Nietzsche - Por uma Ética Trágica - Gustavo Arantes Camargo

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Gustavo Arantes Camargo Nietzsche: por uma ética trágica Tese de doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para a obtenção do título de Doutor em Filosofia. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Orientadora: Kátia Rodrigues Muricy Rio de Janeiro, Abril de 2008

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Gustavo Arantes Camargo

Nietzsche: por uma ética trágica

Tese de doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para a obtenção do título de Doutor em Filosofia. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Orientadora: Kátia Rodrigues Muricy

Rio de Janeiro, Abril de 2008

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Gustavo Arantes Camargo

“Nietzsche: por uma ética trágica”

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Kátia Rodrigues Muricy Orientadora

Departamento de filosofia da PUC-Rio

Prof. Claudia Maria de Castro Departamento de filosofia da PUC-Rio

Prof. Rosana Suarez

Departamento de filosofia da PUC-Rio

Prof. Maurício de Albuquerque Rocha UERJ

Prof. José Nicolao Julião

UFRRJ

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro de

Teologia e ciências Humanas – PUC-Rio

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, da orientadora e da universidade.

Gustavo Arantes Camargo Graduou-se em economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio, em 2001. Ingressou no ano seguinte no mestrado em filosofia pela mesma universidade, graduando-se como mestre em fevereiro de 2004. Cursou doutorado em filosofia pela mesma universidade apresentando este trabalho como tese de doutoramento.

Ficha Catalográfica

CDD: 100

Camargo, Gustavo Arantes Nietzsche: por uma ética trágica / Gustavo Arantes Camargo ; orientadora: Kátia Rodrigues Muricy. – 2008. 230 f. ; 30 cm Tese (Doutorado em Filosofia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Inclui bibliografia 1. Filosofia – Teses. 2. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 3. Vontade de potência. 4. Ética. 5. Filosofia contemporânea. I. Muricy , Kátia Rodrigues. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.

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Agradecimentos Gostaria de agradecer a todos aqueles que estiveram comigo durante este período de aprendizagem e experimentação, em especial à minha esposa Tatiana. É preciso enfatizar o agradecimento à minha orientadora Professora Kátia Muricy pelo acompanhamento e atenção indispensáveis para a realização deste trabalho, permitindo que o tema fosse desenvolvido com plena liberdade sem que, por isso, faltasse com o rigor. Em especial também à Professora Cláudia Castro, encontro feliz sem o qual eu não haveria de ter ingressado em filosofia. Aos demais professores que participaram da Comissão Examinadora. À CAPES. A você que lerá este trabalho.

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Resumo:

Camargo, Gustavo Arantes; Muricy, Kátia Rodrigues. Nietzsche: por uma ética trágica. Rio de Janeiro, 2008. 230p. Tese de doutorado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Fazer a crítica da moral implica em pensar a filosofia que lhe dá o estatuto de

verdade. Implica em saber por que sempre se tentou estabelecer um determinado valor

moral como melhor do que outro. Desvendar o papel que filósofos e sacerdotes tiveram

neste processo é mais do que um trabalho de filosofia. A partir de um método genealógico,

Nietzsche trará para seu campo a psicologia (para pensar os afetos que se escondem por trás

dos valores), a filologia (para pensar a linguagem pela qual se faz acreditar na moral) e a

pesquisa histórica (para apresentar a história da moral e seu desdobramento

contemporâneo). Tamanha crítica se apresenta modernamente como a morte de deus, que

terá conseqüências em relação à falta de credibilidade da moral a partir de então. A hipótese

da vontade de potência, assim como a proposta do super-homem e o pensamento do eterno-

retorno são os pontos-chave daquilo que o filósofo apresenta como alternativa ao niilismo

de uma ausência de valores. A esta proposta chamaremos de ética.

Palavras-chave Nietzsche; vontade de potência; ética; filosofia contemporânea.

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Abstract:

Camargo, Gustavo Arantes; Muricy, Kátia Rodrigues (Advisor). Nietzsche: for na tragic ethic. Rio de Janeiro, 2008. 230p. Tese de doutorado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

For doing a critic of moral, Nietzsche first has made a critic of the idea of true,

because was that conception the ground of the moral. Nietzsche has looked for the whole

played by philosophers and priests in this history and made his genealogy of moral. This

work has a lot of different field like psychology (to found the affect behind the value),

philology (to know the whole played by the language) and history (to show the way the

moral has won and the problems of the contemporary world). This crisis of the

contemporary world is presented with some concepts like the death of god, nihilism, and

his ethic is understood by the overcoming of this situation with the concepts of will to

power, eternal recurrence and super-man.

Keywords: Nietzsche; will to power; ethic; contemporary philosophy.

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SUMÁRIO

Introdução .............................................................................................................. 9

1º. Capítulo: A condição trágica

1)Vontade de verdade ........................................................................................... 17

2)Verdade e moral em “Humano, demasiado humano” ......................................... 22

3) Moral, verdade e instintos .................................................................................. 25

4) Perspectivismo e interpretação ........................................................................... 28

5) Essência da verdade? .......................................................................................... 38

6) Experiência e linguagem ..................................................................................... 41

7) O texto da realidade ........................................................................................... 47

8) A vontade de potência como hipótese interpretativa do texto da realidade ........ 52

9) O corpo como fio condutor .................................................................................. 56

10) Vontade de potência ........................................................................................... 66

11) A ética trágica da vontade de potência ............................................................... 75

12) Quem comanda? ................................................................................................. 86

2º. Capítulo: A história da moral

1) O método genealógico ......................................................................................... 96

2) A pré-história da moral ...................................................................................... 104

3) O uso da religião pelos ressentidos ou como o homem forte tornou-se fraco ....115

4) Cristianismo ....................................................................................................... 121

5) O ideal ascético como resposta à dor e à ausência de sentido ........................... 130

6) Morte de Deus e niilismo ................................................................................... 138

7) O espírito livre como experimento ..................................................................... 145

8) Os valores modernos e a nobreza de espírito ..................................................... 150

9) O eterno retorno como pensamento ético e doutrina seletiva ............................ 162

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Conclusão .............................................................................................................. 170

Ensaio: Assim aprendi com Zaratustra .............................................................. 177

Bibliografia ............................................................................................................ 227

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Introdução

Friedrich Nietzsche é conhecido como um filósofo que teve na questão da moral seu

principal tema, abordando os valores morais e sua influência na vida humana. Contudo,

Nietzsche não é mais um a buscar estabelecer as atitudes a serem consideradas boas e

corretas que propiciem o bem viver a todos. Sua filosofia tampouco tem por finalidade

conduzir o homem à virtude e ao bem comum. O rigor de seu pensamento filosófico o

levou a um caminho praticamente oposto ao dos tradicionais filósofos moralistas que já

existiram.

Nietzsche percebeu logo cedo, em seus pensamentos sobre religião e filosofia – era

filho e neto de pastores protestantes e pretendia seguir também o seminário – que, caso

quisesse paz de espírito deveria ter fé, mas caso quisesse a verdade, deveria inquirir,

perguntar.1 A pergunta sobre a origem de nosso bem e nosso mal, pergunta chave de sua

filosofia, já o acompanhava desde que era um garoto de treze anos.2 As respostas até então

apresentadas pelos filósofos e teólogos de toda história sempre possuíram um caráter moral

que desagradava a este jovem que viria a chamar a si mesmo de imoralista.

Ao invés de fundar valores específicos em patamares metafísicos, sejam estes

filosóficos ou teológicos, Nietzsche buscou a psicologia dos sentimentos daqueles que

postulavam tais valores. O quê quer a Igreja que diz que o bem, revelado por Deus, é isto e

aquilo? Ou, o quê quer Platão (ou Sócrates) quando diz que o filósofo deve comandar a

república, ou aonde quer chegar Kant com seu imperativo categórico?

A pergunta pela moral logo o fez se deparar com a questão sobre a legitimação dos

valores morais. O quê faz com que um determinado valor seja entendido como mais

importante do que outro? Como um determinado valor moral pode ser mais verdadeiro do

que outro?

Mais do que pensar os valores, Nietzsche fez um novo questionamento: buscou o

valor dos valores. Buscou saber por que um valor moral é tido como verdade, por que

precisa ser tido como verdade, valer como verdade. Perguntou ainda por que a verdade vale

mais do que o falso, uma vez que um não pode existir sem o outro e, talvez, a própria 1 Tal afirmação é feita por Nietzsche em carta enviada à irmã, 11 de junho de 1865 quando estudava em Pforta. 2 Nietzsche, “Genealogia da moral”, Prólogo, 3.

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verdade fosse, por que não, uma ilusão. Suas respostas vêm confirmar as suspeitas da

adolescência: a verdade e o bem não possuem uma ligação que os legitime de forma

absoluta.

Nietzsche, ao contrário do que se poderia esperar, não criou um sistema filosófico

para proteger suas idéias com este pomposo e poderoso nome: verdade. Ao invés disto,

dobrou a verdade à perspectiva pessoal e histórica de cada filósofo, mostrando que estes

apresentavam sua própria filosofia moral como se fossem verdades. Estaria aí a origem da

filosofia: a construção de edifícios teóricos do conhecimento tinha como objetivo último a

legitimação de determinados valores morais como verdade, tornando-os quase que

inquestionáveis. Seria preciso obedecê-los, sendo os filósofos ou os sacerdotes os únicos

advogados da verdade ou de Deus. É este jogo de poder que se esconde na luta pela

verdade. Contudo, para Nietzsche, tanto os valores como o suposto conhecimento são

criações, não podendo alcançar um estatuto universal. Nietzsche, identificando o filósofo a

um espírito livre, jamais aceitaria tais prisões.

Por sua vez, Nietzsche, com sua psicologia, entende ter desmascarado as intenções

que fazem com que filósofos e teólogos escondam suas argumentações em sistemas

metafísicos da verdade ou em mistérios inescrutáveis de Deus. Ao estabelecer o ponto

criador dos valores como sendo de ordem metafísica, tem-se a depreciação do mundo em

que se vive e do homem que nele vive. Se o valor dos valores morais é dado de antemão

por instâncias independentes do homem, instâncias às quais apenas uns poucos sábios ou

sacerdotes de uma religião específica teriam acesso, então se conclui que este mundo não

possui um valor de fato, uma vez que a verdade é revelada ou descoberta, mas pertence já a

outro plano. Este mundo torna-se uma ilusão quando comparado a um outro mundo onde

residiria a verdade do conhecimento moral e divino.

Por trás desta estrutura de pensamento que tem como finalidade a legitimação da

moral em um patamar supra-terreno, Nietzsche desvenda uma insatisfação com a vida por

parte desses moralistas de até então. Os valores pregados por estas filosofias e religiões

metafísicas sempre tiveram por princípio barrar e diminuir a força do homem. Por trás do

argumento da verdade ou de Deus sempre se escondeu uma filosofia moral que apresentava

valores que negavam a força e o esplendor do animal homem.

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A genealogia da moral será exatamente esta pesquisa que realiza Nietzsche para

desvendar, a partir da própria história da moral, quais sentimentos moveram aqueles que

criaram morais absolutas. A moral possui uma história, isto quer dizer que os valores

morais vieram a ser, não existiram desde sempre e não são eternos ou absolutos. Dizer que

a moral possui uma história significa dizer que os valores foram criados pelos próprios

homens, isto é, em última instância, foram inventados. A idéia de que os valores morais são

criados traz consigo o fato de que as demais construções intelectuais do homem também

são criações, tornando difícil que sejam aceitas como verdades no mesmo sentido em que

eram anteriormente. A própria idéia de verdade terá que ser repensada, pois agora, temos a

idéia de que o homem é quem cria o conhecimento e este conhecimento, por ser criado, não

pode ser uma verdade. A não ser que se entenda a verdade como criação. Mas, neste caso,

seria ainda verdade?

Neste ponto entra também a questão da linguagem, pois seria a linguagem humana

capaz de apresentar algo que pudesse ser chamado de verdadeiro? Ou esta linguagem seria

apenas uma forma de mediação entre o homem e o mundo? Neste segundo caso, como

ainda falar de conhecimento e verdade se tudo o que se falar a este respeito, pelo simples

fato de já ser fala e de necessitar da linguagem, já seria uma relação antropomórfica? Seria

a verdade uma forma de relação criada pelo homem para tornar sua vida no mundo

possível? Relação esta, necessariamente mediada pela linguagem que, por sua vez, também

é uma criação? Estaria nossa crença na verdade calcada em uma crença na linguagem? E,

em ambos os casos, seria a verdade uma questão de crença? Como querer então que a moral

se apresente como verdade se, além de uma origem e uma história humanas, ela nem mais

possui a verdade e o conhecimento como aliados?

Sendo que o tema da moral é indissociável do tema da verdade, a primeira parte do

primeiro capítulo buscará apresentar a abordagem que Nietzsche faz desta relação. A

segunda metade do primeiro capítulo apresentará a hipótese propositiva de Nietzsche para a

questão do conhecimento a partir destas questões anteriores. Diante da dificuldade de se

estabelecer com clareza a verdade e o conhecimento, mas também diante da necessidade de

que algo possa ser chamado de verdade e conhecimento, Nietzsche apresenta sua hipótese

da vontade de potência.

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Primeiramente, entendemos a teoria da vontade de potência como uma hipótese,

uma vez que o conhecimento parte sempre de uma perspectiva humana e é uma relação do

homem mediada pela linguagem, a teoria da vontade de potência não poderia se apresentar

de outra forma a não ser também como criação. Nietzsche não pretende que sua criação ou

hipótese seja tida como verdade por todos, ao contrário, vê um sinal de fraqueza neste

desejo. Nietzsche guardará para si o phatos da distância em relação a outras interpretações

sobre estes temas, mas não deixará de apresentar sua visão.

A vontade de potência aparece como interpretação para toda a realidade e também

para os impulsos volitivos. Para Nietzsche, tudo o que existe decorre de uma relação de

forças que expressam sua potência e resultam em tudo aquilo que há. A potência é algo que

se expressa a cada instante, não podendo não se expressar. A falta de expressão é

impotência, no sentido de que não há potencia para ser expressa. Neste sentido, tudo o que

existe é, de alguma forma, expressão de potência das forças em relação. Nietzsche vê um

caráter de crescimento em toda potência. Um caráter de querer tornar-se mais forte. Desta

forma, a vontade de potência é uma espécie de caráter intrínseco da força que consiste em

expressar toda sua potência a cada instante e de buscar sempre um aumento de potência.

Esta interpretação possui a vantagem de apresentar tanto as coisas quanto o homem

como sendo da mesma natureza, possuindo entre si apenas diferenças quanto à organização.

Esta interpretação traz consigo um caráter absolutamente amoral, pois não há um valor que

decorra necessariamente desta teoria. Assim, a determinação dos valores morais se torna

uma questão humana e será preciso levar em conta os desejos e os afetos do homem ao se

pensar a moral, uma vez que são esses desejos e afetos a grande forma de manifestação da

vontade de potência no homem.

Nietzsche parte do corpo humano, de seus impulsos e instintos, para formar sua

teoria da vontade de potência, onde tanto no homem quanto nas demais coisas da natureza

esta força se expressaria em todo seu caráter. A expressão da potência por si mesma é algo

absolutamente amoral, é uma característica inextirpável de tudo aquilo que é. O que a moral

sempre tentou fazer foi apresentar essa expressão como sendo algo moralmente ruim e,

desta forma, tentou sempre limitar o alcance das forças do homem. Mais uma vez Nietzsche

escancara o caráter depreciador que toda moral traz consigo; qualquer valor moral que se

tenha por absoluto ou por melhor que outro visa, por trás desta máscara, fortalecer ou

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enfraquecer um determinado tipo de vida. Para Nietzsche, a moral sempre buscou enaltecer

valores que negavam a força instintiva do homem, fazendo com que este se sentisse

culpado de seus próprios desejos e de sua própria força. Por isto a moral é entendida como

algo que se dirige contra a vida. A vontade de potência, por sua vez, apresenta uma

hipótese amoral de compreensão da realidade, onde esta não segue um caminho

predeterminado em direção a algo como o bem. Desta forma, a realização da vontade é

entendida como algo não somente natural como também desejável e não se desdobrará em

uma moral.

Contudo, a liberação frente a moral e a abertura para a realização dos próprios

desejos e impulsos não é um caminho simples. O homem está a mais de dois milênios

enredado em uma trama moral e religiosa e há muito já desaprendeu a ouvir a si mesmo.

Mais do que isto, o homem possui um passado animal selvagem e este bicho-homem ainda

se encontra presente no interior de cada um. O homem é um animal extremamente

interessante devido ao fato de que, por um lado se assemelha aos demais animais e possui

instintos tão fortes quanto os destes, por outro, possui também consciência destes instintos

e é capaz de fazer um juízo sobre eles. O fato de refletir sobre suas ações e sobre as

conseqüências das mesmas faz com que o homem produza representações sobre aquilo que

deseja e considera melhor para si. Mas, tais representações não impedem que uma vontade

antagônica apareça em algum momento e ponha tudo a perder. Associado a isto está o fato

de que é perfeitamente possível, ou melhor, é a regra, os instintos se contraporem uns aos

outros. Em um momento um aparece mais forte, mas em outro momento pode ser seu

antagônico. De maneira que, ora queremos uma coisa, ora queremos outra, e depois,

tornamos a querer a primeira e nos arrependemos de ter feito a segunda. O homem é

tomado, ao mesmo tempo ou em momentos diferentes, por instintos antagônicos que o

levam, não raras vezes, ao desespero. O quê fazer? Qual vontade seguir? Para Nietzsche,

esta decisão está longe de ser racional e o fato de se ter consciência, a posteriori, da ação

tomada, não é motivo para torná-la racional. Quem decide é a potência. Qual o instinto

mais forte? É este que manda, foi este quem dominou todos os outros e fez com que a

suposta unidade homem agisse de tal ou qual modo. A vontade mais forte age “justamente

como instinto dominante, que impôs suas exigências a todos os demais instintos – ela o faz

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ainda; não o fizesse, não dominaria. Não há nenhuma ‘virtude’ nisso, portanto.”3 A questão

aqui, assim como em todas as demais, é sempre: qual é a vontade mais potente. Neste ponto

a teoria da vontade de potência desdobra-se em ética ao criar uma filosofia que fortaleça os

instintos afirmativos até que eles vençam sempre todos os demais.

A liberação frente a moral não é algo simples e seguro, ao contrário, quando não

mais se possui os tradicionais valores morais que são seguidos e respeitados pela grande

maioria, o homem se encontra pela primeira vez diante de si mesmo. Terá que aprender a

lidar com seus desejos e com toda sua força de uma maneira amoral, terá que ser capaz de

criar seus próprios valores a partir de seus próprio íntimo e será o juiz de si mesmo. Este

caminho é mais difícil, pois além de não se ter mais os parâmetros comportamentais

anteriores, não se tem sequer a quem recorrer, uma vez que somente você pode tornar-se si

mesmo. Esta opção não significa também a realização desenfreada de qualquer mínimo

desejo, ao contrário, Nietzsche vê este entregar-se a qualquer impulso como sinal de

incapacidade para o domínio de si.

A busca será então por fortalecer a si mesmo e aprender a criar os próprios valores.

Esta criação dos próprios valores deverá levar em conta os impulsos mais íntimos sem que

esta liberdade venha a se perder em descontrole. Será a este processo amoral de tornar-se si

mesmo a partir dos próprios impulsos e desejos do corpo a que chamaremos de ética. O

adjetivo trágica se deve à ausência de fundamento metafísico para esta proposta. A

condição trágica que Nietzsche nos apresenta é a condição de uma cultura que vê

desmoronar tudo aquilo em que acreditou durante milênios e vive esta ausência inicial de

valor. A ética trágica é a proposta afirmadora da vida que Nietzsche opõe ao niilismo de

uma ausência de valores.

***

O segundo capítulo apresenta em sua primeira parte a história da moral, feita de

forma genealógica, método que será trabalhado logo no início. Nietzsche mostrará como a

moral da negação de si mesmo foi sendo construída e com quais objetivos. Esta parte deste

capítulo tem a importância de fortalecer as compreensões feitas no capítulo anterior sobre a

moral, além de apresentar os desdobramentos modernos desta crítica.

3 Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 8

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Diante de uma genealogia da moral, a metafísica não mais se sustenta, ocasionando

o que Nietzsche chamou de morte de Deus e sua conseqüência, o niilismo. A crítica que

Nietzsche faz à moral e à religião termina por se desdobrar na impossibilidade de se

continuar acreditando nas antigas respostas para a questão dos valores e do sentido. Se não

há sentido metafísico para a existência, isto é o mesmo que dizer que não há justificação

possível que não tenha sido criada pelo próprio homem. Isto nos faz duvidar de qualquer

sentido possível, pois se o sentido é criado, então qualquer um poderia criar um sentido. E

isto seria verdade se não fosse o fato de que muitos são incapazes de conferir um sentido à

própria existência Se a existência tem o sentido que se lhe confere, então ela não possui

sentido algum. Isto somente é certo caso se considere este último sentido enquanto um

sentido metafísico. A crítica de Nietzsche aponta para esta ausência de sentido moral

absoluto para a existência, situação esta que tende a causar um enorme sentimento de vazio,

uma vez que o papel das filosofias e religiões sempre foi o de conferir esta espécie de solo

seguro sobre o qual erguiam-se os fundamentos da existência. A partir do momento em que

a vida não possui mais uma razão absoluta que justifique toda possível dor e dificuldade

que apresente, o homem pode se sentir desamparado. Morte de Deus é o nome dado por

Nietzsche a esta perda de credibilidade dos valores mais respeitados, que eram tidos por

absolutos e que agora são tidos por criação. Nietsche chamará de niilismo ao sentimento de

vazio que pode nascer a partir da morte de Deus e da descrença em fundamentos absolutos

para a moral e para o conhecimento.

Diante desta postura niilista face à morte de Deus, Nietzsche se vê forçado a criar

seus próprios companheiros: são os espíritos livres. Para os espíritos livres, a morte de

Deus está longe de ser um problema, ao contrário, eles encontram aí sua grande felicidade,

encontram aí o seu grande direito à existência e a qualquer experiência. Todas as

existências são permitidas e, portanto, possíveis quando não há mais um valor absoluto a

ser obedecido. Neste sentido, o homem pode fazer o que quiser, basta que isto esteja ao

alcance de sua potência. Com o fim da metafísica, o homem se tornou limitado apenas pela

sua própria potência. Ética será o trabalho de transformação desta liberdade em algo

realmente grandioso.

Contrário ao niilismo causado pela morte de Deus, Nietzsche vê que apenas agora

se torna possível criar um sentido de grandeza para o homem, um sentido que leve em

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conta as propensões naturais do mesmo e que somente assim poderá fortalecê-lo. Depois de

dois milênios de moral contra a vida, Nietzsche descortina a possibilidade de se criar um

sentido verdadeiramente afirmativo para a existência: o super-homem. O homem não mais

se encontra limitado pela moral, sua limitação é apenas a de sua potência, aquilo que ele

pode. Não sabemos ainda o que pode o homem. É neste sentido que Nietzsche lança a seta

do super-homem para além do homem. O homem pode se desenvolver e crescer até pontos

ainda não vislumbrados. Este crescimento pode ser tão grande que chegue ao ponto até

mesmo de se falar em algo diferente do homem, algo maior, algo além do homem. O super-

homem aparece então como ideal ético que visa a grandeza da vida do homem, grandeza

esta apenas possível a partir da morte de Deus.

O livro “Assim falou Zaratustra” apresenta, em nossa interpretação, exatamente este

ideal de grandeza para o homem através de seu personagem principal, um eremita, que vem

aos homens para trazer-lhes este ensinamento. Todo este livro narra os caminhos deste

andarilho por entre os homens com o único objetivo de desviá-los da moral e direcioná-los

para a ética. Entendemos o livro “Assim falou Zaratustra” como um livro de ética, onde o

protagonista apresenta os principais pontos de toda filosofia de Nietzsche. Quando

Zaratustra se dirige à praça pública e é mal recebido, percebe que tem de se afastar.

Zaratustra buscará companheiros a quem possa falar ao coração. Estes companheiros serão

os primeiros aprendizes deste ensinamento que é o super-homem. Este ensinamento será o

ensinamento da grandeza possível apenas a partir do cultivo de si e do tornar-se si mesmo.

Ponto chave na ética de Nietzsche. Devido a este papel fundamental de “Assim falou

Zaratustra” em nossa compreensão da filosofia de Nietzsche como ética, este trabalho traz,

por fim, em apêndice, um ensaio interpretativo da magnum opus de Nietzsche.

Apresentamos este texto em forma de ensaio, pois entendemos que qualquer tentativa de

abordagem desta obra se mostrará superficial e excessivamente incompleta, dado sua

enorme complexidade e a enorme erudição do autor. Pensamos ser este também um bom

formato uma vez que o próprio texto de Nietzsche é bastante poético e livre. O ensaio

aparece como apêndice uma vez que necessita de todo o trabalho anteriormente feito na

tese como fundamentação e base teórica. Entendemos que este apêndice vem a confirmar a

existência de uma ética como eixo central da filosofia de Nietzsche ao apresentar os

ensinamentos de Zaratustra como ensinamentos éticos.

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1º. CAPÍTULO: A CONDIÇÃO TRÁGICA

1) Vontade de verdade

A questão da verdade será sempre um dos focos centrais das investigações de

Nietzsche. Isto se deve à relação indissociável que sempre esteve presente na história da

filosofia entre a busca da verdade e o pensamento moral. Nietzsche inicia sua crítica

questionando aquilo que chama de dogmatismo, entendendo este como a fundamentação

metafísica sobre uma verdade moral. Para o filósofo, “o pior, mais persistente e perigoso

dos erros até hoje foi um erro de dogmático: a invenção platônica do puro espírito e do bem

em si”.4 Para Nietzsche, os piores erros que a filosofia pôde e pode ainda cometer são:

aceitar a existência de uma natureza humana pré-cultural e postular alguma regra moral

como boa por si mesma e, portanto, como absoluta. Ora, parte importante de seu trabalho

filosófico será, justamente, apresentar uma história da formação do homem para além de

sua pré-história e uma história do aparecimento dos valores morais. Ambas as tarefas

desempenhadas em “Genealogia da moral”. Porém, tais histórias passam, antes, pela crítica

da noção dogmática e metafísica de verdade. Assim, em “Além do bem e do mal”, livro

preparatório para a “Genealogia da moral”, Nietzsche dá um passo decisivo em sua crítica

da verdade dogmática.

A primeira pergunta que Nietzsche faz é: por que a verdade? Por que os filósofos de

todos os tempos buscaram esta e não outra questão? Por que o chamado impulso ao

conhecimento se direciona quase que espontaneamente para a verdade? – A este impulso

em direção à verdade, Nietzsche dá o nome de vontade de verdade. Com estas perguntas

coloca-se em questão não apenas a veracidade de uma proposição, o que mais se diferencia

nesta nova abordagem é a pergunta pelo valor da verdade. “O problema do valor da

verdade apresentou-se à nossa frente – ou fomos nós a nos apresentar diante dele?”5 Por

que a verdade valeria mais do que a inverdade?

4 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, Prólogo. 5 Ibid., 1.

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Mantendo uma perspectiva crítica em relação aos “metafísicos de todos os

tempos”6, Nietzsche diz que o principal erro daqueles que procuram a verdade é pressupor

que as coisas que mais valorizam não poderiam derivar desde mundo sensível, considerado

enganador e fugaz. Ao contrário, deveriam possuir uma origem própria, isto é, única,

absoluta, inquestionável, diretamente de algum ponto último que lhes servisse de

fundamento, algo como uma coisa em si, um deus oculto ou o seio do ser.7 Nietzsche

chama de preconceito dos filósofos a este modo de pensar a origem dos valores e diz que

este preconceito não passa de uma crença. “(...) é a partir desta sua ‘crença’ que eles

procuram alcançar seu ‘saber’, alcançar algo que no fim é batizado solenemente de

‘verdade’”.8 A crença é que a verdade tão procurada não poderia ser algo da ordem das

experiências fenomenais, devendo pertencer a um outro mundo situado para além do

sensível. A verdade dogmática aparece ligada e dependente da crença em um “mundo

verdadeiro” por trás da “aparência”.

Contrariando esta tradição, Nietzsche entende que a vontade de verdade decorre de

uma vontade de engano. A vontade de engano seria a necessidade de se alçar um

determinado valor à categoria de verdade para fazê-lo mais forte e mais poderoso a fim de

que se possa acreditar nele. Entretanto, como este valor foi criado historicamente, é um

engano tê-lo por verdade. A verdade em que se acredita nada mais é do que a crença na

veracidade de um engano. Aquilo a que se chama de verdade não retiraria sua validade de

seu pertencimento a uma outra ordem metafísica inatacável, ao contrário, a crença em que a

verdade pertence a uma tal ordem é que a torna inatacável, contudo isto não passa de uma

crença.

“‘Verdade’: em minha maneira de pensar, a verdade não significa necessariamente o contrário de um erro, mas somente, e em todos os casos mais decisivos, a posição ocupada por diferentes erros uns em relação aos outros: um é, por exemplo, mais antigo, mais profundo que outro; talvez mesmo inextirpável, se um ser orgânico de nossa espécie não puder dele prescindir para viver;”9

6 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 2. 7 Ibid., 2. 8 Ibid., 2. 9 Id., “Fragments Posthumes”, XI, 38 [4] A tradução dos textos em línguas estrangeiras foi feita por mim quando a tradução brasileira não aparecer citada.

Page 19: Nietzsche - Por uma Ética Trágica - Gustavo Arantes Camargo

19

Se a verdade é criada, então ela é uma espécie de erro. Uma verdade é apenas um

erro mais aceito pela moral, talvez por ser um erro necessário. Vemos que, mesmo

criticando a abordagem metafísica, é preciso enganar-se sobre a existência da verdade, é

preciso acreditar na verdade, valorizá-la, pois este engano talvez seja necessário para a

existência de uma espécie como a nossa. É impossível viver sem representações valorativas

e lógicas, neste sentido, a vontade de verdade, isto é, a busca e valorização da verdade

acima da ilusão, seria uma forma de autopreservação, e possuiria uma função reguladora.

Toda moral e também o “conhecimento” produzido pelo homem, na medida em que é,

justamente, produção, é uma criação, não podendo participar da idéia metafísica de

verdade. Contudo, a transformação da invenção (erro) em verdade reside na necessidade de

se acreditar em algo inventado como se fosse uma verdade absoluta, somente assim se

poderia acreditar em um erro. Esta necessidade é uma necessidade vital.

