CLASSES SOCIAIS E LUTA DE CLASSES

Marcelo Badar Mattos

A expresso classe remete idia de parte especfica de um conjunto maior, de

grupo ou de categoria. Sua utilizao para definir grupos sociais anterior, mas para os

termos deste ensaio, basta recuar ao fim do sculo XVIII, quando o Abade Sieys escreveu

O que o terceiro estado? Referia-se, quando falava em classe, s quatro categorias

correntes de trabalho - agricultura, indstria, comrcio e servios - pois o termo classe

tinha o sentido de categoria, em contraste com ordem ou estado, que designavam grupos

definidos a partir de critrios hierrquicos, hereditrios e de solidariedade1.

Ao longo do sculo XIX, os franceses passaram a se referir expresso em termos

de relaes entre grupos baseadas em desigualdades: classe dominante, classe burguesa

ou classe trabalhadora. Porm, at o fim do sculo, a maior parte das referncias classe

por parte dos prprios trabalhadores, tomava o termo por sinnimo de profisso ou ofcio:

classe dos tipgrafos; classe dos metalrgicos; classe dos mineiros, etc. 2.

Na Inglaterra, o termo classes trabalhadoras (working classes) era amplamente

utilizado no incio do sculo XIX, num sentido semelhante ao do uso do termo classe na

Frana, para designar o conjunto de trabalhadores pobres em suas diversas categorias

profissionais. Por volta dos anos 1840, conforme constatou Asa Briggs, comea a ampliar-

se a utilizao da expresso classe trabalhadora (working class), denotando em seu uso um

sentimento de solidariedade interno ao grupo social e de oposio a outros grupos, numa

apreenso nova da natureza das desigualdades sociais3.

Cabe um cuidado, entretanto, ao constatar-se tal mudana no uso da nomenclatura e

associ-la ao processo de formao das classes. Vive-se, desde a dcada de 1970, um

movimento, que atinge tambm uma parte da produo na rea da histria social do

trabalho, conhecido em lngua inglesa pela expresso linguistic turn, cujo sentido ltimo

1 Abb Sieys. O que o terceiro estado? Citado por Sewell Jr., Work & Revolution in France. The language of labor from the Old Regime to 1848. New York, Cambridge University Press, 1980, p. 282. 2 Idem, p.283. 3 Briggs, Asa. The language of class in early nineteenth century England. In Briggs, A . e Saville, John (orgs.). Essays on labour history. London, Macmillan, 1960, pp. 43 e ss.

tratar a linguagem como o principal ou nico elemento estruturante da vida social.

Aplicada discusso da classe, essa perspectiva pode levar absolutizao de uma anlise

identitria, em que s se considera possvel o estudo do fenmeno classe social quando os

atores histricos assim se definem, exprimindo-se em clara e direta linguagem de classe.

Nestes termos, formaes discursivas passam a ser vistas no apenas como parte de um

determinado contexto histrico, mas como constituindo as categorias bsicas de

compreenso e, portanto, o ambiente social, cultural e poltico em que as pessoas atuam e

pensam.4

No era essa a concepo que animou o estudo pioneiro sobre a linguagem de classe

de Asa Briggs, para quem a relao entre palavras e movimentos o centro da discusso:

A mudana na nomenclatura no fim do sculo XVII e incio do sculo XVIII refletiu uma mudana bsica no apenas na viso de sociedade dos homens, mas na sociedade em si. sobre a relao entre palavras e movimentos em um contexto ingls que esse ensaio se concentra.5

Classe e luta de classes em Marx e Engels

Tendo em vista essa relao entre palavras e movimentos, a transformao no uso

do termo classe, tendendo a indicar uma nova categoria de anlise da realidade social,

capaz de dar conta das desigualdades econmico-sociais na sociedade capitalista, indica um

momento de auto-representao consciente dos trabalhadores sobre sua situao social,

interesses comuns e oposio de interesses em relao outra(s) classe(s). Tal processo,

cuja natureza poltica inegvel, relaciona-se expanso das propostas socialistas. Em seu

bojo surgiriam justamente aquelas perspectivas de interpretao da realidade social

defendidas por Marx e Engels, desde a dcada de 1840, que reforariam o emprego das

4 Eley, Geoff. ?El mundo es un texto? De la historia social a la historia de la sociedad dos dcadas despus. Entrepasados. Revista de Historia. Ao IX. No. 17. Buenos Aires, fines de 1999, p. 107. Para a crtica a esta perspectiva nos estudos sobre a histria social do trabalho, ver Savage, Mike & Miles, Andrew. The remaking of the britsh working class. 1840-1940. Londres, Routledge, 1994, p. 18. Diversas anlises crticas em relao a este tipo de postura podem ser encontradas na coletnea dirigida por Wood, E. M. & Foster, J. (orgs.). Em defesa da histria: marxismo e ps-modernismo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999. Vale em especial a leitura do artigo de MacNally, David, Lngua, histria e luta de classes, que retoma Gramsci e Bakhtin para resgatar a dimenso social e histrica da lngua. 5 Briggs, Asa. The language of class in early nineteenth-century england. In Briggs, Asa & Saville, John. Essays in labour history. Londres, Macmillan, 1967. (1a. ed. 1960), p. 44.

categorias de anlise e das auto-representaes associadas classe entre os trabalhadores

europeus da poca.

Uma via de mo dupla, sem dvida, pois por volta de 1844, Marx e Engels j

haviam tomado contato direto participando de reunies, trocando correspondncias,

formulando politicamente com pelo menos quatro frentes dos setores mais avanados do

movimento operrio europeu, conforme nos mostra Michael Lwy: as sociedades secretas

comunistas de Paris; a Liga dos Justos; o cartismo ingls; e a revolta dos teceles silesianos

em meados de 1844.6 a partir dessa insero no movimento da classe operria que

podemos entender melhor aquele momento inicial da proposio do materialismo histrico,

percebendo o cho social da leitura nova e da superao que Marx empreende da economia

poltica clssica, da interpretao da sociedade dos socialistas utpicos e da dialtica

hegeliana, que caracterizaria, ainda segundo Lwy:

A sntese dialtica, a superao dos elementos fragmentrios, esparsos, parciais, das diversas experincias e ideologias do movimento operrio e a produo de uma teoria coerente, racional e adequada situao do proletariado.7

Embora seja possvel observar outras matrizes de aplicao do conceito de classe

social, a partir das propostas de Marx e Engels, formuladas a partir daquele momento da

dcada de 1840, que as cincias sociais passaram a incorporar a classe ao seu arsenal

analtico e, mesmo quando divergindo do marxismo, nele tiveram o interlocutor e a

referncia central no debate sobre o uso do conceito.8 Assim, nos limites deste texto,

prope-se a discusso dos usos do conceito classe social e de seu correlato luta de classes

pelos historiadores, partindo do referencial marxista - explorado em algumas de suas vrias

possibilidades e limites.

O conceito de classe social surgiu em Marx e Engels como o centro de sua proposta

para a anlise das sociedades modernas. O ponto de partida dos autores era uma

constatao poltica de que o proletariado constitua-se numa nova fora poltica, que

6 Lwy, Michael. A teoria da revoluo no jovem Marx. Petrpolis, Vozes, 2002. (1a. Ed. Francesa de 1970), pp. 109 e ss. 7 Idem, ibidem, p. 138. 8 o caso de Max Weber, que analisa as desigualdades sociais a partir de trs dimenses: riqueza, prestgio e poder. Para Weber, classe uma categoria que diz respeito apenas primeira dessas dimenses estritamente econmica definindo um conjunto de indivduos que compartilham a mesma situao em relao ao mercado. Weber, Max. Economia e sociedade. Braslia, EdUNB, 1992.

acreditavam teria papel preponderante na luta pela emancipao. Quando uniram suas

foras para elaborar o manuscrito da Ideologia alem, Marx e Engels recorreram classe

especialmente para definir os termos da transformao operada pela burguesia nas

sociedades modernas, moldando-a pouco a pouco s suas feies - cada vez mais urbanas e

mercantis - no contexto de conflito de interesses em relao nobreza feudal. Assim,

definiam:

Os indivduos isolados s formam uma classe na medida em que tm que manter uma luta comum contra outra classe; no restante, eles mesmos defrontam-se uns com outros na concorrncia. Por outro lado, a classe autonomiza-se em face dos indivduos, de sorte que estes ltimos encontram suas condies de vida preestabelecidas e tm, assim, sua posio na vida e seu desenvolvimento pessoal determinados pela classe, tornam-se subsumidos a ela. Trata-se do mesmo fenmeno que o da subordinao dos indivduos isolados diviso do trabalho, e tal fenmeno no pode ser suprimido se no se supera a propriedade privada e o prprio trabalho.9

Relacionando as classes ao processo de diviso social do trabalho, Marx e Engels

procuravam esclarecer os fundamentos da estrutura social no capitalismo. Demonstrando

que a classe, como fenmeno social, s se constitua em oposio aos interesses de outra(s)

classe(s) e, portanto, tomando conscincia de seu lugar social o que podia ser o ponto de

partida para um projeto poltico de transformao buscavam estabelecer as bases de uma

teoria da dinmica social, afirmando claramente o papel central da luta de classes. nesse

sentido que o Manifesto Comunista ir definir: a Histria de toda a sociedade at hoje a

Histria de luta de classes.10 A associao entre os conceitos de classe e luta de classes,

tornava assim passvel de compreenso, tanto os fundamentos da diviso econmico-social

das sociedades capitalistas, quanto a natureza do conflito social caracterstico da maior

parte da histria das sociedades humanas.

A tomada de conscincia pelo proletariado de seu lugar social, que Marx e Engels

observavam como um processo em curso nos anos 1840, no era, entretanto, um fenmeno

social de fcil explicao. Na Misria da Filosofia, Marx expressou a diferena entre a

existncia material da classe trabalhadora e a sua tomada de conscincia, na luta de classes,

atravs das expresses classe em si/classe para si.

9 Marx, Karl e Engels, Friedrich. A ideologia alem (Feuerbach). 5 ed., So Paulo, Hucitec, 1986, p. 84. 10 Marx, Karl & Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. In Marx e Engels. Obras escolhidas. Moscou/Lisboa, Progresso/Avante, 1982, Tomo I, p. 106.

