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  • NEUROCINCIA, COGNIO E DISLEXIA Vicente Martins

    [email protected] Aportes tericos e pesquisas experimentais no campo da Neuro-

    cincia, Psicologia Cognitiva e Lingstica Clnica trazem, nos ltimos cinco anos, achados importantes para os que atuam, no campo escolar, com crianas dislxicas, disgrficas e disortogrficas.

    Em seu Dislexias: descrio, avaliao, explicao, tratamento (Artes Mdicas, 2001), Anne Van Hout e Franoise Estienne afirmam que, graas aos progressos das neurocincias, os investigadores dos modelos de leitura e da sua aquisio, desenvolvimento e dificuldades recomendam o uso do termo dislexia no plural, ou seja dislexias, uma vez que os dados recentes exploratrios da dislexia e disfunes corre-latas(disgrafia, disortografia) indicam muitas causas e manifestaes bem como no agrupamento dos sintomas dislexiolgicos.

    So trs os princpios psicolingsticos para os profissionais que atuam com as crianas com dificuldades especficas na linguagem escri-ta.

    1 PRINCPIO DESENVOLVIMENTO DA CONSCINCIA FONOLGICA

    O desenvolvimento da conscincia fonolgica explica a maior parte dos casos de dislexia, disgrafia e disortografia. Os profissionais que atuam com dislxicos, disgrficos e disortogrficos precisam ter claramente, nos planos de avaliao e interveno de fonologia e fon-mica. A fonologia deve ser entendida pelos profissionais como estudo dos sons da linguagem humana. a fonologia parte da lingstica que estuda os fonemas do ponto de vista de sua funo na lngua.

    Falamos em conscincia fonolgica, segundo Theodore L. Har-ris e Richard E. Hodges, em seu Dicionrio de Alfabetizao: vocabul-rio de leitura e escrita (Artes Mdicas, 1999), quando h conscientiza-o dos sons constituintes das apalavras durante o aprendizado de leitu-ra e da soletrao/grafia. Os componentes das palavras podem ser dife-renciados de trs maneiras, segundo os autores:

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    1. por slabas, como /leis/, em que a palavra tem, como obser-vamos, apenas uma slaba. A definio de slaba fontica: uma vogal ou um grupo de fonemas que se pronunciam numa s emisso de voz, e que, sozinhos ou reunidos a outros, for-mam as palavras. Unidade fontica fundamental, acima do som.

    2. Dentro da slaba, por onsets e rimas, como /l/ e /leis/. Na ln-gua portuguesa, a palavra onset pode ser traduzida por ataque. O ataque foneticamente definido como movimento das cor-das vocais ao se posicionarem para realizar as articulaes vo-clicas. O ataque pode ser duro (glotalizado), com as cordas vocais cerradas e abertura repentina para a passagem do ar (como no alemo), ou suave e gradual, em que as cordas vo-cais se pem imediatamente em posio de vibrao (como nas lnguas romnicas). Em outras palavras, diramos que o ataque da slaba a parte inicial da slaba constituda por uma ou mais consoantes, que antecedem o ncleo da slaba. Nos casos em que no existe ataque, diz-se que a slaba em questo pos-sui um ataque vazio. Mais exemplos: Na palavra "pai", consti-tuda por uma nica slaba, a oclusiva bilabial surda /p/ ocupa a posio de ataque.A rima da slaba se define como . Rima da slaba considerado um constituinte silbico formado pelo n-cleo (obrigatrio) e pela coda (no obrigatria) de uma sla-ba.Exemplos: Na palavra "mal", constituda por uma nica s-laba, a rima da slaba corresponde seqncia de vogal e de consoante lateral: /al/.

    3. Por fonema, como /l/, /e/, /y/ e /s/. Fonema, estudado em todas as lies anteriores, categoria fontica fundamental para a compreenso da conscincia fonolgica, unidade mnima das lnguas naturais no nvel fonmico, com valor distintivo (dis-tingue morfemas ou palavras com significados diferentes), po-rm ele prprio no possui significado (p.ex., em portugus as palavras faca e vaca distinguem-se apenas pelos primeiros fo-nemas/f/ e/v/). O fonema no se confunde inteiramente com as letras dos alfabetos, porque estas freqentemente apresentam imperfeies e no so uma representao exata do inventrio de fonemas de uma lngua.

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    2 PRINCPIO DESENVOLVIMENTO DA CONSCINCIA FONMICA

    A noo de fonmica se faz necessria no programa de interven-o psicopedaggica. Fonmica definida como ramo da anlise lin-gstica que estuda a estrutura de uma lngua no que se relaciona aos fonemas segmentais e sua distribuio na cadeia fnica. Segundo Theo-dore L. Harris e Richard E. Hodges, em seu Dicionrio de Alfabetiza-o: vocabulrio de leitura e escrita (Artes Mdicas, 1999), a conscin-cia fonmica o dar-se conta dos sons(fonemas) que formam as pala-vras faladas. Esta conscientizao no aparece quando as crianas pe-quenas aprendem a falar. Esta capacidade no necessria para falar e entender a lngua(gem) falada. Todavia, a conscincia fonmica im-portante no aprendizado da lectoescrita (leitura, escrita e ortografia).