“Uma proposição tal qual ‘duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si’ pressupõe: 1) as coisas 2) as igualdades: nenhuma nem outra existem. Mas, graças a este mundo fictício e fingido de nomes e conceitos, o homem adquire um meio de dominar massas enormes de fatos com ajuda de signos e os inscreve em sua memória. Este aparelho de signos constitui sua superioridade justamente porque lhe permite se distanciar ao máximo dos fatos particulares. A redução das experiências aos signos e a massa cada vez maior de coisas que podem ser apreendidas: eis sua força suprema.”10

Para Nietzsche, até mesmo a lógica é uma ficção11, uma vez que decorre de um

longo processo de desenvolvimento histórico, não sendo, portanto, uma categoria inata do

sujeito. O instrumental lógico racional é necessário, mas não é inerente ao homem e muito

menos sua origem estaria situada fora da experiência. A própria razão veio-a-ser, ela possui

uma história. Esta compreensão dificulta a afirmação de que ela seria capaz de alçar o

homem a um patamar verdadeiro para além da experiência sensível, uma vez que a razão

devém da própria experiência sensível. A razão e a lógica aparecem como instrumentos

necessários no desenvolvimento de uma civilização, mas, filosoficamente, as conclusões

por elas tiradas não podem adquirir valor absoluto sobre os demais juízos.

“A aberração da filosofia se deve ao fato de que ao invés de ver na lógica e nas categorias da razão os meios de acomodar o mundo a seus fins utilitários (então, ‘por princípio’, de

10 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI, 38 [131] 11 Id., “Além do bem e do mal”, 4.

Page 20: Nietzsche - Por uma Ética Trágica - Gustavo Arantes Camargo

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uma falsificação utilitária), acredita-se ver aí o critério da verdade ou da ‘realidade’. O ‘critérium da verdade’ é apenas a utilidade biológica de um tal sistema de falsificação por princípio: e como uma espécie animal não conhece nada mais importante que sua preservação, poder-se-ia de fato falar aqui de ‘verdade’. Mas, a inocência seria de tomar a idiossincrasia antropocêntrica por medida de todas as coisas, por linha divisória entre o ‘real’ e o ‘irreal’.”12

Meios para uma falsificação utilitária, este é o alcance da lógica. Mas, com isto, crer

ser possível divisar o que é real e verdadeiro do que é falso e ilusório é uma idiossincrasia

antropocêntrica tão grande que se tornou a aberração da filosofia. Seria impossível qualquer

vida para além da mais primitiva sem que essas ilusões sejam entendidas enquanto

verdades por um grande número de homens. Mas, longe de tais compreensões serem uma

verdade tal qual a metafísica a define, não passam de invenções, ou mitologia. “Somos nós

apenas que criamos as causas, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a coação, o

número, a lei, a liberdade, o motivo, a finalidade; e ao introduzir e entremesclar nas coisas

esse mundo de signos, como algo ‘em si’, agimos como sempre fizemos, ou seja,

mitológicamente.”13 A importância em separar as construções históricas de um patamar

metafísico reside em que somente assim pode-se questionar aquilo que se chama de

verdade. Uma verdade inquestionável torna-se uma regra e a relação entre moral e

conhecimento verdadeiro pode tornar obrigatório o cumprimento de uma regra de conduta.

Tomar todos os edifícios teóricos nos quais se sustenta toda a comunicação e

sociabilidade como construções e não como verdades significa afirmar a maior necessidade

da falsidade para a vida, uma vez que tais construções são interpretações, falsificações. Por

isto, Nietzsche pode dizer “que renunciar aos juízos falsos equivale a renunciar à vida,

negar a vida. Reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida,

enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se

atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isto, além do bem e do mal”.14 Na medida em que se

acredita na ilusão como se fosse uma verdade, e nessa crença reside a condição de

possibilidade do homem, temos que a ilusão e o engano são mais importantes do que a

verdade. Por isto, Nietzsche define como preconceito moral o fato de que a verdade tenha

um maior valor do que a aparência. “Não passa de um preconceito moral que a verdade

12 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV, 14 [153] 13 Id., “Além do bem e do mal”, 21. 14 Ibid., 4.

Page 21: Nietzsche - Por uma Ética Trágica - Gustavo Arantes Camargo

21

tenha mais valor que a aparência; é inclusive a suposição mais mal demonstrada que já

houve. Admita-se ao menos o seguinte: não existiria nenhuma vida, senão com base em

avaliações e aparências perspectivas; (...)”15

A vontade de verdade e a vontade de engano são a mesma vontade, só que

observadas de duas perspectivas diferentes. A vontade de verdade é a busca metafísica por

um fundamento último para o conhecimento, é acreditar que através da razão e das

construções intelectuais se atinge uma espécie de verdade primordial. A vontade de engano

é a maneira como Nietzsche enxerga esta vontade de verdade. O filósofo entende a razão e

as demais construções intelectuais como construções históricas – e, neste sentido, são

chamadas de aparência ou ilusões, usando aqui a mesma linguagem da metafísica – mas

entende que há uma necessidade de se acreditar em tais aparências como se fossem

verdades. Esta é a ilusão necessária que Nietzsche chama de vontade de engano. A vontade

de verdade, a busca da verdade e a crença nesta verdade decorrem da necessidade de se

acreditar nas construções históricas e culturais, ou seja, decorre da vontade de engano.

Partindo desta argumentação, Nietzsche pode dizer que o mais importante na

avaliação de um juízo não é sua consideração enquanto verdadeiro ou falso, mas sim, “em

que medida ele promove ou conserva a vida (...)”16. Não se trata de uma tentativa de

impossibilitar o processo cultural e social. O que nos parece mais interessante nesta

compreensão são suas conseqüências libertadoras em relação às conseqüências limitadoras

do dogmatismo. Apenas saber que as “verdades morais” são representações, já é algo

suficiente para uma diminuição de toda coerção e efeito de poder que acompanha todo

discurso de verdade. No fundo da filosofia de Nietzsche esconde-se uma grande liberação,

para que outras possibilidades de vida que, a princípio, não se enquadrem em um quadro

moral específica, sejam aceitas. Ao invés de usar o “conhecimento” como argumento em

favor de seus próprios preconceitos, pode-se ter a vontade de saber não como oposta à

vontade de engano, mas como seu refinamento.17

15 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 34. 16 Ibid., 3. 17 Ibid., 24

Page 22: Nietzsche - Por uma Ética Trágica - Gustavo Arantes Camargo

22

2) Verdade e moral em “Humano, demasiado humano”

“Humano, demasiado humano” é apenas o segundo livro de Nietzsche. As posturas

mais conhecidas e também mais polêmicas costumam ser relacionadas ao período final de

sua produção. No entanto, entendemos que idéias muito importantes de sua filosofia já

estavam bem delineadas mesmo nesta época, fazendo com que não seja necessário, a não

ser em caráter didático, dividir sua obra em períodos bem demarcados por diferenças

radicais de compreensão. As diferenças entre os livros existem e mostram o caminho de

pensamento percorrido pelo autor, mas não apresentam nenhuma quebra significativa.

Neste livro, tem-se que o tratamento da questão da verdade e da moral já contém o germe

daquilo que será decisivo mais adiante.

Logo no primeiro aforismo deste livro com o qual Nietzsche se considerou liberto

de tudo aquilo que não pertencia à sua natureza18, já se pode ver a distinção que o filósofo

quer para si em relação à filosofia de até então. Ao observar como se buscou responder a

questão acerca da origem da verdade e da moral, percebe que a filosofia a qual chama, já

neste momento, de metafísica supõe “para as coisas de mais alto valor uma origem

miraculosa, diretamente do âmago e da essência da ‘coisa em si’”.19 Como se aquilo que se

entende por verdade e aquilo que se avalia como bom já existisse desde sempre e que fosse

apenas acessado pelo filósofo. Nietzsche opõe a esta filosofia metafísica a filosofia

histórica, que seria uma espécie de um novo método filosófico. Vemos aqui de forma bem

clara o deslocamento que Nietzsche propõe no pensamento sobre a questão da verdade e da

moral. Estas não mais seriam algo a ser encontrado em um outro patamar transcendente,

mas pertenceriam à história. A filosofia histórica de “Humano, demasiado humano” é o

embrião da genealogia. Alguns anos mais tarde, Nietzsche confirmaria este pensamento:

“Assim, a verdade não é uma coisa que estaria lá a encontrar e a descobrir, – mas algo que

está por criar e que dá o nome a um processus”20.

Uma vez que o estabelecimento do conhecimento moral não mais é pensado a partir

do acesso a uma verdade metafísica que esclareceria o que é o bem, como se poderia então,

pensar as questões morais? Nietzsche buscará, inicialmente, encontrar a resposta na ciência.

18 Nietzsche, “Ecce Homo”, pág 72. 19 Id., “Humano, demasiado humano”, 1. 20 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [ 91]

Page 23: Nietzsche - Por uma Ética Trágica - Gustavo Arantes Camargo

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Esta será uma forma de deslocar o foco da metafísica para a vida e para o corpo, deslocar

do plano supra-sensível para o plano sensível. Mas a própria menção à ciência aparece

como metáfora do que será mais bem denominado futuramente como psicologia e

fisiologia.

“Tudo o que necessitamos, e que somente agora nos pode ser dado, graças ao nível atual de cada ciência, é uma química das representações e sentimentos morais, religiosos e estéticos, assim como da todas as emoções que experimentamos nas grandes e pequenas relações da cultura e da sociedade, e mesmo na solidão: e se essa química levasse à conclusão de que também nesse domínio as cores mais magníficas são obtidas de matérias vis e mesmo desprezadas?”21

Nesta época, o deslocamento para a ciência é uma forma de rompimento com a

metafísica. Posteriormente, Nietzsche criticará a ciência, pois esta terá se tornado a nova

fiadora da verdade metafísica que havia perdido seu crédito. Entretanto, o que interessa

aqui, neste deslocamento da metafísica para a química, é que não mais se trata de entender

o homem enquanto uma natureza estática e eterna, onde a posse de razão seria a principal

característica capaz de encaminhar tal homem à verdade e ao bem. Ao contrário, o que

Nietzsche quer é que se busque compreender a moral no âmbito dos sentimentos e das

emoções, como bem atesta a passagem. Apenas a busca pelo que há de humano, demasiado

humano nas questões morais será capaz de fornecer indicativos para que se compreenda tal

questão de uma nova maneira, uma maneira não metafísica, não preconceituosa. A moral

deixa de ser uma regra proveniente do conhecimento do verdadeiro bem e se torna uma

representação decorrente de sentimentos e emoções. Dizer que a moral é uma representação

significa dizer que ela não provém de um conhecimento que se possa chamar de verdade. A

forma de buscar a origem humana da moral será a história. Aqui, o que se torna importante

pensar é como que a verdade poderia advir de um processo histórico? Com esta forma de

abordagem da questão, Nietzsche modificará o próprio conceito de verdade.

Não se trata, necessariamente, de negar o mundo metafísico. Mas, assim como não

se pode negá-lo absolutamente, também não se pode afirmá-lo absolutamente. Sua

existência é apenas uma possibilidade difícil de provar. A crítica à filosofia estaria no fato

de fundamentar toda moral e “felicidade” humana em uma hipótese pouco provável. “Então

21 Nietzsche, “Humano, demasiado humano”, 1

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24

resta ainda aquela possibilidade; mas com ela não se pode fazer absolutamente nada, muito

menos permitir que felicidade, salvação e vida dependam dos fios de aranha de tal

possibilidade. Pois do mundo metafísico nada se poderia afirmar além do seu ser-outro, um

para nós inacessível, incompreensível ser-outro; seria uma coisa com propriedades

negativas”.22

O que Nietzsche já tem claro para si desde este momento é que a fundamentação

metafísica da moral possui uma história, isto é, ela veio a ser. Os homens, em determinado

momento, criaram estas fundamentações e acreditaram que com elas tinham obtido a

verdade sobre o bem e o justo. Um bem e um justo imutáveis, não um bem e um justo

criados. Nietzsche buscará saber como surgiram estas fundamentações e avaliações, quais

os impulsos que guiaram os homens na construção de tão complexos edifícios do

pensamento.

“Logo que a religião, a arte e a moral tiverem sua gênese descrita de maneira tal que possam ser inteiramente explicadas, sem que se recorra à hipótese de intervenções metafísicas no início e no curso do trajeto, acabará o mais forte interesse no problema puramente teórico da ‘coisa em si’ e do ‘fenômeno’. Pois, seja como for, com a religião, a arte e a moral não tocamos a ‘essência do mundo em si’; estamos no domínio da representação, nenhuma ‘intuição’ pode nos levar adiante”.23

O estudo histórico sobre a verdade e a moral mostrará que elas surgem a partir de

processos sociais desenvolvidos pelos homens. Tais processos criam as regras cujo

cumprimento se torna exigido por um grupo social, tornando-se uma moral, esta moral, por

sua vez, tenta se legitimar através de um discurso de verdade. A pesquisa histórica de

Nietzsche nega a existência de verdades metafísicas no âmbito da moral. Mais do que isto,

a moral deixa de ser um conhecimento sobre a verdade e se torna uma representação. Dizer

que a verdade e a moral têm uma gênese histórica, significa dizer que foram criadas pela

vida, não sendo, portanto, um conhecimento absoluto e sim criação.

22 Nietzsche, “Humano, demasiado humano”, 9 23 Ibid., 10

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25

3) Moral, verdade e instintos

Ao mostrar a necessidade que o homem tem de acreditar em suas próprias

construções intelectuais, Nietzsche inicia o processo de investigação em busca do impulso

que move a filosofia em direção à verdade. Quer encontrar o por quê de uma ligação tão

forte entre verdade e moral. A verdade sempre foi o argumento mais forte em favor dos

valores morais. Uma vez que estes se encontravam justificados por ela, seria difícil

questioná-los. Ter-se-ia, então, uma relação de poder e dominação como motor para a busca

da verdade ao invés de um impulso para o conhecimento?

Longe de aceitar a busca pela verdade como o motor principal da filosofia,

Nietzsche entende que a filosofia nada mais seria do que uma forma de justificar e

fortalecer determinadas intenções morais. Desta forma, o argumento de verdade é usado

como fachada pelos filósofos

“quando no fundo é uma tese adotada de antemão, um idéia inesperada, uma ‘intuição’, em geral um desejo íntimo tornado abstrato e submetido a um crivo, que eles defendem com razões que buscam posteriormente – eles são todos advogados que não querem ser chamados assim, e na maioria defensores manhosos de seus preconceitos, que batizam de ‘verdades’—”24

Buscar razões para defender seus próprios preconceitos morais e com isto chamá-los

de verdades, eis “os truques sutis dos moralistas e pregadores da moral.”25 As construções e

sistemas filosóficos seriam artimanhas para fazer com que determinados valores morais

sejam tomados por verdade e conhecimento. Nietzsche nos mostra que toda grande filosofia

foi até o momento “a confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias

involuntárias e inadvertidas; e também se tornou claro que as intenções morais (ou imorais)

de toda filosofia constituíram sempre o germe a partir do qual cresceu a planta inteira.”26

Ou seja, toda a construção de enormes edifícios conceituais com o intuito de se apresentar a

verdade das coisas esconde, por trás desta fachada de teoria do conhecimento, uma intenção

de fazer com que os valores morais do filósofo construtor de tal edifício tornem-se

incontestáveis. A “metódica da verdade não foi inventada por motivos de verdade, mas por

24 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 5 25 Ibid., 5 26 Ibid., 6

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26

motivos de potência, de querer-ser-superior.”27 Fica claro o desejo de dominação por trás

da aparente neutralidade e desinteresse filosóficos, pois se trata de legitimar determinadas

condutas e de impedir outras. O argumento chama-se verdade. A valorização da verdade

permite que se force a aceitar determinados valores morais como bons e outros como ruins.

A legitimação da coerção daí decorre.

Sendo assim, Nietzsche recomenda que diante de uma filosofia seja sempre preciso

perguntar “a que moral isto (ele) quer chegar?”28 Contrariando a idéia de que o impulso ao

conhecimento seja o pai da filosofia, Nietzsche afirma que este pai seria, justamente, a

intenção moral que se esconde ou se revela em cada filosofia. Mais do que isto, por trás

destas intenções morais atuam os instintos básicos da vida de cada filósofo. Nietzsche dá,

assim, um passo a mais nesta forma histórico-psicológica de investigação que será chamada

de genealogia. Ele mostra que as próprias intenções morais entram em cena como sintomas

de instintos que governam a vida daqueles que as defendem. Neste sentido, a filosofia seria

uma forma que os instintos têm de se colocarem como superiores aos demais instintos e

tentar garantir sua preponderância. A disputa filosófica pela verdade que visa legitimar uma

moral é, antes, a expressão e a tentativa de autoconservação da vida humana a partir de seus

instintos mais íntimos. Cada filosofia moral termina, então, por buscar enriquecer os

argumentos que legitimam e fortalecem os instintos que a engendram. A razão como

instrumento dos instintos.

“Mas quem examinar os impulsos básicos do homem, para ver até que ponto eles aqui teriam atuado como gênios (ou demônios, ou duendes) inspiradores, descobrirá que todos eles já fizeram filosofia alguma vez – e que cada um deles bem gostaria de se apresentar como finalidade última da existência e legítimo senhor dos outros impulsos. Pois todo impulso ambiciona dominar: e portanto procura filosofar.”29

Ao invés de buscar entender a razão e a consciência como os motores da filosofia,

Nietzsche aparece na contramão com o surpreendente pensamento de que seriam os

instintos e impulsos30 que fariam filosofia. A “filosofia é esse impulso tirânico mesmo, a

27 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV, 15 [58] 28 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 6 29 Ibid., 6 30 O termo em alemão ao qual nos referimos é Trieb, que pode ser traduzido tanto por ‘impulso’ quanto por ‘instinto’. Em uma longa e rica nota, o tradutor brasileiro Paulo César de Sousa justifica a tradução de Trieb por impulso, guardando Instinkt para instinto. Nota 21 de “Além do bem e do mal”, ed. Companhia das letras.

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27

mais espiritual vontade de potência, de ‘criação do mundo’, de causa prima”.31 O trabalho

de Nietzsche torna-se psicológico na medida em que pretenderá entender qual afeto estará

por trás de cada filosofia. As filosofias morais seriam apenas formas de um instinto se

apresentar como sendo o mais importante e verdadeiro.32

Engana-se quem aqui objetar que seriam a razão e o pensamento, assim como a

moral os verdadeiros responsáveis por guiar os instintos e afetos em direção ao bem e à

verdade. Ao contrário, por trás de cada pensamento atua um instinto. O pensamento nada

mais é do que uma forma de aquela vida que o produz tentar crescer e se fortalecer ou se

defender de outras forças. Ele é sintoma, não causa.

“(...) a maior parte do pensamento consciente deve ser incluída entre as atividades instintivas, até mesmo o pensar filosófico; (...) estar ‘consciente’ não se opõe de algum modo decisivo ao que é instintivo – em sua maior parte, o pensamento consciente de um filósofo é secretamente guiado e colocado em certas trilhas pelos seus instintos. Por trás de toda lógica e de sua aparente soberania de movimentos existem valorações, ou, falando mais claramente, exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de vida”33.

O importante em cada filosofia é saber se sua moral representa e é o fruto da

ascendência ou da decadência da vida. Tal compreensão será fundamental no pensamento

de Nietzsche, pois será a partir dela que o filósofo buscará pensar toda a moral que está a

estudar. Nietzsche usa a história para criticar aqueles que buscam estabelecer uma moral

enquanto verdade, pois entrevê neste movimento uma espécie de negação da vida que

marca toda a história da filosofia e da moral ocidental. Postular que existe um fundamento

último para um juízo moral significa compreendê-lo como estando fora deste mundo, pois

não teria sido criado. Se a verdade reside em um outro mundo, logo, este mundo em que se Contudo, o próprio assinala que as traduções latinas o traduzem quase sempre por instinto, o que não constitui um problema. Desta forma, optamos, no correr do texto, ora pela palavra instinto ora pela palavra impulso, não fazendo maiores distinções entre elas. 31 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 9. 32 Uma outra questão importante sobre a tradução refere-se ao uso do termo vontade de potência ao invés de vontade de poder. Muito já se debateu sobre esta questão e argumenta-se que o termo poder remete à representação metafísica do poder, onde este seria algo separado da força que o cria constituindo-se em uma espécie de objeto. Em contrapartida, a palavra potência remete também a um significado metafísico no qual haveria a separação entre ato e potência, onde esta última seria algo que pode se dar, mas ainda não ocorreu. Separação inexistente no caso do conceito de Nietzsche. Entendemos que ambos os termos possuem suas vantagens e desvantagens, porém, ao termos que optar por apenas um dos dois, optamos por vontade de potência, o que fará com que alteremos todas as traduções que usem vontade de poder. Faremos menção a estas traduções alteradas, e será a única alteração de nossa parte. 33 Nietzsche, op. cit., 3.

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vive é depreciado e tido por uma ilusão. “In summa; fabular sobre um mundo outro do que

este não faz sentido algum – a menos que se admita que reina em nós um instinto de

degenerescência, de rebaixamento, de suspeita em relação à vida: neste último caso, nós

nos vingaríamos da vida pela fantasmagoria de uma ‘vida melhor’.”34 Será preciso buscar o

impulso que se encontra por trás da valorização de um outro mundo como mais importante

do que este. Este impulso é, para Nietzsche, um esforço de autopreservação feito por

pessoas que possuem dificuldade de se afirmar neste mundo. Assim, postulam a existência

de outro mundo verdadeiro onde sua moral seria o parâmetro de conduta universal. A forma

que tiveram de fazer isto foi criando filosofias e religiões que estabeleceram a verdade

como a-histórica e transmundana.

A filosofia não é algo impessoal e objetivo. Ao contrário, é um testemunho de seu

autor. A moral é uma forma de hierarquização dos instintos. Hierarquia é saber quais

instintos são valorizados e quais são depreciados em uma moral. Será baseado neste

trabalho de desvendamento da hierarquia dos instintos escondida por trás de uma

determinada moral que Nietzsche poderá dizer se determinada perspectiva fortalece ou

enfraquece a vida. O instinto que está por trás de um juízo pode ser afirmador ou negador

da vida, pode representar uma linha ascendente ou descendente em termos de força e

plenitude. “No filósofo, pelo contrário, absolutamente nada é impessoal; e particularmente

a sua moral dá um decidido e decisivo testemunho de quem ele é – isto é, da hierarquia em

que se dispõem os impulsos mais íntimos de sua natureza.”35 Tal trabalho será melhor

desenvolvido no segundo capítulo, no momento continuaremos trabalhando com a questão

da verdade.

4) Perspectivismo e interpretação

Se a filosofia é uma argumentação dos instintos que buscam, na proteção da

verdade, o argumento mais forte que os permitam se sobressair uns sobre os outros, mas

sendo que cada verdade de cada discurso moral é apenas uma estratégia de luta, por que

não objetar que, também este olhar de Nietzsche, longe de ser uma verdade sobre o

34 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV, 14 [168] 35 Id., “Além do bem e do mal”, 6.

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discurso moral, não é também uma falsidade, uma vez que também é uma invenção datada

historicamente. Logo, visto que não há como definir um discurso verdadeiro, nem mesmo o

de Nietzsche sobre a verdade, fica-se aberto o caminho tanto para um niilismo onde nada

mais pode ser dito e, ao mesmo tempo, tudo pode ser dito, porém sem valor algum, ou

volta-se a respeitar os discursos anteriores como verdade, afinal, neste caso, pode-se negar

o discurso de Nietzsche como falso. Como Nietzsche pode pretender criticar os discursos

de verdade sem que ele mesmo não pretenda que seu discurso seja tido como tal? Seria seu

discurso o único verdadeiro?

Até agora a verdade foi o valor máximo que um discurso podia alcançar. Neste

ponto, tornava-se inquestionável. Até que outro discurso o negasse e em seu lugar

apresentasse outra verdade, esta sim, a verdade, que desbancaria a anterior. E assim

sucessivamente, como se enganos estivessem sendo corrigidos por uma suposta evolução

do pensamento. Neste enredo, Nietzsche seria apenas mais um que apresenta uma nova

verdade a ser superada no futuro. Mas o discurso de Nietzsche critica, justamente, esta

estrutura e estaria sendo inconsistente se apresentasse sua própria perspectiva como a única

possível e verdadeira. Como faz Nietzsche, então, para sustentar sua argumentação contra

os discursos filosóficos sobre a verdade, sem pretender, com isto, apresentar uma nova

verdade? E como acreditar em seu discurso se, de antemão, já sabemos que não é

verdadeiro? – Estas questões, bastante legítimas, não são deixadas sem resposta pelo

filósofo. Elas podem ser pensadas a partir dos seguintes questionamentos: É possível pensar

o valor de um discurso sem referi-lo à verdade? Será que um discurso parcial e perspectivo

daria conta daquilo que a filosofia tem a dizer?

Voltamos de novo à questão do valor. Com certeza Nietzsche quer desfazer o

vínculo entre valor e verdade, pois somente assim é possível separar a filosofia de suas

considerações morais. Afinal, toda teoria do conhecimento que se quer como verdade, que

busca a verdade é um preconceito moral, como já foi visto. Para desfazer esta relação é de

fundamental importância afirmar a parcialidade de todo “conhecimento”. “Existe apenas

uma visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo; e quanto mais afetos

permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar

para essa coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela, nossa ‘objetividade’.”36

36 Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 12

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Nietzsche é categórico ao afirmar que todo pensamento parte de um olhar

específico, parcial. Nenhum “conhecimento” pode dar conta de toda a experiência. Por isto

mesmo, esta palavra vem muitas vezes entre aspas nos textos do autor. Um conhecimento

que se sabe perspectivo afirma sua incompletude, estando, assim, forçado a aceitar a

existência de outras perspectivas. Devido a esta incompletude, temos que a busca pelo

maior número de perspectivas se torna algo desejável, pois cada visão enriquecerá o

conhecimento. É preciso “saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade de

perspectivas e interpretações afetivas”37.

O próprio sentido de um texto é dado pela interpretação. Não existe sentido a priori

a ser descoberto. É a interpretação que confere sentido. “Nietzsche pensa a questão do

sentido para mostrar que ela não é redutível à problemática da verdade.”38 Se é a

interpretação que confere sentido, então o próprio sentido é uma criação. Postular um

sentido prévio à interpretação, sentido este apenas a ser descoberto, é reafirmar que a

verdade de algo se encontra em um ponto a ser descoberto e não a ser inventado, significa

afirmar um sentido em si para as coisas. Com sua linguagem Deleuze diz: “Não existe

sequer um acontecimento, um fenômeno, uma palavra, nem um pensamento cujo sentido

não seja múltiplo. Uma coisa é ora isto, ora aquilo, ora algo de mais complicado segundo as

forças (os deuses) que dela se apoderam.”39 A interpretação é a força que confere sentido a

algo, todo sentido é uma interpretação, uma criação, não sendo, portanto, uma verdade.

Assim Nietzsche pode dizer: “Não buscar o sentido nas coisas: mas lhes impor!”40

A pluralidade de perspectivas costuma desagradar aqueles que buscam reduzir a

interpretação ao problema da verdade, sendo este resolvível pela razão. Porém, em uma

abordagem perspectivista, a riqueza de interpretações estará muito mais próxima da

“realidade” do que um discurso de verdade. “Um pensamento de tipo sistemático é, a seus

olhos [de Nietzsche], inapto a dar conta das tensões constitutivas da realidade, isto é, a

apreender sua dimensão trágica.”41 A dimensão trágica é, exatamente, a ausência de

fundamento último para o conhecimento, a capacidade de se reconhecer todo conhecimento

como criação e, portanto, como uma interpretação possível e não como uma explicação

37 Nietzsche, “Genealogia da moral” , III, 12 38 Wotling, “Nietzsche et le problème de la civilization”, pág. 9 39 Deleuze, “Nietzsche et la philosophie”, pág. 4 40 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 6 [15] 41 Wotling, op. cit. pág. 15

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final. De maneira que até mesmo “a física é apenas uma interpretação e disposição do

mundo (...) e não uma explicação do mundo (...)”42 É por isto que quando se tenta encerrar

Nietzsche nos liames de um discurso puramente lógico, termina-se por perder as ricas

nuances que seu texto nos apresenta. Tais nuances, não poucas vezes, terminam

confundidas por contradições. Ao apresentar diversas perspectivas, por vezes divergentes,

Nietzsche não cai em contradição, mas enriquece sua abordagem. É possível que duas

interpretações contraditórias entre si sejam consideradas verdadeiras, cada uma por uma

perspectiva diferente. Se o próprio sentido é criado pela perspectiva interpretativa, a pecha

da contradição é uma crítica que não leva em conta que a verdade só pode ser pensada em

relação à perspectiva que a engendra. Se a própria lógica é uma criação, uma contradição

lógica não pode funcionar como critério de verdade. “E, neste caso, a lógica seria um

imperativo, não para o conhecimento do verdadeiro, mas para dispor e acomodar um

mundo que poderia ser chamado por nós de mundo verdadeiro. (...) Assim, este princípio

[de não contradição] contém não um critério de verdade, mas um imperativo quanto ao que

DEVE valer por verdade.”43 As regras gramaticais são ilusões necessárias para a existência

e crescimento de uma civilização, é preciso que sejam acreditadas como verdade para que

desempenhem este papel, mas tais regras não permitem o conhecimento da verdade tal qual

a filosofia sempre procurou, elas apenas definem o que deve valer por verdade, o que deve

ser acreditado como tal.

Outro ponto importante é que são os afetos que falam nas perspectivas, reforçando o

que já foi dito anteriormente. Cada pensamento, cada avaliação, cada apreciação é sintoma

de instintos que ali se manifestam. Estar atento para a pluralidade de manifestações dos

instintos torna-se algo importante para a filosofia. No fim, uma interpretação deve buscar

traduzir o trabalho dos instintos. “São nossas necessidades que interpretam o mundo:

nossos instintos, seus prós e seus contra. Cada instinto é uma certa necessidade de

dominação, cada um possui sua perspectiva que ele quer impor como norma a todos os

outros instintos.”44 Vê-se de novo que, por trás de cada hipótese interpretativa, esconde-se

uma tentativa que faz um instinto para se sobressair sobre outros. Nietzsche entenderá a

42 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 14. 43 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [97] 44 Id., “Fragments Posthumes”, XII, 7 [60]

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filosofia como esta disputa por dominação e buscará mostrar quais impulsos se escondem

por trás das perspectivas mais aceitas.

Nietzsche quer que no “lugar da ‘teoria do conhecimento’ tenha-se uma doutrina de

perspectivas dos afetos (onde faria parte uma hierarquia dos afetos)”45. Não mais crer na

gramática como verdade, mas pensar os afetos por trás dos modos de valoração expressos

nas regras lógicas e nas ciências. Trata-se da tentativa de usar o “conhecimento” a favor do

fortalecimento da vida e não do controle da mesma. Contudo, o filósofo sabe que esta é

uma alternativa perigosa e que atrairá poucos inicialmente, pois é “preciso ter uma força e

uma mobilidade absolutamente diferentes para se manter firmemente em um sistema

inacabado, junto a perspectivas livres e abertas do que para permanecer em um mundo

dogmático.”46 Encontra-se, aqui, mais um motivo pelo qual se busca a verdade: é a

incapacidade de restar em um mundo sem um fundamento absoluto que cria a necessidade

de acreditar em um conhecimento verdadeiro. “O grau de força de vontade se mede pelo

quanto podemos nos dispensar de ver o sentido nas coisas, pelo quanto se suporta viver em

um mundo desprovido de sentido: porque se é capaz de organizar um pequeno fragmento

deste.”47 O sentido é dado pela interpretação, não é precedente a ela. É a incapacidade de

aceitação da condição trágica que move a moral. Todavia, a necessidade não faz deste

“conhecimento” uma verdade. Que se lembre da ligação entre conhecimento e moral e do

papel da verdade nesta relação, pois a ausência da verdade e a introdução da interpretação

perspectiva rompem com a legitimidade do poder moral na filosofia. O sacerdote e o

filósofo, destituídos de seus deuses e de suas verdades, nada podem contra o desejo.