As condies econmicas transformam primeiro a massa da populao do pas em trabalhadores. A dominao do capital criou para essa massa uma situao comum, interesses comuns. Essa massa portanto j uma classe no que se ope ao capital, mas no ainda uma classe para si. Na luta, da qual ns destacamos apenas umas poucas fases, essa massa se unifica, e se constitui como uma classe para si. Os interesses que defende se tornam interesses de classe. Mas a luta de classe contra classe uma luta poltica.11

Marx retomaria a questo em suas investigaes sobre a Frana, em especial nO

Dezoito Brumrio de Lus Bonaparte. Naquela obra, o estudo das classes, confrontado com

um caso concreto, ganhava muito mais cores. A anlise opera por um contnuo

deslocamento do terreno da luta parlamentar-partidria, para o terreno da luta de classes,

sem reducionismos, visto que alm da burguesia e do proletariado, Marx localiza na cena

poltica os camponeses, os proprietrios fundirios, a pequena burguesia, o lumpem-

proletariado e mesmo o papel dos estratos burocrticos e de instituies como a Igreja,

montando um tabuleiro complexo e mutvel conforme os embates eram polarizados pelas

posies antagnicas das classes sociais fundamentais, em uma conjuntura revolucionria.

Analisando o papel das classes, do ponto de vista da atuao poltica no momento

crucial da revoluo de 1848 e da conjuntura que a ela se seguiu, Marx retomaria a questo

do grau de conscincia que as classes poderiam ou no desenvolver. Embora reconhecendo

a luta que a Repblica parlamentar havia estabelecido entre uma conscincia moderna

(representada pelos mestres-escolas) e uma conscincia tradicional (representada pelos

padres), Marx observava a vitria da segunda. Percebia em sua anlise que os camponeses

franceses, dadas as condies de isolamento do seu modo de produo, no desenvolviam

mltiplas relaes entre si, o que, naquele quadro nacional e conjuntural, contribua para

uma situao marcada pela incompletude de sua constituio como classe. Nesta obra, ao

invs de valer-se das expresses classe em si e para si, optou por afirmar, dialeticamente,

que os camponeses formavam e no formavam uma classe:

Na medida em que milhes de famlias vivem em condies econmicas de existncia que as separam pelo seu modo de viver, pelos seus interesses e pela sua cultura dos das outras classes e as opem a estas de modo hostil, aquelas formam uma classe. Na medida em que subsiste entre os camponeses detentores de parcelas uma conexo apenas local e a identidade

11 Marx, Karl. The Poverty of Philosophy. (1847) In http://www.marxists.org/archive/marx/works/1847/poverty-philosophy/ch02e.htm. Visitado em 10/03/2005.

dos seus interesses no gera entre eles nenhuma comunidade, nenhuma unio nacional e nenhuma organizao poltica, no formam uma classe.12

Nas dcadas seguintes, Marx permaneceu referenciando nos conceitos de classes

sociais e luta de classes sua anlise da realidade e da correlao de foras europia. Assim

procurava pautar sua interveno concreta nas lutas de classe da poca, atravs da I

Internacional e, no fim de sua vida, no debate com o que considerava serem os equvocos

polticos do recm-fundado Partido Social Democrata dos Trabalhadores Alemes (SPD).

Da que, na conhecida passagem da carta a Bolte, avalie o grau de desenvolvimento da

conscincia de classe dos trabalhadores a partir do carter poltico ou seja, de classe

daqueles movimentos em que esto em jogo interesses de todos os trabalhadores contra

interesses da classe dominante:

O movimento poltico da classe operria tem como objetivo ltimo, claro, a conquista do poder poltico para a classe operria e para este fim necessrio, naturalmente, que a organizao prvia da classe operria, elaborada na prtica da luta econmica, haja alcanado certo grau de desenvolvimento. Por outro lado, todo movimento em que a classe operria atua como classe contra as classes dominantes e trata de for-las pressionando do exterior, um movimento poltico. Por exemplo, a tentativa de obrigar, atravs das greves, os capitalistas isolados reduo da jornada de trabalho em determinada fbrica ou ramo da indstria, um movimento puramente econmico; pelo contrrio, o movimento visando a obrigar que se decrete a lei da jornada de oito horas etc., um movimento poltico. Assim, pois, dos movimentos dos operrios separados por motivos econmicos, nasce em todas as partes um movimento poltico, ou seja, um movimento de classe, cujo alvo que se d satisfao a seus interesses em forma geral, isto , em forma que seja compulsria para toda a sociedade. Se bem que certo que estes movimentos pressupem certa organizao prvia, no menos certo que representam um meio para desenvolver esta organizao.13

Naquele contexto, porm, Marx j havia avanado significativamente em sua crtica

da economia poltica, sistematizada nO Capital, passando a incluir outros elementos de

discusso na anlise da poltica de classe que acreditava deveria embasar uma interveno

mais conseqente nas lutas de sua poca.

Percebe-se, pois, que a dimenso dinmica do conceito de classe permaneceu

importante em trabalhos posteriores de Marx, dedicados a explicar natureza da diviso

12 Marx, Karl. O 18 de brumrio de Louis Bonaparte. Obras Escolhidas, vol. 1. Moscou, Progresso; Lisboa, Avante, 1982, p. 503. 13 Marx, K. Carta a F. Bolte. (1871). In Marx, K. & Engels, F. Obras Escolhidas. Vol. 3. So Paulo, Alfa-mega, s.d., p. 266.

social capitalista em sua dimenso econmica. No entanto, o projeto de crtica economia

poltica tradicional, que seria em grande parte desenvolvido nO Capital, permaneceu

incompleto quanto a este ponto. No que diz respeito ao conceito de classe social, o ltimo

manuscrito (classes - Captulo LII da Parte Segunda do Livro Terceiro) da obra de Marx -

reconstituda neste trecho por Engels - encerra-se antes que o autor desenvolva a resposta

pergunta por ele mesmo formulada: o que constitui uma classe?14

Isto no significa, entretanto, que em sua crtica economia poltica Marx no tenha

avanado na discusso sobre as classes sociais. Muito ao contrrio. Sem a pretenso de

esgotar a questo, mas apenas retomando alguns de seus aspectos, para os intuitos de um

texto de sntese como este, recorremos a Daniel Bensaid, que analisa as diferentes

dimenses do conceito de classe nO Capital, associando-as ao movimento mesmo da obra

na explicao das diferentes faces do processo de acumulao capitalista.15

Tomando a noo de classe em Marx como uma totalidade relacional No h

classe seno na relao conflitual com outras classes16 e no como uma simples soma

das unidades que a compem, Bensaid, acompanhando o ritmo da exposio de Marx,

observa que, no livro I a relao de classe apareceu como relao de explorao

antagnica entre o operrio como produtor e o capitalista como capitalista industrial, na

forma da diviso entre trabalho necessrio e trabalho excedente. J no livro II, onde

desenvolve o ciclo das metamorfoses do capital, esse processo uma sucesso de atos de

compra e de venda. A relao de explorao aparece aqui entre o operrio enquanto

assalariado que vende sua fora de trabalho e o capitalista enquanto detentor do capital

monetrio. O que se acha em jogo nessa relao apreendido sob o ngulo no mais da

diviso do tempo de trabalho, mas sob o ngulo da negociao conflitual da fora de

trabalho enquanto mercadoria.17 Por fim, no livro III a questo da classe reaparece no

quadro do estudo da reproduo global.

A partir da, Marx apresentaria uma perspectiva de anlise que, segundo Bensaid,

jamais poderia restringir o estudo da classe simples oposio de interesses entre capital e

14 Marx, Karl. O Capital. So Paulo, Abril Cultural, 1985, Vol. III, Tomo 2, p. 317. 15 Bensaid, Daniel. Marx o intempestivo:grandezas e misrias de uma aventura crtica (sculos XIX e XX). Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1999. 16 Idem, ibidem, p. 148. 17 Idem, ibidem, pp. 156-157.

trabalho na produo, e a caracterstica determinante da relao de classes passa a ser

compreendida na dimenso ampliada da lgica do capitalismo:

Tratando da produo e da reproduo global, as classes j no so determinadas unicamente pela extorso da mais-valia ou pelas categorias de trabalho produtivo e improdutivo, mas pela combinao da relao de explorao na produo, da relao salarial e da produtividade/no-produtividade do trabalho na circulao, da distribuio da renda na reproduo global.18

Bensaid ressalta que s aps percorrer todo esse caminho Marx poderia, no livro III,

enfrentar adequadamente a questo das classes, ressalvando que para dar conta de todas as

suas dimenses, h ainda ausncias no que foi escrito dO Capital, pois se o livro trata do

processo de produo global, ele no aborda as condies de reproduo (educao, sade,

moradia), que exigiriam introduzir como tal a mediao do Estado.19 Desse ponto de vista,

embora haja indicaes suficientes da amplitude do conceito de classes sociais ao longo de

toda a redao do livro, o captulo inacabado poderia, segundo ainda Bensaid, ter ido alm:

Determinadas ao nvel do processo de produo global, as classes poderiam ainda receber novas determinaes que implicam a anlise da famlia, da educao e do Estado, e, para alm ainda, a luta poltica propriamente dita. Seria preciso recortar ento o caminho inacabado do Capital a partir do caminho inverso, que iria da luta de classes como luta poltica ao modo de produo. O livro abandonado sobre o Estado constituiria assim o ponto de fuga de uma teoria das classes que no se pode achar, cuja morte, que suspende definitivamente a pena, no teria como ser o nico impedimento.20

Por isso, para Bensaid, a anlise do conceito de classes em Marx seria completada

justamente pelo seu estudo do campo poltico, feito em obras como a trade sobre a Frana,

acima comentadas. No campo especfico do poltico, as relaes de classes adquirem um

grau de complexidade irredutvel ao antagonismo bipolar que entretanto as determina.21

18 Idem, ibidem, p. 158. 19 Idem, ibidem, p. 159 20 Idem, ibidem, p. 164. 21 Idem, ibidem.

Classes e luta de classes nas tradies marxistas do sculo XX A busca pelas anlises das sociedades baseadas em critrios de classe pode partir de

uma leitura mais atenta dos textos de Marx e Engels, apenas esboada na abertura deste

texto, mas depende tambm de um dilogo com as anlises marxistas sobre a questo

produzidas ao longo do sculo XX.