    3 PRINCPIO DESENVOLVIMENTO DA SENSIBILIZAO S RIMAS

    Os modelos de interveno psicopedaggica devem levar em conta no programa de treinamento as dificuldades dos dislxicos, dis-grficos e disortogrficos no tocante sensibilizao s rimas. Por ri-ma, podemos entender, a reiterao de sons (vocais, consonantais ou combinados) iguais ou similares, em uma ou mais slabas, geralmente, acentuadas, que ocorrem em intervalos determinados e reconhecveis. Quando o leitor diante de textos versificados, rima entendida como apoio fontico recorrente, entre dois ou mais versos, que consiste na rei-terao total ou parcial do segmento fontico final de um verso a partir da ltima tnica, com igual ocorrncia no meio ou no fim de outro ver-so ou ainda a repetio de um som em mais de uma palavra de um mesmo verso (ex.: um canto santo de to raro amor)

    No mercado editorial, existem muitas obras que atuam direta-mente na conscincia fonolgica e fonmica de leitores dislxicos, dis-grficos e disortogrficos. Um bom exemplo o livro de Denise Godoy, sob o ttulo A Lngua Travada: consonncias em verso e prosa. A auto-ra ([email protected]) apresenta textos que devem ser lidos preferencialmente em voz alta em razo do objetivo que dirigiu a cons-truo de cada um: trabalhar diretamente um grupo especfico de con-soantes da lngua portuguesa. Pode ser utilizado em atividades de inter-veno.

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    Vejamos o poema abaixo , de Denise Godoy, pronto para ser tra-balhado com dislxicos que trocam as consoantes oclusivas /p/, /b/ e /m/

    PROCURA Procurei a poesia do poema Na beira do ribeiro Pequeno, que lambe as bordas Da mata do jatob. Busquei a beleza do mundo Nos braos que embalavam um beb, Na msica misteriosa dos amantes E no murmrio embaralhado das palavras. Perdida na procura, Descobri, no mundo, a paixo, Na paixo, a beleza do poema, E na beleza do poema, A POESIA.

    (Godoy, 2004, p.15) Eis um poema para o trabalho, em sala de aula, para dislxicos

    que trocam as consoantes oclusivas /t/ e /d/

    DDIVA Tem Dias em que tudo descanso. Tem tardes douradas Em que o Cristalino teima em mostrar Que ali a natureza ddiva E deslumbramento. Tem noites em que a luminosidade De estrelas j desaparecidas, insiste Em entrar na retina. Tem dias, tem tardes, tem noites. Tem o verde, o horizonte, A trilha, a mata. Tem deuses a nos dizer Que a vida ddiva, dor, dvida E histrias a nos contar Que a vida mistrio, festa e fantasia.

    (Godoy, 2004, p.18)

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    Importante salientar, aqui, que a aliterao e assonncia favore-cem a conscincia fonolgica e fonmica durante a alfabetizao em leitura para dislxicos, disgrficos e disortogrficos.

    No campo da literatura, entendemos aliterao como a repetio de fonemas idnticos ou parecidos no incio de vrias palavras na mes-ma frase ou verso, visando obter efeito estilstico na prosa potica e na poesia. Por exemplo, exemplo de aliterao a frase: rpido, o raio risca o cu e ribomba. A aliterao ocorre, em geral, em 'rima inicial, repetio, no incio de duas ou mais palavras vizinhas, das mesmas le-tras ou slabas, geralmente, para fins expressivos, poticos ou literrios.

    A assonncia, por sua vez, desenvolve a conscincia fonolgica ou fonmica medida que favorece aos dislxicos, disgrficos e disor-togrficos a percepo da semelhana ou igualdade de sons em palavras prximas. Na estilstica, fala-se em assonncia quando do uso do mes-mo timbre voclico em palavras distintas, especialmente no final das frases que se sucedem ou na prosa ou na poesia, repetio ritmada da mesma vogal acentuada para obter certos efeitos de estilo. Por exemplo, temos exemplo de assonncia na frase: ardem na alvorada as matas destroadas.

    Para a interveno nos casos de dislexia, apontaramos a a ludo-logia como uma prtica pedgagica que favorece o aprendizado da lei-tura dos dislxicos, disgrficos e disortogrficos

    Na pedagogia, falamos em ludologia lectoescritora como uma esfera de conhecimento que abrange tudo o que diz respeito a jogos e passatempos e brincadeiras infantis com fins de assegurar o aprendiza-do das habilidades cognitivas instrumentais como leitura, escrita e orto-grafia. O trava-lngua e a parlenda so exemplos de ludologia lectoes-critora.

    ESTUDOS

    Que tratam sobre atividades indicadas para a interveno psico-lingsticas em casos de dislexia, disgrafia e disortografia, assinam que o trava-lngua promove a conscincia fonolgica das crianas com difi-culdades em leitura, escrita e ortografaia.

    O trava-lngua uma espcie de jogo verbal que consiste em di-zer, com clareza e rapidez, versos ou frases com grande concentrao de slabas difceis de pronunciar, ou de slabas formadas com os mes-

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    mos sons, mas em ordem diferente, como: no meio do trigo tinha trs tigres

    Por fim, os achados na rea da psicolingstica apontam que a parlenda melhora a memorizao dos dislxicos, disgrficos e disorto-grficos.

    A parlenda pode ser definida como declamao potica para cri-anas, acompanhada por msica. Especificamente, ocorre parlenda quando os professores ou profissionais que intervm em casos de disle-xia, disgrafia ou disortografia atravs de rima infantil utilizada em brin-cadeiras e jogos desde a educao infantil.

    Quando crianas na educao infantil, portanto, no processo de aquisio da linguagem, seja no trava-lngua ou parlenda, ou qualquer outro jogo prosdico, j apontam indcios de dificuldades na fala, sero, no primeiro ciclo do ensino fundamental, fortes candidatos s dificul-dades de ingresso no mundo da linguagem escrita, especialmente na lei-tura, habilidade cognitiva em que tero que transformar os sons da fala, os fonemas, em signos alfabticos do sistema escrito da sua lngua ma-terna.

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