Já foi colocado que as noções de fim e meio, causa e efeito, por exemplo, são

interpretações48 que, de uma maneira geral, precisam ser entendidas como verdades, pois

possuem função reguladora. No entanto, resta sempre a pergunta pela constituição própria

das coisas, aquilo que se costuma chamar de realidade. Não seria preciso haver uma

realidade dos fatos por trás das interpretações? Tal pensamento é interessante, porém não

vai longe. Por mais que a realidade exista de forma independente ao homem, não haveria

pensamento, conhecimento, filosofia, nem este debate sem ele. A partir do momento em

45 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [8] 46 Id., “Fragments Posthumes”, XI, 34 [25] 47 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [60] 48 Id., “Fragments Posthumes”, XII, 2[147]

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que o homem está no mundo, todo seu olhar será dado a partir de uma perspectiva. Se tudo

já existia antes dele e se continuará a existir depois, mesmo isto, só pode ser pensado a

partir deste homem, isto é, perspectivamente. O pensamento é, assim como tudo o que o

homem pode produzir, parcial e interpretativo, isto é, perspectivo. “Que as coisas tenham

uma constituição nelas mesmas, abstração feita de toda interpretação e da subjetividade, eis

uma hipótese perfeitamente desnecessária: o que suporia que o fato de interpretar e ser

subjetivo não seria essencial, que uma coisa, separada de todas relações, seria ainda

coisa.”49 Não há como separar o pensamento de suas relações com a realidade. Isto porque

esta própria “realidade” já é uma força em relação, já é desde sempre uma interpretação e

não um fundamento. “Não há nada absolutamente primeiro a interpretar, pois, no fundo,

tudo é já interpretação, cada signo é em si mesmo não uma coisa que sofre a interpretação,

mas a interpretação de outros signos.”50 O próprio signo supostamente a ser interpretado já

é, de antemão, uma interpretação, pois o signo é uma invenção, uma criação. Assim

também aquilo que se entende por realidade já é uma interpretação desta suposta realidade,

não havendo algo anterior a isto. Neste sentido, a realidade pode ser entendida como texto,

mas seus múltiplos sentidos são sempre apresentados como interpretações parciais, uma vez

que o próprio texto assim como a própria idéia de texto da realidade já são interpretações.

Por isto, “não há nunca, para Nietzsche, um significado original.”51 O que torna a tarefa do

interpretar uma tarefa infinita.52

Nietzsche entende esta busca pelo fenômeno em si por trás da interpretação como

um positivismo que não percebe que ele também está interpretando subjetivamente os fatos,

só que como algo de objetivo. “Contra o positivismo, que atesta ao fenômeno, ‘só existem

fatos’, eu objetaria: não, justamente não há fatos, somente interpretações. Não podemos

constatar nenhum factum ‘em si’: talvez seja um nonsense querer este tipo de coisa.”53 A

critica a um certo subjetivismo na teoria perspectivista de Nietzsche não leva em conta que

a suposta objetividade que tanto se busca nada mais é do que mais uma interpretação

subjetiva “ – isto que é objetivo não seria nada mais do que um falso conceito de espécie e

49 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [40] 50 Foucault, “Nietzsche, Freud, Marx” in Cahiers de Royaumont, pág. 189 51 Ibid., pág. 190 52 Ibid., pág. 187 53 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 7 [60]

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uma falsa antinomia inerentes ao subjetivo?”54 O grifo da palavra inerente é do próprio

Nietzsche e mostra, terminantemente, que não haveria como fugir das interpretações. A

objetividade é uma interpretação subjetiva; “um mesmo texto permite inúmeras

interpretações: não existe a interpretação ‘justa’.”55

Uma última objeção que ainda possa ser feita argumentará que, dentro desta ótica na

qual estamos nos movendo, todas as coisas seriam de igual valor, uma vez que não se

poderia determinar o que é melhor ou pior, o que é certo e errado, o bem e o mal, já que a

moral não mais possui a verdade consigo e que, agora, todas as perspectivas seriam válidas.

As conseqüências e possibilidades de um mundo onde a moral se encontra destituída de seu

alicerce metafísico serão ainda melhor trabalhadas, mas o vislumbre inicial é, exatamente,

este abismo que se abre ante a não-fundamentação absoluta dos valores, é a condição

trágica. O que não quer dizer que todas as interpretações sejam igualmente válidas. O fato

de não existir uma única interpretação verdadeira ou justa não significa que todas as

interpretações tenham o mesmo valor ou que não haja possibilidade de se preferir uma à

outra. Que um texto possua tantas interpretações quantas puderem lhe ser atribuídas, não

faz com que todas estas interpretações tenham o mesmo valor. Contudo, o critério não pode

mais ser o da verdade e a hierarquia estabelecida não pode ser considerada absoluta. Ainda

assim, mesmo não usando a verdade como critério, o que permite a Nietzsche diferenciar

entre interpretação boa ou ruim?

A metáfora filológica vem responder a esta questão. Nietzsche, formado em

filologia clássica, por mais que afirme a plurivocidade do texto, não deixa de criticar a

insuficiência e tartufice de algumas interpretações. Referindo-se, por exemplo, às

interpretações científicas que afirmam leis na natureza, Nietzsche diz: “perdoem este velho

filólogo, que não resiste à maldade de pôr o dedo sobre artes de interpretação ruins”.56 Mais

adiante, critica a péssima filologia de tais cientistas.57 A respeito da interpretação cristã, por

exemplo, diz: “A Igreja crê em coisas que não existem, nas ‘almas’: ela crê em efeitos que

não existem, em efeitos divinos; na saúde da alma; sobretudo, ela permanece na superfície,

a respeito dos signos, dos gestos, das palavras, dos símbolos, onde ela dá uma interpretação

54 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [40] 55 Id., “Fragments Posthumes”, XII, 1 [120] 56 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 22 57 Ibid., 22

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arbitrária: ela possui um método de trapaça psicológica elaborada até suas últimas

conseqüências.”58 Ou seja, não existe a interpretação verdadeira, mas existem

interpretações abusivas, arbitrárias, trapaceiras, baixas, rasteiras ...

Nietzsche define assim o conceito de filologia: “Entendo, aqui, a palavra ‘filologia’

em um sentido bem geral: saber decifrar os fatos sem lhes falsear pelas interpretações”.59

Que se atente aqui para o detalhe de que não se está a defender a existência de fatos

desconexos das interpretações. O que se coloca aqui é que nem todas interpretações são

igualmente validas na interpretação do texto da realidade. É possível, pois, que existam

interpretações que falseiam o texto ao serem abusivas e arbitrárias em sua abordagem.

Mesmo assim, se Nietzsche ataca determinadas interpretações do texto da realidade, não as

ataca com uma nova verdade. Aquilo que ele opõe a uma interpretação por ele considerada

má nada mais é do que outra interpretação. É apenas sob a ótica de sua interpretação que

outra pode ser considerada ruim. Ora, as interpretações platônica, cristã e cientificista

sempre estiveram cheias de adeptos. Para estes, trata-se de uma interpretação ou até mesmo

de uma explicação verdadeira, quando não de uma revelação inquestionável. Viu-se,

também, que o discurso de verdade busca legitimar uma interpretação acima de todas

demais. Nietzsche busca criticar sem enredar-se nesta mesma estrutura. Se o faz é porque

entende que tais interpretações forçam o texto que estão pretendendo explicar. Tal abuso da

interpretação visa sempre escamotear a dificuldade de seus adeptos em aceitar a tragicidade

do texto da realidade, isto é, a falta de sentido metafísico para a existência.

“Opor-se-á não a interpretação verdadeira à falsa, mas 1) interpretação plural e interpretação dogmática (esta que não se reconhece como interpretação sob o fundo de uma pluralidade, mas se apresenta como verdade única e absoluta do texto); 2) interpretações fortes e fracas, rápidas e pacientes, pobres e ricas, superficiais e genealógicas, inocentes e profundas. Se não há a única interpretação verdadeira, há, todavia, interpretações abusivas”.60

Por fim, se são os instintos que interpretam, não será a verdade que funcionará

como critério, mas a afecção. Uma perspectiva, um pensamento, só pode ser pensado e

enunciado por uma determinada forma de vida. “Existem coisas que só se pode dizer, sentir

ou conceber, valores aos quais só se pode crer com a condição de se avaliar ‘baixamente’,

58 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV, 14 [151] 59 Id., “Fragments Posthumes”, XIV, 14[60] 60 Blondel, “Nietzsche: Le corps et la culture”, pág. 207

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de viver e pensar ‘baixamente’. Sendo isto o essencial: o alto e o baixo, o nobre e o vil não

são os valores, mas representam o elemento diferencial de onde deriva o valor dos

valores.”61 É como produto de uma forma baixa de vida que Nietzsche critica determinadas

interpretações, as quais ele chama de ruins. Em última análise, a adoção ou preferência por

uma determinada interpretação revela não a verdade da interpretação, mas o maior ou

menor apreço à vida por parte daquele que interpreta.

Já foi apresentado brevemente que, na perspectiva de Nietzsche, o mais importante

no tocante a uma proposição é sua relação como o fortalecimento ou com o

enfraquecimento da vida. Este será sempre seu critério de valoração. O que faz com que o

perspectivismo se diferencie de um relativismo é, precisamente, a necessidade de

hierarquia, tomando a vida como critério. Sua diferença mais marcante frente ao

dogmatismo é saber que estará sempre apresentando hipóteses parciais. O que deve ficar

claro, no momento, é que a escolha do critério de valoração, uma vez enfraquecido o

discurso de verdade, será, ele também, uma opção, uma interpretação. Desta forma, a

filosofia de Nietzsche nunca correrá o risco de se querer como única verdade. O que não

impede de acreditar que sua teoria da vontade de potência, – da qual falaremos em breve –

seja verdadeira. A diferença é que não será apresentada de forma dogmática. Ao contrário,

é certo que ofenderia “seu orgulho, e também seu gosto, se sua verdade fosse tida como

verdade para todos (...)”62. Enfim, o simples fato de se saber que uma perspectiva é uma

perspectiva e, neste sentido, o perspectivismo é uma perspectiva, já é o bastante para que tal

filosofia fuja de toda sorte de dogmatismo. “Acontecendo de também isto ser apenas

interpretação – e vocês se apressarão em objetar isso, não? – bem, tanto melhor!”63

***

Ao nos depararmos com más interpretações não do texto da realidade, mas do texto

de Nietzsche é que somos mais fortemente impelidos a atestar a inadequação da

interpretação ao texto. É grande a tentação de dizer: “Isto não pode ser dito!” ou “Está

errado!”. Existem péssimas interpretações de Nietzsche e é mais comum ainda vermos

61 Deleuze, op. Cit. pág. 2 62 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 43 63 Ibid., 22.

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pessoas que o citam despudoradamente dizendo: “Nietzsche matou Deus”, “Nietzsche é um

niilista”, “A filosofia de Nietzsche instaura o homem como centro do universo”, etc. –

Diante de tanta falta de sutileza chega a ser difícil saber como agir. Seria possível

aceitarmos tais interpretações como “legítimas”, na medida em que não nos propomos a ter

a interpretação correta e até mesmo desqualificamos esta possibilidade? Como tratar com

tais interpretações sem usarmos o valor da verdade e sem, ao mesmo tempo, não permitir

que qualquer coisa possa ser dita com igual validade?

Eis aqui, para nós, um falso problema. Se tais interpretações superficiais e rasteiras

são amplamente difundidas, caberia a alguém desfazer estes mal-entendidos? – Penso,

primeiramente, que a linguagem de Nietzsche visa, entre outras coisas, suscitar más

interpretações. Com a interpretação, revela-se o tipo do intérprete. Aquele que, já de

antemão, possui uma opinião que, para si, é precisa e verdadeira e que a sustentará a

qualquer preço, pelo puro prazer da retórica ou por vaidade, não deveria permanecer com

sua opinião oblíqua? Será que se deve tentar “persuadir” aquele que se contenta com a

primeira aparência, por mais superficial que seja? – Penso que é melhor deixá-los com sua

“sabedoria”, pois assim se revelam a um bom psicólogo.

“Não queremos apenas ser compreendidos ao escrever, mas igualmente não ser compreendidos. De forma nenhuma constitui objeção a um livro o fato de uma pessoa achá-lo incompreensível: talvez isso estivesse justamente na intenção do autor – ele não queria ser compreendido por ‘uma pessoa’. Todo espírito e gosto mais nobre, quando deseja comunicar-se, escolhe também os seus ouvintes; ao escolhê-los, traça de igual modo a sua barreira contra ‘os outros’. Todas as mais sutis leis de um estilo têm aí sua procedência: elas afastam, criam distância, proíbem ‘entrada’, a compreensão, como disse – enquanto abrem os ouvidos àqueles que nos são aparentados pelo ouvido.”64

Tenho a impressão que um dos papéis mais importantes da linguagem de Nietzsche

é o de afastar leitores tomados pela pressa e pela preguiça moderna. Aos maus filólogos,

Nietzsche deixa-se mal interpretar, pois assim, estes se vão, desqualificando-o, mas

deixando-nos em paz. Não é possível opor a verdade do texto de Nietzsche a uma má

interpretação. O máximo que se pode dizer é: “Em minha perspectiva, discordo de sua

interpretação por tais e tais razões, etc.” Mas a interpretação do maior erudito em Nietzsche

não possui um maior grau de verdade do que a de um leigo. Ela pode ser mais rica, mais

64 Nietzsche, “Gaia ciência”, 381

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bem feita, mais profunda, abarcar uma maior quantidade de perspectivas, ser mais

nuançada, enfim, agradar mais a um gosto mais exigente. Porém, na tentativa de afastar a

besteira e a baixeza, deve-se tomar o forte cuidado de não se apelar para o argumento de

autoridade do discurso da verdade. As interpretações ruins, baixas ou vis não são mentiras e

não estão erradas, apenas pertencem a um baixo grau de exigência filológica e representam

em geral, uma linhagem decadente da vida. A crítica genealógica precisa apontar para sua

superficialidade e rudeza, não para sua falsidade. Sendo mesmo a avaliação genealógica

parcial e perspectiva. No fim, é a maior afinidade de uma interpretação com a afecção do

leitor-intérprete que determina a “adesão” deste a uma ou outra interpretação. Enfim, não se

trata da verdade, mas de afecções. Trata-se do estabelecimento da hierarquia dos valores

mais importantes em relação a um julgamento. Trata-se de criar o phatos da distância em

relação às más interpretações. Definitivamente, o genealogista não precisa da verdade,

apenas da saúde de seus afetos.

5) Essência da verdade?

Esta seção tem o objetivo de fazer uma breve reflexão sobre a idéia de uma possível

essência da verdade e relacioná-la com este novo tratamento epistemológico – se assim

podemos chamar – que vem sendo trabalhado. Questionamo-nos se ao aceitar que só se

pode haver um olhar perspectivo e parcial, não se excluiria do conceito de verdade aquilo

que ele tem de mais essencial e que o define? Em outras palavras, seria realmente possível

pensar a verdade de uma forma perspectiva, ou o caráter próprio da verdade não estaria,

precisamente, no fato de ser uma certeza unívoca, algo garantido e seguro acima de

qualquer parcialidade? De forma que se perderia o conceito de verdade ao se afirmar uma

verdade perspectiva.

Quando se compreende a verdade como uma necessidade cultural possibilitadora da

vida em sociedade por tornar a experiência comunicável, atenta-se para a possibilidade da

verdade ser, no fundo, uma crença, isto é, a verdade, para ser verdade, dependeria de que

um grande número cresse nela. “A apreciação de valor ‘eu creio que isto e aquilo são

assim’ enquanto ESSÊNCIA da ‘verdade’”65 A verdade é apenas uma apreciação de valor

65 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [38]

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e, como tal, não possui caráter absoluto. Sabemos que “nas apreciações de valor se

exprimem as condições de conservação e de crescimento”66, assim sendo, “a confiança na

razão e em suas categorias, na dialética, as apreciações de valor da lógica provam apenas a

utilidade destas para a vida, demonstrada pela experiência: não sua ‘verdade’.”67 Se aquilo

que se entendeu por verdade o foi aceito como tal apenas por necessidade e se Nietzsche

não pretende, com sua filosofia, apresentar uma verdade de outra ordem, então a verdade só

pode ser entendida como crença. A única forma de se manter o uso deste conceito seria

entendê-lo desta forma: uma crença muito forte aceita por um grande grupo que a

compartilha como necessidade para a vida. “Onde é necessário que algo seja tido por

verdadeiro; não que este algo seja verdadeiro.”68

E assim Nietzsche define a crença: “cada crença é um ter por verdadeiro.”69 Ele

quer chegar ao ponto máximo de sua tese sobre a verdade, a saber, “que cada crença, cada

ter-por-verdadeiro é necessariamente falso: porque um MUNDO VERDADEIRO não

existe absolutamente. Onde temos: uma ilusão de perspectiva cuja origem reside em nós

mesmos (na medida em que tivemos necessidade continuamente de um mundo estreito,

resumido, simplificado).”70 Tivemos necessidade de criar e acreditar na verdade, mas esta

vontade de verdade não passa de uma ilusão de perspectiva, isto é, trata-se de uma vontade

de engano. Nos enganamos a nós mesmos a respeito da verdade, por necessidade.

Vislumbrando o tamanho da vertigem que tal pensamento pode ocasionar:

Nietzsche chega a chamá-lo de extrema forma do niilismo. Entretanto, este niilismo não

seria um niilismo paralisador, “neste niilismo, enquanto que NEGAÇÃO de um mundo

verídico, de um ser, poderia ser uma maneira divina de pensar.”71 Voltaremos a falar de

niilismo, mas é interessante perceber que, com o colapso de categorias que foram tão

importantes, as conseqüências não precisam ser necessariamente negativas. O próprio

niilismo pode ter uma face positiva na medida em que não mais permite que a crença seja

alçada à categoria de verdade sem reservas. O que é aqui chamado de niilismo deve servir

como impulso rumo a uma nova cultura, “é, justamente, esta ausência de sentido, o

66 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [38] 67 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [38] 68 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [38] 69 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [41] 70 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [41] 71 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [41]

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niilismo, que põe em movimento sua empreitada, à procura de um ou mais sentidos novos,

de uma nova cultura, de novos filósofos.”72 Seria preciso que a filosofia e a ciência façam

igual a arte, isto é, sejam uma mentira que se sabem como mentira e não uma mentira que

se quer como verdade. Mas, seria possível permanecer conscientemente na ilusão? Esta é a

prova de força que Nietzsche lança ao futuro: “ – que seja UMA MEDIDA DE FORÇA, do

grau onde podemos ter para nós mesmos a aparência, a necessidade da mentira, sem

perecer.”73

Seria preciso modificar a essência da palavra verdade para ainda podermos usá-la.

Daí seu uso entre parênteses em várias passagens de Nietzsche. Seria preciso, então, até

mesmo repensar a idéia de essência, uma vez que esta também se refere tradicionalmente a

uma categoria imutável que define o objeto. É exatamente o que faz Deleuze quando

relaciona a essência à força. Neste caso, a essência não seria uma espécie de substrato

último e irredutível ao qual poderíamos remeter sempre o objeto e encontrá-la idêntica em

sua origem. Aqui, a essência é uma relação entre o objeto e a força que dele se apodera.

Pois, se algo possui tantos sentidos quantas forem as forças capazes de dele se apoderar,

tampouco este algo seria neutro e, portanto, apenas tomado pela força sem exercer

resistência. O objeto mesmo é força. E, portanto, o que existe, sempre, são relações de

força, de dominação e submissão. Este objeto se acha em maior ou menor afinidade com as

forças em relação. Neste sentido, encontrar a essência seria encontrar a força que possui

maior afinidade com a coisa da qual se busca a essência. “Há forças que só podem se

apoderar de alguma coisa dando-lhe um sentido restritivo e um valor negativo. Ao

contrário, chamar-se-á essência, entre todos os sentidos de uma coisa, aquele que lhe dá a

força que apresenta mais afinidade com ela.”74 Se o próprio conceito de verdade é uma

força em relação, seria preciso apoderar-se deste conceito conferindo-lhe um novo

significado que se torne ainda mais forte do que aquele conferido pela metafísica. Temos

que a essência da verdade sempre foi tal qual pensada pela filosofia moral dogmática.

Porém, caso ainda se utilize este termo, agora em uma abordagem perspectivista, seria

necessário modificar a compreensão de sua essência para que abarque o caráter parcial de

72 Blondel, op. cit. pág. 48 73 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [41] 74 Deleuze, op. cit. pág. 5

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todo conhecimento humano. A essência da verdade como crença. Este é o novo conceito de

verdade segundo Nietzsche.

6) Experiência e linguagem

Uma das maiores dificuldades que Nietzsche enfrenta em seu filosofar é encontrar a

forma ideal para a expressão de seu pensamento. Diante daquilo que Nietzsche quer da

filosofia, ele não pode se contentar apenas com as formas clássicas de expressão, “o logos

suprime aquilo que faz a singularidade do texto nietzscheano.”75 Não se trata mais de

apresentar a verdade, mas de apresentar interpretações perspectivas que dêem conta das

experiências. Experiências para as quais usualmente a filosofia não tem palavras. “A

linguagem e os preconceitos em que se baseia a linguagem nos criam diversos obstáculos

no exame dos processos e impulsos interiores”76. Mas, como seria possível fazer filosofia

sem que a razão discursiva assuma o primado ainda que das interpretações? Como fazer

falar a filosofia dos afetos? – O problema é que “estamos acostumados a não mais observar

com precisão ali onde nos faltam as palavras, pois é custoso ali pensar com precisão; no

passado concluía-se automaticamente que onde termina o reino das palavras também

termina o reino da existência.”77 A linguagem termina por se tornar um tema central na

filosofia de Nietzsche, será preciso fazê-la falar sobre uma ordem de experiências quase

que incomunicáveis.

Para tanto, será preciso que o próprio estilo de escrita seja capaz de comunicar de

uma outra forma que não a forma tradicionalmente válida. Para dar conta de tal tarefa o

pensamento de Nietzsche terá que ser, ele mesmo, uma experiência de pensamento,

versuch, que visa dar conta de comunicar algo que a preocupação moral da filosofia sempre

escondeu. “Este modo de trabalho do texto de Nietzsche é designado por ele mesmo pelo

nome de versuch (tentativa, ensaio) ou de experimento (experimentação)”78 O sentido da

palavra versuch pode ser associado ao sentido científico de uma experiência tal qual a

química realiza para testar suas hipóteses. O sentido pode ser também o de tentativa, na

75 Blondel, op. cit. 12 76 Nietzsche, “Aurora”, 115 77 Ibid, 115 78 Blondel, op. cit. 123

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medida em que se tenta algo novo ou diferente. Em um aforismo clássico onde fala dos

filósofos do futuro, filósofos ainda por vir, capazes de aceitar os perigos de uma filosofia

para além do bem e do mal, Nietzsche os chama de verscuchers, isto é, experimentadores,

tentadores, entendendo até mesmo esta denominação como uma experiência, uma

tentativa.79 Mais adiante, no mesmo livro, refere-se a este novo tipo de filósofo dizendo que

“sem dúvida serão experimentadores.”80 A filosofia trágica é inseparável da experiência de

vivê-la, incorporá-la. Fazer um experimento de pensamento significa também viver de

acordo com ele. “Experimentar envolve testar uma resposta tentando viver de acordo com

ela”.81 Experimentar o problema é vivê-lo. Viver de acordo com a resposta. Neste sentido, o

experimentalismo de Nietzsche possui não apenas um caráter epistemológico, mas também

ético. “Apenas problemas que se apresentam tão fortemente a ponto de ameaçar o modo de

vida presente do pensador importam para a filosofia.”82 Ao solapar todos os fundamentos

da moral tradicional, perdem-se, inicialmente, os parâmetros para a conduta, uma vez que

os parâmetros antigos nos quais a moral se sustentava não mais resistem. Esta dificuldade

não pode significar a negação da teoria, mas obriga a filosofia que faz tamanhas críticas ao

pensamento filosófico tradicional que se apresente como uma experiência, ainda que de

superação desta dificuldade.

É preciso criar senão uma nova linguagem, ao menos um novo estilo capaz de dar

conta de uma experiência filosófica de pensamento que não se fundamente na verdade de

suas proposições e que não busque o encerramento dos argumentos em um sistema fechado.

“A recusa à ordem das razões, a recusa do sistema, e o recurso à forma do aforismo são, em

realidade, o indício de um problema mais fundamental: o problema que se põe a Nietzsche

é o da tradução e da comunicação de uma experiência de pensamento radicalmente nova,

isto é, finalmente, o problema da linguagem.”83 É preciso criar um estilo que dê conta de

comunicar os estados dos instintos e não da lógica. É preciso comunicar um pensamento

calcado no phatos da distância em relação à cultura da modernidade, fugindo às redes

conceituais sistemáticas e puramente lógicas e atingindo alturas ainda não vislumbradas.

“Cada aforismo ou seqüência de aforismos (...) devem ser considerados como uma

79 Nietzsche, “Além do bem e do mal”,42 80 Ibid., 210 81 Kaufmann, “Nietzsche: philosopher, psychologist, antichrist”, pág. 89 82 Kaufmann, op. cit. pág. 89 83 Wotling, op. cit. pág. 17

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experiência de pensamento.”84 É preciso fazer a linguagem comunicar a vida fora dos

liames das regras representacionais. É preciso comunicar os afetos, as paixões, a grande

paixão. Sobre seu estilo Nietzsche diz: “Comunicar um estado, uma tensão interna de

pathos por meio de signos, incluindo o tempo desses signos – eis o sentido de todo estilo; e

considerando que a multiplicidade de estados interiores é em mim extraordinária, há em

mim muitas possibilidades de estilo – a mais multifária arte do estilo de que um homem já

dispôs.”85 O estilo, mais do que apenas a forma da escrita, é a própria interpretação, o estilo

é a declaração dos instintos, sua manifestação, sua expressão. O instinto se revela no estilo.

O estilo é “o corpo falando.”86

Nietzsche deixa bem claro que uma das maiores dificuldades que encontram aqueles

que o tentam ler é o fato de que suas experiências interiores, suas avaliações e suas

necessidades são diferentes, de uma outra ordem do que na maioria dos homens.87 “Não se

tem ouvido para aquilo a que não se tem acesso a partir da experiência.”88 Ora, nada mais

natural, uma vez que as interpretações e o próprio sentido são criado pelos instintos.

“Nietzsche, pensador da vida como extralógica, com seu estilo, com seu texto, procura

exceder os limites do discurso lógico para fazer com que o texto, cujo sentido é sempre

constituído em um dito, possa ser o dizer da vida, da história, do corpo, para que ele possa,

no sentido retórico e no sentido filosófico, viver.”89 Mas, sendo assim, não se correria o

risco de se perder toda capacidade de comunicação, uma vez que toda sociabilidade

humana, ainda que forjada, se sustenta sobre a linguagem?

Ora, tal medo só pode afastar aquele que acredita ter a linguagem um significado

próprio, capaz por si mesmo de comunicar algo de absoluto. No entanto, para Nietzsche a

palavra não nos dá o entendimento do que uma coisa efetivamente é. A palavra é apenas

uma representação sonora de uma excitação nervosa, ela não possui um significado próprio.

Em um texto de juventude, Nietzsche desdobra alguns argumentos que esclarecem sua

compreensão sobre a linguagem e que o vão permitir usá-la de outra forma no futuro.

Segundo este texto a linguagem não fornece um verdadeiro conhecimento sobre aquilo que

84 Kaufman, op. cit. pág. 85 85 Nietzsche, “Ecce homo”, Porque escrevo tão bons livros, 4. 86 Blondel, op, cit. pág. 160 87 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI, 34[86] 88 Id., “Ecce homo”, Porque escrevo tão bons livros, 1 89 Blondel, op. Cit. pág. 35

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representa. Dizer: “A pedra é dura”90 não nos dá conhecimento sobre a pedra. Dizer que “a

pedra é dura” é considerado verdade, uma vez que dizer que “a pedra é mole” seria

considerado mentira. Mesmo assim, tudo não passa de uma convenção gramatical e não é

conhecimento. É apenas um uso adequado das convenções aceitas. Com o tempo, as

convenções da linguagem ganham uma forma rígida de serem usadas e, a partir daí,

expressam algo que passa a ser aceito como verdade. Usando-as de outra forma, serão

consideradas como mentira. Entretanto, a excitação causada por algo duro é subjetiva,

humana e a palavra não é capaz de transmitir um real conhecimento sobre a sensação a qual

se refere. A idéia só é transmitida devido a uma experiência comum. Há uma figuração da

realidade pela linguagem. Criam-se imagens da realidade, mas não a captamos. O homem

se engana ao acreditar que as palavras oferecem algo mais do que uma representação das

coisas. Assim, as palavras designam a relação do homem com as coisas e não as “coisas em

si”. Essa “coisa em si” seria a “verdade pura e sem desdobramentos”91. Ao invés disso, as

palavras são apenas metáforas das coisas. Com o termo metáforas, Nietzsche não quer

indicar uma figura de linguagem específica, quer chamar a atenção para que todas as

palavras são, na verdade, figuras de linguagem. Assim, não existe palavra própria, todas são

impróprias, uma vez que são apenas arbitragens humanas sobre as coisas. Com as palavras,

achamos saber algo sobre as coisas, mas têm-se apenas metáforas. “O privilégio da

metáfora se deve ao fato que ela introduz, a uma só vez, uma lógica da multiplicidade e

uma lógica do deslocamento: uma lógica que faz do desvio, da referência, a condição

mesma da significação.”92

Existe um movimento duplo na criação das palavras. Primeira metáfora, uma

excitação nervosa cria uma imagem na consciência, segunda metáfora, sobre esta imagem

cria-se uma palavra, um som. Assim, a linguagem não revela nada além de uma relação

entre o homem e o mundo, sendo, pois, totalmente arbitrária e antropomórfica. A metáfora

é uma criação do homem e, portanto, não é uma verdade da natureza. A metáfora é uma

ilusão sobre aquilo que ela designa. Sendo assim, a verdade que se baseia na linguagem é,

antes, uma mentira, uma invenção humana. A esse processo de criação de metáforas

90 Nietzsche. “Ensaio teorético sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral”. 91 Ibid. 92 Wotling, op. cit. pág. 41

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Nietzsche chama de artístico. Pois, assim como a arte, as metáforas criam uma ilusão sobre

a realidade. A arte ilude imitando a vida e as metáforas iludem imitando as coisas.