Para diversos autores, a mais completa definio de classes sociais produzida no

mbito do marxismo foi aquela esboada por Lnin em um escrito poltico posterior

revoluo de 1917. Segundo ele:

As classes so grandes grupos de homens que se diferenciam entre si pelo lugar que ocupam em um sistema de produo social historicamente determinado, pelas relaes em que se encontram com respeito aos meios de produo (relaes que as leis referendam e formulam em sua maior parte), pelo papel que desempenham na organizao social do trabalho, e, conseqentemente, pelo modo e proporo em que recebem a parte da riqueza social de que dispem. As classes so grupos humanos, um dos quais pode apropriar-se do trabalho de outro por ocupar postos diferentes em um regime determinado de economia social.22

A definio de Lnin corresponde de fato a uma preocupao tanto com a dimenso

ampliada da reproduo global do capital, destacada no comentrio de Bensaid sobre O

Capital, que comentamos no incio deste artigo, como atenta perspectiva relacional

inerente ao uso marxiano de classe.

Porm, preciso perceber que os caminhos tomados pelo marxismo ao longo do

sculo XX foram variados e muitas vezes mesmo antagnicos. Essa parece ter sido a

preocupao do historiador ingls Edward P. Thompson, que num livro de 1978 A

misria da teoria resumiu o problema. Nos anos 1960, numa polmica apresentada em

um texto sem traduo para o portugus, chamado Carta aberta a Kolakowski, ele havia

se referido aos diferentes caminhos de uma tradio marxista no sculo XX, caminhos

opostos, em muitos sentidos, mas que possuam algo em comum, ainda que apenas o uso de

um vocabulrio compartilhado derivado das idias de Marx e Engels. Agora, em 1978,

fazia uma auto-crtica, pois acreditava ter se enganado e que existiam na verdade duas

tradies irreconciliveis do marxismo:

22 Lnin, V. I. Una Gran Inciativa. In Obras escogidas. Moscou, Progresso, s.d., p.504.

O fosso que se abriu no foi entre diferentes nfases ao vocabulrio de conceitos, entre esta analogia e aquela categoria, mas entre modos de pensar idealista e materialista, entre o marxismo como um fechamento e como uma tradio, derivada de Marx, de investigao e crtica abertas. O primeiro uma tradio de teologia. O segundo uma tradio de razo ativa. Ambos podem buscar uma certa autorizao em Marx, embora o segundo tenha credenciais imensamente melhores quanto sua linhagem.23

Estando de acordo com Thompson, possvel falar, ao longo do sculo XX, de dois

grandes troncos que invocaram o marxismo em Histria: a doutrina marxista-leninista

(adjetivo que nem Marx nem Lnin, mortos, puderam repudiar) de Stlin e os que a

seguiram; e a tradio crtica do materialismo histrico.

No campo da doutrina aquela definio de Lnin seria lida de forma mutiladora e

simplificadora, gerando um parmetro de anlise de classe completamente preso ao

determinismo econmico-tecnolgico. Um bom exemplo desse tipo de simplificao

pode ser encontrado na forma como os manuais soviticos apresentavam a definio de

Lnin. Cito um exemplo, em que o trecho de Lnin reduzido e apresentado em um

diagrama, composto pelos seguintes elementos, distribudos em quatro quadrculas (aqui

citamos apenas os trechos que as preenchem):

Classes so grandes grupos de pessoas que se diferenciam entre si: pelo seu lugar num sistema de produo social historicamente determinado, pela sua relao com os meios de produo, pelo seu papel na organizao social do trabalho, pelo modo de obteno da parte de riqueza social, pelas dimenses da parte de riqueza obtida.24

No apenas foram resumidos os termos originais de Lnin, como sua leitura

submetida a um modelo de apresentao da questo em que se destacam as definies

fechadas e as determinaes, ficando as classes reduzidas a um sub-fenmeno do modo de

produo. O esquema parece funcionar com preciso mecnica:

oportuno notar que cada modo de produo se caracteriza pela sua diviso especfica da sociedade em classes e o aparecimento das classes fundamentais e no fundamentais, das camadas e grupos sociais. Ao falar do segundo indcio das classes (a relao com os meios de produo), (...) na sociedade antagnica ele

23 Thompson, E. P. A misria da teoria, ou um planetrio de erros: uma crtica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 208. O texto de Thompson An open letter to Leszek Kolakowski foi publicado na edio original inglesa The poverty of theory and other essays. Londres, Merlin Press, 1978. Um comentrio bastante rico a esse texto feito por Duayer, Mario. Desencanto revolucionrio, ininteligibilidade da Histria e apostasia da esquerda: E. P. Thompson sobre L. Kolakowski. Niteri, 2004. (mimeo.) 24 Lies de filosofia marxista-leninista. Metodologia. Moscou, Edies Progresso, 1984 (1a. ed. 1975), p. 173.

reflete os lugares diametralmente opostos ocupados pelas classes no sistema de produo. Isto, por sua vez, engendra diferentes contradies antagnicas entre as classes. Da relao das classes com os meios de produo depende diretamente o seu papel na organizao social do trabalho. (...) A relao com os meios de produo determina tambm o quarto indcio das classes: o modo de obteno e as dimenses da apropriao das riquezas sociais.25

Embora as referncias a Stlin j no estivessem mais to presentes nas atualizaes

dos manuais soviticos posteriores ao fim dos anos 1950, como no caso do acima citado,

datado dos anos 1970, inegvel neste tipo de concepo a fora das teses stalinianas.

Recorramos ao prprio, para no sacramentar uma viso fantasmagrica do stalinismo

como abstrao. Na obra Materialismo histrico e dialtico (1938), h uma exemplar

sntese de sua explicao da evoluo das sociedades humanas pelo modelo do

quatripartismo, da seqncia de modos de produo: com o fim das comunidades

primitivas d-se a origem do escravismo; a este se seguir o feudalismo, por sua vez

sucedido pelo capitalismo, que inexoravelmente dar lugar ao socialismo. Para explicar

essa sucesso de modos de produo, duas chaves bsicas: a idia de que determinadas

relaes de produo correspondem ao estgio das foras produtivas (tomadas basicamente

em sua acepo como capital fixo mquinas, equipamentos, tecnologia materializada) no

perodo; e a noo, especialmente enfatizada em sua aplicao ao capitalismo, de que o

desenvolvimento ao extremo das foras produtivas faz emergir contradies insolveis nos

marcos daquele modo de produo.

Assim, a luta de classes no esquecida formalmente, mas aparece circunscrita s

determinaes objetivas destas contradies entre o estgio das foras produtivas avanadas

e as relaes sociais arcaicas, nos momentos de crise do modo de produo. Trata-se, como

todos os demais fenmenos da vida social de um fenmeno natural e inevitvel:

Se o desenvolvimento procede atravs da revelao das contradies internas, atravs de colises entre foras opostas na base dessas contradies e da mesma forma que supera essas contradies, ento est claro que a luta de classes do proletariado um fenmeno absolutamente natural e inevitvel26

Nestes termos, a revoluo, movida pelas classes oprimidas (e, portanto, a revoluo

socialista movida pelo proletariado) tambm deixava de ser uma possibilidade aberta pelas

25 Idem, pp. 173-174. 26 Stlin, J. V. Dialectical and historical materialism. 1a. Ed., 1938. Conforme http://www.marxists.org/reference/archive/stalin/works/1938/09.htm, visitado em 30/09/04.

contradies objetivas no bojo da luta de classes, para se transformar em mais uma lei

natural do desenvolvimento histrico:

se a passagem das lentas mudanas quantitativas para as rpidas e abruptas mudanas qualitativas uma lei do desenvolvimento, ento est claro que as revolues feitas pelas classes oprimidas so fenmenos absolutamente naturais e inevitveis.27

Mas Stlin no foi o primeiro determinista a partir do vocabulrio de Marx e Engels

para propor uma explicao to simplificadora dos fenmenos sociais. Entre os social-

democratas da poca da II Internacional, a leitura reducionista dos conceitos de classe e luta

de classes como diretamente determinados ou derivados da base econmica j estava

presente. O que pode ser percebido em textos da dcada de 1890, como os produzidos por

Kautsky e Plekhanov.

Em Plekhanov, as determinaes econmicas das diversas dimenses das classes e

da prpria luta de classes so apresentadas num encadeamento mecnico direto:

As foras produtivas disposio dos homens determinam todas as suas relaes sociais. Em primeiro lugar, o estado das foras produtivas determina as relaes nas quais os homens se encontram confrontados no processo social da produo, que so as suas relaes econmicas (...) O desenvolvimento das foras produtivas divide a sociedade em classes, cujos interesses so no apenas diferentes, mas em muitos e, alm disso, essenciais aspectos so diametralmente antagnicos. Esse antagonismo de interesses desperta os conflitos, para uma luta entre as classes sociais. (...) Finalmente, relaes sociais, determinadas pelo estgio das foras produtivas despertam a moralidade comum, a moralidade que orienta o povo em sua vida cotidiana.28

Perceba-se que ao apresentar as foras produtivas como disposio dos homens

separa a concretizao da tecnologia em mquinas e ferramentas da sua elaborao pela

conscincia humana executada atravs do trabalho. Se h nuances entre o nvel das relaes

de produo e o da moralidade comum, elas so diferenas subsumidas pela

determinao econmica, que atinge todas as esferas da vida social, ainda que nem sempre

de forma direta:

Assim a lei, o sistema estatal e a moralidade de um determinado povo so diretamente e imediatamente determinados pelas suas relaes econmicas

27 Idem, ibidem. 28 Plekhanov, G. V. The Materialist Conception of History. 1891. Conforme http://www.marxists.org/archive/plekhanov/1897/history/part1.htm, visitado em 06/10/04.

caractersticas. Essas relaes econmicas tambm determinam porm indiretamente e de forma mediada todas as criaes da mente e imaginao: arte, cincia, etc. 29

Em Kautsky, os termos so muito similares aos apresentados por Stlin dcadas

depois, para defender a naturalidade ou inexorabilidade no apenas da luta de classes, mas

tambm de um resultado dado o da revoluo socialista. Assim:

As foras produtivas que foram geradas na sociedade capitalista tornaram-se irreconciliveis com todo o sistema de propriedade sobre o qual elas esto construdas. (...) Cada aperfeioamento novo nas foras produtivas eleva a contradio que existe entre elas e o sistema atual de propriedade (...) Quando declaramos a inevitabilidade da abolio da propriedade privada dos meios de produo, no queremos dizer que em alguma manh as classes exploradas vo descobrir que, sem sua ajuda, algumas fadas boas produziram a revoluo. Consideramos inevitvel a ruptura do presente sistema social, porque sabemos que a evoluo econmica inevitavelmente gera condies que compeliro as classes exploradas a levantar-se contra este sistema de propriedade privada.30

Com ou sem a presena das fadas boas, o fato que foi possvel a esta tradio

dogmtica sustentar que sua anlise das classes e das sociedades se alicerava sobre os

escritos de Marx, Engels e, mais tarde, Lnin. Mas como o dogma sustenta-se muito mais

por um argumento de fora a verdade oficial do que sobre uma anlise crtica, cabe

apontar para a incompatibilidade de fundo entre tal perspectiva e os escritos de marxianos

acima rapidamente comentados. Afinal, como ressalta Daniel Bensaid, a viso marxiana do

potencial emancipador do proletariado no pode ser transformada em uma viso

determinista da inexorabilidade da emancipao:

Se o proletariado a classe potencialmente emancipadora, essa virtualidade no se realiza automaticamente. O Capital pe em evidncia os obstculos ao desenvolvimento da conscincia de classe inerentes prpria reificao das relaes sociais. A esses obstculos prprios relao de produo acrescentaram-se os efeitos especficos das vitrias e dos fracassos polticos.31

Ainda assim, tal tradio determinista, mesmo a partir da ascenso da doutrina

stalinista no significou, de maneira alguma, o estabelecimento de um pensamento nico

no marxismo, apesar de boa parte da crtica posterior ter feito enorme esforo para reduzir o

29 Idem, ibidem. 30Kautsky, Karl. The Class Struggle (Erfurt Program). 1892. Conforme: http://www.marxists.org/archive/kautsky/index.htm , acessado em 06/10/04. 31 Bensaid, D. Marx..., op. Cit., p. 166.

conjunto da produo referenciada em Marx no sculo XX, quando no o prprio Marx, ao

espectro determinista da vulgata stalinista.

Aijaz Ahmad, em estudo que procura relacionar as noes de cultura e classe,

explica porque so associados vulgaridade do determinismo econmico todos os que

tentam, a partir dos princpios traados por Marx e Engels e pela tradio crtica posterior,

localizar a inconsistncia das posies dominantes no meio intelectual atual:

essas acusaes [de vulgaridade] esto disponveis (...) para qualquer um que faa uma conexo direta e consistente entre cultura e classe; entre opresso social e explorao econmica; entre trabalho cultural na instituio acadmica e responsabilidade poltica fora da instituio; entre uma crtica da cultura capitalista e um compromisso com a transformao socialista no sentido de uma poltica revolucionria das classes operrias.32

Trata-se, portanto, de uma operao poltica prpria ao pensamento conservador a

tentativa de reduzir qualquer marxismo ao determinismo econmico, como, alis, j

notavam alguns dos contemporneos da prpria ascenso do reducionismo de matriz

stalinista e que contra ela se pronunciaram, no interior mesmo do marxismo. o caso de

Antonio Gramsci, que em seus Cadernos do Crcere denunciava a associao apressada

entre marxismo e economicismo, como uma manobra da crtica conservadora: Muitas

vezes acontece que se combate o economicismo histrico pensando combater o

materialismo histrico. Gramsci definia o economicismo, que ele tambm combatia, em

termos semelhantes s idias de teologia ou doutrina que j mencionamos, com a

analogia da superstio. Por isso, o revolucionrio italiano, assim localiza o economicismo

histrico em seu debate com os pensadores italianos da poca que se contrapunham ao

marxismo (a filosofia da prxis):

Em vrias ocasies afirmou-se nestas notas que a filosofia da prxis est muito mais difundida do que se admite. A afirmao exata desde que se entenda como difundido o economicismo histrico, que como o Prof. Loria denomina agora suas concepes mais ou menos desconexas; e que, portanto, o ambiente cultural se modificou completamente desde o tempo em que a filosofia da prxis iniciou suas lutas; pode-se dizer, com terminologia crociana, que a maior heresia surgida no seio da tradio da liberdade, tal como a religio ortodoxa, tambm sofreu uma degenerao, difundiu-se como superstio, isto , entrou em combinao com o liberalismo e produziu o economicismo. Porm, deve-se ver se, enquanto a religio ortodoxa se estiolou definitivamente, a superstio hertica no ter conservado

32 Ahmad, Aijaz. Linhagens do presente. So Paulo, Boitempo, 2002, p. 219.

sempre seu fermento que a far renascer como religio superior, ou seja, se as escrias da superstio no so facilmente liquidveis.33

Gramsci tambm pode ser tomado como exemplo do quanto avanou a discusso

sobre as classes e a luta de classes, no interior mesmo do debate marxista do sculo XX.

Em suas reflexes sobre as relaes de foras, nas situaes em que se constri a

hegemonia de um grupo social dominante sobre os grupos dominados, traduziu a questo

da conscincia de classe para o terreno da luta poltica em seu sentido mais amplo e

exemplificou sua anlise com a construo da dominao hegemnica da burguesia a ele

contempornea. O revolucionrio italiano procede por distino entre uma primeira

correlao de foras que ele denomina social, mais diretamente vinculada s estruturas

de outra mais propriamente poltica, portanto consciente e de classe, no sentido de Marx,

assim apresentadas:

O momento seguinte e a relao das foras polticas, ou seja, a avaliao do grau de homogeneidade, de autoconscincia e de organizao alcanado pelos vrios grupos sociais. Este momento, por sua vez, pode ser analisado e diferenciado em vrios graus, que correspondem aos diversos momentos da conscincia poltica coletiva, tal como se manifestaram na histria at agora. O primeiro e mais elementar o econmico-corporativo: um comerciante sente que deve ser solidrio com outro comerciante, um fabricante com outro fabricante, etc., mas o comerciante no se sente ainda solidrio com o fabricante; isto , sente-se a unidade homognea do grupo profissional e o dever de organiz-la, mas no ainda a unidade do grupo social mais amplo. Um segundo momento aquele em que se atinge a conscincia da solidariedade de interesse entre todos os membros do grupo social, mas ainda no campo meramente econmico. J se pe neste momento a questo do Estado, mas apenas no terreno da obteno de uma igualdade poltico-jurdica com os grupos dominantes, j que se reivindica o direito de participar da legislao e da administrao e mesmo de modific-las, de reform-las, mas nos quadros fundamentais existentes. Um terceiro momento aquele em que se adquire a conscincia de que os prprios interesses corporativos, em seu desenvolvimento atual e futuro, superam o crculo corporativo, de grupo meramente econmico, e podem e devem tornar-se os interesses de outros grupos subordinados.34

O problema da conscincia de classe tambm fora abordado, alguns anos antes, por

outro pensador revolucionrio fundamental para a tradio crtica do marxismo, Gyrgy

Lukcs. Em Histria e conscincia de classe obra escrita sob o impacto da revoluo

sovitica, do movimento revolucionrio hngaro que a ela se seguiu e da converso do

33 Gramsci, Antonio. Cadernos do Crcere. (Caderno 13) Vol. 3. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2000, p. 50. 34 Idem, ibidem, p. 41.

autor, de formao idealista, ao marxismo a conscincia de classe, numa tentativa de

remete-la a suas determinaes essenciais, avaliada a partir de uma concepo de

apreenso da totalidade concreta, dando origem noo de falsa conscincia:

Estudo concreto significa portanto: referncia a conscincia que os homens podem ter a cada momento da sua existncia se revela nas suas determinaes essenciais, por um lado como qualquer coisa de adequado; e ao mesmo tempo, como qualquer coisa que objetivamente, passageira relativamente essncia do desenvolvimento social, que no se conhece nem se exprime adequadamente, como falsa conscincia portanto.35

Continuando o seu raciocnio, em busca da superao dos limites da falsa

conscincia, Lukcs prope um caminho:

Ao estabelecer-se a referncia com a totalidade concreta, de que resultam as determinaes dialticas, supera-se a simples descrio e atinge-se a categoria da possibilidade objetiva. Ao reportar-se a conscincia totalidade da sociedade, descobrem-se os pensamentos e sentimentos que os homens teriam tido, numa situao vital determinada, se tivessem sido capazes de perceber perfeitamente esta situao os interesses dela decorrentes, tanto relativos ao imediata como, em conformidade com esses interesses, estrutura de toda a sociedade; descobrem-se, portanto, os pensamentos, etc., que so conformes sua situao objetiva. Em nenhuma sociedade ilimitado o nmero de tais situaes. Mesmo que sua tipologia seja elaborada graas a aprofundadas pesquisas de pormenor, chega-se a alguns tipos fundamentais claramente distintos uns dos outros e cujo carter essencial determinado pela tipologia da posio dos homens no processo de produo. Ora, a reao racional adequada que deve, desta forma, ser adjudicada a uma situao tpica determinada no processo de produo a conscincia de classe. Esta conscincia no , portanto, nem a soma nem a mdia do que pensam, sentem, etc., os indivduos que formam a classe, tomados um por um. E, no entanto, a ao historicamente decisiva da classe como totalidade determinada, em ltima anlise, por esta conscincia e no pelo pensamento, etc. do indivduo; esta ao s pode ser conhecida a partir dessa conscincia.36

A idia de que as determinaes econmicas, histrica e socialmente localizadas,

limitavam a viso de mundo dos trabalhadores a uma falsa conscincia estava associada

naquela obra de Lukcs a uma preocupao com a luta ideolgica pela plena conscincia,

vista como a conscincia que o proletariado tem da sua misso histrica. Se a falsa

35 Lukcs, Gyrgy. Histria e conscincia de classe. p. 64. 36 Idem, ibidem, pp. 64-65.

conscincia da burguesia estava em acordo com a sua situao objetiva, ao proletariado

interessava a verdade. Afinal, naquela quadra revolucionria, as teorias, corretas ou

falsas, teriam um papel decisivo. Da que para Lukcs, naquela obra, face aos limites

objetivos a que estava submetida a classe trabalhadora, a sua possibilidade de superao

dos limites da falsa conscincia dependeria da atuao de um agente externo. A

conscincia da misso histrica do proletariado s poderia lhe ser trazida de fora, pelo

partido revolucionrio, portador da teoria correta.

