realismo. O primeiro seria neo-realismo
decadente e pequeno-burguês e o segundo, sim, seria realismo socialista, na
medida em que o primeiro deslocava os acontecimentos históricos para o pano
de fundo do enredo para focar-se no protagonista “que, apesar de sua picardia
amorosa, surgia como herói positivo”. O realismo socialista, de 1934,
idealizado por Jdanov, previa restrições à autonomia do discurso, de maneira a
impedir uma formação contra-revolucionária. Já o aspecto programático do
neo-realismo era “levar a uma mudança nas relações entre cinema e
espectadores, inventando uma nova linguagem cinematográfica, que o grande
público pudesse compreender e, graças a ela, adquirir uma maior consciência
social e cultural”2. Fabris ainda cita Torri (1973), quando diz que o neo-
realismo termina ao mesmo tempo em que “o período socialmente mais aberto
e progressista da recente história da Itália”.
Ao fim do capítulo, Fabris demonstra o quão perigoso foi o caminho
proposto pelo neo-realismo: negligenciado pela esquerda, foi esmaecendo e
perdendo seu caráter crítico e contestador, reduzindo-se a questões formais,
vazias deste conteúdo pensante e inconformado. Comenta, ainda, que com a
ascensão ao poder das forças conservadoras, a tendência natural foi calar o
questionamento neo-realista por intermédio de atitudes negativas, como ações
coercitivas, e positivas, como a importação de filmes norte-americanos, que
ajudavam a manter a ideologia vigente e tinham o conveniente de não pôr o
trabalhador e sua realidade como protagonistas de seus enredos.
O que foi o neo-realismo? Mariarosaria inicia o debate demonstrando que
a definição de neo-realismo é espinhosa. Em especial se for tratada a partir
dos diretores, dado que muitos deles abandonaram o estilo neo-realista logo
após uma brevíssima incursão. Após muita discussão, fica claro que há certo
consenso que a tríade Rossellini, De Sica-Zavattini e Visconti é referência do
neo-realismo. A data do termo é anterior a sua inauguração, vem de um
comentário ao filme Obsessão (1943) de Visconti. Entretanto, a crítica
geralmente aponta para o início do movimento em 1945 com Roma, Cidade
2 FABRIS (2006), p.197.
Aberta e seu término em 1948 com A Terra Treme.
Motivada por argumentos factíveis, mas antagônicos, como os de Chiarini
(1974, pp. 177 – 178), que afirma o neo-realismo como “dedução da realidade
viva que se apresenta aos artistas com toda a sua força dialética” e os de
Felini, que defende o neo-realismo como uma elaboração do real, que admite o
ficcional. Fabris prefere elencar temas que se fizeram presentes nos filmes, de
maneira que se relacionam, também com seu recorte histórico e político deste
movimento estético. Temos, então, uma coletânea de temas que abrangem
desde “o fascismo, à guerra e suas conseqüências”, “a 'questão meridional' e
os problemas sociais no campo”, “o desemprego e subemprego urbanos”, “o
abandono dos jovens e idosos”, “a condição da mulher”, “a indagação
psicológica e a relação do homem com a religião” a “A volta da temática do
anti-fascismo e da guerra”.
Características técnicas e estilísticas do neo-realismo é um curto capítulo
que considera a recusa de críticos e cineastas de classificarem o neo-realismo
como movimento ou escola, e mesmo como estilo, uma vez que este é
variável. Por outro lado, Fabris defende a existência de uma orientação
estética. Nela, prevalecem, principalmente, elementos oriundos do gênero
documentário, como tela acinzentada, câmera sem muitos planos – apenas
registrando -, recusa de efeitos visuais (“retorno aos Lumière”), cenários reais,
atores eventualmente não profissionais, simplicidade nos diálogos e valoração
dos dialetos, utilização de orçamentos módicos.
A técnica do documentário. Neste capítulo, Mariarosaria Fabris dá pistas
de sua posição a respeito do que é o neo-realismo (no capítulo destinado a
definição ela se conteve e contrapôs a posição de Chiarini – com tendências ao
realismo enquanto registro da realidade - à de Felini, que admite no real o
ficcional). Isso se mostra quando ela traça a carreira de alguns dos principais
expoentes do cinema neo-realista, Rossellini, Emmer, Antonioni e até mesmo o
trabalho de Lattuada como fotógrafo: vão sempre ao sentido de demonstrar
que a realidade nunca é meramente capturada. É, pelo menos, (re)significada
e utilizada não somente como mero relato, mas como composição de algo que
está sendo dito: “Nós acreditamos, hoje mais do que nunca, que o termo
documentário tenha de ser despojado de seu comum atributo científico para
[alcançar] um significado poético mais alto, onde os termos de conteúdo sejam
homem e natureza” (Fabris,1996, p.74 ).
Quando as câmeras ganharam as ruas é um capítulo que tem uma
importante argumentação a respeito do que significa este procedimento. Em
primeiro lugar, Fabris retoma o argumento de que não é o simples fato de se
registrar o real que faz dele menos ficcional do que a cena de estúdio, afinal,
ele faz parte de um todo e ganha sentido dentro dele, sentido este que atende
às regras de coerência propostas pelo diretor e não pela realidade. É
interessante notar que Fabris chama de impressão de realidade3 o efeito de
gravação em locais abertos. Além deste comentário, as observações que faz
sobre os conceitos de Zavattini (pedinamento (estar no encalço de alguém),
buco nel muro (buraco na parede) e poetica Del coinquilino (poética do
vizinho)) – em especial o de pedinamento, são de uma reflexão profunda sobre
pensar o outro:
“minha maneira de viver naquele momento, que é a maneira de viver da
sociedade burguesa, capitalista, era uma maneira de viver por pessoa
mediada, por conceitos, por isso cada um podia perfeitamente formular
hipóteses sobre os outros e estudá-los ficando fechado em seu quarto,
enquanto, ao contrário, era necessário ir conhecê-los e este não era somente
um sentimento cristão, era o sentimento de uma sociedade ativa, operante,
real, uma mudança, portanto total, de relações” (Zavattini (1979), p. 395).