Em “Genealogia da moral”, Nietzsche fala da origem da linguagem como um

direito que os homens senhores de sua própria vontade tinham de criar nomes. A linguagem

aparece como “expressão de poder dos senhores: eles dizem ‘isto é isto’, marcam cada

coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das coisas”93. Tal

situação demonstra o caráter arbitrário da linguagem, ao contrário de um caráter apropriado

das palavras às coisas. A palavra é inventada. Outro sintoma do caráter arbitrário da

linguagem é a supressão da diferença para a formação de um conceito. O conceito suprime

o que é particular em nome de uma generalidade. Uma folha nunca é igual à outra, ainda

que sejam da mesma espécie. Entretanto, são todas designadas como folhas. O princípio de

identidade unifica todos os singulares em um só. Trabalho ilógico da metáfora: identifica o

não idêntico. Ao mesmo tempo, tal abstração é necessária, pois o homem não seria capaz de

guardar, ou talvez, de criar nomes para cada coisa. Esta generalização aparece como

necessária à linguagem. Isto quer dizer, então, que por mais que se entenda o que alguém

quer dizer quando fala de uma folha, continua-se sem ter o verdadeiro conhecimento sobre

o que é uma folha. A simples palavra ou o estudo da folha por intermédio de conceitos

continua nos dando apenas uma noção superficial sobre a folha, uma interpretação da folha.

Dentro desta compreensão, a mentira é constitutiva do conhecimento e não um erro.

Se as palavras não podem comunicar um sentido último às coisas, a experiência de

pensamento de Nietzsche apresenta-se não só como legítima, mas também como

necessária. É preciso usar a linguagem para fazer passar algo outro que não as noções

puramente lógicas da filosofia. Somente assim seria possível tornar a filosofia um

pensamento capaz de dar conta das tensões constitutivas da vida. A compreensão da

linguagem como metáfora garante que a linguagem é algo naturalmente desviante daquilo

que pretende, podendo ter seu significado reorganizado, não mais pela lógica, mas pela

vida, pelos instintos. A própria lógica foi criada pela vida, mas ao se pôr como verdade,

inicia-se um processo de subjugação e apequenamento das próprias possibilidades da vida,

reduzindo esta última à primeira e desqualificando as demais perspectivas. “O texto de

Nietzsche tem a tarefa, não de designar os significados (onde o discurso, enquanto tal, teria

93 Nietzsche, “Genealogia da moral”, I, 2.

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a meta de reduzir ao máximo a exterioridade), mas de ser o significado do corpo e da vida

como movimento e trabalho de interpretação.”94

Contudo, sem a lógica seria impossível comunicar qualquer ordem de experiências

por via de palavras. O texto de Nietzsche é, também ele, racional e lógico, por mais que

tente, e consiga, porque não, expressar outra ordem de pensamentos. Como fazer a lógica

de uma linguagem metafísica dar conta de comunicar experiências de uma ordem

extralógica? Esta é a tarefa impossível a qual Nietzsche se lança. E com sucesso. “Se

Nietzsche pode representar uma tentativa verdadeiramente nova de ‘negar’ a metafísica, é

na medida em que a faz e desfaz no mesmo movimento.”95 É impossível fugir do caráter

limitante da linguagem, mas nem por isto é impossível ampliar as possibilidades da mesma,

experimentá-la para além de seus tradicionais limites. A necessidade da experiência da

linguagem reside no fato de que Nietzsche pretende expressar outra ordem de coisas do que

a que a filosofia tradicionalmente procura.

“A linguagem de Nietzsche ultrapassa a linguagem metafísica na medida em que traduz não apenas idéias, mas uma experiência, respeitando seu movimento próprio. E, para traduzir adequadamente esta experiência atípica, o texto deve ser genealógico e pôr em evidência o trabalho pulsional a partir do qual se constitui o questionamento, visto que, como o mostra a crítica da ordem das razões e do sistema, é sempre a atividade subterrânea dos instintos que é produtora de sentido”96

A dificuldade reside em usar a linguagem metafísica para desbancar a própria

metafísica. Mas isto não seria metafísica?

“É o texto mesmo de Nietzsche que assegura esta construção-desconstrução da metafísica, sendo esta um discurso sistemático de proposições encadeadas em uma univocidade culminando com a negação da vida, do corpo, do devir, e é nesta prática do texto que é preciso demarcar as regras de funcionamento. Seria, então, inocência acreditar ter pegado Nietzsche em flagrante delito por fazer metafísica: ele possui seu álibi, pois está, ao mesmo tempo, além;”97

A experiência de pensamento de Nietzsche consegue superar os entraves

lingüísticos devido a seu estilo, fazendo com que seu texto escape à pura logicidade do

94 Blondel, op. cit. pág. 43 95 Blondel, op. Cit. pág. 116 96 Wotling, op. Cit. pág. 23 97 Blondel, op. Cit. pág. 116

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discurso. “Este discurso impossível é a genealogia, chave do problema da cultura.”98

Reenviando a linguagem à sua origem, assim como fez com a verdade e fará com a moral,

Nietzsche corrói as bases que sustentam todo o sistema que ele visa problematizar. Este

processo de busca da origem histórica constitui o cerne de toda genealogia e é capaz de

desvendar toda a trama que se esconde por trás da tradicional valoração daquilo que mais se

venera. Abordar-se-á com detalhes este tema ao falarmos de genealogia. Por ora tem-se que

“opor à metafísica a genea-logia é, para Nietzsche, referir o discurso a sua origem

extradiscursiva, mas é, ao mesmo tempo, tentar dizer, no texto, pela linguagem, isto que

toda linguagem, como metafísica, mutila.”99 A genealogia é a experiência de pensamento

que Nietzsche faz para diagnosticar e superar os problemas de sua cultura sem cair na

mesma trama que está a criticar.

7) O texto da realidade

Ao criticar as hipóteses interpretativas tradicionais da filosofia por serem

dogmáticas e ilusórias, Nietzsche tem, então, o trabalho de apresentar uma outra hipótese

que seja mais aceitável do que as proposições que critica. Porém, sabemos, o texto da

realidade não é um fato. Não há texto sem interpretação. A realidade, como letra de um

texto, só ganha sentido ao ser ela mesma interpretada. Um texto comporta inúmeras

interpretações, mas nem todas as interpretações são igualmente válidas. Existem

interpretações que fogem radicalmente à letra do texto. Contudo, afirmar a existência de um

texto da realidade não significa afirmar um sentido primordialmente verdadeiro sobre o

qual se faz a interpretação. Será necessário precisar o sentido da palavra realidade em

Nietzsche, mas sem confundi-la com uma essência por trás das coisas.

O termo realidade, classicamente, se encontra em oposição ao termo aparência,

onde, segundo o pensamento metafísico, aquilo a que se tem acesso pela experiência

sensível seria uma sorte de aparências, estando a verdade, isto é, a realidade, como que

escondida por trás desta fenomenalidade aparente, sendo acessível pela razão ou pela fé,

papel este da filosofia ou da religião. Nietzsche não se cansou de criticar tal dualidade e se

98 Blondel, op. Cit. pág. 117 99 Blondel, op. Cit. pág. 117

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o fez, não foi para estabelecer a inversão dos papéis; algo como entender os fenômenos

como realidade e a hipótese metafísica como aparência. É preciso sair do sistema dualista

de pensamento, pois, em ambos os casos, se permanece preso a uma estrutura metafísica,

posto que a “crença fundamental dos metafísicos é a crença na oposição de valores.”100 Em

uma bela passagem de “Crepúsculo dos ídolos”, Nietzsche deixa claro que quando critica

aquilo que a metafísica chama de realidade (qual seja, um mundo verdadeiro por trás da

aparência fenomenal) não se tem, em contrapartida, a chamada aparência fenomenal alçada

à categoria de realidade e tampouco um rebaixamento do mundo verdadeiro da metafísica à

categoria de aparência. Uma certa confusão pode surgir na medida em que aquilo que é

chamado de aparência por um sistema é chamado de realidade no outro. Mas o que

Nietzsche mostra é que é impossível abolir um dos mundos sem abolir esta dualidade. E é

justamente esta dualidade que precisa, primeiramente, ser criticada. “Abolimos o mundo

verdadeiro: que mundo restou? O aparente, talvez?... Não! Com o mundo verdadeiro

abolimos também o aparente!”101 Ao criticar a existência de uma verdade metafísica para

além da experiência mundana não se toma partido da aparência, decretando que só a

aparência é verdade. Nietzsche mostra que sem a oposição metafísica que entende o mundo

fenomenal como aparência e o mundo das idéias ou de Deus como a verdadeira realidade,

não mais se pode sustentar sequer a idéia de dualidade de mundos. Sempre que Nietzsche

fala da realidade da aparência é em tom fortemente crítico à interpretação metafísica. Com

a passagem célebre acima, define-se a crítica radical à dualidade dos mundos. Não se pode

falar em realidade sem se falar em aparência e re-estabelecer a dualidade. Neste sentido,

Nietzsche identifica as duas categorias como forma de abolir a dualidade e escapar à

metafísica. “Não oponho a ‘aparência’ à ‘realidade’, ao contrário, considero que a

aparência é a realidade, o que resiste a toda transformação em um imaginário ‘mundo-

verdadeiro’.”102 Os parênteses atestam para o cuidado no uso de tais termos. Mais uma vez

a insuficiência da linguagem se mostra com força. É preciso usar os termos clássicos da

metafísica para criticar a própria metafísica, daí a necessidade da versuch. O termo texto da

realidade, tomado de Éric Blondel, nos parece bastante adequado para se diferenciar do

simples realidade e, ao mesmo tempo, expressar o que se quer. Em Nietzsche, o texto da

100 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 2 101 Id., “Crepúsculo dos ídolos” I, Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente fábula, 6 102 Id., “Fragments Posthumes”, XI 40 [53]

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realidade aparece apresentado ora com o nome de aparência ora com o de realidade, mas

sempre como forma de combater a dualidade. De fato, a questão da idealidade ou realidade

dos fenômenos nunca atormentou Nietzsche de forma séria.103

Passemos, então, para a interpretação de Nietzsche do texto da realidade. “A

aparência é, para mim, aquilo mesmo que atua e vive, que na zombaria de si mesmo chega

ao ponto de me fazer sentir que tudo aqui é aparência (...)”104 Nietzsche usa o conceito de

aparência para descrever a própria realidade e apontar para o fim da dualidade. Ao invés de

se concentrar nesta querela já superada, torna-se mais interessante a tentativa de perceber

como Nietzsche define, com esta passagem, o próprio texto da realidade. Nietzsche diz que

a aparência (ou realidade) é tudo aquilo que atua e vive. Sendo ainda mais impreciso, diz

que tudo aqui é aparência. Sendo assim, temos que o texto da realidade é isto tudo aqui que

vive e atua.105

A definição nos soa insuficiente. Parece não ser possível definir o texto da realidade

de uma maneira mais precisa. Porém, é justamente neste movimento de tentativa de

definição que se explicita de forma mais clara o fato de que é impossível definir sem

interpretar. Buscar uma definição de realidade, definição sobre a qual Nietzsche sustentaria

sua hipótese interpretativa, é afirmar a existência de um sentido pré-interpretativo. Aquilo

que Nietzsche entende como realidade já é sua interpretação da realidade, não podendo se

falar em realidade anterior. É a mesma querela entre a interpretação e os fatos,

anteriormente colocada. Se não existem fatos, não existe realidade. Ambos só existem

como interpretação. Ao olhar para o mesmo texto, cada filósofo clássico o interpretou de

uma forma e buscou suas razões para defender a interpretação. Contudo, o próprio texto da

realidade só pode ser apresentado como interpretação. O critério para a validade de uma

hipótese não pode ser a verdade assim como não pode ser o sentido original do texto. Ao

contrário, Nietzsche atesta o caráter insondável da aparência, fazendo com que todo

pensamento sobre o texto da realidade seja, desde sempre, uma interpretação do texto da

103 Philonenko, “Nietzsche: Le rire et le tragique” pág. 60 104 Nietzsche, “Gaia ciência”, 54 105 É importante assinalar que o termo em alemão usualmente traduzido por realidade é wirklichkeit, que pode ser traduzido também por efetividade. Tal palavra em alemão possui uma relação semântica com wirken – fazer efeito, aqui traduzido por atuação. Assim, se a vontade faz efeito (atua), ela pode ser uma boa interpretação para a efetividade (realidade). Ver nota 73 de “Além do bem e do mal” op. Cit.

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50

realidade. O papel da filologia é “fazer o ensaio de uma interpretação do texto da

realidade.”106

Nietzsche buscará, mais uma vez, fugir aos falsos problemas da metafísica e, ao

abordar o texto da realidade, não se prenderá em sua definição ou em sua veracidade.

Buscará algo que expresse o caráter intrínseco a este texto e não uma definição estática

sobre aquilo que esta em perpétuo devir. “Um nome preciso para esta realidade seria

‘vontade de potência’, assim designada a partir de sua estrutura interna e não a partir de sua

natureza proteiforme, inapreensível e fluida.”107

***

A versuch de Nietzsche termina por solapar aquilo que Klossowski chama de

princípio de realidade e princípio de identidade, beirando, assim, o delírio. Escapar a estes

princípios de fachada seria a própria definição de delírio. Mas é por ser extremamente

lúcido, isto é, é por aplicar as regras gramaticais com extremo rigor, que ela atinge tal

delírio. “Não é porque esse pensamento implica o delírio que ele seria ‘patológico’ – mas é

por ser altamente lúcido que ele toma as proporções da interpretação delirante – como

assim exige toda iniciativa experimental no mundo moderno.”108 Assim, dissolve-se a

definição de identidade e realidade. A linguagem, sobre a qual sustenta-se a identidade,

desmascara a si mesma dentro do uso de suas próprias regras, tornando impossível qualquer

identificação para além de uma simplificação e facilitação da relação do homem com o

mundo. Para Klossowski, tais princípios servem ao controle por parte daqueles que se

julgam medidores do real. As “autoridade competentes (historiadores da filosofia) mas

também, e principalmente, os psiquiatras, medidores do inconsciente, (...) controlam a

extensão mais ou menos variável do princípio de realidade comprovado pelo homem que

pensa e age;”109 e, por fim, a “ciência e seus experimentos que, ora fazem recuar, ora

aproximam, logo deslocam os limites e ‘retificam’ as demarcações entre o dentro e o

fora.”110 Contudo, estas autoridades competentes perdem seu cetro de poder a partir do

desmascaramento da verdade como crença. O princípio de realidade torna-se uma crença no

106 Wotling, op. cit. 58 107 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI, 40 [53] 108 Klossowski, “Nietzsche e o círculo vicioso”, Introdução 109 Ibid., Introdução 110 Ibid., Introdução

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princípio de realidade, justamente por se mostrar que este está fundado em uma linguagem

incapaz de dar conta da própria realidade, seja esta linguagem científica, jurídica ou

médica. A realidade, tornada interpretação, abre-se para as mais diversas perspectivas,

escapando ao controle das autoridades competentes, isto é, dos filósofos, teólogos,

psicólogos, psiquiatras, médicos e cientistas.

Para Klossowski, este movimento se dá quando Nietzsche desloca o pensamento das

regras exigidas pela linguagem institucional para ensinar a realidade e se transforma em um

movimento de humor ou de tonalidade da alma (Stimmung). A “tonalidade da alma,

convertida em pensamento”111 rompe com os princípios de realidade e identidade

instaurando um mutismo. Afinal, como falar algo depois disto? – É o obstáculo onde

tropeça, logo de início, a vontade de ensinar.

“Ao se identificar com esse obstáculo mudo do humor para poder pensá-lo, o ‘professor Nietzsche’ destrói, não apenas sua própria identidade, mas também a das instâncias falantes: conseqüentemente, ele suprime a presença delas no seu próprio discurso e, juntamente com essa presença, suprime o próprio princípio de realidade: sua declaração diz respeito a um exterior que ele reduziu ao silêncio do seu próprio humor.”112

O uso lúcido da linguagem metafísica usada pelas autoridades competentes para

justificar o real, quando usada para comunicar o estado de humor ou a tonalidade da alma,

isto é, os afetos, impõe a todos um silencio que nada mais é do que a constatação da

ausência de fundamento de todos edifícios teóricos de uma civilização, isto é, da condição

trágica da existência. “Ninguém vê que a ciência é ela mesma afásica. Bastaria que ela

pronunciasse sua ausência de fundamentos e nenhuma realidade subsistiria – daí lhe vem

um poder que a leva a calcular: é essa sua decisão que inventa a realidade. Ela calcula para

não falar, sob pena de cair no vazio.”113

111 Klossowski, “Nietzsche et le cercle vicieux”, Introduction. Pág. 15. Tradução brasileira de Hortência S. Lencastre, ed. Pazulin, pág. 19 112 Klossowski, op. Cit. pág. 15 . Trad. Bras. Pág. 19 e 20 113 Klossowski, op. Cit. pág. 16 . Trad. Bras. Pág. 20

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8) A vontade de potência como hipótese interpretativa do texto da realidade

Toda argumentação sobre a verdade visa explicitar o problema moral da filosofia.

Mas, se Nietzsche dedica toda sua tarefa filosófica a esta última questão, é porque esta se

encontra no cerne de algo ainda maior a ser pensado, a saber, a vida. É somente enquanto

diminuidora e enfraquecedora da vida que a moral se torna um problema. São as

interpretações metafísicas do texto da realidade que têm por conseqüência o

desenvolvimento ou a legitimação de uma moral negadora dos impulsos mais básicos da

vida. Nietzsche quer da vida seu mais alto grau de potência. Potência esta, constantemente

enfraquecida pelos argumentos metafísicos, filosóficos ou religiosos, que insistem em

travestir a fraqueza em moral de virtude, a partir da idéia de verdade. É preciso uma nova

interpretação do texto da realidade que autorize a vida a expressar e buscar sua máxima

potência.

É apenas a partir de “Assim falou Zaratustra” que Nietzsche passa a empregar o

termo vontade de potência. Na ocasião, fica claro que a crítica da moral necessita uma

complementação que aponte outro caminho. “Mas, para que compreendais minhas palavras

do bem e do mal, quero acrescentar, ainda, minha palavra sobre a vida e o modo de ser de

todo o vivente”.114 No mesmo discurso, Zaratustra ainda fala: “Onde encontrei vida,

encontrei vontade de potência”.115 A compreensão da vida como vontade de potência força

uma crítica radical à moral e aos valores estabelecidos. Vida, para Nietzsche, é

crescimento, é expressão imediata de potência. “Uma criatura viva quer, antes de tudo, dar

vazão a sua força – a própria vida é vontade de potência –”116 A moral nunca aceitou que

seus valores são criações da própria vontade de potência, ao contrário, sempre negou esta

via e pregou a negação da vontade como uma espécie de ascese a um outro mundo

verdadeiro por trás desta vida; é preciso revalorizar esta última.

É no aforismo número 36 de “Além do bem e do mal” que Nietzsche expõe com

maior clareza sua nova hipótese interpretativa. Diante do texto da realidade, qual seria a

melhor forma de abordá-lo? Por onde deve o filósofo, crítico das categorias sistemáticas e

racionais, começar sua interpretação? Nietzsche assim responde:

114 Nietzsche, “Assim falou Zaratustra”, Do superar a si mesmo. 115 Ibid., Do superar a si mesmo 116 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 13

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“Supondo que nada seja ‘dado’ como real, exceto nosso mundo de desejos e paixões, e que não possamos descer ou subir a nenhuma outra ‘realidade’, exceto à realidade de nossos impulsos – pois pensar é apenas a relação destes inpulsos entre si –: não é lícito fazer a tentativa e colocar a questão de se isso que é dado não bastaria para compreender, a partir do que lhe é igual, também o chamado mundo mecânico (ou ‘material’)?”117

Logo de início, Nietzsche constata que, para pensar todo o texto da realidade como

vontade de potência, seria preciso que esta hipótese desse conta de interpretar não só o

chamado mundo orgânico (o mundo das paixões, dos instintos e também das funções vitais

como nutrição, reprodução, etc.), mas também que sua estrutura bem interpretasse o que

chamamos de mundo inorgânico (ou mecânico). Será possível pensar estas duas categorias

a partir de uma mesma lógica, a partir de uma mesma hipótese? Será que aquilo que é

sentido como instinto também não poderia servir de direcionamento para esclarecer a parte

do texto da realidade a qual chamamos de inorgânica, ou até mesmo, por vezes, de

inanimada? – Nietzsche tentará pensar o mundo inorgânico como tendo a “mesma ordem

de realidade que têm nossos afetos – como uma forma mais primitiva do mundo dos

afetos”.118 Tal alargamento da teoria dos instintos não só é desejada como, caso esta seja

aceita para pensar a vida orgânica, deve se tentar estendê-la para o restante do texto da

realidade.

“Afinal, não é apenas lícito fazer esta tentativa: é algo imposto pela consciência do método. Não admitir várias espécies de causalidade enquanto não se leva ao limite extremo (– até o absurdo, diria mesmo) a tentativa de se contentar com uma só: eis uma moral do método, à qual ninguém pode se subtrair hoje; – ela se dá ‘por definição’, como diria um matemático.”119

Para Nietzsche, a abordagem do texto da realidade a partir dos desejos e das paixões

pode fornecer a chave não só para a vida humana, mas também para todo o texto da

realidade, ou ao menos para toda forma de vida. O que é decisivo é se aceitamos que o

texto da realidade pode ser descrito, definido, isto é, interpretado a partir do conceito de

vontade. “A questão é, afinal, se reconhecemos a vontade realmente como atuante, se

acreditamos na causalidade da vontade: assim ocorrendo – e no fundo a crença nisto é

117 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 36 118 Ibid., 36 119 Ibid., 36

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justamente nossa crença na causalidade mesma –, temos então que fazer a tentativa de

hipoteticamente ver a causalidade da vontade como única.”120 A palavra vontade implica na

aceitação de toda uma causalidade presente neste conceito. Aceitá-la significa dizer que se

vê no texto da realidade o movimento causal característico da vontade. Vimos que

Nietzsche relacionou o texto da realidade com isto tudo aqui que vive e atua. Assim, torna-

se importante saber se a vontade pode bem interpretar isto tudo aqui que vive a atua.121

Uma vez que vida é vontade de potência, resta saber se a vontade atua efetivamente e, em

caso afirmativo, estender a lógica de sua causalidade a todo o texto da realidade.

No último trecho citado, fica claro não só o caráter hipotético da teoria da vontade

de potência, mas, principalmente, seu caráter de crença. Para que tal hipótese seja

verdadeira, é preciso que acreditemos na causalidade da vontade, no fundo, esta crença é a

crença na causalidade mesma. Precisamos acreditar na causalidade como conceito

regulador necessário à vida, mas sabemos que é mais um conceito de fachada, criado

mitologicamente pala necessidade, não sendo, portanto, uma verdade. A hipótese

interpretativa da vontade de potência não pode ser apresentada como pertencente a uma

outra ordem de experiência da verdade, uma vez que se funda na crença na atuação e

causalidade.

A causalidade da vontade, com a qual Nietzsche quer interpretar o texto da realidade

é bem descrita em um aforismo anterior do mesmo livro. Criticando a interpretação

científica que vê leis na natureza, Nietzsche diz que

“bem poderia vir alguém que, com intenção e arte de interpretação opostas, soubesse ler na mesma natureza, tendo em vistas os mesmos fenômenos, precisamente a imposição tiranicamente impiedosa e inexorável de reivindicações de potência – um intérprete que lhes colocasse diante dos olhos o caráter não excepcional e peremptório de toda ‘vontade de potência’, em tal medida que quase toda palavra, inclusive a palavra ‘tirania’, por fim parecesse imprópria, ou uma metáfora debilitante e moderadora – demasiado humana; e que, no entanto, terminasse por afirmar sobre este mundo o mesmo que vocês [físicos] afirmam, isto é, que ele tem um curso ‘necessário’ e ‘calculável’, mas não porque nele vigoram leis, e

120 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 36 121 Já aludimos ao parentesco semântico que há em alemão entre o termo “atuar” (wirken – fazer efeito) e “realidade” (wirklichkeit). De forma que, quando Nietzsche busca falar da vontade como atuação – logo acima: “A questão é, afinal, se reconhecemos a vontade realmente como atuante” ou mais adiante: “‘Vontade’, é claro, só pode atuar sobre ‘vontade’” – está pensando em algo que seja efetivo (atue) e, assim, bem interprete a efetividade (realidade).

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sim porque faltam absolutamente as leis, e cada potência tira, a cada instante, suas últimas conseqüências.”122

A causalidade da vontade de que fala Nietzsche é ver na natureza, nos fenômenos,

no texto da realidade reivindicações de potência, definindo todo o texto a partir de uma

característica única, a saber, que cada letra do texto da realidade é, imediatamente e a cada

instante, expressão máxima da potência em suas últimas conseqüências. A potência é algo

que se expressa a cada instante em toda sua plenitude. Não é algo que está em vias de se

expressar e que pode ou não ser expresso. Potência é expressão imediata de força. Não há o

trabalho do negativo em Nietzsche. Todo o texto da realidade é expressão imediata de

potência, por isto, tira suas últimas conseqüências a cada instante. Aquilo que não existe

não possui potência para existir, pois toda potência está imediatamente expressa a cada

instante. Este é o caráter inexorável da vontade de potência. A outra característica é que

toda vontade se direciona para uma elevação de sua potência, não para a conservação. O

“‘querer-se-tornar-mais-forte’ emanando de todo centro de força é a única realidade – não

a autoconservação, mas a apropriação, querer-se-tornar-mestre, querer-se-tornar-mais,

querer-se-tornar-mais-forte.”123 Se estas duas características podem ser reconhecidas em

todo o texto da realidade, então tal hipótese pode ser considerada como filologicamente

consistente.

Se aceita-se a vontade como atuante, tem-se que avançar ainda mais um passo.

“‘Vontade’, é claro, só pode atuar sobre ‘vontade’ – e não sobre ‘matéria’ (sobre ‘nervos’,

por exemplo –): em suma, é preciso arriscar a hipótese de que em toda parte onde se

reconhecem ‘efeitos’, vontade atua sobre vontade – e de que todo acontecer mecânico, na

medida em que nele age uma força, é justamente força de vontade, efeito da vontade.”124 Se

todo efeito da vontade só pode se dar sobre outra vontade tem-se que:

“Ou consideramos todo efeito como uma ilusão (pois nos forjamos a representação de causa e efeito segundo somente o modelo de nossa vontade considerada como causa!) e, neste caso, não se pode compreender absolutamente nada: ou nos resta tentar representar todo efeito como sendo da mesma natureza que os atos da vontade; somos, então, necessariamente

122 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 22 (tradução modificada) 123 Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14 [81] 124 Id., “Além do bem e do mal”, 36 (tradução modificada)

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conduzidos a tentar a hipótese que todo evento de ordem mecânica, na medida em que uma força aí se encontra em obra, será precisamente força da vontade. –“125

Desta forma, Nietzsche termina por “definir toda força atuante, inequivocamente,

como vontade de potência.”126 Isto é, tanto o mundo orgânico quanto o inorgânico, na

medida em que se reconhece a vontade como efetiva e este efetivar-se como se dando sobre

outra vontade, são abarcados pela hipótese interpretativa da vontade de potência. “O mundo

visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o seu ‘caráter inteligível’ – seria

justamente ‘vontade de potência’, e nada mais –”127

9) O corpo como fio condutor

No aforismo 36 de “Além do bem e do mal”, amplamente abordado na seção

anterior, Nietzsche inicia sua hipótese tomando os desejos e as paixões como ponto de

partida. Tais afetos são antes sentidos pelo corpo do que pensados pela consciência.

Nietzsche criticou arduamente as categorias representacionais conscientes em nome de uma

espécie de subsolo dos instintos e impulsos que constituiria até mesmo o próprio

pensamento. Assim, não é de se estranhar que inicie sua teoria a partir dos desejos e das

paixões, isto é, em última instância, do corpo. Se o próprio pensamento é a relação desses

instintos, porque não começar por aí a busca pela interpretação do texto da realidade, ao

invés de se começar pelo pensamento e pela consciência?

“Tomar por ponto de partida o corpo e fazê-lo um fio condutor, eis o essencial. O

corpo é um fenômeno muito mais rico e que autoriza observações mais claras. A crença no

corpo é mais bem estabelecida que a crença no espírito.”128 O corpo é o ponto de partida de

onde o homem se relaciona com o resto do mundo, o ponto a partir do qual o homem sente

e pensa todo o resto, sendo a própria consciência e o pensamento uma decorrência de

atividades pulsionais provenientes do corpo. Se o corpo é mais importante que o

pensamento consciente é porque o “pensamento é, com efeito, apenas uma instância

125 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 40 [37] 126 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 36 127 Ibid., 36 (tradução modificada) 128 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 40 [15]

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derivada, descritível a partir do jogo dos instintos, das paixões e das necessidades que

constituem o corpo.”129

Uma vez que não há fundamentação última para o conhecimento, uma vez que as

categorias da razão nos apresentam apenas uma interpretação na qual se crê como verdade,

ainda que por necessidade, há que se estabelecer uma hierarquia das crenças.130 “A fé no

corpo é mais fundamental do que a fé na alma: esta última provém das aporias da

concepção não científica do corpo.”131 O corpo, como único “dado”, está no topo desta

hierarquia, pois ele é nossa afecção da vontade de potência. As paixões e os desejos são

expressões da vontade de potência no tocante ao caso particular da vida humana. O corpo

oferece uma perspectiva mais confiável do que a perspectiva do espírito e do intelecto. “Se

o corpo considera tanto nossas forças mais imediatas como as mais distantes, por sua

origem, tudo aquilo que o corpo diz – seu bem estar e seu mal estar – nos dá as melhores

informações sobre nosso destino.”132 Mesmo que se pudesse objetar os enganos aos quais o

corpo nos submeteria, através dos sentidos, o próprio espírito só pode ser pensado a partir

da existência deste corpo.