Tal concepo foi muito reproduzida, mas gerou tambm inmeras polmicas

posteriores, mesmo no interior do debate dos marxistas, em geral marcadas por uma crtica

idealizao do papel consciente da vanguarda organizada e ao carter esttico da

definio de falsa conscincia. Bensaid pode ser tomado como um exemplo da rejeio a

utilizaes mecnicas do conceito de falsa conscincia, acompanhada de uma tentativa de

resgate da dimenso dialtica da noo de Marx esboada na anlise dos camponeses

franceses, sobre ser e no ser classe, simultaneamente, combinada referncia anlise

dO Capital sobre os obstculos postos conscincia, inerentes reificao das relaes

sociais:

Objeto e sujeito, ser e essncia acham-se unidos no devir da classe. Na dinmica das relaes de classe, a subjetividade da conscincia no pode destacar-se passivamente da conscincia. Essa problemtica ope-se a toda concepo mecnica da passagem necessria do em-si ao para-si, do inconsciente ao consciente, do social pr-consciente ao poltico consciente, entre os quais o tempo faria o papel de mediador neutro. Conscincia e inconscincia de classe enlaam-se num abrao perverso e no cessam de enganar-se mutuamente.37

O mais interessante, porm, que o prprio Luckcs viria mais tarde a criticar, em

um posfcio escrito em 1967, suas idias de meio sculo antes. Embora reconhecendo a

importncia de Histria e conscincia de classe para o resgate da dimenso subjetiva da

ao humana e para a lembrana dos fios que ligavam Marx a Hegel, o pensador

revolucionrio hngaro avaliou como idealista a noo de conscincia de classe que

desenhou naquele livro:

E assim eu queria delimitar a conscincia de classe correta e autntica do proletariado em relao a qualquer sondagem de opinio (a expresso,

37 Bensaid, D. Marx..., op. cit., p. 168.

evidentemente, ainda no era usada na poca) emprica, conferindo-lhe uma objetividade prtica incontestvel. Mas s consegui chegar conscincia de classe adjudicada. O que eu pretendia com isso era o que Lenin caracteriza em Que fazer? ao dizer que, por oposio conscincia espontaneamente trade-unionista, a conscincia de classe socialista trazida aos trabalhadores do exterior (...), isto , de fora da luta econmica, de fora da esfera das relaes entre operrios e patres. Portanto, o que em mim existia como inteno subjetiva e existia em Lenin como resultado da anlise autenticamente marxista de um movimento prtico no interior da totalidade da sociedade, tornou-se, na minha exposio, um resultado puramente intelectual, donde algo essencialmente contemplativo. A inverso da conscincia adjudicada em prxis revolucionria aparece aqui objetivamente como puro milagre. Esta inverso de uma inteno em si correta no seu contrrio decorre de uma concepo idealista abstrata da prpria prxis que j mencionamos.38

No mesmo posfcio, Lukcs critica a leitura staliniana da III Internacional e,

particularmente, a obra de Bukharin, em seu carter determinista, por ver na tcnica o

motor do desenvolvimento das foras produtivas: um fatalismo histrico, uma eliminao

do homem e da prxis social, uma ao da tcnica como fora da natureza social, como

sistema de leis naturais.39

Tal limite da sua anlise anterior derivava, para o prprio Lukcs (que na poca em

que redigiu aquele livro ainda no conhecia obras como os Manuscritos econmico-

filosficos de Marx), de uma perspectiva anti-ontolgica, porque at ento ignorava a

tomada de posio do marxismo em relao natureza e concebia-o apenas como doutrina

social. A economia era ento percebida de forma puramente mecnica, sem tomar em conta

a dimenso mediadora do trabalho na troca entre a natureza e a sociedade.

Para entendermos a capacidade de Lukcs rever seus escritos anteriores a partir dos

novos parmetros que delimitou em suas obras da maturidade, seria preciso, portanto,

recorrer a sua Ontologia do ser social, em especial ao captulo sobre o trabalho. Naquela

obra, a dimenso totalizante da anlise recomposta em novas bases, pois atravs da

categoria trabalho, chave explicativa principal da ontologia do ser social, os conceitos

antitticos da intencionalidade e da causalidade se combinam de forma dialtica. Atravs

38 Idem, ibidem, pp. 358-359. 39 Idem, ibidem, p. 373. Seria interessante comparar tal crtica a Bukharin com aquela desenvolvida por Gramsci, sob o ttulo de Observaes e notas crticas sobre uma tentativa de ensaio popular de sociologia. Gramsci, Antonio. Cadernos ..., op. cit., vol 1, pp. 114 e ss. (Caderno 11).

do trabalho, o homem ser social intervm intencionalmente na causalidade natural,

modificando-a em direo a uma causalidade posta. Por isso, tal anlise ontolgica, com

forte componente histrica, abre espao para uma outra leitura da ao coletiva consciente

das classes sociais, que valoriza a conscincia dos sujeitos, mas no ignora as

determinaes objetivas, pois entende o ser social como prvio conscincia social.40

Para ficarmos num ltimo exemplo de perspectiva crtica na tradio marxista,

opondo-se frontalmente ao determinismo na anlise das classes e das lutas de classe,

resgatamos o alemo Walter Benjamin. Nas Teses sobre o conceito de Histria, Benjamin

procura explicar a ascenso do fascismo e passa em revista crtica a forma como a social-

democracia alem, desde o Programa de Gotha, abraou uma concepo linear-evolutiva e

determinista de progresso, que desarmou a classe operria daquele pas frente ascenso

nazi-fascista. Para Benjamin, nada foi mais corruptor para a classe operria alem que a

opinio que ela nadava com a corrente.41 Lembrando a crtica de Marx idia simplista de

trabalho como fonte de toda a riqueza e de toda a civilizao expressa no Programa de

Gotha, Benjamin sustentou que:

Esse conceito de trabalho, tpico do marxismo vulgar, no examina a questo de como seus produtos podem beneficiar trabalhadores que deles no dispem. Seu interesse se dirige apenas aos progressos na dominao da natureza, e no aos retrocessos na organizao da sociedade. J esto visveis, nessa concepo, os traos tecnocrticos que mais tarde vo aflorar no fascismo.42

No mesmo texto, Benjamin recordou as vrias dimenses da luta de classes,

procurando expor o quanto suas dimenses materiais e espirituais se entrelaam:

A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais no existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais no podem ser representadas como despojos atribudos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiana, da coragem, do humor, da astcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos.43

40 Lukcs, Gyrgy. Per lontologia dellessere sociale. Roma, Riuniti, 1976. Apoiamo-nos aqui na anlise de Martins, Maurcio Vieira. Sobre o concito de ontologia. Niteri, 2004 (mimeo.) 41 Benjamin, Walter. Teses sobre a Histria. In Obras Escolhidas. (Vol. 1). 2a. Ed, So Paulo: Brasiliense, 1986, p. 227. 42 Idem, ibidem, p. 228. 43 Idem, ibidem, pp. 223-224.

O reconhecimento da presena do determinismo numa tradio analtica e poltica

que reivindicou as idias de Marx e Engels no nos pode cegar, portanto, frente a

contribuies decisivas dos marxistas do sculo XX, como: a definio ampla das

dimenses econmicas das classes expressa por Lnin; a definio do trabalho como

fundamento ontolgico do ser social em Lukcs; a anlise das etapas da conscincia na luta

pela hegemonia caracterstica das formas de dominao em sociedades capitalistas

complexas em Gramsci; a crtica radical ao determinismo que autores como estes e como

Benjamin produziram; ou mesmo as contribuies decisivas para a discusso da

conscincia de classe como forma particular de manifestao da subjetividade dos grupos

humanos. Tampouco podemos esquecer que, se a tradio determinista buscou amparo em

Marx, as melhores credenciais do materialismo histrico foram empregadas em uma

crtica bem mais profunda aos determinismos de toda espcie, do que aquela empregada

pelos crticos anti-marxistas. E os historiadores tambm tiveram seu papel na manuteno

dos ventos crticos da tradio materialista.

A contribuio dos historiadores

Este um texto escrito por um historiador, pensando em um pblico de leitores

constitudo no exclusivamente por historiadores em formao, que defende a idia de

que no debate sobre conceitos fundamentais como os de classe e luta de classes, a

contribuio da anlise histrica decisiva. Por isso, consideramos relevante resgatar aqui

uma discusso sobre o conceito de classe social no interior do debate marxista, produzida

por historiadores sociais, britnicos em especial, que estudaram o processo de formao da

classe e suas vrias dimenses. Uma tradio ainda mais interessante para nossa discusso

porque seu momento inicial de formulao esteve marcado por um questionamento

atualidade e pertinncia das explicaes centradas na classe social para o estudo das

sociedades contemporneas, algo similar ao que encontramos em nossa

contemporaneidade.

Tais aportes dos historiadores surgem justamente no contexto das dcadas de 1950 e

1960, quando a diminuio das disparidades na distribuio de renda e a ampliao no

poder de consumo da classe operria dos pases industrializados europeus levaram alguns

cientistas sociais a proclamarem o fim da classe operria e a homogeneizao das

sociedades de capitalismo avanado, com a afirmao de uma onipresente "classe mdia".

Vrios questionamentos tese do "aburguesamento" operrio foram mais tarde

levantados, tendo por base estudos sobre a classe operria no mundo do trabalho, na esfera

da produo, e no apenas no mbito do mercado de consumo.44 Uma das contribuies

mais ricas para este debate viria de uma abordagem que destacava as matrizes culturais do

comportamento operrio. Richard Hoggart, embora reconhecendo a tendncia a

transformaes profundas na classe operria, destacou a persistncia de padres de

comportamento e valores tradicionais de classe, com base na observao ativa de uma

comunidade operria, aliada problematizao de sua prpria experincia de vida.45

Apesar de seu trabalho preocupar-se principalmente com a circulao e repercusso de

livros e peridicos ditos populares, a obra de Hoggart extrapolou tal limite temtico em

direo a uma rica descrio etnogrfica da vida familiar e comunitria do operariado

britnico, em que se destaca a forma especfica de classe em que novas situaes sociais

so lidas, atravs de lentes condicionadas pelas matrizes culturais tradicionais.