Podemos observar que o neo-realismo, apesar de ficcional, possuía, ao
menos no ver de Zavattini, um caráter investigativo que recusa preconceitos e
idealismos; é a própria vida que define o conceito. Fabris observa que havia
espaço para a improvisação quando se ia para a rua, a fim de aproveitar
melhor o que ela tem a oferecer e deixá-la conduzir o filme.
Os atores não-profissionais é um capítulo que depende do anterior, no
que tange às questões do inesperado, do improviso. Dentro da proposta neo-
realista, que pretendia mais uma discussão que um controle ideológico, não é
estranho que a forma da interpretação também sofra influências, Fabris cita
André Bazin, que classifica o neo-realismo como um cinema sem interpretação,
3 Grifos meus.
uma vez que, mais do que isso, o que se mostra necessário é a identificação
com o personagem. O que, é claro, não impedia a direção de astros do cinema
italiano e estrangeiro, como é o caso de Sophia Loren. A idéia é aproximar o
homem-ator do homem-personagem, diria Visconti.
A língua falada nas telas trata do trabalho feito pelos diretores neo-
realistas que ia à contramão daquele em exercício pelo governo fascista: o de
explorar a multiplicidade cultural, presente também nas línguas. Desde a
Primeira Guerra Mundial surge o “italiano popular unitário”, sob a égide da
Divina Comédia e que se torna elemento de retórica fascista.
É interessante ressaltar a importância de se admitir as falas regionais
dentro da economia das propostas neo-realistas: se a idéia era retratar um
povo, se aproximar dele, era muito importante que ele se expressasse em sua
língua. Por outro lado, isso dificultou a assimilação das obras pelo grande
público, Como é o caso de A terra treme, que foi exibido em poucas salas, em
versão reduzida e comentada.
O neo-realismo morreu, viva o neo-realismo é um capítulo conclusivo, no
qual Fabris se aproxima da leitura deste “movimento” com a de Micciche,
definindo-o como
“uma 'ética da estética' que não teve tempo de se transformar em uma
'estética', pois, por não ter conseguido construir plenamente sua poética nem
ampliar seus conteúdos, capitulou ante os acontecimentos político-sociais que
se desenrolaram na Itália do pós-guerra” (Micciche, (1978), p.28).
Fabris acredita, ainda, que elementos de impulso moral, de vocação
transgressora e engajamento como insurreição anti-hollywoodiana que
estariam presentes no cinema da década de 60 já podem ser encontrados no
neo-realismo, que, de certa maneira, o influenciaria.
A própria conclusão de Mariarosaria Fabris tem o tom daquela que a
nossa leitura depreendeu. Conhecemos a história do cinema mundial, em
especial a hollywoodiana, que rouba a cena já na primeira década de
surgimento do cinema. Seus primeiros cinqüenta anos são marcados pela
“glamourização” do espaço cinematográfico, pela fábrica de ilusões e promoção
ideológica, como tentativa (bem sucedida) de dominar o mercado mundial. É
curioso como, antes dos anos sessenta ditarem regras de transgressão e
contestação, o cinema italiano já tinha dado passos sólidos nesta direção. O
cinema da década de 60 era um espaço em que os jovens puderam contestar o
velho e transgredir, propondo outros arranjos estéticos e outras soluções
morais para problemas que lhes eram relevantes. Sem destituir a legitimidade
da transformação operada pela juventude dos anos 60, entendemos que as
relações do neo-realismo com a contestação parecem mais maduras, ou pelo
menos operavam sobre a base material em que se desenvolveram as questões
presentes na nouvelle vague, por exemplo. O neo-realismo é filho da crueza da
guerra e precisava de respostas urgentes para a situação do trabalhador e da
miséria da classe operária; o cinema da revolução cultural dos anos 60 vive os
desdobramentos da guerra e o rearranjo da posição da mulher, da família, do
consumo. Com estes exemplos podemos afirmar que o artigo argumenta que a
estética e a problemática da arte (neste caso, da arte de fazer filmes) são
históricas. Argumenta também que o cinema é educativo. Fabris, em
praticamente todos os capítulos, demonstra de alguma forma como o cinema
está relacionado ao questionamento, à reflexão ou mesmo à simples
incrustação, nas massas, de valores convenientes às elites e governantes.
Entendo, então, que esta leitura amplia as possibilidades de relação
entre cinema e educação, ao demonstrar aspectos em que o cinema dialoga
com a política, a ciência, a religião de sua época. Como teria dito Foucault em
seu livro As palavras e as coisas, a ciência de um tempo possui relações mais
diretas com a arte e a política deste mesmo tempo do que com a ciência do
período anterior.
FABRIS, Mariarosaria. “Neo-realismo Italiano”. In História do Cinema
Mundial. Org. Fernando Mascarello. Campinas: Papirus, 2006. pp. 191 – 219.
FABRIS, Mariarosaria. O neo-realismo cinematográfico italiano: uma
leitura. São Paulo: Edusp/FAPESP, 1996.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências
humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1975.
TORRI, B. Dinema italiano: Dalla realtà alle metafore. Palermo: Palumbo,
1973.
ZAVATTINI, C. Neorealismo ecc. Milão: Bompiani, 1979.