“E finalmente, se a crença no corpo não é mais do que a conclusão de um raciocínio: a supor que esta conclusão seja falsa, como afirmam os idealistas, não seria isto um ponto de interrogação para a própria credibilidade do espírito, que seria assim, a causa de conclusões falsas? A supor que o número, o espaço, o tempo e o movimento (e todas as condições anteriormente necessárias à crença na corporeidade, quaisquer sejam elas) sejam erros – a qual desconfiança isto não nos levaria a respeito do espírito que nos teria colocado tais hipóteses? É suficiente: a crença no corpo é provisoriamente ainda uma crença mais forte que a crença no espírito: e quem quiser destruí-la, destruirá também, precisamente com isto, e mais radicalmente – a crença na autoridade do espírito!”133

A crença no espírito pressupõe a crença no corpo, ora, é deste que partem as

percepções necessárias para a formulação do primado daquele. O trabalho da moral executa

uma inversão onde o pensamento tenta ensaiar um controle dos impulsos a partir da

linguagem, selecionando os impulsos permitidos e normais e os proibidos e anormais. A

linguagem inicial do corpo, isto é, a linguagem de seus impulsos, é falsificada pelo trabalho

129 Wotling, op. cit. pág. 65 130 Wotling, op. cit. pág. 64 131 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII 2 [102] 132 Klossowski, op. cit. pág. 50. Trad. Bras. Pág. 44 133 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 36 [36]

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da consciência. “O corpo quer se fazer compreender por intermédio de uma linguagem de

signos, falaciosamente decifrados pela consciência: esta constitui este código de signos que

inverte, falsifica, filtra aquilo que se exprime através do corpo. A própria consciência não é

outra coisa senão o código cifrado das mensagens transmitidas pelos impulsos: a decifração

é em si a inversão da mensagem que o indivíduo se atribui (...)”134 Inversão da hierarquia

onde o corpo perde o primado para a consciência. Fica claro a necessidade de se estabelecer

uma hierarquia das crenças e o corpo deve assumir o primado desta hierarquia, pois além de

mais imediato não se constitui em uma unidade e em um fundamento último. “Tendo o

corpo como fio condutor, uma prodigiosa diversidade se revela; é metodologicamente

permitido utilizar um fenômeno mais rico e mais fácil a estudar como fio condutor para

compreender um fenômeno mais pobre.”135 Uma vez que vida orgânica e inorgânica estão

relacionados a uma mesma constituição, o corpo apresenta uma possibilidade amplamente

mais favorável ao estudo. Se não se acredita nas paixões e nos desejos do corpo, como

admitir uma maior realidade para os demais fenômenos? Ainda que se pense o caráter dos

fenômenos como ilusório e aparente, direcionando o “conhecimento” para um plano

transcendental, tal pensamento, por ser pensamento, já é a expressão do jogo dos impulsos

entre si. Desqualificar-se-ia assim, o ponto de partida que permite a própria crença no

espírito, pois esta se dá a partir do corpo, ainda que tente, posteriormente, desqualificá-lo.

Para Nietzsche, os instintos não mentem. “O que fazemos do seu testemunho é que introduz

a mentira; por exemplo, a mentira da unidade, da substância, da duração... A ‘razão’ é a

causa de falsificarmos o testemunho dos sentidos.”136 Neste sentido, Nietzsche “não

defende uma ‘higiene’ do corpo, estabelecida pela razão. Defende os estados corporais

como dados autênticos que a consciência não pode deixar de escamotear, por ser um

deles.”137

A partir da inversão operada pela moral, inicia-se a busca por uma suposta

estabilidade do corpo entendida como repetição dos mesmos impulsos. Tal sentimento de

unidade somente no sentido gramatical pode ser chamada de “eu”. “Esse corpo mesmo,

porém, não é senão um encontro fortuito de impulsos contraditórios, temporariamente

134 Klossowski, op. cit. pág. 52 Trad. Bras. Pág. 46 135 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII 2 [91] 136 Id., “Crepúsculo dos ídolos”, A ‘razão’ na filosofia, 2 137 Klossowski, op. cit. pág. 52. Trad. Bras. Pág. 46

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reconciliados.”138 O corpo é um encontro fortuito de impulsos, onde ora um domina ora

outro, sendo o corpo o resultado deste embate a cada instante. A estabilidade do “eu” é

garantida pela linguagem. Porém, só pode ser uma estabilidade fictícia e temporária, que

não leva em conta o incessante movimento de metamorfose que define a vida como vontade

de potência.

“Se há uma forma de unidade no eu, ela não repousa certamente sobre o eu consciente e sobre o sentimento, a vontade, o pensamento: mas na inteligente capacidade de todo meu organismo de conservar, de se apropriar, de reparar, de superar, capacidade onde meu eu consciente não é mais do que um instrumento. Sentir, querer, pensar não testemunham nada mais do que fenômenos terminais onde as causas me são totalmente desconhecidas.”139

É interessante notar que até mesmo as categorias de sentir e querer são colocadas

como pontos terminais de uma série pulsional da qual nada se sabe ao certo. Nietzsche

chega a afirmar uma espécie de duplicidade na capacidade de querer, sentir e pensar onde a

consciência que temos destes seriam um resíduo do querer, sentir e pensar inconsciente140.

Ao se pensar aquilo que se sente, já se está consciente, já se está a pagar o tributo às

limitações da linguagem. Ao atribuir prioridade à consciência, busca-se a fixação daquilo

que está em constante metamorfose. Fundamentar uma suposta unidade do “eu” nas

categorias da linguagem significa desconhecer que o verdadeiro trabalho que mantém a

vida se encontra fora do alcance do entendimento humano. Somente este trabalho

subterrâneo impossível de teorizar poderia ser entendido como uma suposta unidade devido

a sua regularidade. Todavia, esta unidade se diferencia completamente de um “eu”

consciente, se definindo justamente pela capacidade que o corpo tem de inconscientemente

se conservar, crescer, etc. O corpo é a expressão de uma disputa dos impulsos por primazia.

Por mais que haja supremacia de um impulso, os demais permanecem atuando e o resultado

se altera a cada instante. “Somos apenas uma sucessão de estados descontínuos em relação

ao código dos signos cotidianos, sobre a qual a rigidez da linguagem nos engana: enquanto

dependemos desse código, podemos conceber nossa continuidade, embora vivamos de

modo descontínuo: mas esses estados descontínuos dizem respeito apenas ao nosso modo

138 Klossowski, op. cit. pág. 54. Trad. Bras. Pág. 48 139 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 34 [46} 140 Id., “Fragments Posthumes”, XI 34 [87]

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de nos servimos ou não da rigidez da linguagem: ser consciente é se servir dela.”141 A

crença no primado da consciência ignora que esta disputa se dá em um terreno do qual nada

sabemos e chega ao ponto de tomar as manifestações conscientes como únicas verdades.

Nietzsche apresenta sua hierarquia: “Trata-se de definir corretamente a unidade que

engloba o pensamento, a vontade, a sensação e todas as paixões: é manifesto que o intelecto

não é mais do que um instrumento; mas entre as mãos de quem? Das paixões é claro: e elas

formam uma pluralidade no último plano do qual não é necessário supor uma unidade: é

suficiente considerar esta pluralidade como um tipo de regência.”142 Regência ao invés de

unidade. A pluralidade e a disputa dos impulsos criam uma condição que pode ser mais

bem descrita pela idéia de regência, pois esta respeita a disputa por primazia e a

possibilidade de mudança. A idéia de unidade do “eu” aponta para uma estabilidade que

não existe.

Para que um pensamento chegue à consciência, é preciso que já se tenha

desenvolvido todo o trabalho pulsional que tem curso subterraneamente. “Por mais longe

que alguém leve seu autoconhecimento, nada pode ser mais incompleto do que sua imagem

da totalidade dos impulsos que constituem seu ser.”143 Tomar a consciência e a razão, ou

até mesmo o pensamento, como princípios capazes de nos oferecer alguma realidade em si

é tomar a representação das manifestações dos impulsos por ponto de partida e fazer da

percepção mais tardia o ponto inicial, é tomar o sintoma como causa. “Tudo que chega

enquanto unidade à consciência é já monstruosamente complicado: não temos nada além de

uma aparência de unidade. O fenômeno do corpo é um fenômeno mais rico, mais claro,

mais apreensível: para ser posto em primeiro lugar, do ponto de vista do método, sem nada

buscar esclarecer de sua significação última.”144 Não temos acesso a esta atividade

subterrânea dos instintos, tudo o que chega a ser pensado já é um estado infinitamente

posterior e elaborado do trabalho corporal. Não há como a consciência esclarecer por

completo o trabalho pulsional.

“Por dentro, ninguém sabe, nem poderíamos saber o que é que se designa em nós: pois, mesmo quando estamos sozinhos – silenciosos – falando a nós mesmos, no nosso interior, é

141 Klossovski, op. cit. pág. 69 Trad. Bras. Pág. 61 142 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 40 [38] 143 Id., “Aurora”, 119 144 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII 5 [56]

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sempre o exterior que nos fala – graças a esses signos do exterior que nos ocupam e cujo rumor cobre totalmente nossa vida pulsional: até mesmo a intimidade, até mesmo a pretensa vida interior, tudo isso ainda é o resíduo dos signos instituídos no exterior, sob pretexto de nos dar um significado, de modo ‘objetivo’, ‘imparcial’: resíduo que, provavelmente, toma a configuração do movimento pulsivo próprio de cada um, logo, assume os contornos dos nossos modos de reagir a essa invasão de signos que não inventamos. Isso é a nossa consciência”145

Ao chegar à consciência um impulso torna-se inteligível a nossas categorias. Com a

ajuda destas categorias o homem tenta dominar massas enormes de acontecimentos

exteriores e interiores. Mas um estado interior, que é o estado da relação entre os impulsos

naquele instante, ao se apresentar à consciência e ao ser pensado é, imediatamente,

traduzido pelos signos da linguagem. Esta, por melhor instrumento que seja, é ainda um

instrumento e, portanto, uma criação, uma simplificação, uma abreviação dos impulsos em

signos. “A falta fundamental consiste sempre nisto, que no lugar de compreender o estado

consciente como instrumento e singularidade da vida em seu conjunto, nós lhe colocamos

como critério, como sendo o estado de valor supremo da vida: perspectiva equivocada da

parte ad totum.”146 A linguagem fornece uma forma instrumental de se relacionar com o

mundo, talvez a única forma ao alcance do homem. Mas acreditar que tal capacidade é a

própria vida significa esquecer-se do caráter representacional dos conceitos. “A linguagem

pertence, por sua origem, à época da mais rudimentar forma de psicologia: penetramos um

âmbito de cru fetichismo, ao trazermos à consciência os pressupostos básicos da metafísica

da linguagem, isto é, da razão.”147

Existe um certo antagonismo entre as forças pulsionais e as forças conscientes, elas

lutam entre si por preponderância naquilo que chamamos indivíduo. Os impulsos tentam se

fazer ouvir, mas, para que o sejam, é preciso passar pela consciência e, neste ponto, esta o

interpreta de forma falsificadora, podendo buscar controlá-lo, caso o interprete como sendo

nocivo àquilo que ela (consciência) pressupõe ser o estado desejável. Assim, a consciência

pode tentar desviar o corpo de sua relação com seus instintos e forçar, nem sempre com

sucesso, uma interpretação moral destes.

145 Klossowski, op. cit. pág. 67. Trad. Bras. Pág. 59 146 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII 10 [137] 147 Id., “Crepúsculo dos ídolos”, A ‘razão’ na filosofia, 5

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“O corpo, na medida em que é apreendido pela consciência, deixa de ser solidário dos impulsos que o atravessam, os quais, porque o formaram apenas fortuitamente, continuam a mantê-lo de modo não menos fortuito. Acontece que o órgão que eles assim desenvolveram, na extremidade ‘superior’, toma essa manutenção fortuita, aparente, como sendo necessária à sua conservação. Sua atividade ‘cerebral’ seleciona, de agora em diante, somente as forças que o conservam, ou melhor, o assimilam a essa atividade. O corpo adota reflexos que só o mantém para essa atividade cerebral, da mesma forma que esta adota o corpo como sendo, de agora em diante, seu produto.”148

Desta forma, o trabalho da consciência sobre os impulsos, sua interpretação

falsificadora termina por negar o corpo e criar aquilo que entendemos como pessoa. Nega-

se que o corpo seja o encontro fortuito dos impulsos para atribuir-lhe uma constância que

termina por obstruir sua atividade pulsional anterior, cristalizando-o em uma forma que

será exigida como estatuto de normalidade. O “corpo como corpo não é mais sinônimo de

si mesmo: instrumento da consciência, ele se torna, mais exatamente, o homônimo da

‘pessoa’.”149 O corpo apenas consciente não é mais corpo, é um instrumento moral. A

submissão da vida à sua porção consciente termina por negar a si mesma na medida em que

nega manifestações mais naturais em detrimento das mais tardias e superficiais.

Klossowski associa os grandes sofrimentos físicos de Nietzsche a esta tentativa de

fazer o pensamento escapar à linguagem convencional para dar conta da vida. “Se o corpo

sente dores a este ponto, se o cérebro não envia mais nada, a não ser sinais de angústia, é

que se trata aqui de uma linguagem que procura se fazer às custas da razão.”150 Em busca

de uma filosofia dos afetos, a “pessoa Nietzsche” ou o sujeito terminam por se dissolver, na

medida em que são construções sócio-culturais em todos os sentidos. Todas as ações,

comportamentos e até sentimentos de uma “pessoa qualquer” são desenvolvidos a partir de

uma sociabilidade que torna suas ações previsíveis e confiáveis dentro de um padrão

específico. Vencer o sujeito ou a pessoa social e tornar-se o reflexo de seus próprios

impulsos implica em pensar, sentir e agir de uma forma diferente. Trata-se de uma nova

inteligência que estará submetida a critérios fisiológicos. Diante da inviabilidade de um

pensamento e um conhecimento que não sejam fachadas forjadas pelo contexto social, isto

é, diante da impossibilidade de fuga da moral, Nietzsche chega a um impasse: “ou ele

148 Klossowski, op. cit. pág. 53. Trad. Bras. Pág. 47 149 Id., op. cit. pág. 53. Trad. Bras. Pág. 47 150 Id., op. cit. pág. 51. Trad. Bras. Pág. 45

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apaga todo pensamento possível, ou então atinge o delírio do pensamento.”151 Tentar fugir

à instrumentalidade e superficialidade do pensamento demonstra ser uma tarefa quase

impossível, pois ou não se pode pensar por falta de categorias e devido à superficialidade

destas, ou o pensamento delira para fora de todas as regras representacionais implodindo a

si mesmo. O sofrimento físico aparece como conseqüência inevitável de um pensamento

que atinge o limite da possibilidade de pensar, isto é, atinge o liame ente a consciência e os

impulsos. O pensamento de Nietzsche vai até onde não pode mais ir sem deixar de ser

pensamento, obrigando sua consciência a se dobrar ao pensamento impulsivo que

ultrapassa os limites da razão. Daí a idéia de delírio.

Segundo Klossowski, tem-se a tendência a negligenciar tais tipos de pensamento

justamente porque eles podem implicar na dissolução de toda capacidade relacional do

indivíduo; “o preposto físico do meu próprio eu parece rejeitar meus pensamentos, que não

lhe garantem mais sua coesão: pensamentos originários de um estado estranho ou contrário

a aquele que o preposto físico exige mas que é idêntico ao meu próprio eu.”152 É

interessante notar que Klossowski usa o termo preposto físico (suppôt physique) e não

corpo, isto porque a idéia de corpo vem sendo usada como necessariamente respeitadora

dos impulsos, o corpo apenas consciente não é mais corpo, é apenas um preposto físico.

Mas, a filosofia de Nietzsche não implica em loucura. O filósofo busca de todas as

maneiras manter uma certa forma de coesão. Contudo, não uma coesão entendida pela

repetição das mesmas ações comandadas pela razão, mas uma coesão entre corpo e

pensamento que saiba dar conta do campo impulsivo. Trata-se de uma nova forma de

pensar e sentir, uma forma que ponha a vida em primeiro lugar, ao invés da metafísica, da

moral, dos valores estabelecidos ou do status quo. Nietzsche “luta, ao mesmo tempo, com

os impulsos que vão e vem e por uma coesão do pensamento com o corpo, pensamento

corporalizante: isto, seguindo o que ele chama diversas vezes de fio condutor do corpo: ele

procura então segurar esse fio de Ariadne no labirinto que os impulsos descrevem, segundo

as alternâncias dos seus estados valetudinários.”153

Já foi visto que a crença na linguagem é necessária para a sobrevivência de seres

como nós, mas não se pode tomar uma representação instrumental como critério de

151 Klossowski, op. cit. pág. 51. Trad. Bras. Pág. 45 152 Id., op. cit. pág. 54 . Trad. Bras. Pág. 49 153 Id., Op. cit. pág. 56. Trad. Bras. Pág. 50

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verdade. A impossibilidade deste critério reside na incapacidade de se acessar o movimento

do corpo ao se usar as categorias representacionais. “Trata-se aqui de um ataque direto

contra a necessidade da linguagem: pois, ainda que seja ela a usurpadora, ela não nos

permite nunca falar de outra forma do nosso fundo ininteligível, a não ser colocando

naquilo que não é pensado, nem dito, nem desejado, um sentido, um objetivo que pensamos

de acordo com a linguagem.”154 A filosofia paira, assim, nesta necessidade de dizer o

indizível, instaurando o mutismo de que fala Klossowski. O próprio pensamento silencioso

de nós com nós mesmos já está enredado neste amalgama de signos que tentam traduzir os

sentimentos. E sempre falham, ao menos no essencial. Este movimento se diferencia do

trabalho visto no mundo inorgânico, onde cada força se expressa imediatamente,

configurando um estado específico. Por mais que este movimento se dê também na vida

humana, ao ser pensado ele dá inicio ao processo de erro e mal entendimento inerente à

linguagem.

“No mundo inorgânico, não há mal entendido, a comunicação é sempre perfeita. No mundo orgânico começa o erro. ‘Coisas’, ‘substâncias’, propriedades, atividades – não se deve transferir tudo isto para o mundo inorgânico! Estes são os erros específicos graças aos quais os organismos vivem.”155

O pensamento está fundado sobre a rigidez dos signos da linguagem que tentam

traduzir o jogo pulsional, sendo apenas abreviações desses impulsos. Mas tal tradução

resulta sempre em insucesso, pois está sempre aquém daquilo que se quer comunicar. A

consciência, na medida em que só pode trabalhar com o regime dos signos, está fadada à

prisão nesta rigidez, da qual Nietzsche tenta fugir. A própria idéia de inconsciente, ao ser

uma idéia, já se encontra aprisionada em tal rigidez e, portanto, a divisão entre consciente e

inconsciente se torna difícil de ser mantida, na medida em que a consciência não pode

traduzir o jogo do inconsciente sem perdê-lo quase que por completo e, da mesma forma,

porque o inconsciente não pode ser pensado sem que se torne consciente. Usar a linguagem

para fazer o inconsciente falar é, ainda, consciência. “Portanto, os termos de consciência e

de inconsciência não respondem a nada de real: se Nietzsche os utiliza, é apenas por

convenção ‘psicológica’, mas ele deixa subentendido aquilo que não diz: ou seja, que o ato

154 Klossovski, op. cit. pág. 71 e 72 . Trad. Bras. Pág. 63 155 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII 1[28]

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de pensar corresponde a uma passividade. Que esta passividade está fundada sobre a rigidez

dos signos da linguagem cujas combinações simulam os gestos, os movimentos que

reduzem a linguagem ao silêncio.”156 A consciência aparece como um sintoma dos

impulsos, porém, por usar a linguagem, afasta-se cada vez mais dos próprios impulsos.

O que está no fundo das paixões não pode ser trocado nem expresso por nenhum

regime de signos. Sequer pode ser pensado, pois este pensamento já depende, de início, de

um regime de signos representacionais. É esta impossibilidade de designação e troca que

caracteriza a dificuldade da filosofia. Se “a crença no corpo não é mais do que a conclusão

de um raciocínio”157, como o próprio Nietzsche diz, torna-se interessante notar que a

própria proposta do corpo como fio condutor também aparece como fruto de um

pensamento e, portanto, ao se pensar o corpo já se perderia seu caráter pulsional, uma vez

que o próprio pensamento se dá pela linguagem, não havendo como se atingir aquilo a que

Nietzsche quer chegar. “É, portanto, apenas a partir dessa impossibilidade de troca que nos

protegemos com essa proteção a que chamamos de conhecimento, cultura, moral, todos

fundamentados no código dos signos cotidianos. Por baixo dessa proteção haveria esse

nada, ou esse fundo, que Nietzsche não ousa pronunciar.”158 A dificuldade consiste em

expressar em palavras a autenticidade da vida.

Aparentemente, então, não haveria sentido no filosofar, pois é impossível dar conta

da vida. Mesmo assim, se Nietzsche não abandona seu projeto é por perceber que, a partir

de um extremo domínio sobre a linguagem é possível dobrá-la e fazê-la dizer algo que

possa ao menos direcionar-nos para outro caminho diferente daquele até então seguido pela

filosofia; em poucas palavras, é possível direcionar a filosofia para longe da moral, apesar

da linguagem. A linguagem como abreviação dos movimentos impulsivos não serve apenas

à tentativa de controle dos desejos, é possível usar a mesma linguagem para liberá-los,

permiti-los. Contudo, a tarefa de Nietzsche é mais difícil do que a do pensamento

metafísico, porque o controle moral exercido por este defende a identidade do conceito com

a coisa e atesta a veracidade e adequação da linguagem, científica ou filosófica, no trabalho

de “explicação” da realidade, sendo, portanto, mais facilmente crível. Para fazer a crítica

156 Klossovski, op. cit. pág. 72 . Trad. Bras. Pág. 63. Sobre a passividade do pensamento, ver “Além do bem e do mal”, 17. “a saber, que um pensamento vem quando ‘ele’ quer, e não quando ‘eu’ quero; de modo que é um falseamento dizer: o sujeito ‘eu’ é a condição do predicado ‘penso’.” 157 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 36 [36] 158 Klossowski,op. cit. pág. 68. Trad. Bras. Pág. 60

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66

desta estrutura, Nietzsche ainda se vê forçado a usar as mesmas categorias da linguagem

metafísica, mas não só precisa fazê-las falar algo diferente, como, mais radicalmente, não

pode postular a veracidade última de suas proposições. Nietzsche, ao mesmo tempo em que

usa a linguagem para fazer o corpo falar, precisa desqualificar esta mesma linguagem por

ser apenas uma simplificação ilusória de todos os movimentos que está a descrever. Caso

não tomasse esta providência, todo seu trabalho se arruinaria em dogmatismo. Se Nietzsche

segue em seu filosofar é porque sabe que nos dar “o conhecimento dessa perspectiva

ilusória, a ‘consciência’ dessa ‘inconsciência’, significa criar, de uma só vez, condições

para uma nova liberdade, uma liberdade criadora.”159

Tomar o corpo não como fundamento, mas como ponto de partida de nossa relação

com o mundo, como ponto de vista interpretativo sobre o texto da realidade, pois o corpo é

nossa expressão da vontade de potência, isto é, da vida em nós – eis o essencial que

justifica a hipótese e o método. “O corpo é um conceito que somente possui sentido em

Nietzsche quando relacionado à teoria dos afetos. Não se trata de uma entidade material,

um substrato físico autônomo, uma res extensa, mas um termo que serve a designar, em sua

multiplicidade irredutível, o jogo conflituoso dos instintos que é o jogo da vontade de

potência. Nietzsche está, então, como antípoda de toda posição inocentemente

cientificista.”160 É a partir da experiência do corpo que Nietzsche formulará seu

pensamento sobre a vida, chegando à hipótese da vontade de potência. “É, então, a partir da

representação da vida, fornecida por uma reflexão sobre a forma de vida tal qual o homem

a experimenta, a saber, o corpo, que Nietzsche constrói sua hipótese da vontade de

potência”161

10) Vontade de potência

A adoção do termo vontade não aparece sem ressalvas na filosofia de Nietzsche.

Seria inclusive uma incongruência se entendesse que, com este termo, todos os problemas

estariam resolvidos. Muito pelo contrário, Nietzsche não só usa de grande cautela ao falar

da vontade de potência como chega em certos momentos até mesmo a negar a existência de

159 Klossovski, op. cit. pág. 81 . Trad. Bras. Pág. 70 160 Wotling, op. cit. 90 161 Wotling, op. cit. 67

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67

vontade, devido à maneira pela qual este termo havia sido pensado até então.162 As

reticências do filósofo se devem, em grande parte, às próprias limitações da linguagem às

quais já aludimos inúmeras vezes. O que não impede o filosofar, mas impõe a modéstia e a

cautela. O que descontenta Nietzsche é o fato de que os “filósofos costumam falar da

vontade como se ela fosse a coisa mais conhecida do mundo”.163 A palavra vontade é uma

palavra amplamente usada no vocabulário coloquial, mas isto não a torna de definição fácil.

“Querer me parece, antes de tudo, algo complicado, algo que somente como palavra

constitui uma unidade (...)”164. Nietzsche fez várias tentativas, registradas principalmente

nos fragmentos póstumos, de definir vontade. A primeira coisa que ressalta é a pluralidade

de elementos constituintes daquilo que usualmente se chama pelo único nome de vontade.

“Há reunido em todo ato de vontade uma pluralidade de sensações”165 ; “digamos que em

todo querer existe, primeiro, uma pluralidade de sensações (...)”166. Aquilo que se sente

como vontade já traz consigo inúmeras sensações como o estado que se tinha antes de

senti-la, o estado para o qual se passa ao senti-la, toda mudança que ocorre no corpo com a

passagem, etc. Todo o organismo se modifica a cada nova vontade.

“Portanto, assim como o sentir, aliás muitos tipos de sentir, deve ser tido como ingrediente do querer, do mesmo modo, e em segundo lugar, também o pensar: em todo ato da vontade há um pensamento que comanda; — e não se creia que é possível separar tal pensamento do ‘querer’, como se então ainda restasse vontade! Em terceiro lugar, a vontade não é apenas um complexo de sentir e pensar, mas sobretudo um afeto: aquele afeto do comando.”167

Mais do que uma simples sensação, a vontade é um complexo amalgama de estados

onde o pensar também se faz presente, sendo indissociáveis a vontade e o pensamento que a

acompanha. Já vimos que o próprio pensamento se encontra mais próximo do domínio das

paixões do que se supõe tradicionalmente. Nada estranho, pois, se junto ao querer e ao

sentir, tenha-se o pensar. A estes, Nietzsche acrescenta ainda o afeto, o afeto de comando.

Sendo a vontade este afeto de comando por excelência. Isto é, a vontade participa de um

162 Por exemplo: Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII 9 [98] 163 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 19 164 Ibid., 19. 165 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII 38 [8] 166 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 19 167 Ibid., 19.

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jogo de mando e obediência, de afetar e ser afetado, que envolve inúmeras sensações e

pensamentos.

Em outros pontos Nietzsche mantém sua busca tateante: “Trata-se de definir

corretamente a unidade que engloba o pensamento, a vontade, a sensação e todas as

paixões”168. Ou ainda, criticando a compreensão racionalista do conhecimento que vê o

mundo como atuação de uma Razão superior, diz: “nós tentamos compreender o mundo

graças à concepção inversa – como se nada agisse nem fosse real, senão pensar, sentir,

querer...”169 Por fim, “a vontade de potência, não um ser, não um devir, mas um pathos é o

fato mais elementar”170 O mundo como resultado do trabalho de um pathos. Este pathos

sendo algo próximo, no homem, do querer, sentir, pensar, isto é, dos impulsos, dos instintos

e dos afetos. Este caráter pulsional inerente à vida é a vontade de potência, é o impulso

volitivo da potência para se expressar a cada instante, tirando suas últimas conseqüências e,

assim, crescendo em força. “Não há lei: cada espécie, a cada instante, tira sua última

conseqüência. É precisamente sobre o fato de que não há mezzo termine que repousa a

racionalidade.”171 É justamente a ausência de leis no exercício da força que torna a

racionalidade um instrumento, pois ela identifica e cataloga experiências que vão se

tornando conhecidas com a repetição. Esta repetição se dá, justamente, porque não há

regras no trabalho da força a não ser o exercício imediato de toda sua potência a cada

instante. Desta forma, o mundo é visto como jogo de forças, porém, cada força atua sempre

em busca de crescimento, daí a inexorabilidade da luta. É a esta característica de luta

incessante por crescimento inerente a toda força que Nietzsche chama de vontade de

potencia, é isto que precisa ficar evidenciado ao se pensá-la.

“Este vitorioso conceito de ‘força’, necessita ainda de um complemento: é preciso atribuir-lhe uma dimensão interior que chamarei ‘vontade de potência’, quer dizer, apetite insaciável de demonstração de potência; ou do uso e do exercício de potência, sob forma de instinto criador, etc.”172

168 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII 40 [38] 169 Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14 [153] 170 Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14 [79] 171 Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14 [79] 172 Id., “Fragments Posthumes”, XI 36 [31]

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Só existe vontade atuando sobre vontade, desta forma, um “quantum de potência se

define pelo efeito que produz ou ao qual resiste. (...) É essencialmente uma vontade de

exercer a violência e de se defender da violência.”173 A vontade de potência é aqui definida

em seu efetivar-se. A vontade de potência é esta violência relacional a outra vontade. É um

jogo no qual cada vontade expressa toda sua potência a cada instante, violentando e sendo

violentada, dominando e obedecendo, afetando e sendo afetada. Assim, Nietzsche vê o

mundo como correlação de forças em combate umas com as outras, não havendo nada que

escape a esta característica. “Não restam ainda as ‘coisas’, mas quanta dinâmicos: cuja

essência reside em sua relação com todos os outros quanta, em suas ‘ações’ sobre estes – a

vontade de potência, não um ser, não um devir, mas um pathos é o fato mais elementar, de

onde só poderá resultar em um devir, um ‘agir sobre’”174 A idéia de pathos vem do afeto de

comando inerente à vontade, o que existe é a expressão das forças em relação umas com as

outras, afetando e sendo afetadas, em direção ao aumento de potência. Não se deve

diferenciar conceitualmente, de forma estrita, os conceitos de força e de vontade. Toda

força atuante é definida como vontade, a vontade de potência sendo a característica de toda

força, a qualidade que a define. “Que toda força motora é vontade de potência, que não

existe fora dela alguma força física, dinâmica ou psíquica...”175

Se vontade atua sobre vontade, então não pode haver uma só vontade. A vontade de

potência não existe como unidade, somente em sua multiplicidade. Se a vontade de

potência é a qualidade inerente às forças em relação, ela só pode ser pensada como unidade

a partir da idéia de organização. “Toda unidade só é unidade enquanto organização e

conjunto: tal como uma comunidade humana é uma unidade, e não de outra forma: sendo

então, o contrário de um anarquismo atomista; e então, uma formação de dominação, que

significa o Um, mas não é um.”176 Em seu jogo de dominação, a vontade que subjuga outra

torna-se mais forte com ela, redireciona a vontade subjugada e forma com esta uma união

não estável e sempre conflituosa, uma espécie de organização unitária. O aumento de

potência vem do agrupamento de diferentes forças numa mesma direção. “Se ponderamos,

de início, que essas aglomerações de quanta de poder ininterruptamente aumentam e

173 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV 14 [79] 174 Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14 [79] 175 Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14 [121] 176 Id., “Fragments Posthumes”, XII 2 [87]

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diminuem, então só se pode falar de unidades continuamente mutáveis, não, porém, da

unidade.”177 Estas organizações de quanta de poder estão em perpétuo movimento de

conflito onde a própria força subjugada permanece exercendo pressão e resistência de

maneira que a configuração muda com freqüência.