Repercusso semelhante teve o estudo sociolgico coletivo Coal is our life, em que

se procurava estudar o impacto da nacionalizao das minas de carvo e de outras reformas

sociais promovidas pelos governos de maioria trabalhista sobre a vida dos mineiros

britnicos. As constataes do trabalho enfatizavam que, apesar de todas as mudanas da

nova era, as divises de classe e sua percepo pelos mineiros haviam mudado muito

pouco. A partir de uma perspectiva de classe muito ntida, os mineiros de carvo

continuavam a manifestar um profundo antagonismo contra os administradores das

mineradoras e contra os privilegiados da sociedade em geral. Havia, entretanto, mudanas

perceptveis nas relaes dos mineiros com o Partido Trabalhista, que apesar de bem votado

nas comunidades mineiras parecia ter cada vez menos presena no cotidiano das

comunidades.46

44 O debate sobre esta questo resumido por Goldthorpe, John H. (e outros). The Affluent Worker: industrial attitudes and behavior. New York, Cambridge University Press, 1968, 1o. vol. 45 Hogart, Richard. As Utilidades da Cultura. Lisboa, Presena, s.d.( 1a. ed. inglesa, The Uses of Literacy, de 1958). 46 Dennis, N.; Henriques, F. & Slaughter, C. Coal is our life. Londres, Tavistock, 1969 (1a. ed., 1956). Um bom comentrio sobre o livro em seu contexto pode ser encontrado em Savage, Mike & Miles, Andrew. The remaking of the britsh working class. 1840-1940. Londres, Routledge, 1994, pp. 4-5.

Foi nesta mesma conjuntura, que um grupo de historiadores, ligados s questes da

classe operria pela militncia poltica no Partido Comunista Britnico, produziu uma srie

de contribuies que avanavam em sentido anlogo. Propunham - no interior dos marcos

conceituais do marxismo uma histria no apenas econmica do capitalismo ingls,

embora valorizassem a Histria Econmica.47 Forando os limites da interpretao

marxista dominante na poca, enfatizavam a importncia e a autonomia relativa de outros

nveis de anlise (poltico, social, cultural), destacando a relevncia de estudos

historicamente localizados em que tais nveis pudessem ser observados na sua dinmica

inter-relao.48

Essa perspectiva, quando aplicada aos estudos sobre a classe operria britnica,

gerou trabalhos como os produzidos por Eric Hobsbawm, para quem a histria operria

parte da histria da sociedade, ou melhor, da histria de certas sociedades que possuem

caractersticas especficas em comum. Parte de uma histria maior de certas sociedades, a

histria operria seria tambm composta por vrias dimenses:

A histria operria um assunto multifacetado, embora os nveis de realidade ou de anlise formem um todo: trabalhadores e movimentos, bases e lderes, os nveis scio-econmico, poltico, cultural, ideolgico e histrico tanto no sentido de operarem num contexto dado pelo passado, quando no sentido de que mudam ao longo do tempo em determinadas maneiras especficas.49

Vindo deste grupo, E. P. Thompson comps, com seu A Formao da Classe

Operria Inglesa, um estudo que, pela nfase na dimenso cultural da classe e pela riqueza

de uma anlise que reconstitua importantes aspectos da vida comunitria dos trabalhadores

"pr-industriais", pode ser lido a partir de vrios paralelos com o trabalho de Hoggart,

apesar das diferenas significativas quanto aos marcos conceituais.50

47 Basta afirmar, que a grande referncia inicial do grupo era Maurice Dobb, autor do clssico A Evoluo do capitalismo. 6a. Ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1977. 48 Sobre este grupo, ver Schwartz, B. "The People in history: the Comunisty Party Historians Group 1946-1956". In Johson, R. (e outros). Making Histories: Studies in History, Writting and Politics. Londres, Hutchinsosn, 1982. 49 Hobsbawm, Eric. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, pp. 29-30. 50 Thompson, E. P. A Formao da Classe Operria Inglesa. Rio de Janeiro, Paz e terra, 1987-1988, 3 vols. (1a. ed. inglesa, The Making of the English Working Class, de 1963). A comparao com o trabalho de Hoggart foi sugerida por Leve, Jean (e outros). "Comming of Age in Birmingham: cultural studies and conceptions of subjectivity". In Annual Reviews of Antropology. 1992. A associao j havia sido proposta pelos crticos do "culturalismo" de Thompson, que teve a oportunidade de rechaar as crticas e de salientar as diferenas entre o marco terico de seus estudos e o de Hoggart, em "La politica de la teora". In Samuel, Raphael (ed.). Historia popular y teora socialista. Barcelona, Crtica, 1984, texto comentado adiante.

Ao abordar a formao da classe de um outro ngulo, Thompson procurou articular,

em um contexto histrico especfico e minuciosamente estudado, a relao entre as

determinaes materiais da experincia de classe com os elementos culturais - no sentido

de sistemas de valores, crenas, moral, atitudes - envolvidos no processo de articulao de

identidades constituintes da conscincia de classe. Repetindo uma das passagens mais

citadas pelos historiadores nas ltimas quatro dcadas:

A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experincias comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opem) dos seus. A experincia de classe determinada, em grande medida, pelas relaes de produo em que os homens nasceram ou entraram involuntariamente. A conscincia de classe a forma como essas experincias so tratadas em termos culturais: encarnadas em tradies, sistemas de valores, idias e formas institucionais. Se a experincia aparece como determinada, o mesmo no ocorre com a conscincia de classe.51

Atravs do conceito de experincia, sua anlise buscava um nexo entre o modo de

produo e a conscincia: o que muda, assim que o modo de produo e as relaes

produtivas mudam, a experincia de homens e mulheres existentes.52 Experincia seria

o termo ausente, nas teses em que a teoria auto-proclamada marxista assumia tons mais

prximos do idealismo e do determinismo. Por isso, tais teses seriam incapazes de

apreender de que forma os homens fazem sua prpria histria, embora em condies que

no so as por eles escolhidas. Com o conceito de experincia, Thompson acreditava ser

capaz de demonstrar como:

homens e mulheres tambm retornam como sujeitos, dentro deste termo no como sujeitos autnomos, indivduos livres, mas como pessoas que experimentam suas situaes e relaes produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida tratam essa experincia em sua conscincia e sua cultura (...) das mais complexas maneiras (...) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, atravs das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situao determinada.53

51 Thompson, E. P. A formao..., op. cit., p. 10. 52 Thompson, E. P. Folclore, antropologia e histria social. In As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, EdUnicamp, 2003, p. 260. 53 Thompson, E. P. A Misria da Teoria, ou um planetrio de erros. Uma crtica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 182.

Manifestando, portanto, como princpio de anlise a conexo entre as relaes de

produo e a conscincia de classe, atravs da mediao da experincia, Thompson

assumidamente concentrou mais esforos em discutir, atravs de suas pesquisas, o plo da

conscincia, bem como seus condicionantes e constituintes em termos culturais e de valores

morais. Segundo o prprio Thompson, a preocupao constante em sua obra com os

silncios da abordagem marxista do social o levou a:

"reflexes de tipo cultural e moral, aos modos em que o ser humano est imbricado em relaes especiais, determinadas, de produo, o modo em que estas experincias materiais se moldam em formas culturais, a maneira em que certos sistemas de valores so consoantes com certos modos de produo e certos modos de produo e relaes de produo so inconcebveis sem sistemas de valores consoantes. Um no depende do outro. No existe uma ideologia moral pertencente a uma superestrutura, o que existe so duas coisas que constituem as faces da mesma moeda".54

neste sentido que podemos entender como Thompson procurou resgatar a questo

da determinao, defendendo que h uma simultaneidade da manifestao de relaes

produtivas particulares em todos os sistemas e reas da vida social. Partindo da assertiva

marxiana fundamental da determinao da conscincia social pelo ser social, Thompson

recoloca-a em termos precisos, refutando a associao exclusiva entre ser social e

econmico ou base e reintegrando explicao o sentido forte do conceito de modo de

produo no qual as relaes de produo e seus correspondentes conceitos, normas e

formas de poder devem ser tomados como um todo.55 Por isso, recolocando os termos da

relao entre ser social e conscincia social: em qualquer sociedade cujas relaes sociais

foram delineadas em termos classistas, h uma organizao cognitiva da vida

correspondente ao modo de produo e s formaes de classe historicamente

transcorridas.56 Pensada desta forma, a dinmica conflituosa do social ganha um sentido

menos simplista. A categoria determinao no excluda da interpretao, ao contrrio,

reforada, mas adquire um significado mais preciso, que permite equilibr-la com a

perspectiva marxiana da luta de classes como motor da histria:

54 Thompson, E. P. Tradicin, Revuelta y Consciencia de clase, op. cit., p. 315. 55 Thompson, E. P. Folclore, antropologia ..., op. cit, p. 259. 56 Idem, p. 260. A determinao do ser social sobre a conscincia social abordada tambm, por Thompson, em A Misria da Teoria...op. cit., pp. 16-17.

A transformao da vida material determina as condies dessa luta e parte de seu carter, mas o resultado especfico determinado apenas pela luta em si mesma. Isso significa que a transformao histrica acontece no por uma dada base ter dado vida a uma superestrutura correspondente, mas pelo fato de as alteraes nas relaes produtivas serem vivenciadas na vida social e cultural, de repercutirem nas idias e valores humanos e de serem questionadas nas aes, escolhas e crenas humanas.57

Seguindo tal raciocnio, que possibilitou a construo de um referencial de anlise

para as relaes entre "vida material", luta social e "conscincia social", em bases mais

consistentes, e diretamente sustentadas nas contribuies de Marx e da tradio crtica do

materialismo histrico, Ellen K. Trinberger considerou que, embora Thompson no tenha

dedicado muita ateno em seus estudos para as questes referentes chamada "estrutura

econmico social" (segundo ele por deixar esta tarefa a membros mais competentes de um

projeto historiogrfico coletivo), de seu trabalho pode ser inferida uma veia terico-

interpretativa bastante rica. Segundo ela, o arcabouo de referencial terico de Thompson,

"quando aplicado ao material histrico, pode produzir um argumento que no nem idealista, nem economicista, nem voluntarista nem estrutural-determinista. Tal argumento pode integrar a anlise da produo cultural (incluindo a ideolgica e moral) com a produo material (especialmente a econmica)58".

Como em sua anlise sobre os referenciais morais e culturais que sustentaram a

construo de uma conscincia de classe dos trabalhadores ingleses Thompson constatou a

sedimentao e re-interpretao de valores e costumes mais antigos, sua pesquisas

acabaram por direcionar-se para o perodo pr-industrial particularmente o sculo XVIII

ingls. Das muitas sugestes analticas importantes derivadas deste recuo no tempo da

anlise, emerge como decisiva, para pesquisas sobre perodos anteriores implantao do

capitalismo, a preocupao de Thompson em explicar o conflito social em termos de classe,

num momento em que os agentes no se identificam nestes termos. Para tanto, trabalha com

duas dimenses do conceito: (a) com referncia ao contedo histrico empiricamente

observvel, e (b) como uma categoria heurstica ou analtica, recurso para organizar uma

57 Thompson, E. P. Folclore, antropologia..., op. cit., p. 263. 58 Trinberger, Ellen K. "E. P. Thompson: understanding the process of history." In Skoopol, Theda (ed.). Vision and Method in Historical Sociology. New York, Cambridge University Press, 1984, p. 221.

evidncia histrica cuja correspondncia direta muito mais escassa.59 Neste segundo

plano do conceito, Thompson destaca a indissolubilidade da relao entre classe e luta de

classes, pregando mesmo a primazia do segundo termo do par. Vale a pena reproduzir aqui

um trecho mais longo de sua reflexo, quando sublinha o fato de:

a classe, no seu sentido heurstico, ser inseparvel da noo de luta de classes. A meu juzo, foi dada excessiva ateno, freqentemente de maneira anti-histrica, classe, e muito pouca, ao contrrio, luta de classes. Na verdade, medida que mais universal, luta de classes me parece ser o conceito prioritrio. Talvez digo isso porque a luta de classes evidentemente um conceito histrico, pois implica em processo, e, portanto, seja o filsofo, o socilogo ou o criador de teorias, todos tm dificuldade em utiliz-lo. Para diz-lo com todas as letras: as classes no existem como entidades separadas que olham ao seu redor, acham um inimigo de classe e partem para a batalha. Ao contrrio, para mim, as pessoas se vem numa sociedade estruturada de certo modo (por meio de relaes de produo fundamentalmente), suportam a explorao (ou buscam manter poder sobre os que as exploram), identificam os ns dos interesses antagnicos, se batem em torno desses mesmos ns e no curso de tal processo de luta descobrem a si mesmas como uma classe, vindo pois a fazer a descoberta de sua conscincia de classe. Classe e conscincia de classe so sempre o ltimo e no o primeiro degrau de um processo histrico real. Mas se adotamos uma concepo esttica da categoria de classe, ou se fazemos descender esse nosso conceito de um modelo terico preliminar de totalidade estrutural, no procederemos assim pois estaremos subentendendo que a classe est presente desde o incio como um resultado de relaes de produo, da derivando a luta de classes.60

Thompson sistematiza assim suas contribuies para o estudo de sociedades

anteriores ao capitalismo de uma perspectiva centrada no conceito de classe, ou melhor, no

conceito de luta de classes mais universal e prioritrio, porque evidentemente um

conceito histrico, pois implica um processo. Tais consideraes assumem uma

importncia capital para o estudo dos processos de formao de classe, em que a

conscincia da nova classe constitui-se a partir da articulao de valores e tradies

herdadas da situao social anterior, ela tambm marcada pela luta de classes, embora no

necessariamente compreendida em termos classistas por seus contemporneos. Ellen Wood

resume a inteno do historiador em seus estudos sobre o sculo XVIII ingls, pela

59 Thompson, E. P. Algumas consideraes sobre classe e falsa conscincia. In As peculiaridades dos ingleses..., p. 273. 60 Idem, ibidem, p274. Sobre os usos desta noo em estudos histricos sobre o sculo XVIII ingls, o trabalho mais amplo de Thompson encontra-se reunido em Costumes em Comum. So Paulo, Cia das Letras, 1998.

tentativa de demonstrar os efeitos determinativos de situaes de classe at mesmo nos

casos em que ainda no existam classes maduras.61

Trazendo a questo para uma anlise mais concreta, em seu estudo A formao da

classe operria inglesa, Thompson j havia apresentado esse modo de encarar o conceito,

ao analisar o caso histrico ingls, destacando duas faces e dois momentos do mesmo

processo de construo da conscincia de classe dos trabalhadores. De um lado a

identificao de interesses comuns entre as mais variadas categorias profissionais. De

outro, a identificao da oposio de interesses contra outra(s) classe(s):

A nova conscincia de classe dos trabalhadores pode ser vista de dois aspectos. De um lado, havia uma conscincia da identidade de interesses entre trabalhadores das mais diversas profisses e nveis de realizao, encarnada em muitas formas institucionais e expressa, numa escala sem precedentes, no sindicalismo geral de 1830-1834. Essa conscincia e essas instituies s se encontrariam em forma fragmentria na Inglaterra de 1780. Por outro lado, havia uma conscincia da identidade dos interesses da classe operria, ou classes produtivas, enquanto contrrios aos de outras classes; dentro dela, vinha amadurecendo a reivindicao de um sistema alternativo. Mas a definio final dessa conscincia de classe era conseqncia, em grande parte, da reao da classe mdia* fora operria. A linha foi traada, com extremo cuidado, nas habilitaes do direito de voto de 183262

Impossvel no identificar a a proximidade com a anlise das relaes de fora

proposta por Gramsci e mencionada acima. Se em Gramsci os trs momentos aparecem

como uma sucesso de estgios, preciso constatar que em Thompson, que tambm

percebe momentos diferentes e os localiza no tempo, ao pensar a classe trabalhadora, no

h possibilidade de existir classe ao menos no que ele define como sua situao

madura, ou seja, quando classe uma auto-referncia para os trabalhadores e no apenas

um instrumento de anlise conceitual sem que os trs momentos tenham sido vencidos.

Tais proximidades e as eventuais distines entre as definies de Gramsci e de

Thompson podem ser explicadas pela referncia compartilhada s discusses de Marx e

Engels sobre as classes sociais. Assim, a proposio de Thompson que acentua a dimenso

da luta de classes, encontra sua sustentao, entre outros textos, na passagem j citada da

61 Wood, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo: a renovao do materialismo histrico. So Paulo, Boitempo, 2003, p. 69. * O termo classe mdia, na Inglaterra, em especial na virada do sculo XIX e XX, indicava os proprietrios, especialmente de fbricas e manufaturas (entre as classes altas aristocracia e grande burguesia rural e baixas trabalhadores). 62 Thompson, E. P. A formao,vol. 3. op. cit., p.411.

Ideologia Alem em que se afirma que os diferentes indivduos s formam uma classe

quando se vem obrigados a sustentar uma luta comum contra outra classe. Pela referncia

em Marx, entendemos tambm o estabelecimento do marco de 1832, com base numa luta

poltica isto de classe.

Em outro artigo, o prprio Thompson destaca os aspectos de sua interpretao da

classe como fenmeno histrico e da luta de classes como conceito prvio que lhe

permitiriam valorizar aspectos culturais do processo de formao da classe, sem nunca

tom-los por independentes das condies objetivas.63

As formas de ao coletiva dos trabalhadores podem ser assim tambm repensadas.

Para tanto, Thompson fugiu de dicotomias como "racionais" e "irracionais", ou

"organizadas" e "espontneas". Tais polarizaes, normalmente so organizadas a partir de

uma viso que parte da referncia ao par marxiano da "classe em si"/"classe para si", para

privilegiar como portadores de propostas de transformao social apenas os movimentos

organizados nos moldes dos modernos instrumentos de ao coletiva - os partidos e

sindicatos. Thompson, em contrapartida, privilegiou a investigao da racionalidade prpria

de cada movimento ou forma de organizao, partindo de uma anlise das motivaes dos

que deles participam, tomando em conta a leitura prpria que os atores coletivos fazem do

contexto em que vivem com base em seus referenciais culturais e morais compartilhados. O

no emprego da expresso classe para si e a recusa ao uso do termo falsa conscincia

no o impediram de distinguir as formaes sociais em que as classes se manifestavam de

forma madura, daquelas em que a luta de classes no era lida em termos classistas por

seus prprios contemporneos. Da que, em sua anlise, numa sociedade capitalista, ao

abordarmos a classe trabalhadora poderamos analisar as especificidades histricas de sua

conscincia de classe, mas nunca tom-la como desprovida de conscincia, ou portadora do

que usualmente se chamou de falsa conscincia:

Se o proletariado verdadeiramente privado de conscincia de si mesmo como proletariado, ento no se pode definir assim. Para um historiador, e espero poder afirmar que isso vale para um historiador marxista, atribuir o termo classe a um grupo privado de conscincia de classe, ou de cultura de classe, e que no age nessa direo uma afirmao destituda de significado. Podemos dizer: os pobres, ou a plebe, podem vir a ter

63 Thompson, E. P. Algumas consideraes sobre classe e falsa conscincia. In As peculiaridades..., op. cit., p. 277.

conscincia de si apenas como proletariado, tal a seqncia histrica da formao de uma classe. Se, de fato, esse pobre ou essa plebe se alinham com outros grupos (proprietrios de terra, mercadores, Estado) de um ponto de vista classista e se possuem uma conscincia correspondente, que no a de um proletariado maduro ou de uma classe operria, logo o problema histrico comea com a anlise e definio desse especfico processo de formao de classe.

As conseqncias deste referencial terico-interpretativo para as anlises da classe

so muitas. Resumindo algumas delas, seria possvel listar: 1- a necessidade de referenciar

as anlises nos processos histricos especficos de formao e conflito entre as classes; 2- a

percepo da heterogeneidade das classes e de seu comportamento coletivo, a partir da

anlise das mltiplas respostas possveis ao contexto estrutural, tanto ao nvel da

conscincia, quanto da organizao e ao coletivas; 3- a obrigatoriedade de encarar-se a

classe no apenas a partir do locus da produo, mas tambm nos ambientes de moradia e

sociabilidade, ou seja, na comunidade; 4- a exigncia para o estudioso de compartilhar

referenciais interpretativos da Histria com conceitos e mtodos de outras cincias sociais

ao trabalhar com noes como as de cultura, tradio, costumes e comunidade.