Se a vontade de potência aparece como “o desejo fundamental”178, ou como

conjunto de todos os desejos, na medida em que estes se especializam cada vez mais179, é

porque Nietzsche vê os desejos e paixões como formas de expressão da vontade de

potência. Daí a psicologia, ao estudar os desejos e paixões, ser definida “como morfologia e

teoria genética da vontade de potência”.180 Já foi visto que Nietzsche parte dos desejos

para formular a hipótese interpretativa da vontade de potência, esta, por sua vez, desdobra-

se como caráter intrínseco de todo o texto da realidade. Se o filósofo assim procede é

porque “a vontade de potência é a forma primitiva do afeto, que todos os outros afetos são

apenas seu desenvolvimento”181. Isto significa que a dinâmica dos afetos possui a mesma

característica anteriormente descrita para caracterizar a vontade de potência, ou seja,

caracteriza-se pela atuação conflitante de forças em busca de supremacia e fortalecimento.

É a partir do corpo como jogo de impulsos, paixões, instintos, afetos e desejos, enfim,

como pathos que Nietzsche desdobra sua teoria da vontade de potência, pois vê em todo o

texto da realidade a mesma dinâmica de luta por crescimento.182 “A vida não é um meio

para qualquer coisa: ela é expressão de forma de crescimento da potência.”183 Jogo e luta de

forças, é assim que Nietzsche interpreta a vida como expressão da vontade de potência. “A

vida estaria por definir como uma forma durável de um processo de equilibração de forças

ou de diferentes combatentes se desenvolvendo cada um por sua vez de forma desigual.”184

A luta é incessante e perpétua, contudo, mesmo quando uma força é vencida e submetida a

177 Muller-Lauter, “A doutrina da vontade de potência”, pág. 75. 178 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII 1 [59] 179 Id., “Fragments Posthumes”, XII 1 [30] 180 Id., “Além do bem e do mal”, 23 (tradução modificada) 181 Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14 [121] 182 Em uma boa nota, P. Wotling em seu livro “Nietzsche et le problème de la civilization” aponta para o fato de que tanto Instinkt, Trieb e Affekt são termos usados para se referir à vontade de potência. Em cada caso, o uso de um termo específico visa acentuar uma determinada característica desta última. ‘Instinto’ como algo construído socialmente e herdado por gerações, ‘impulso’ como uma espécie de imperativo mais imediato e ‘afeto’ caracterizando a capacidade relacional de afetar e ser afetado no jogo do comando e da obediência, daí o afeto de comando. Ver Wotling op. Cit. pág. 91, nota 2. 183 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII 9 [13] 184 Id., “Fragments Posthumes”, XI 36 [22]

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outra, sua resistência ainda se faz sentir, uma força que obedece não é aniquilada, é

dominada por uma força tirânica maior, sua potência é dobrada em outra direção. “Na

medida em que uma certa resistência existe ela mesma na obediência; a potência

propriamente não é nunca abandonada. Da mesma forma o comando implica a concessão

que a potência absoluta do adversário não seja vencida, assimilada, dissolvida. ‘Obedecer’

e ‘mandar’ são as formas do torneio.”185

O corpo é o resultado destas lutas e não a causa, este resultado se expressa em forma

de hierarquia. Em um fragmento póstumo intitulado “Da hierarquia” 186, Nietzsche faz

apontamentos para uma “psicologia da potência”, sendo o primeiro, “A aristocracia no

corpo, a multiplicidade de elementos dominantes (combate dos tecidos?” e o segundo, “A

escravidão e a divisão do trabalho: o tipo superior, unicamente possível graças a redução

constrangedora de um tipo inferior a uma só função”. Este trecho é capaz de esclarecer

vários pontos a uma só vez. O estudo sobre as manifestações da potência é a psicologia, que

deve, justamente, atentar para o caráter conflituoso inerente ao âmbito pulsional. Este

âmbito pulsional, caracterizado pelo conflito incessante de forças por maior potência e

supremacia umas sobre as outras adquire seu grau mais alto pela organização, muitas vezes

tirânica, das forças em uma direção apenas. Contudo, esta canalização de todas as forças

para uma mesma direção se dá como resultado temporário de um combate. A força tirânica

impõe às demais sua direção, escraviza-as, formando uma aristocracia. O tipo superior

decorre da escravização dos tipos inferiores à direção de sua força.

Os termos psicológicos de afeto e instinto são designações para processos

fisiológicos subterrâneos dos quais percebemos apenas uma manifestação posterior. Tais

categorias apresentam a luta e o combate entre forças antagônicas em busca de supremacia.

O local, no caso do homem, para este jogo de impulsos é o corpo. A partir desta

multiplicidade dos impulsos, Nietzsche pode pensar o homem como uma “prodigiosa

síntese de seres vivos e de intelectos”.187 A luta de Nietzsche contra o primado da razão e

da consciência em prol do corpo e dos afetos se deve ao fato de que os primeiros não são

capazes de dar contas dos movimentos subterrâneos que tornam a vida possível. Tais

movimentos, no caso do homem, se desenvolvem no próprio corpo. É à luta das forças por

185 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 36 [22] 186 Id., “Fragments Posthumes”, XII 2 [76] 187 Id., “Fragments Posthumes”, XI 37[4]

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potência que Nietzsche chama de vida, sendo a consciência um desenvolvimento ulterior

desta no homem. Não é possível captar todos os movimentos e todos os por quês que se

desenvolvem no corpo a cada instante. Mas, são justamente esses movimentos os mais

importantes, aí se travam as lutas das quais temos apenas a sensação dos resultados, ainda

que a cada instante. Desta forma, o corpo é entendido como cooperação de seres

microscópicos em direção à potência.

“E mesmo esses seres vivos microscópicos que constituem nosso corpo (ou melhor, cuja cooperação não pode ser mais bem simbolizada do que por aquilo que chamamos de ‘corpo’—) não são átomos espirituais, mas seres que crescem, lutam, aumentam ou perecem: de forma que seu número muda perpetuamente e que nossa vida, como toda vida, é, ao mesmo tempo, uma morte perpétua. Há, pois, no homem, tantas ‘consciências’ quantos seres (a cada instante de sua existência) que constituem seu corpo.”188

Este conjunto a que chamamos corpo seria uma espécie de consciência superior,

justamente por constituir-se em uma hierarquia de funções, em uma aristocracia, não

apenas de células, tecidos, órgãos, mas de seres vivos microscópicos que atuam em diversas

direções. “Guiados pelo fio condutor do corpo, como já disse, apreendemos que nossa vida

só é possível graças ao jogo combinado de numerosas inteligências de valor desigual, ou

seja, graças a uma perpétua mudança na obediência e no comando sob formas

inumeráveis”.189 O sujeito, ou aquilo que entendemos como tal, não constitui uma unidade,

é antes uma multiplicidade constituída de numerosos seres vivos microscópicos em luta

entre si. A vontade de potência se encontra como característica principal de toda força em

cada um destes organismos, por isto lutam entre si. “A luta tem caráter geral: ocorre em

todos os domínios da vida e, sobretudo envolve os vários elementos que constituem cada

um deles. Deflagrando-se entre células, tecidos ou órgãos, entre pensamentos, sentimentos

ou impulsos, implica sempre múltiplos adversários, uma pluralidade de beligerantes.”190 A

vitória temporária de alguns força os outros à submissão, o que nos dá um caráter aparente

de unidade. Essa luta incessante faz com que a cada momento uma força diferente se

188 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 37[4] 189 Id., “Fragments Posthumes”, XI 37[4] 190 Marton. “Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos”, pág. 61.

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sobressaia. “Desse ponto de vista, a luta garante a permanência da mudança: nada é senão

vir-a-ser, ela faz também com que se estabeleçam hierarquias – ”191.

O essencial é que em “todo querer a questão é simplesmente mandar e obedecer,

sobre a base, como disse, de uma estrutura social de muitas ‘almas’”.192 A palavra alma não

deve indicar uma estrutura fundante ou transcendente do organismo. Nietzsche define

anteriormente “‘alma como estrutura social dos impulsos e dos afetos’”.193 Ou seja, na

questão do querer trata-se do mando e da obediência entre muitos conjuntos de muitos

impulsos e afetos cada. Uma multiplicidade inalcançável à consciência, mas que costuma

causar erros. “Um homem que quer – comanda algo dentro de si que obedece, ou que ele

acredita que obedece.”194 Mas, tanto o mando como a obediência se dão no mesmo terreno,

no caso, o corpo. Por isto, acredita-se que o ato de vontade seja um ato consciente e livre,

sendo chamado de livre-arbítrio. Chama-se livre-arbítrio ao resultado do combate entre os

impulsos e chama-se sujeito ao suposto executor consciente da ação. Mas, a vontade não é

uma faculdade cujo sujeito, portador desta faculdade, decidiria sobre sua realização ou não.

Cada vontade tira suas últimas conseqüências a cada instante, quando a vontade é mais

forte que as resistências a ação é natural, faz parte da vontade o seu exercício em ato. “Ao

contrário do que supõe a ‘teoria psicológica’, o sujeito não é o executor da ação e sim o seu

‘efeito’”.195 Erramos quando culpamos a vontade que manifesta toda sua força agindo,

como se lhe fosse possível ter agido diferente ou não ter agido. Erramos também ao

interpretar a vontade fraca como virtuosa por se abster daquilo que ela não pode. Estes

erros ocorrem a partir da pressuposição da existência de um “sujeito livre” que “decide

conscientemente” o que fazer. “Através do sintético conceito de ‘eu’, toda uma cadeia de

conclusões erradas e, em conseqüência, de falsas valorações da vontade mesma, veio a se

agregar ao querer – de tal modo que o querente acredita, de boa fé, que o querer basta para

agir.”196 Porém, como a vontade de potência atua em cada microorganismo, os seres mais

complexos, como o homem, aparecem tomados por diversas vontades diferentes que se

encaminham em diversos sentidos diferentes. “O homem enquanto multiplicidade de

191 Marton. “Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos”, pág. 44. 192 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 19 193 Ibid., 12 194 Ibid., 19 195Marton. “Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos”, pág. 46. 196 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 22

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‘vontade de potência’: cada uma com uma multiplicidade de meios de expressão e de

formas.”197 A ação é apenas o resultado da luta entre as vontades de um corpo. O que

vemos por fim é o resultado do combate e que por isto nos aparenta uma unidade. Ao nos

vermos identificados com a ação acreditamos ser também os responsáveis por tais ações. É

muito comum o recurso retórico aos motivos que impulsionariam ações, declarando-se que

uma ação foi tomada devido a um determinado motivo. Mas esta própria luta dos motivos

traduz apenas o jogo pulsional subterrâneo do qual quase não se tem acesso e, caso ela

exista, seria “algo para nós completamente invisível e inconsciente.”198 O que se tem

sempre é o conhecimento do resultado da luta dos motivos, mas “a luta mesma se acha

oculta de mim, e igualmente a vitória, como vitória; pois venho a saber o que faço – mas

não o motivo que propriamente venceu.”199 O fato é que “continua existindo a antiqüíssima

ilusão de saber, saber com precisão em cada caso, como se produz a ação humana”.200 E,

por mais que o próprio Nietzsche se debruce com afinco sobre esta questão, concluirá que

“o que se pode saber sobre uma ação não basta jamais para fazê-la, que a ponte do

conhecimento ao ato não foi lançada nem uma vez até hoje? Os atos não são jamais aquilo

que parecem ser.”201 Por fim, tem-se que “todos os atos são essencialmente

desconhecidos.”202

Dentro desta ótica, não há sujeito por trás da ação, a cada momento o “sujeito”

muda, o sujeito é na verdade vir-a-ser, pois a cada momento altera-se a correlação de

forças. “O conceito de ‘individuo’ é falso. Estes seres [microscópicos atuantes] não existem

isoladamente: o centro de gravidade se desloca; a continua produção de células, etc., causa

uma mudança perpétua do número desses seres.”203 Uma vez definido o homem “como

uma pluralidade de forças que se situam em uma hierarquia”204 de forma que há o comando

e a obediência, mas não a aniquilação das forças em relação, passar-se-á para a questão da

força ou fraqueza da vontade, ou melhor, para a organização das vontades de forma que se

tornem cada vez mais fortes. As diretrizes básicas daquilo que chamaremos de ética em

197 Nietzsche, “Fragments Posthumes, XII 1[58] 198 Nietzsche, “Aurora”, 129 199 Ibid., 129 200 Ibid., 116 201 Ibid., 116 202 Ibid., 116 203 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 34 [123] 204 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 34 [123]

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Nietzsche podem ser inicialmente apresentadas por um belo e esclarecedor fragmento

póstumo:

“Fraqueza da vontade: esta é uma imagem que pode induzir a erro. Pois não existe vontade, e, por conseqüência, nem forte nem fraca. A multiplicidade e a desagregação dos impulsos, a falta de um sistema de coordenadas resulta em uma ‘vontade fraca’; sua coordenação sob a predominância de um só impulso resulta na ‘vontade forte’; –em um primeiro caso, é a oscilação contínua e a falta de centro de gravidade; no segundo, a precisão e a claridade da direção.”205

11) A ética trágica da vontade de potência

Segundo Nietzsche, o desejo é aquilo que há de mais forte e precioso no homem;

que este não deva ser controlado e subjugado por valores que lhe são exteriores, mas que o

homem aprenda a trabalhar e a dominar suas próprias paixões sem necessidade de

falsificações idealistas, eis o objetivo de sua filosofia. Será a este esforço de trabalho sobre

si em busca do aperfeiçoamento de um desejo forte que chamaremos de ética. O fato de que

o desejo não mais deva se curvar perante valores morais absolutos e que, portanto, o

homem possa criar seus próprios valores explica porque se trata, em nossa visão, de uma

ética trágica. Não é a busca por uma fórmula da felicidade; a ética se diferencia da moral

justamente por não propor nenhum valor em específico como sendo bom em si mesmo.

Trágico foi o termo usado por Nietzsche para descrever sua visão amoral do mundo e as

conseqüências de sua forte crítica ao primado absoluto da verdade e da religião na

determinação dos valores morais. A tragicidade se deve à dificuldade encontrada pelo

homem para ser capaz de criar e viver sob o signo de suas próprias decisões, após viver por

mais de dois milênios sob a égide de valores absolutos. A filosofia de Nietzsche,

direcionando-se para a libertação do desejo em relação à moral e aos valores absolutos, tem

como um de seus objetivos a indicação de caminhos que levem este animal outrora

selvagem, hoje doméstico, a encontrar um ponto onde não seja nem mais bárbaro, nem

mais escravo ou cordeiro de algum pastor, mas que saiba se auto-determinar e encontrar o

caminho de sua vida na grandeza de seu desejo.

205 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV 14 [219]

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A moral sempre enfraqueceu o desejo para controlá-lo. Ao se controlar os desejos,

controla-se principalmente o homem possuidor de tais desejos. O homem sem desejos é

apenas uma caricatura de homem. Em contraposição a estes, Nietzsche aponta seu tipo

forte: “Mas para os espíritos mais fortes, a exigência que comanda é que sejam certamente

homens de paixão, mas também o mestre de suas paixões, mesmo quando se trate de sua

paixão pelo conhecimento.”206 É preciso autorizar o desejo a se manifestar, pois este é

expressão de vida, de vontade de potência. Se, como já foi visto, os desejos e as paixões são

a única coisa a qual se tem acesso, sendo ponto de partida e fio condutor para toda uma

teoria do “conhecimento”, este entendimento do homem forte como homem de paixões

fortes não soa tão estranho. “O instinto fala fortemente: lá onde este instinto relaxa (...),

pode-se concluir com certeza sobre o esgotamento e a degenerescência.”207 Contra as

morais da fraqueza, Nietzsche brada: “Que se devolva aos homens a coragem para seus

impulsos naturais.”208

Um dos grandes problemas em relação à moral é que esta, ao invés de ensinar o

domínio e maestria do homem em relação aos seus desejos, busca não só enfraquecê-los

como extirpá-los de uma vez por todas ao proibi-los como moralmente indesejáveis.

Contudo, “aniquilar as paixões e os desejos apenas para evitar sua estupidez e as

desagradáveis conseqüências de sua estupidez, isso nos parece, hoje, apenas uma forma

aguda de estupidez.”209 Se os desejos podem trazer consigo conseqüências funestas, isto

não significa que devam ser negados e enfraquecidos até que sumam. Este parece a

Nietzsche um caminho de fraqueza e decadência. Ao contrário, o homem forte ou nobre

aprenderá a dominar suas paixões e a usá-las a seu favor. Assim, Nietzsche fala de um

“delírio dos moralistas que consiste em exigir, ao invés de se dominar as paixões, sua

extirpação. Sua conclusão é sempre: somente o homem emasculado é um homem

‘bom’.”210 A moral, ao negar o desejo, nega a própria vida, tudo isto devido ao fato de que

as paixões acarretam, por vezes, conseqüências desagradáveis, logo, conclui o moralista,

são más. Contrariamente às filosofias e religiões morais, Nietzsche conclui:

206 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 38[20] 207 Id., “Fragments Posthumes”, XIII 9 [30] 208 Id., “Fragments Posthumes”, XIII 9[121] 209 Id., “Crepúsculo dos ídolos”, Moral como antinatureza, 1 210 Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14[163]

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“Aprecio o homem segundo o quantum de potência e abundância de sua vontade: não segundo a falência e extinção destas: considero uma filosofia que ensina a negação da vontade enquanto uma doutrina da degradação e da calúnia...”211

No caminho inverso da moral que buscou sempre negar os desejos e as paixões do

homem, Nietzsche almeja um homem forte o suficiente para poder usar até mesmo suas

paixões mais temíveis a seu próprio favor. Sua ética se dirige a um “crescimento da força

para poder se servir das mais violentas potências naturais, os afetos...” 212

“Meu critério de medida: até onde um homem, um povo pode desacorrentar em si seus instintos mais reprováveis e os dobrar para sua saúde, sem que eles o levem a se perder: mas, ao contrário, que o leve à sua fecundidade, em atos e em obras.”213

Os afetos são as forças mais potentes da natureza, não estranha que tenham sido

mantidas sob controle; mais do que isto, eles possuem mesmo uma força destrutiva para seu

próprio portador ou para os demais, o perigo de lidar com eles é iminente. A moral

controla-os por medo, mas, com isto, elimina-se a principal força do homem. Para

Nietzsche, os grandes homens sempre foram homens de desejo forte. É a força do desejo

que impulsiona o homem a criar e produzir coisas belas e interessantes. A negação do

desejo resulta em um homem dócil e domesticável. Certamente que será inofensivo, mas

será também desinteressante. É este medo de lidar com o homem de paixão, é a busca por

segurança que conduz as filosofias morais da negação do desejo. Vimos anteriormente que

sempre se deve perguntar, diante de uma filosofia do “conhecimento” que busca “apenas” a

“verdade” de um ponto de vista “desinteressado” a que moral ela quer chegar. Sim, é o

medo diante da força do desejo e da paixão, enfim, é o medo diante das mais violentas

potencias naturais o que guiara a moral até aqui. É assim que Nietzsche diz, então, que os

“moralistas são, como cada vez que é criado um mundo de consciência, os indícios de uma

deterioração, de um empobrecimento, de uma desorganização (...) O moralista é um reflexo

da dissolução dos instintos, ainda que se creia como seu restaurador. (...) O que guia de fato

o moralista não são os instintos morais, mas os instintos de decadência”.214 A moral é

associada à decadência, pois a negação do desejo é o sinal de que não se consegue dominá- 211 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII 10[118] 212 Id., “Fragments Posthumes”, XIII 10[203] 213 Id., “Fragments Posthumes”, XII 1[5] 214 Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14[142]

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lo, não se consegue tornar-se mestre de si e de seus próprios impulsos. Neste quadro, a

negação moral dos desejos entendidos como erro ou pecado, calcada em um patamar

absoluto, serve ao controle e à manutenção da ordem, mas não produzem um homem forte.

Em um aforismo chamado moral como decadência, tem-se: “O medo dos sentidos, dos

desejos, das paixões, se vai tão longe a ponto de dissuadir, é já um sintoma de fraqueza: os

estados extremos caracterizam sempre estados anormais. O que falta aqui, ou ao menos está

seriamente comprometida, é a força de frear uma impulsão”.215 Nietzsche entende a moral

como antinatureza e diz que “atacar as paixões pela raiz significa atacar a vida pela raiz”.216

Sua proposta é inequívoca:

“Em resumo: dominar as paixões, não enfraquecê-las, nem extirpá-las! Maior será a soberania do querer, mais ela saberá conceder liberdade às paixões. A grandeza do ‘grande homem’ reside na margem de liberdade de suas ambições e mais ainda na potência ainda maior com a qual saberá tomar a seu serviço estes monstros esplendidos.”217

Não se trata de uma tarefa fácil, pois se trata da potência mais violenta da natureza;

Nietzsche chama-as acima de monstros esplendidos. A moral aparece como resultado da

fraqueza em dominar esses monstros esplendidos. Mas, a tarefa ética consiste, justamente,

em conceder liberdade às paixões, inclusive às mais violentas e destrutivas e, aí inserido

neste jogo de morte, dominá-las e usá-las para seu próprio benefício. A força de um desejo

deve ser usada para enriquecimento e embelezamento da vida. A decadência é a

incapacidade de lidar com seus monstros esplendidos e a conseqüente invenção de regras

morais com o intuito de contê-los. Todavia, já foi visto acima, (nos aforismos póstumos

1[5] e 9[139]) que na ética de Nietzsche trata-se de aprender a usar esses monstros para o

próprio benefício. Em um determinado momento Nietzsche diz: “um espírito mestre de si

sabe agir mesmo a respeito de seus cães selvagens”.218 Esta imagem dos cães selvagens

para caracterizar a violência dos impulsos está também presente em “Assim falou

Zaratustra” e aponta não só para a força que pode ter o desejo, mas também para a comum

crença na necessidade de ter que aprisioná-los. A ética de Nietzsche será a tentativa de lidar

215 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV 14[157] 216 Id., “Crepúsculo dos ídolos”, Moral como antinatureza, 1 217 Id., “Fragments Posthumes”, XIII 9[139] 218 Id., “Fragments Posthumes”, XI 38[20]

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com os cães selvagens do desejo, esses monstros esplendidos, dominá-los e usá-los em seu

próprio proveito, sem enfraquecê-los ou extirpá-los. Uma vez que “quase todas as paixões

possuem má reputação por causa daqueles que não são fortes o suficiente para usá-las a seu

favor”219, caberá aprender a dominá-las, a espiritualizá-las.

A dificuldade em dominar as paixões decorre não só de sua força inerente, mas

também de seus antagonismos. Lembremos que vontade atua sobre vontade, há um conflito

constante entre elas, a vitória de uma vontade específica é sempre temporária e instável, ou

seja, o domínio de si é antes um domínio de uma vontade sobre outra. A ética de Nietzsche

propõe o fortalecimento e o aprimoramento das paixões para que estas sejam capazes de

lidar com as demais paixões. Não é um controle da razão consciente sobre o desejo

impulsivo, mas uma luta entre paixões antagônicas onde a paixão mais forte dominará.

Portanto, será preciso saber a qual paixão fortalecer, para que esta seja capaz de tornar-se

mestra das demais. O antagonismo pulsional no interior de um mesmo corpo não é um

motivo contra este, ao contrário, será destas grandes lutas antagônicas que sairá uma grande

paixão e um grande homem.

“O essencial é que os homens verdadeiramente grandes tenham talvez também grandes virtudes, mas, justamente, ainda mais as antíteses destas. Acredito que é na presença destas contradições, e do sentimento destas contradições que nasce precisamente o grande homem, o arco dotado da mais alta tensão.”220

É neste sentido que Nietzsche diz ser preciso usar até mesmo seus próprios cães

selvagens. O controle moral destes pode servir como abrandamento das volições, mas não

serve ao engrandecimento de si, aqui proposto como ética. O engrandecimento de si

decorre da maestria exercida por uma grande paixão sobre as demais, chegando ao cúmulo

de poder conceder liberdade às vontades funestas sem que estas ponham tudo a perder. Ao

contrário, como já foi dito, é preciso saber usar até mesmo estas vontades funestas a seu

próprio favor. Por isto, um dos ingredientes principais neste caminho é a coragem. “Ter

espírito não é suficiente: é preciso ainda o assumir e isto exige muita coragem.”221 Se a

condição para um grande homem liberto de toda moral é, não só a riqueza e força das

219 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV, 14[157] 220 Id., “Fragments Posthumes”, XI, 35[18] 221 Id., “Fragments Posthumes”, XI 31[52]

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paixões, mas também a riqueza e forças das paixões antagônicas, entende-se o papel da

coragem neste processo. É mais fácil, com certeza, adequar-se aos valores estabelecidos e,

desta forma, ser aceito socialmente do que se tornar si mesmo, senhor de seus desejos e de

suas paixões. É comum negar até a si mesmo as paixões mais inconfessáveis, o medo de

não ser aceito ou a elas sucumbir não é despropositado. O caminho ético, ao contrário do

moral, não foge diante aos riscos, mas aceita-os como necessários. “Ter espírito não é

suficiente hoje em dia: é preciso ainda conquistá-lo, arrogar-se do espírito, e isto exige

muita coragem.”222 Um dos grandes problemas neste caso é que aquele que busca seguir

seu próprio caminho não encontra ninguém que possa ajudá-lo nos momentos de

dificuldade, trata-se sempre de um caminho solitário.223 Com efeito, a decisão ética de

estabelecer por si mesmo seus próprios valores e a busca pelo domínio de suas paixões, não

para proibi-las, mas para delas dispor, tem como conseqüência o destacamento em relação à

moral estabelecida e amplamente seguida por aqueles a quem Nietzsche chamará de

rebanho e a conseqüente autonomia e solidão daqueles a quem Nietzsche chamará de

senhores. Ter vontades fortes, antagônicas, selvagens, monstruosas e usá-las a seu favor

parece uma tarefa impossível. Mas é neste sentido que Nietzsche diz que “apenas o excesso

de força é prova de força”.224 Esta é a nobreza de espírito.

Em toda a ética a questão é a educação das vontades. É preciso saber se se é capaz

de querer algo e de, para tanto, superar as demais volições que se interponham à realização

de tal vontade superior. “O homem, tornado mestre de suas forças naturais, mestre de sua

selvageria e de sua fúria própria: as ambições aprendem a obedecer, a ser úteis.”225 A

grande paixão, quando maestrada e usada a favor de seu possuidor ganha em estilo, torna-se

espiritualizada. (Espiritualizada em um sentido amoral, isto é, trabalhada, aprimorada,

aperfeiçoada e tornada bela, de forma alguma transposta a um patamar espiritual separado

de um outro patamar qualquer). É possível se cultivar os impulsos como um jardineiro.226 O

grande estilo surge do sucesso do trabalho sobre uma paixão forte.

222 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI 32[9] 223 Id., “Fragments Posthumes”, XII 2[186] 224 Id., “Crepúsculo dos ídolos”, Prólogo 225 Id., “Fragments Posthumes”, XIII 11[111] 226 Id., “Aurora”, 560

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“Maestrar o caos que se é: constranger seu caos a tomar forma; a tornar-se necessidade na forma: a tornar-se lógico, simples, inequívoco, matemático, a tornar-se lei –: esta é a grande ambição.”227

Caos de vontade, assim Nietzsche define o homem capaz de vontades fortes, o

homem não-moral. Este caos de vontade, é claro, é perigoso e não implica por si só em

nada de grandioso. Mas é deste solo caótico de impulsos, de volições, de desejos

arrebatadores, somente deste solo selvagem e brutal ainda presente neste bicho hoje

chamado homem, é somente daí que algo pode ser produzido com a grandeza e a beleza

necessárias para fazer jus àquilo que se chama vida. Vida como vontade de potência,

vontade de potência como característica da vida de buscar sempre por mais potência, a vida

se enaltece diante da grande paixão, do grande desejo tornado senhor de si e dos demais

desejos. A tirania do desejo em relação aos demais desejos, em direção ao grande estilo.

Talvez aqui a ética encontre a estética. O belo como produto de uma vida plena, vida plena

como desejo pleno, beleza do desejo como beleza da vida.

Uma das grandes dificuldades deste processo é o risco de sucumbir às paixões, é o

risco da anarquia interior, do desregramento e da falta de direção. Conceder liberdade aos

instintos não significa realizar quaisquer desejos a qualquer momento, não significa ceder a

qualquer mínima volição simplesmente porque a moral não mais os rege. Ao contrário, é

importante “não confundir a libertinagem, o princípio do ‘deixar acontecer’” com a

vontade de potência (que é o princípio contrário)”.228 Nada mais antagônico à ética da

vontade de potência do que o descontrole sobre os impulsos. Nietzsche chama de

metamorfose do niilismo à libertinagem do espírito e à vagabundagem.229 A liberdade

concedida aos impulsos pode acarretar a perda de si mesmo e a incapacidade de

fortalecimento de uma grande vontade, uma vez que os cães selvagens podem vencer a luta

e se interpor ao domínio de si, mas isto não implica na necessidade de um retorno à moral.

“Os meios radicais são indispensáveis somente para os degenerados; a fraqueza da vontade

ou, mais exatamente, a incapacidade de não reagir a um estímulo, é ela mesma apenas outra

forma de degenerescência.”230. A anarquia dos instintos, a dissociação e falta de

organização entre as vontades, a carência de uma força mestra e comandante, isto tudo é 227 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV 14[61] 228 Id., “Fragments Posthumes”, XIV 15[67] 229 Id., “Fragments Posthumes”, XIV 13[1] 230 Id., “Crepúsculo dos ídolos”, Moral como antinatureza, 2

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sintoma de decadência, ou degenerescência, como Nietzsche gosta de falar, apontando para

o caráter fisiológico de sua psicologia. A necessidade da moral é um sintoma da

incapacidade de domínio de si, sendo assim, “não podemos mais, hoje em dia, conceber a

degenerescência moral independentemente da degenerescência fisiológica”231. Mais adiante

Nietzsche define degenerescência fisiológica como algumas incapacidades, como, por

exemplo: “a fraqueza da vontade, a insegurança e mesmo a pluralidade de ‘personalidades’,

a impotência a suspender uma reação à primeira solicitação que se apresenta e a se

‘dominar’, a falta de liberdade diante da menor sugestão de uma vontade estrangeira.”232 O

que Nietzsche chama de degenerescência e doença é a incapacidade de não reagir a um

estímulo volitivo. “Toda não-espiritualidade, toda vulgaridade se baseia na incapacidade de

resistir a um estímulo – tem-se que reagir, segue-se todo impulso. Em muitos casos, esse

‘ter que’ já é enfermidade, declínio, sintoma de esgotamento – quase tudo o que a crueza

não filosófica designa como ‘vício’ é apenas essa incapacidade fisiológica de não

reagir.”233 Entre saúde e doença não há uma diferença de natureza, apenas de grau. A

incapacidade de não reagir, a facilidade com que se cede a qualquer estímulo e se desvia,

assim, de seu caminho anterior, esta anarquia dos instintos é atribuída ao esgotamento da

força. “Em realidade, não há entre estes dois modos de existência [saúde e doença] mais do

que diferenças de grau: o exagero, a desproporção, a falta de harmonia dos fenômenos

normais constitui o estado de doença.”234 Em contrapartida, a organização hierárquica das

vontades em direção a uma grande meta é considerado sinal de saúde. O aforismo 14[219]

usado para encerrar a última seção resume muito bem esta distinção. É a esta capacidade de

trabalhar as próprias paixões, sem negar nenhuma delas, mas, ao contrário, usando-se delas

para uma meta própria, trabalho este a ser desempenhado pelo próprio jogo das paixões

entre si, é esta capacidade de educar suas paixões, fortalecer aquelas que se quer ver vencer

as que atrapalham seus objetivos, caminho este desenvolvido pelo próprio querer das

paixões, isto é, pelo jogo de mando e obediência, fazer com que a paixão que se quer ver

forte seja realmente fortalecida a ponto de vencer as demais, é a este processo que

chamamos ética.