A habilidade de Thompson em (re)contar a histria da formao da classe operria

inglesa s pode ser comparada ao furor com que criou, ou envolveu-se, em polmicas

(historiogrficas e/ou polticas).64

Atacando o determinismo economicista, tanto do marxismo conformado aos

modelos do stalinismo, quanto da cincia econmica de matriz liberal, Thompson muitas

vezes secundarizou a discusso sobre os aspectos mais estritamente econmicos do

fenmeno da classe, para investir mais pesado no desmonte da imagem da classe como

coisa, produto de uma estrutura que lhe determinava. Por isso mesmo, alinhava-se como

herdeiro confesso do legado do projeto intelectual expresso por Marx no prefcio de seus

Manuscritos de 1844 - o materialismo histrico, esboado nas obras em parceria com

Engels nos anos 1840 - tratando da maior parte dos escritos econmicos dos vinte anos

posteriores da produo de Marx com uma distncia maior. Para Thompson, o esforo de

64 Uma lista bastante abrangente de trabalhos sobre os escritos de Thompson pode ser encontrada ao fim do texto de Trimberger, E. K., op. cit.

Marx em construir uma anti-economia poltica, como etapa daquele projeto intelectual

mais extenso, s teria sido bem sucedido nO Capital.65

Era de se esperar, dada contundncia do ataque, que muitas fossem as crticas

perspectiva de anlise de Thompson. E foram particularmente abundantes as que apontaram

em seu esforo anti-determinista uma queda culturalista incompatvel com a referncia

terica marxista.

Com certeza, entretanto, esse no dos usos mais autorizados das idias de

Thompson, que rebateu de forma definitiva as acusaes de culturalismo nos debates que se

seguiram publicao do seu livro Misria da Teoria. No tom duro de uma polmica que

empreendeu em 1979, Thompson partiu de um repdio sem reservas ao epteto de

culturalismo aplicado tradio historiogrfica marxista da qual considerado

representante, para lembrar que, quando criticou, em 1961, o livro de Raymond Williams,

A longa revoluo, 66 procurou opor s pretenses de Williams a uma histria cultural,

como histria de todo um sistema de vida, o contraponto marxista da histria como todo

um sistema de luta. Assim, para Thompson: Cada teoria da cultura deve incluir o

conceito da interao dialtica entre cultura e algo que no cultura.67

Em uma de suas ltimas obras, retomou a questo ao definir porque considerava a

palavra cultura como um termo descritivo vago como economia, poltica, sociedade.

Empregado com outras ambies seria um termo amplo demais, tendente a nos empurrar

no sentido de uma noo holstica ou ultraconsensual, o que inviabilizava seu emprego

como um conceito forte para o trabalho do historiador: no podemos esquecer que

cultura um termo emaranhado, que, ao reunir tantas atividades e atributos em um s

feixe, pode na verdade confundir ou ocultar distines que precisam ser feitas.68

interessante perceber que, dado o tom elevado das polmicas em que Thompson

se envolveu, muitas vezes encontramos autores que, apontando limites ou tecendo crticas a

65 Thompson, E. P. A Misria da Teoria..., op. cit., em especial pp. 180 e ss. 66 Williams poca mantinha uma atitude de crtica ativa ao marxismo, que depois reveria, como pode ser constatado no prefcio de Williams, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro, Zahar, 1979, quando defende um materialismo cultural. 67 Thompson, E. P. La poltica de la teoria. In Samuel, Raphael (ed.) Historia popular y teoria socialista.Barcelona, Crtica, 1984, pp. 301 e 303-304. Cabe lembrar que esta tambm parece ter sido a compreenso posterior de Williams, quando propugna, em seu Marxismo e literatura, uma histria materialista da cultura. 68 Thompson, E. P. Costumes em comum. So Paulo, Cia. Das Letras, 1998, p. 22.

seus trabalhos, compartilham, entretanto, usos muito prximos dos conceitos fundamentais

do materialismo histrico. Este parece ser o caso de Daniel Bensaid, que numa frase de

nota de rodap descarta a concepo de classe de Thompson para Edward P. Thompson,

a classe em si no uma coisa, mas um evento, um happening includa entre outras que

revelariam um conhecimento imperfeito do conceito de classe em Marx.69 No entanto,

quem no observasse tal crtica poderia pensar que Bensaid construra justamente em

dilogo positivo com Thompson (lembremos sua afirmao de que as classes no existem

como entidades separadas...) definies como a que se segue:

As classes no existem como realidades separveis, mas somente na dialtica de sua luta. Elas no desaparecem quando as formas mais vivas ou mais conscientes da luta se atenuam. Heterognea e desigual, a conscincia inerente ao conflito que comea com a fora de trabalho e a resistncia explorao. E que no cessa mais.70

De forma semelhante poramos pensar as posies defendidas por Ciro Cardoso, em

artigo em que afirma preferir no comentar o trabalho de Thompson por no ser um leitor

sistemtico de suas obras, ao que considera ser um dado embaraoso: o resgate e

reivindicao por Thompson de William Morris.71 Na mesma coletnea, porm, buscando

apoio em Maurice Godelier para mostrar no ser factvel (...) separar taxativamente o

material e o ideal afirma categoricamente que: se h algo impossvel de continuar

defendendo atualmente, mesmo pelos marxistas, a dicotomia base/superestrutura. 72

Queremos assim chamar a ateno para o fato de que, por caminhos diferentes,

outros representantes da melhor tradio crtica do materialismo histrico chegaram a

proposies semelhantes s postas por Thompson, tanto no que se refere aos conceitos de

classes sociais e luta de classes, como no que tange a suas posies mais crticas em relao

a outras facetas de tradies mais prximas de um mecanicismo, embora tambm buscando

apoio em Marx.

Como saldo de tais polmicas em relao obra de Thompson, as leituras crticas

mais ricas foram justamente as formuladas por aqueles que reconheceram em seu trabalho

69 Bensaid, D. Marx..., op. cit., p. 204. 70 Idem, ibidem, pp. 173-174. 71 Cardoso, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia. Ensaios. So Paulo, Edusc, 2005, p. 273. 72 Idem, ibidem, pp. 154-155.

um marco na renovao dos estudos sobre a classe operria. Ellen Wood, embora tambm

apresentando os limites da anlise do historiador ingls,73 rebate algumas das principais

crticas a Thompson, destacando a dimenso de processo e relao no seu uso do conceito

de classe. Para a autora, onde os crticos de Thompson vem estruturas por oposio a

processos, ou estruturas que so submetidas a processos, Thompson v processos

estruturados.74 Na mesma autora encontramos uma sntese precisa da importncia das

elaboraes do historiador ingls para a anlise do processo de formao da classe, com a

qual acreditamos ser possvel fechar esta seo:

Seu projeto histrico pressupe que relaes de produo distribuam as pessoas em situaes de classe, que essas situaes geram antagonismos essenciais e conflitos de interesses, e que elas criam assim condies de luta. As formaes de classe e a descoberta da conscincia de classe se desenvolvem a partir do processo de luta, medida que as pessoas vivem e trabalham suas situaes de classe. nesse sentido que a luta de classes precede a classe.75

Cabe-nos, antes de passar adiante, apresentar um conjunto de questionamentos que

pode surgir dos leitores informados por algumas das concepes mais em voga nas

oficinas da histria: por que resgatar esta origem dos conceitos de classe e luta de classes

hoje, em pleno sculo XXI?; seriam atuais as consideraes de Marx e Engels sobre o

sculo XIX?; os desenvolvimentos posteriores do marxismo dariam conta de sustentar a

pertinncia da anlise de classes na atualidade?; as lies dos estudos histricos sobre

processos de formao de classe conservam alguma relevncia para pensarmos o quadro

atual? H com certeza quem acredite que no. Devemos conhecer seus argumentos, mas

para rebate-los.

Trabalho e Classe Trabalhadora hoje?

A discusso sobre a atualidade dos conceitos de classe e luta de classes precisa ser

feita tendo em vista dois eixos de anlise. O primeiro deles o recuo no seu emprego por

cientistas sociais em geral e historiadores em particular. O segundo eixo diz respeito s

73 Ver, por exemplo, seus comentrios crticos cegueira de Thompson em perceber a importncia dos estudos de economia poltica de Marx. Wood, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo...op. cit., 59, nota 13. 74 Idem, ibidem, p. 75. 75 Idem, ibidem, p. 76.

razes pelas quais tais pesquisadores identificam na atualidade uma configurao social em

que as classes sociais e suas lutas j no seriam auto-referncias para os grupos humanos,

ou o seriam numa escala muito limitada e secundria, o que significaria sua fragilidade

como conceitos-chave para o entendimento do presente, ou mesmo do passado. No

faltaram historiadores a afirmar que a suposta perda da centralidade do referencial classista

na atualidade definia a necessidade de relativizar o emprego do mesmo referencial de

anlise aos ltimos sculos passados. Como parece proceder o britnico Patrick Joyce:

H um sentido forte no qual se pode dizer que a classe caiu. Em vez de ser uma categoria superior de explicao histrica, a classe tornou-se uma palavra entre muitas, compartilhando de uma igualdade aproximada com essas outras (o que o sentido em que entendo a queda da classe). As razes desse fato no so difceis de encontrar. Na Gr-Bretanha, a decadncia econmica e a reestruturao levaram desintegrao do velho setor do emprego manual e do que era, equivocadamente, considerado como classe operria tradicional. A ascenso da direita a partir da dcada de 1970 e a decadncia da esquerda, juntamente com a dos sindicatos, apontaram para uma direo semelhante da mudana econmica, para um afrouxamento do domnio da classe e do trabalho baseado em categorias profissionais, no apenas na mente dos acadmicos, mas tambm em um pblico mais amplo. As mudanas ocorridas na Gr-Bretanha repetiram-se tambm em outros pases, embora a maior mudana de todas tenha sido a desintegrao do comunismo mundial e, com ela, a batida em retirada do marxismo intelectual.76

Ou seja, se na atualidade do autor, por vrias razes, a classe caiu, ento ela

tambm deve cair como categoria superior de explicao histrica. Ainda que

concordssemos com a avaliao do presente feita por Joyce (e no concordamos), no h

razo lgica mais forte para supor que a retirada da classe hoje signi