231 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV 14[113] 232 Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14[113] 233 Id., “Crepúsculo dos ídolos”, O que falta aos alemães, 6 234 Id., “Fragments Posthumes”, XIV 14[65]

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Em uma passagem de “Ecce Homo” Nietzsche aponta com clareza a relação entre a

ética e a vontade entendendo-a como o caminho para se tornar quem se é. Não se trata de

criar uma meta consciente ou de seguir preceitos morais diferentes de sua própria vontade.

“‘Querer’ algo, ‘empenhar-se’ por algo, ter em vista um ‘fim’, um ‘desejo’ – nada disto

conheço por experiência própria.”235 É o saber ouvir a vontade, que é subterrânea e

espontânea, que fornecerá as trilhas deste caminho ético. A tentativa de comandar as

vontades é, em geral, uma negação racional das vontades. O caminho para a ética de

Nietzsche não é consciente, “é preciso manter toda a superfície da consciência –

consciência é superfície – limpa de qualquer dos grandes imperativos.”236 O caminho para

si próprio é traçado pelas vontades fortes e benéficas que tomam a preponderância em casos

de vida ascendente. “Entretanto, segue crescendo na profundeza a ‘idéia’ organizadora, a

destinada a dominar – ela começa a dar ordens, lentamente conduz de volta dos desvios e

vias secundárias, prepara qualidades e capacidades isoladas que um dia se mostrarão

indispensáveis ao todo.”237 Esta “idéia” é a vontade, não a razão, caso contrário, a

consciência faria parte do processo e a palavra não estaria entre aspas. “Que alguém se

torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é.”238 É no livre jogo

das vontades entre si que surgem as vontades mestras. Contudo, é preciso ser alguém de

vontades fortes para que a mais forte seja capaz de fazer um grande trabalho. A vontade

organiza a multiplicidade sem exterminá-la e usa, como vimos, até mesmo seus cães

selvagens a seu favor, mas sem sucumbir, apenas dominando o caos. É preciso ter uma

multiplicidade caótica de vontades fortes, mas este é apenas o solo inicial da ética. Seu

desenvolvimento culmina com o estabelecimento de uma forte hierarquia a partir da

vontade mais forte. “Hierarquia das faculdades; distância; a arte de separar sem

incompatibilizar; nada misturar, nada ‘conciliar’; uma imensa multiplicidade que, no

entanto é o contrário do caos.”239 O tornar-se quem se é o trabalho de uma vontade pelo

domínio em busca de sua máxima espiritualização. Mas, é um trabalho da vontade.

A liberdade frente à moral abre espaço para a vontade, para a vontade própria. A

vontade já foi apresentada como uma proposta interpretativa mais qualificada do que a

235 Nietzsche, “Ecce homo”, Porque sou tão inteligente, 9 236 Ibid., 9 237 Ibid., 9 238 Ibid., 9 239 Ibid., 9

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verdade moral para o texto da realidade, isto porque a natureza é amoral, a vontade de

potência é amoral, a vida é amoral. Assim, Nietzsche chama a moral de antinatureza e diz

que “faremos bem em estudar nosso organismo em sua imoralidade.”240 Este estudo, que

nos aparece como o estudo da vontade de potência, mostra não só que “as funções animais

são com efeito dez milhões de vezes mais importantes do que todos os bons estados e

cumes da consciência”241, pois são mais importantes no processo de “intensificação da

vida”, mas mostra também que este mesmo processo de intensificação da vida, este

direcionamento sempre por mais potência não só é uma característica natural da vida, como

é plenamente amoral. A moral é uma invenção humana que, a partir de juízos criados

historicamente, se propõe a julgar a vida. Contudo, não há como culpabilizar a vida por ela

ser o que é. “É preciso estender então completamente os dedos e tentar alcançar a apreensão

dessa finesse admirável, que consiste no fato de o valor da vida não poder ser avaliado.”242

Não é possível a uma vontade não se expressar em toda sua potência a cada instante, o que

a moral tenta fazer é, justamente, esta separação entre a vontade e aquilo que ela pode, a

vontade passa a negar a si mesma a partir de estados morais da consciência. “O indivíduo,

visto pela frente ou por detrás, é um pedaço de destino, uma lei a mais, uma necessidade a

mais para tudo o que advém e será.”243 Se vida é vontade de potência, se o valor da vida

não pode ser apreendido pelo vivente e se o desejo é uma forma de expressão da vontade de

potência, então, não há como moralizar a vida sem destituí-la de sua potência própria. Ao

contrário, é preciso “ousar ser tão imoral quanto a natureza”244

***

1. Estudar Nietzsche traz consigo o reconhecimento de seus próprios limites. Quando nos

deparamos com os limites de nossa dureza, de nossa coragem, de nossa força, enfim: a

dificuldade de aceitar a impotência própria, o ponto a partir de onde não mais se consegue

avançar, por falta de força, coragem ou dureza, como já disse. Não ser tão duro quanto

possível nas coisas que se leva a sério. Não ser tão corajoso diante de um desafio, não ser

240 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII 11[83] 241 Id., “Fragments Posthumes”, XIII 11[83] 242 Id., “Crepúsculo dos ídolos”, O problema de Sócrates, 2 243 Id., “Crepúsculo dos ídolos”, O problema de Sócrates, 6 244 Id., “Fragments Posthumes”, XIII 10[53]

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tão guerreiro. A hesitação, o sobressalto, a impotência, o ponto onde cedemos; somos

constantemente colocados diante de nosso limite. Será possível encarar este momento... e

recuar?

2. É possível que não se chegue a estes momentos. Basta não seguir a si, basta buscar a paz

nos valores estabelecidos, a paz do rebanho. Dar espaço à vontade, ao caos, às paixões

implica o aprender a lidar com tais forças. Quem não segue o instinto não encontra seus

limites. Quem não vive o instinto, não conhece suas afecções, suas preferências, não

conhece aquilo que alimenta seu próprio espírito. Este, não sofre a impotência. Ama-a.

Deseja-a como o ideal mais nobre da sociedade, pois assim, sente-se seguro e confortável.

3. Quem segue a fome de seu desejo corre o risco de ser devorado por ele. Mas, isto não é

um motivo para não seguí-lo, e sim para espiritualizá-lo. O ponto onde negamos nosso

desejo é o ponto da fraqueza e da falta de coragem. Se o homem é um caos de vontade,

negar a vontade é negar a si. Afirmar a vontade é elevá-la à sua máxima potência,

espiritualizá-la. É neste caminho que também encontramos nosso outro limite, o de nossa

grandeza.

4. Quando se solta um cão selvagem interior ele nos ataca. Somos, no primeiro momento,

tomados pela vontade de seguir este desejo, pois, há muito, vinha pedindo satisfação.

Porém, os porões da moral, até então, o mantinham enjaulado. A moral pode ser uma forma

segura de se prender um cão selvagem, mas a segurança não é o objetivo de uma ética

trágica.

5. No momento em que um cão selvagem é solto, ele se depara com as demais vontades

atuantes e dominantes. Em geral, esta vontade selvagem é antagônica às vontades atuais.

Caso contrário, não haveria necessidade de tê-la mantida aprisionada. A luta, então, ocorre.

Por vezes o cão vence, por vezes, as vontades anteriores retomam-lhe o comando. A

questão é saber qual a força de cada uma dessas vontades.

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6. Se um cão selvagem dominar por completo a vida, é porque se tratava de um desejo

realmente forte e porque a vontade comandante anterior não era tão forte assim. De

qualquer forma, há um caminho de grandeza mesmo para aqueles que possuem um cão

selvagem como motor.

7. A purificação de que fala Zaratustra é a vitória da grande paixão sem a necessidade de se

prender o cão selvagem nas jaulas de uma moral.

8. Quando se alimentam vontades dentro de si e se busca que estas se tornem grandes

paixões e virtudes, a liberdade aos cães selvagens não deve impedir tais vontades em seu

caminho, pois estas deverão ser fortes o suficiente para vencer qualquer outro desejo. O

caminho da vontade em direção à grande paixão passa pelo enfrentamento de todos os cães

interiores. Somente assim ela devém mestre.

12) Quem comanda?

Tradicionalmente, os códigos morais têm como principal característica a reflexão

crítica do homem sobre suas próprias intenções e ações.245 Esta reflexão busca a adequação

de suas atitudes a determinados valores específicos. Neste sentido, há uma tentativa de

fazer com que as ações obedeçam a regras morais e não sejam guiadas por impulso. Assim,

a disciplina e o autocontrole se encontram invariavelmente presentes nos códigos morais

desde os mais primitivos.246 A partir desta reflexão, Kaufmann conclui que a “auto-

superação pode ser considerada a essência comum de todos os códigos morais, de ‘Totem e

tabu’ à ética de Buda”247, esclarecendo ainda que esta definição da moralidade não

determina o que é particularmente considerado como bom ou mal em cada código, apenas

apresenta uma característica genérica da moralidade. “Moralidade consiste em não ceder

aos impulsos: códigos morais são sistemas de injunções contra a submissão a vários

245 Kaufmann, “Nietzsche: philosopher, psychologist, antichrist” pág. 214 246 Ibid., pág. 213 247 Ibid., pág. 213

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impulsos, e mandamentos morais positivos sempre impõem a vitória sobre os instintos

animais.”248

Fica explícita a luta entre moral e impulsos, onde o código moral visa sempre o

controle destes. Classicamente, a razão teria este papel de controle dos impulsos249, de

forma que, por via da reflexão racional, o homem chegaria ao conhecimento dos valores

bons e os seguiria, auto-superando sua condição exclusivamente animal e se aproximando

da verdade. Contudo, estas visões apresentam um dualismo entre razão e impulsos. Ora,

vimos que, em Nietzsche, este dualismo não existe, o que há são expressões da vontade de

potência, sendo os impulsos uma manifestação desta, assim como a razão, tendo sido esta

última algo que o homem desenvolveu ao longo de sua história como instrumento de

fortalecimento e apropriação do existente. Sendo a razão também uma expressão da

vontade de potência (assim como os impulsos) e sendo que vontade somente atua sobre

vontade, então é possível que a razão participe do jogo de dominação na luta de forças por

predominância. Contudo, cabe perguntar, e esta será nossa discordância com Kaufmannn,

qual o papel da razão no processo de maestria de si e autodomínio.

Temos que, na ética de Nietzsche, não se trata de ceder a qualquer impulso sem

maiores reflexões, ao contrário, esta prática se apresenta como antagônica de sua proposta.

Da mesma forma, não se trata de um controle dos impulsos em nome de valores

estabelecidos. Ao contrário, é o saber ouvir e respeitar os impulsos que fornece indicações

sobre as vontades comandantes em cada caso particular a despeito da moral vigente. O

processo de fortalecimento ou enfraquecimento de uma vontade qualquer é resultante da

correlação de forças entre as próprias formas de expressão da vontade de potência, onde,

em cada vontade atuam o querer, o sentir e o pensar, assim como os afetos de comando. A

dualidade razão versus impulso deixa de existir, pois ambas aparecem como manifestação

da vontade de potência.

Para Nietzsche, o que é importante no trabalho sobre os impulsos selvagens é a

busca pela espiritualização dos mesmos, pelo seu esmeramento. Processo que Kaufmann

chama de sublimação, porém, sublimação com o significado derivado do latim sublimare,

que quer dizer elevar. Portanto, com uma conotação diferente daquela empregada

248 Kaufmann, op. cit. pág. 214 249 Ibid. pág. 214

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posteriormente pela psicanálise.250 Embora não seja o termo mais usado por Nietzsche,

sublimação é um bom sinônimo para espiritualização. “Todas as paixões têm um período

em que são meramente funestas, em que levam para baixo suas vítimas com o peso da

estupidez – e um período posterior, bem posterior, em que se casam com o espírito, se

‘espiritualizam’.”251 Trata-se da transformação de uma manifestação bruta e tosca em uma

manifestação trabalhada e com estilo. Em todos os casos, não se trata de uma negação do

impulso, mas seu aperfeiçoamento. “Este contraste entre abnegação, repudio e extirpação

das paixões por um lado, e seu controle e sublimação por outro, é um dos pontos mais

importantes em toda a filosofia de Nietzsche.”252 Ou seja, Kaufmann entende que não é

preciso negar os impulsos para dominá-los, ele aceita a necessidade de se abrir espaço para

as paixões e impulsos como forma de fortalecimento da vida. Contudo, Kaufmann atribuirá

um papel excessivo à razão neste processo.

Diante da vontade, Kaufmann diz que Nietzsche atribui um status único à razão.253

“Racionalidade (...) dá ao homem a maestria sobre si mesmo; e, na medida em que a

vontade de potência é essencialmente o ‘instinto de liberdade’ (GM, II, 18), este só poderá

encontrar satisfação através da racionalidade.”254 Para Kaufmann, a racionalidade se torna o

elemento capaz de dominar os impulsos e tornar o homem mestre de si mesmo. Para ele, é a

razão que organiza o caos, concedendo ao homem o máximo de potência em sua vida.

Contudo, o fato de o homem que bem usa a razão possuir um forte instrumento à sua

disposição não implica na afirmação que a “razão é a ‘maior’ manifestação da vontade de

potência, no sentido preciso de que através da racionalidade ela pode realizar seu objetivo

de forma plena.”255 Por mais que Nietzsche não seja um agressor da razão, como poderia

parecer a alguns, nenhuma passagem de seus textos pode justificar uma afirmativa tão

categórica sobre um tema tão difícil de elucidar. O fato é que Kaufmann confunde espírito

(Geist) com racionalidade identificando espiritualização como um processo onde a razão

seria a principal força, concluindo que “intelecto, razão e espírito aparentam ser, para ele

[Nietzsche], manifestações do mesmo impulso básico ao qual nossas paixões seriam

250 Kaufmann, op. cit. 218 - 219. Ver também, nota 101 de além do bem e do mal 251 Nietzsche, “Crepúsculo dos ídolos”, Moral como antinatureza, 1 252 Kaufmann, op. cit. pág. 223 253 Ibid., pág. 229 254 Ibid., pág. 230 255 Ibid., pág. 230

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redutíveis”.256 Contudo, o “conceito de espírito não se refere à razão tal qual a pensa o

dualismo metafísico”257, e o fato de Nietzsche valorizar o pensamento frio e meticuloso

como talvez a maior aquisição do homem (“Gaia ciência”, 2 ou “Além do bem e do mal”,

31) ainda não significa que o controle dos impulsos se dê pela ação da razão.

Para Kaufmann, a razão deve estar tão entranhada no homem superior a ponto de se

tornar sua segunda natureza, chegando ao limite de agir instintivamente pela razão. “O

verdadeiro homem racional submete todas opiniões ao escrutínio da razão; ela se torna sua

segunda natureza.”258 Com efeito, Nietzsche demonstra que é preciso pensar muito sobre os

valores que se segue e sobre a própria idéia de juízo. Sua análise sobre a moral e a verdade

é fortemente racional e nos convence devido à força de seus argumentos à luz da razão.

Mas, o fato de Nietzsche pensar de forma racional não significa que seja a razão aquela

responsável pelo controle dos impulsos. Se “a maior parte do pensamento deve ser incluída

entre as atividades instintivas, até mesmo o pensamento filosófico”259, então, temos que o

próprio pensamento não traz consigo o tanto de razão que Kaufmann acredita. O

pensamento participa do jogo de mando e obediência e neste pensamento há também razão,

mas há também muito de instinto e não vemos nenhuma indicação que nos faça pensar a

razão como o instinto mais importante. Ao contrário, entendemos que “a maestria da

potência consiste, então, em uma combinatória de instintos.”260

“mas querer combater a veemência de um impulso não está em nosso poder, nem a escolha do método, e tampouco o sucesso ou fracasso desse método. Em todo esse processo, claramente, nosso intelecto é antes o instrumento cego de um outro impulso, rival daquele que nos atormenta com sua impetuosidade (...) Enquanto ‘nós’ acreditamos nos queixar da impetuosidade de um impulso, é, no fundo, um impulso que se queixa de outro; isto é: a percepção do sofrimento com tal impetuosidade pressupõe que haja um outro impulso tão ou mais impetuosos, e que seja iminente uma luta, na qual nosso intelecto precisa tomar partido.”261

O intelecto aparece sempre como um instrumento a serviço dos instintos, não como

o instinto fundamental. O que esta passagem mostra é que, mesmo que a razão tivesse este

256 Kaufmann, op. cit. pág. 229 257 Wotling, op. cit. pág 207 258 Kaufmann, op. cit. pág. 234 259 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 3 260 Wotling, op. cit. pág. 207 261 Nietzsche, “Aurora”, 109

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poder todo atribuído por Kaufmann, ela ainda assim estaria agindo em função de instintos e

impulsos subterrâneos. A atuação da razão, qualquer que seja sua dimensão, já é uma

atuação posta em movimento por instintos. O intelecto toma partido, mas a própria direção

de sua ação é dada a partir do instinto do qual ela é função. “Não há causas mentais

absolutamente!”262

A interpretação de Kaufmann mantém a dualidade razão versus impulso, por mais

que os aceite como manifestações da vontade de potência. “Ambos, impulso (paixão) e

razão (espírito) são manifestações da vontade de potência; e quando a razão supera os

impulsos não podemos falar do casamento de dois princípios diversos, mas da auto-

superação da vontade de potência.”263 Por fim, por mais que bem interprete a filosofia de

Nietzsche em muitos pontos, Kaufmann não consegue sair do dualismo metafísico clássico.

Isto porque ainda precisa de uma espécie de porto seguro em relação ao impulso. Atribuir

prioridade aos impulsos implica em perder este fiador último da boa sociabilidade e

Kaufmann prefere não correr o risco. Lembremos que uma das coisas em relação às quais

Nietzsche se opôs com mais veemência foi a equação socrática em que: razão = virtude =

felicidade.264

Avaliando o processo da má consciência, Kaufmann conclui que: “Para se tornar

poderoso, para ganhar liberdade, para dominar seus impulsos e aperfeiçoar a si, o homem

deve antes desenvolver o sentimento de que os impulsos são maus.”265 Neste ponto haveria

uma cisão no homem que, por um lado quer realizar seus impulsos, mas, por outro, não

pode em nome da sociedade. Contudo, Kaufmann se esquece de que o processo da má

consciência (do qual falaremos no próximo capítulo) inicia-se pela imposição tirana de

valores por parte de um grupo guerreiro e bárbaro sobre outro menos forte e que, neste

processo, não há a preocupação em fazer prevalecer os valores pacíficos de uma sociedade

qualquer, ao contrário, daí conclui-se que qualquer lei e qualquer valor são arbitrários e

impostos pela violência. Se a má consciência é necessária nos primórdios da sociedade, isto

se deve pela imposição de regras contratuais e sociais em um período pré-histórico e não

por uma decisão deliberada dos cidadãos.

262 Nietzsche, “Crepúsculo dos ídolos”, Os quarto grandes erros, 3 263 Kaufmann, op. cit. pág. 235 264 Nietzsche, “Crepúsculo dos ídolos”, O problema de Sócrates, 4. 265 Kaufmann, op. cit. pág. 253

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Para Kaufmann, é preciso negar os instintos e depois se tornar racional por instinto.

Nada mais contrário à ética de Nietzsche. “Auto-superação não estará completa com o

homem dizendo: quero sublimar meus impulsos. Primeiro ele precisa marcar a fogo um

Não em sua própria alma; ele precisa marcar seus próprios impulsos com desprezo e se

tornar consciente das contradições do bem e do mal.”266 Está claro que Kaufmann nega, por

medo, a prioridade dos impulsos na filosofia de Nietzsche. Por mais que o processo de

nascimento da má consciência tenha sido necessário nos primórdios da sociabilidade, a

espiritualização da qual fala Nietzsche não se assemelha ao recalcamento dos instintos

animalescos daquele período. Tampouco a razão foi o fio condutor deste processo. Ao

contrário, a própria razão começa a nascer a partir do processo de violentação pré-histórica

do bicho-homem sobre si mesmo em busca da criação de uma memória.267 Processo do

qual a má consciência é uma conseqüência. O surgimento da má consciência não pode,

então, ser relacionado a um controle racional dos impulsos, pois está se falando de um

animal ainda pré-histórico, o bicho-homem, não do homem. A razão é um dos elementos

construídos pela mudança, mas esta mudança se sustenta sobre o uso excessivo da

violência, não sobre a razão. Justamente aí se encontra o erro de Kaufmann neste ponto. O

uso da violência criador da má consciência se deu, com efeito, pela impossibilidade do uso

de outras formas de controle, somente assim começa a existir a memória, a consciência e a

própria razão. Além disto, mesmo em nossos dias a espiritualização dos instintos ainda é

entendida por Nietzsche como algo antinatural e precisa ser trabalhada. “É em sua natureza

selvagem que o indivíduo se refaz melhor de sua desnatureza, de sua espiritualidade...”268

Diante do primado das paixões, Kaufmann é incapaz de aceitar que é no próprio

jogo pulsional que se desenvolve o processo de controle dos impulsos. Melhor dizendo, é

na luta dos próprios impulsos entre si que ocorre o jogo de dominação, onde, quando um

impulso não se realiza é por fraqueza ou porque outro impulso a ele se sobrepôs e lhe

dominou. Este ponto é muito interessante, pois a tradição filosófica sempre entendeu que a

razão controlava os impulsos e esta razão seria ainda capaz de apresentar o conhecimento

dos valores bons, chegando assim à moral. Nietzsche não nega a razão, nem seu papel no

jogo dos impulsos por preponderância. Se o pensar participa daquilo que Nietzsche entende

266 Kaufmann, op. cit. pág. 253 267 Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 3. 268 Id., “Crepúsculo dos ídolos”, Máximas e flechas, 6

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por vontade e este pensar, por mais que seja em sua maioria instintivo, traz também a razão,

então a razão participa da vontade. De forma que nesta disputa por dominação a razão

também desempenha seu papel. Porém, não como Kaufmann gostaria.

Sabemos que “em todo ato de vontade há um pensamento que comanda”269,

contudo, “a vontade não é apenas um complexo entre sentir e pensar, mas sobretudo um

afeto: aquele afeto do comando.”270 Nos parece claro que na luta por mando, tanto o

pensamento quanto o afeto desempenham seus papéis. A razão no pensamento pode ajudar

a refletir sobre os caminhos a se seguir e sobre os impulsos a se fortalecer, mas os próprios

impulsos se fazem ouvir e a razão não é nem de longe uma espécie de juiz e bom

ponderador. O que ocorre é que Kaufmann não consegue aceitar a teoria da vontade de

potência em toda sua tragicidade, ele precisa torná-la palatável, sociável, passível de ser

aceita como uma teoria respeitável socialmente. Diante do primado dos desejos e paixões

ele recua, não é capaz de aceitar uma teoria que não só conceda liberdade aos cães

selvagens, mas que aponte esses monstros esplendidos como a força mais importante.

Kaufmann quer segurança. Somente o medo de sucumbir às paixões pode levar a uma

supervalorização da racionalidade. “Quando há necessidade de fazer da razão um tirano,

como fez Sócrates, não deve ser pequeno o perigo de que uma outra coisa se faça de tirano.

A racionalidade foi então percebida como salvadora, nem Sócrates nem seus

‘doentes’estavam livres para serem ou não racionais – isso era de riguer, era seu último

recurso.”271 A maneira como Kaufmann interpreta Nietzsche faz de sua ética algo

semelhante a este último recurso de doentes. Porém, trata-se aqui de conseguir criar um

homem capaz de lidar livremente com seus impulsos sem aprisioná-los pela racionalidade e

sem sucumbir a eles. É aí que reside precisamente a tragicidade e toda dificuldade da

questão. A liberdade não é racional.

Quando analisamos a crítica que Nietzsche faz às tentativas de apreensão da verdade

por parte das teorias metafísicas do conhecimento o papel da razão torna-se mais claro a

nós. Pois o cerne da crítica de Nietzsche é que não é possível se atingir a verdade pela

razão, ao contrário, é apenas como instrumento que a razão se reporta a algo que o próprio

homem criou e depois chamou de conhecimento ou verdade. A razão, portanto, não nos dá

269 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 19 270 Ibid., 19 271 Nietzsche, “ Crepúsculo dos ídolos”, O problema de Sócrates, 10

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acesso a nada mais grandioso do que as demais manifestações do corpo, ao contrário,

somente nos é dado nosso mundo de desejos e paixões e é a partir destas que Nietzsche

formula suas hipóteses. “A superestimação da razão sobre os instintos é a expressão mais

clássica do desequilíbrio do corpo, desta perda de centro de gravidade.”272 Lembremos o

que Nietzsche reprovara em Sócrates:

“uma profunda representação ilusória, que veio ao mundo pela primeira vez na pessoa de Sócrates ― aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo.”273

A grande mudança operada por Sócrates na Grécia consistiu, justamente, em que as

pessoas passaram a agir apenas racionalmente e não mais por instinto. Sob a influência de

Sócrates os sentimentos tradicionais responsáveis pela serenojovialidade grega iniciavam

sua desvalorização. Sócrates observou que os grandes homens com quem conversava,

estadistas, oradores, poetas e artistas seguiam suas profissões e agiam basicamente por

instinto e os criticou.

“ ‘Apenas por instinto’: por esta expressão tocamos no coração e no ponto central da tendência socrática. Com ela, o socratismo condenou tanto a arte como a ética vigentes; para onde quer que ele dirija seu olhar perscrutador, avista ele a falta de compreensão e o poder da ilusão; dessa falta, infere a íntima insensatez e a desestabilidade do existente. A partir desse único ponto julgou Sócrates que devia corrigir a existência: ele, só ele, entra com ar de menosprezo e de superioridade, como precursor de uma cultura, arte e moral totalmente distintas, em um mundo tal que seria por nós considerado a maior felicidade agarrar-lhe a fímbria com todo o respeito.”274

A proposta de controle racional para as paixões enfatiza o caráter intelectual do jogo

pulsional. Ora, nossa tese critica fortemente esta visão e busca apresentar uma outra que se

sustente principalmente sobre o aspecto impulsivo e corpóreo. Entendemos, inclusive, que

um dos principais objetivos de toda a filosofia de Nietzsche foi tentar fazer com que os

homens voltassem a considerar seus impulsos e seu corpo com um olhar sadio, sem que

fossem arrebatados por estes de forma a perecer simplesmente. Com isto, Nietzsche

entendia estar não só devolvendo ao homem a boa consciência para a vida, – boa 272 Wotling, op. cit. pág. 133 273 Nietzsche. “O nascimento da tragédia”, 15. 274 Ibid., 13.

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consciência que Kaufmann parece achar impossível de ver restaurada sem um colapso

civilizacional – mas também entendia estar redirecionando todo o caminho cultural de

nossa época. As considerações negativas sobre o desejo pela moral racional sempre

diminuíram o homem. Um homem de vontade forte e livre, encontrado consigo mesmo, não

só terá benefícios próprios, mas, principalmente, será peça chave na transformação cultural

de todo um povo. A cultura, por mais que se desenvolva em trabalhos intelectuais de alto

nível começa sempre pela atenção aos instintos básicos do homem, isto é, pela ética, e esta

ética é uma ética a ser aprendida primeiramente no corpo, a partir dos impulsos. “É

decisivo, para a sina de um povo e da humanidade, que se comece a cultura do lugar certo –

não na ‘alma’ (como pensava a funesta superstição dos sacerdotes e semi-sacerdotes): o

lugar certo é o corpo, os gestos, a dieta, a fisiologia, o resto é conseqüência disto...”275

A consideração moral sobre a vida, em quase todos os casos, teve um

direcionamento para o controle negativo das forças inatas do homem. A filosofia e as

religiões aparecem munidas de argumento racionais ou místicos e, na medida em que foram

morais, tiveram a forte tendência a promover o enfraquecimento dos desejos e,

conseqüentemente, da vida. Contudo, a vida é algo cuja valoração por parte do homem é

impossível. É impossível a este ser vivente proferir um juízo correto sobre sua própria

condição existencial. “Seria preciso estar em uma posição fora da vida e, por outro lado,

conhecê-la como alguém, como muitos, como todos os que a viveram, para poder sequer

tocar o problema do valor da vida: razões bastantes para compreender que este é, para nós,

um problema inacessível.”276 Mesmo assim, a história da filosofia mostra uma forte

tendência para a culpabilização da vida a partir de interpretações no mínimo duvidosas.

Nietzsche percebe a fortíssima influência das religiões e filosofias em nossa cultura e vê

com uma agudez psicológica fora do comum os males que elas causam na própria

capacidade de desenvolvimento do homem. Sua crítica à verdade, não só desmascara esta

farsa, como mostra a quê serviu a moral por todo este tempo. Ao apresentar a verdade como

antropomórfica, termina-se por retirar o solo que servia de justificação para a moral e esta

aparece agora desprovida de seu alicerce fundamental. Nietzsche pretendeu livrar o homem

da moral para que este pudesse iniciar o caminho para uma ética e uma cultura nova. Isto

275 Nietzsche, “Crepúsculo dos ídolos”, Incursões de um extemporâneo, 47 276 Ibid., Moral como antinatureza, 5

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porque percebeu que este movimento de negação do desejo e culpabilização moral da vida

era produto de um determinado tipo de indivíduo. Justamente aquele que não tem força

para se expressar nega o desejo como algo mal em si. Se é impossível viver sem criar

valores, sem ter algo como bom ou ruim para si, a valorização negativa das características

mais básicas e naturais do homem só pode ser fruto de uma vida para a qual tais atributos

são um problema. “Uma condenação da vida por parte do vivente é, afinal, apenas sintoma

de uma determinada espécie de vida”.277

Em continuidade a seu trabalho, Nietzsche traçou os caminhos percorridos por

aqueles que criaram a moral e as religiões negadoras da vida, para mostrar que estas não

somente não são eternas como, ao contrário, possuem uma história crua e bastante imoral

segundo seus próprios critérios. A esta busca histórica pelo surgimento da moral e da

valorização negativa da vida Nietzsche chamará de genealogia. O trabalho histórico-

psicológico de Nietzsche mostrará que a moral ou a religião que condena a vida são

sintomas de determinadas formas de vida. “Moral é apenas linguagem de signos,

sintomatologia: é preciso saber antes de que se trata, para dela tirar proveito.”278 O próximo

capítulo trará o estudo mais detalhado desta sintomatologia da moral, isto é, a busca por

desvendar quais impulsos estão por trás das considerações morais mais aceitas. Nosso

trabalho buscará apontar para a história da origem dos valores morais depreciadores da vida

e também para um momento mais recente, onde tais valores superiores começam a perder

seu crédito e desencadeiam um sentimento niilista de vazio existencial e perda de valor.

“Minha tarefa de preparar para a humanidade um instante de suprema tomada de consciência, um grande meio-dia em que ela olhe para trás e para adiante, em que ela escape ao domínio do acaso e do sacerdote, e coloque a questão do por quê?, do para quê? Pela primeira vez como um todo –, essa tarefa resulta necessariamente da compreensão de que a humanidade não segue por si o caminho reto, que não é regida divinamente, que na verdade, sob as suas mais sagradas noções de valor, foi o instinto de negação, de degeneração, o instinto de décadence que governou sedutoramente. A questão da origem dos valores morais é para mim, portanto, uma questão de primeira ordem, porque condiciona o futuro da humanidade.”279

277 Nietzsche, “Crepúsculo dos ídolos”, Moral como antinatureza, 5 278 Ibid., Os ‘melhorementos’ da humanidade, 1 279 Nietzsche, “Ecce homo”, Aurora, 2

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CAPÍTULO 2: HISTÓRIA DA MORAL

Viu-se no primeiro capítulo que a força dos valores morais se sustenta sobre o poder

decorrente do discurso de verdade. O questionamento sobre o estatuto da verdade tem, por

conseqüência, a crítica dos próprios valores morais resultando em um enorme ganho de

liberdade no campo ao qual chamamos ético. Este segundo capítulo buscará trazer a história

do aparecimento dos valores morais, origem esta que se tornou questão de primeira ordem

na filosofia de Nietzsche. Se houve a busca por uma legitimação absoluta, de ordem

filosófica ou religiosa, dos valores morais, isto se deveu, segundo Nietzsche, à falta de

capacidade do homem para a afirmação da vida em sua condição trágica. Daí, conclui que

as principais noções morais segundo as quais a humanidade viveu nos últimos dois

milênios decorrem de um instinto de negação, de degenerescência, de decadência, condição

esta atingida a partir da ação do sacerdote e do filósofo asceta.

Para criticar o caráter absoluto dos valores, Nietzsche direcionará seu estudo para a

história. Será apresentando a história da moral que Nietzsche tentará mostrar que os valores

não podem ser absolutos, uma vez que, assim como a verdade que os sustenta, são criações

humanas. Mais do que isto, a pesquisa histórica se torna genealógica na medida em que

Nietzsche buscará interpretar os instintos e impulsos daqueles que criaram tais

argumentações metafísicas para a moral. O que quer aquele que quer ver seu valor moral

alçado à categoria de verdade? O que esconde cada valor? De onde provêem? – Desta

forma, a história torna-se genealogia e a psicologia assume papel preponderante.

Começaremos o capítulo com uma seção sobre o método genealógico, em seguida

trabalharemos com a própria genealogia da moral de Nietzsche desdobrando os argumentos

para as implicações éticas e culturais deste pensamento.

1) O método genealógico

Quando, no primeiro capítulo, foi enfatizada a crítica ao pensamento dogmático,

isto se mostrou necessário na medida em que os valores morais que depreciam a vida

retiram sua força deste tipo de pensamento. Quando as regras de comportamento residem

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em um patamar absoluto, pode-se determinar com precisão a atitude justa, boa, bela,

correta, que traz, necessariamente, a felicidade e o bem comum – pois como não os traria se

obedecem aos desígnios absolutos da existência. A existência mesma passa a ter um

sentido, o sentido de se obedecer e buscar esta ordem correta e boa em si mesma. Quando a

existência não possui um sentido que possa ser apreendido com segurança e estipulado

como verdade, facilmente pode-se tomar uma atitude de desvalorização da vida. A

metafísica aparece, então, como uma resposta segura à falta de sentido prévio da existência.

Se a vida não nos confere, inicialmente, formas de estarmos seguros de fazer o que é bom,

o pensamento metafísico fixa este bom em um plano a-histórico, garantindo a segurança

desejada, ao estipular os comportamentos corretos que devem ser seguidos. Mais do que

isto, a absolutização dos valores morais legitima também a coerção em relação à sua

obediência; a lei se torna divina e a violência a principal companheira da verdade. Diante

da pergunta pelo sentido da existência, o homem a respondeu de forma metafísica,

buscando a segurança da verdade.

Segundo a forma metafísica de pensamento filosófico, “os fenômenos morais não

poderiam, portanto, comportar uma ‘origem’ e muito menos uma ‘história’”.280 Nietzsche

rompe com esta tradição filosófica e irá mostrar que os valores morais, as concepções sobre

o bem e o mal, o certo e o errado, são criações humanas e, por isto, possuem

necessariamente uma história. Ao colocar os valores sob a perspectiva de um olhar

histórico, Nietzsche abre a possibilidade para que sejam criticados. Ao contar esta história,

Nietzsche abre o caminho para uma nova forma de pensar a moral, uma forma que coloca o

homem como centro das decisões e criações e, por isto mesmo, lhe atribui um papel ainda

não imaginado. Ao separar a moral da metafísica e da teologia, Nietzsche retira a segurança

sobre uma das principais questões humanas, tudo devido a um deslocamento de

perspectiva, da metafísica para a história, do sobre-humano para o humano. Se esta questão

ainda não havia sido colocada desta forma é porque até então os valores eram pensados

como eternos, como existindo desde sempre. A partir deste ponto, o homem pode recriar

seus valores e levar em conta suas inclinações mais fundamentais entendendo-as como

naturais e não como boas ou más em si mesmas. A filosofia de Nietzsche afirma que não

existe princípio transcendente para a conduta.

280 MARTON, Scarlett. “Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos”, pág. 75.

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Com a genealogia, Nietzsche inaugura um novo método de pesquisa capaz de

pensar os conceitos e as coisas de um ponto de vista histórico e ao mesmo tempo

intempestivo. Isto é, ao mesmo tempo em que mostra que um conceito, ou algo que é tido

como verdade, não é eterno e tem uma história, já tendo possuído, portanto, outros sentidos

diferentes do atual, faz também uma avaliação de tal objeto desprovida das considerações

morais de sua época, uma crítica amoral, que parece estar fora do tempo, apesar de

histórica. Nietzsche mostra a história de um conceito, suas mudanças de sentido, seus

diferentes papéis até então desempenhados, provando sua perspectividade e aproveitando-

se disto para propor transformações na nossa maneira de avaliar, de forma que nossa

percepção não fique presa a peculiaridades de uma época específica. Ao mostrar mudanças

de sentido de um conceito ou de um valor a genealogia mostra que este não possui um

único significado na história, nem seu sentido atual é semelhante ao de seu surgimento.

Nietzsche mostra que, ao longo da história, distintas forças se apoderam de um mesmo

conceito dando-lhe significados e sentidos diferentes uns dos outros. “Mas todos os fins,

todas as utilidades são apenas indícios de que uma vontade de potência se assenhoreou de

algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função (...)”281. A genealogia precisa

ser capaz de desvendar qual força está por trás de seu objeto a cada momento.

As palavras não guardam seu sentido, os conceitos não participam de uma história

sem interrupções, vivem um processo cheio de “acidentes, submissões, transformações” 282.

A genealogia deve desenterrar essas interrupções a fim de melhor compreender o sentido de

um conceito. Assim, não se deve tomar o sentido presente de algo como semelhante ao de

seu surgimento. O sentido atual é apenas mais um aparecimento, é apenas reflexo da última

força que dele se apoderou. Com a genealogia, mostra-se que o sentido que um conceito

tinha quando surgiu pode se modificar e que nada se sabe sobre a origem de um conceito

estudando-se apenas sua última manifestação. A genealogia se opõe à metafísica que

postula uma essência original imutável e não histórica para as coisas. A pesquisa metafísica

sobre a origem “se esforça para recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura

possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e

anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo.”283 Como se a origem fosse capaz de

281 Nietzsche. “Genealogia da moral”, II, 12. (tradução modificada) 282 Foucault. “Nietzsche, genealogia e história” em “Microfísica do poder”, pág 18. 283 Ibid., pág 17

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apresentar uma espécie de verdade intacta de algo do qual se busca o sentido no presente.

Contudo, a pesquisa genealógica mostra que na origem não se encontra o verdadeiro

sentido de algo, mas apenas mais um sentido deste algo. Certamente o primeiro, contudo

não o último e muito menos o único possível. “O que se encontra no começo histórico das

coisas não é a identidade ainda preservada na origem – é a discórdia entre as coisas, é o

disparate”284. A genealogia deve buscar saber de onde provem seu objeto de estudo, traçar a

história de suas mudanças de sentido e apontar para cada emergência de um novo uso do

mesmo termo. Ela marca a singularidade dos acontecimentos, contra uma tradição histórica

que busca sempre uma espécie de gênese e desenvolvimento linear para as coisas.

Contra esta gênese, Foucault fala da pesquisa da proveniência. A proveniência não

busca um estado original e puro, ela aponta para os estados anteriores pelos quais passou o

que está sendo estudado. Mas se faz isto, é para justamente mostrar a variedade de sentidos

que tal objeto de estudo já teve.

“Nada que se assemelhe à evolução de uma espécie ou ao destino de um povo. Seguir o filão complexo da proveniência é, ao contrário, manter o que se passou na dispersão que lhe é própria: é demarcar os acidentes, os ínfimos desvios – ou, ao contrário, as inversões completas – os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existe a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente.”285

Outra característica segundo Foucault, é a emergência, o surgimento de novas

interpretações e sentidos. Cada nova força que se apodera de algo faz emergir novo sentido,

a genealogia deve marcar este ponto de inflexão do sentido. “A emergência é, portanto, a

entrada em cena das forças”286. Contra a interpretação teleológica da história que lhe

confere um sentido e uma racionalidade, Nietzsche mostra que a história é a história da

atuação da vontade de potência, que ela não tem objetivo racional e que não há constância e

continuidade. O que há é o acontecimento singular, visão que vai contra a história da

continuidade ideal. “É preciso entender por acontecimento não uma decisão, um tratado,

um reino, ou uma batalha, mas uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado,

um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se

284 Foucault. “Nietzsche, genealogia e história” em “Microfísica do poder”, pág. 18. 285 Ibid., pág. 21. 286 Ibid., pág. 24.

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enfraquece, se distende, se envenena e uma outra que faz sua entrada, mascarada.”287

Assim, a genealogia é um saber sempre perspectivo, que sabe que está a olhar de um

determinado ponto e sob uma ótica específica. Ela foge da generalização da história

universal. Mostra apenas a singularidade de cada fato através de uma interpretação sempre

parcial. Ao invés de mostrar uma unidade do objeto estudado, a genealogia busca

justamente afirmar a descontinuidade de seu objeto de estudo.

Estendendo este pensamento para as questões morais, pode-se fazer a crítica da

moral que se quer universal e absoluta entendida como revelação ou sabedoria. Traçar a

história da moral significa retirá-la do reino do absoluto e demarcar, a partir de sua história,

quais os sentidos que um valor já teve. Até então, os valores apareciam como princípios a

partir dos quais se fazia uma avaliação. Contudo, Nietzsche mostra que estes próprios

valores decorrem de avaliações anteriores que os instauraram como valores dignos de se

tornarem princípios das demais avaliações. Ao se perguntar pela avaliação que cria um

valor tem-se pela primeira vez a pergunta pelo valor dos valores.

A crítica de Nietzsche opera uma “inversão crítica”288, qual seja: se, inicialmente, a

avaliação pressupõem os valores a partir dos quais avalia, estando estes valores já

estabelecidos, por outro lado, Nietzsche nos mostra que os próprios valores a partir dos

quais se faz uma avaliação nascem de determinados pontos de vista de apreciação. Isto é,

busca-se, agora, o ponto de vista de onde parte a apreciação que instaura determinados

valores como princípios de avaliação. Trata-se de buscar pela criação dos valores. Se esta

questão ainda não havia sido colocada, é porque até então os valores eram pensados como

eternos, como existindo desde sempre. “O problema crítico é: o valor dos valores, a

avaliação de onde provem seu valor, daí o problema de sua criação.”289 O objetivo da

pergunta pelo valor dos valores será o de saber se um determinado valor parte de uma

perspectiva afirmativa ou negadora em relação à vida.

O trabalho torna-se psicológico na medida em que não é mais importante saber qual

valor está mais próximo da verdade, mas sim o quê está por trás de cada avaliação, o quê

quer cada avaliação, qual o afeto de comando em cada caso. Começa um trabalho por

decifrar o afeto que se esconde por trás de cada filosofia para, a partir daí, pesar sua

287 Foucault. “Nietzsche, genealogia e história” em “Microfísica do poder”, pág. 28. 288 Deleuze. “Nietzsche et la philosophie”, pág. 1 289 Ibid., pág. 1

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nobreza ou baixeza. Trata-se de saber quais forças criaram cada critério, quais instintos se

escondem por trás de cada valor moral. Será preciso saber agora se um valor fortalece ou

diminui a vida, se provém de um julgamento abundante em forças ou decadente.

Mais uma vez Nietzsche é único em seu filosofar, pois as avaliações agora são

remetidas ao phatos que as gerou. Trata-se de saber se um valor nasce de um ponto de vista

ascendente ou degenerescente em relação à vida. Esta diferença, que é diferença na origem,

e, por isto, este trabalho é genealógico, é o que Deleuze chama de elemento diferencial dos

valores290. O que é mais interessante aqui é que, ao menos para Deleuze, a quem

acompanhamos neste ponto, “as avaliações, em relação ao seu elemento [diferencial], não

são os valores, mas maneiras de ser, modos de existência daqueles que julgam e avaliam

(...)”291 Ao buscar encontrar o ponto de vista de onde decorrem as avaliações sobre os

fenômenos, tem-se que tal ponto de vista não será nunca um valor objetivo e preciso, ainda

que não absoluto. Se o que interessa na busca pelo ponto de vista de onde decorre a

avaliação é o afeto que impulsiona tal avaliação, então cada avaliação moral é sintoma de

um modo de existência e não um fato objetivo. Sendo esses modos de existência os

produtores das avaliações, o trabalho do genealogista será perceber a hierarquia dos afetos

(modos de vida) que movem as avaliações que, por sua vez, criam os valores morais de

nossa cultura. Por isto, Deleuze pode dizer que o elemento diferencial é o sentimento de

distância292 (o phatos da distância).

“Genealogia quer dizer ao mesmo tempo valor da origem e origem dos valores. Genealogia se opõe ao caráter absoluto dos valores tanto quanto ao seu caráter relativo ou utilitário. Genealogia significa o elemento diferencial dos valores do qual decorre o valor destes. Genealogia quer dizer, portanto, origem ou nascimento, mas também diferença ou distância na origem. Genealogia quer dizer nobreza e baixeza, nobreza e vilania, nobreza e decadência na origem.”293

Assim, o filósofo deve manejar o elemento diferencial como crítico e criador.

Crítico da baixeza e da mesquinharia, sinais de uma vida que definha, e criador da nobreza

e da superabundância. “Mas um valor tem sempre uma genealogia da qual dependem a

290 Deleuze. “Nietzsche et la philosophie”, p. 1 291 Ibid., p. 2 292 Ibid., p. 2 293 Ibid., p. 2

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nobreza e a baixeza daquilo que ela nos convida a acreditar, a sentir e a pensar.”294 Nobreza

e baixeza se referem à diferença de perspectiva na criação de um valor. Aqueles que

avaliam a vida por baixo criam valores que a denigrem, em oposição à abundância de força,

que terá a inclinação a criar valores ascendentes. Mas, esta diferença de onde decorrem os

valores são, justamente, os tipos de vida que Nietzsche quer pensar. “Quais os grupos de

sensações que dentro de uma alma despertam mais rapidamente, tomam a palavra, dão as

ordens: isso decide a hierarquia inteira de seus valores, determina por fim a sua tábua de

bens.”295 Compreende-se então, porque Nietzsche dedicará um livro inteiro, a saber, a

“Genealogia da moral”, ao estudo dos sentimentos de ressentimento e culpa, que culminam

em uma negação ascética da vida. Será preciso saber de onde partem estes valores, o que

querem aqueles que os pregam. Se já vimos que os valores absolutos negam a vida em

nome de um outro mundo onde residiria a verdade, começa agora a se descortinar também

os afetos que movem tais interpretações da existência. O trabalho da genealogia da moral

será o de descobrir quem necessita criar falsas avaliações sobre a vida e contra quem estas

falsas avaliações se dirigem, pois “existem coisas que só se pode dizer, sentir ou conceber,

valores aos quais só se pode crer com a condição de se avaliar ‘baixamente’, de viver e

pensar ‘baixamente’. Sendo isto o essencial: o alto e o baixo, o nobre e o vil não são os

valores, mas representam o elemento diferencial de onde deriva o valor dos valores.”296

O caráter psicológico da genealogia torna-se uma sintomatologia, na medida em que

tomará os fenômenos por sintomas, descobrindo o afeto que está por trás de cada um. Do

ponto de vista fisiológico, a genealogia é também uma tipologia, pois tem como função

interpretar o afeto que move a criação do valor caracterizando o tipo de existência que o

produz.

O ponto principal é saber “o que quer” aquele que diz alguma coisa. Se os valores

morais são sintomas de vontades que os movem, trata-se de se saber o que quer esta

vontade que cria um valor específico. Interpretar o valor a partir de sua vontade motora.

Esta pergunta tem por resposta um tipo. Ao decifrar o que quer aquele que diz algo,

percebe-se se este que diz afirma ou nega a vida, descobre se trata-se de um sintoma de

ascendência ou decadência. A determinação do tipo é a determinação da predominância de

294 Deleuze. “Nietzsche et la philosophie”, p. 62 295 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 268 296 Deleuze. Op. cit., p. 2

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forças naquele caso. O que diferencia um tipo do outro é a hierarquia em que as forças

estão dispostas. É importante saber se a vontade se afirma em cada caso ou se antes nega

outra vontade. “Só se define um tipo determinando o que quer a vontade nos exemplares

deste tipo.”297

A genealogia efetua uma crítica interna, pois não busca princípios transcendentais

para afirmar ou negar um valor, apenas o qualifica baseado no afeto que comanda, isto é, na

hierarquia dos valores que o engendram. Por isto o filósofo é legislador, é ele quem faz a

crítica aos valores estabelecidos, é ele quem detecta a negação da vida por trás do que se

aceita como bom. Mas não o é por ser o mais sábio ou apto para tanto. O filósofo espírito

livre é aquele que pára de obedecer ao que já está estabelecido por perceber a negação da

vida e a fraqueza por trás destes valores. É ele que, ao afirmar a vontade de potência, afirma

sua diferença em relação ao bom e ao belo estabelecidos. Ele cria novos valores e novas

belezas apontando para uma transvaloração de todos os valores. É legislador neste sentido.

“Só a vontade de potência como princípio genético e genealógico, como princípio

legislador, é capaz de realizar a crítica interna. Só ela torna possível uma transmutação.”298

Ao mesmo tempo, esta crítica é feita em nome da vida, da afirmação da vontade. A crítica é

feita para liberar o potencial afirmador da vontade caluniado pela moral. A crítica

genealógica tem como efeito um fortalecimento da vida pela distinção entre nobre e baixo.

Mesmo quando se fala de valores, tudo se dá no plano da afetividade. Qual afeto que

comanda? O que quer quem quer isto ou aquilo? Afirma-se ou nega-se a vida? Por isto, a

filosofia de Nietzsche abre espaço para novas formas de sentir. “Na crítica não se trata de

justificar, mas sim de sentir de outro modo: uma outra sensibilidade.”299

Para Nietzsche, a história da cultura ocidental é a história do triunfo das forças

reativas, isto é, das forças que negam a potência da vontade ao invés de afirmar a sua

própria. Aliás, esta negação decorre, justamente, da impotência de auto-afirmação. O papel

da genealogia da moral será o de mostrar como as forças reativas triunfam.

297 Deleuze. “Nietzsche et la philosophie”, p. 89 298 Ibid., p. 104 299 Ibid., p. 107

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2) A pré-história da moral

Será interessante começar a exposição sobre a genealogia da moral a partir de uma

genealogia do homem. Pensar o homem em seu surgimento é fundamental para

compreender o momento de surgimento da moral, compreender como e por quê ela

aparece.

Se for verdade que o homem provem do animal e que, portanto, não tenha aparecido

na Terra já totalmente desenvolvido na forma como o conhecemos, então é realmente

possível que tenha ocorrido um período que se acostumou a chamar de estado de natureza

ou guerra de todos contra todos. Um período em que o homem era ainda um bicho-homem.

Nietzsche chama este período de pré-história.

Uma característica básica reconhecível em qualquer animal é sua obediência pura e

simples a seus impulsos. O animal não possui consciência desenvolvida, seu pensamento é

incapaz de encadear um grande número de causas e formar um raciocínio, de maneira que

aquilo que o animal faz, o faz a partir de um impulso não refletido, ou pouco refletido se

comparado ao que se chama hoje homem.

Nietzsche apresenta a idéia de que o homem não foi sempre o mesmo tal qual o

conhecemos, ele veio a ser. Quando os filósofos tomam o homem contemporâneo como

sendo o exemplar do homem sempre existente e, com isto, buscam explicar suas

peculiaridades, estão deixando de lado todo o período de “formação” deste homem.

Formação principalmente de seus sentimentos e costumes. Saber que o homem foi um

animal do tipo selvagem não é suficiente para explicar como que hoje não o seja. Atribuir à

razão esta transformação significa negligenciar o fato de que a própria razão veio a ser

neste processo. Tais transformações ocorreram em tempos primitivos. O que se tem hoje é

um resultado de mudanças que ocorreram há milênios. Criticando os filósofos metafísicos

Nietzsche diz:

“Não querem aprender que o homem veio a ser, e que mesmo a faculdade de cognição veio a ser; enquanto alguns deles querem inclusive que o mundo inteiro seja tecido e derivado dessa faculdade de cognição – Mas tudo o que é essencial na evolução humana se realizou em tempos primitivos, antes desses quatro mil anos que conhecemos aproximadamente; nestes o homem já não deve ter se alterado muito. O filósofo, porém, vê ‘instintos’ no homem atual

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e supõe que estejam entre os fatos inalteráveis do homem, e que possam então fornecer uma chave para a compreensão do mundo em geral;(...)”300

Não só o homem e sua faculdade de cognição vieram a ser, como os próprios

instintos do homem se modificam ao longo da história. É muito interessante perceber que

até mesmo aquilo que se sente diante de uma situação faz parte da construção cultural em

que se está enredado. Esta forma de entender os sentimentos e o próprio homem é uma

forma que rompe com a busca por uma moral universal, pois não existe uma “natureza

humana” anterior mesmo à vida e que pudesse ser invocada para garantir o cumprimento de

determinadas regras morais. Não existe vontade boa ou ruim a não ser a partir de um

conjunto de valores específicos. A imposição, pela força, de determinadas regras, além de

criar a moral, irá condicionar o comportamento do homem selvagem até que este se torne o

homem que se conhece. É isto que a genealogia irá mostrar.

Se o homem possui essa herança em comum com os demais animais, isto é, se o

homem, que também é animal, já o foi com muito mais intensidade, a ponto de aceitarmos

uma pré-história onde sua diferença para com o animal selvagem era mínima ou

inexistente, então se torna importante saber como se deu o caminho do bicho-homem até o

homem, isto é, da pré-história à história?

Segundo Nietzsche, tal passagem se deu devido a um longo e árduo trabalho deste

animal sobre si mesmo, um trabalho que ele denominou moralidade dos costumes.301

Período onde as primeiras regras básicas de convivência em comunidade foram impostas ao

bicho-homem, até transformá-lo, gradualmente, em homem. Este período é o período de

formação da cultura em busca de dominar o mundo selvagem. É comum diferenciar entre

estado de natureza e estado de cultura, contudo, na medida em que esta última nasce

diretamente da anterior, tal divisão possui apenas caráter didático. O que a cultura busca é

dominar o acaso selvagem e imprimir uma constância nas experiências da espécie. “Ora,

toda história da cultura representa uma diminuição do temor diante do acaso, da incerteza,

da subtaneidade. Cultura significa, com efeito, aprender a calcular, a pensar causalmente, a

prevenir, a crer na necessidade.”302

300 Nietzsche, “Humano, demasiado humano”, 2 301 Id., “Genealogia da moral”, II, 2. 302 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 10[21]

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106

Segundo o filósofo, a grande diferença entre o homem e o bicho-homem é a

existência de uma memória no primeiro. “(...) uma memória, com cujo auxílio o

esquecimento é suspenso em determinados casos – nos casos em que se deve

prometer(...)”303. Toda a importância da existência de uma memória reside no fato de que o

desenvolvimento do bicho-homem para além de seu estado pré-histórico só foi possível

depois que ele aprendeu a se comprometer. A criação de regras foi um passo inicial para

que algum tipo de estabilidade social pudesse ser alcançado. Mas, para que tais regras

pudessem sequer ser fixadas e exigidas como comportamento, era preciso, antes, que o

bicho-homem fosse capaz de lembrar-se delas. Qualquer tipo de organização social só

poderia ser alcançado a partir do momento em que o bicho-homem fosse capaz de se

comprometer com tal organização. Isto é, era preciso que o bicho-homem fosse capaz ao

menos de se lembrar daquilo que havia sido estipulado como regra. Contudo, esta memória

decorre de um longo e penoso processo de adestramento até que o bicho-homem se torne

um animal confiável, previsível em suas ações e comportamentos.

“Mas quanta coisa isto não pressupõe! Para poder dispor de tal modo do futuro, o quanto não precisou o homem aprender a distinguir o acontecimento casual do necessário, a pensar de maneira causal, a ver e antecipar a coisa distante como sendo presente, a estabelecer com segurança o fim e os meios para o fim, a calcular, contar, confiar � para isso, quanto não precisou antes tornar-se ele próprio confiável, constante, necessário, também para si, na sua própria representação, para poder enfim, como faz quem promete, responder por si como porvir!” 304

Lembrar para prometer significa responder por seu futuro. O que hoje parece

simples foi, talvez, a mais árdua tarefa na história do homem. Talvez seja exatamente isto

que tenha lhe permitido diferenciar-se dos demais animais. Sabemos como é difícil adestrar

um animal e o quanto de violência é empregada para fazer com que ele se lembre de

executar determinada ação ao receber um estímulo. Aqui, também, a memória é o que faz o

animal se desviar de seus instintos iniciais. Mas, como a memória teria este poder? Que

memória é esta?

É a memória da dor. Para se combater um instinto, é necessário outro instinto. A

única maneira de fazer com que um animal não responda imediatamente a um impulso

303 Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 1. 304 Ibid., II, 1.

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inicial de sua natureza é fazê-lo se lembrar que, caso ceda ao impulso, sofrerá mais do que

o prazer conseguido com sua realização. Quando a realização de um ato específico é

sempre seguida de dor, tal ato específico torna-se indissociável do sentimento de dor,

criando o temor com relação a tal ato. As sanções que recaem sobre aqueles que se desviam

de normas sociais ou morais também visam causar a dor que deve manter acesa a

obediência a tais normas.

“‘Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento?’... Esse antiqüíssimo problema, pode-se imaginar, não foi resolvido exatamente com meios e respostas suaves; talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que a sua mnemotécnica. ‘Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória’ � eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra.” 305 “Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu necessidade de criar em si uma memória” 306.

Fazer a passagem do bicho-homem para o homem significa tornar o homem

confiável, significa tornar o homem capaz de se lembrar de algo necessário para a vida de

uma comunidade, significa “manter presentes, nesses escravos momentâneos do afeto e da

cobiça, algumas elementares exigências do convívio social”.307 O desenvolvimento do

bicho-homem em direção ao homem traz a necessidade da criação de uma memória,

memória esta criada a partir da violência física. “Com a ajuda de tais imagens e

procedimentos, termina-se por reter na memória cinco ou seis ‘não quero’, com relação aos

quais se fez uma promessa, a fim de viver os benefícios da sociedade — e realmente! Com

a ajuda dessa espécie de memória chegou-se finalmente ‘à razão’!” 308

Este período pré-histórico é marcado pelo trabalho do bicho-homem sobre si mesmo

a caminho de se desenvolver em uma outra espécie animal. Se o homem foi antes um

bicho-homem, muito mais próximo do animal selvagem do que do civilizado, então a

própria razão é, também, uma construção deste processo. Efetivamente, sem a razão não

teria sido possível a continuidade do desenvolvimento do bicho-homem até o que

305 Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 3. 306 Ibid., II, 3. 307 Ibid., II, 3. 308 Ibid., II, 3.

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chamamos hoje homem, mas a razão, por sua vez, a partir deste papel principal que

desempenha na possibilitação de uma experiência comum foi elevada pela filosofia à

categoria de natureza humana mesma, como se fosse uma qualidade inata do homem.

Contudo, a própria razão veio a ser neste processo de desenvolvimento. A razão aparece

como um instrumento desenvolvido por um animal, talvez por ser o mais frágil em relação

aos demais no tocante a presas, garras e dentes. O que significa dizer que a razão não é algo

necessário, pois seria possível que não a tivéssemos desenvolvido. O pensamento que a

coloca como inata nega-lhe sua história, seu vir-a-ser. A própria razão é passível de uma

genealogia.

O momento em que as promessas se tornam compromissos com uma comunidade é

um momento tardio da passagem da pré-história para a história. Muito antes de se criarem

leis e governos, a memória começou a ser exigida em relações pessoais mais simples,

básicas e imediatas que estavam presentes no cotidiano daqueles seres ainda rudimentares.

As primeiras circunstâncias onde se começa a exigir que o bicho-homem se torne confiável

são as relações pessoais de troca como compra, venda, comércio, e tráfico, quando se criou,

pela primeira vez, a relação entre credor e devedor.309 “Precisamente nelas [em tais

relações] fazem-se promessas; justamente nelas é que é preciso construir uma memória

naquele que promete; nelas, podemos desconfiar, encontraremos um filão de coisas duras,

cruéis, penosas”.310 É aí que, pela primeira vez, a violência é usada como auxiliar para

fazer do homem um animal confiável.

Quando uma promessa era descumprida ou um acordo desonrado, a dor daquele que

deve e que causara um dano servia como equivalente pelo desprazer causado pela promessa

não cumprida. Assim, cria-se a memória de que deve-se cumprir suas promessas. “Através

da ‘punição’ ao devedor, o credor participa de um direito de senhores; experimenta enfim

ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como ‘inferior’”.311

É a primeira manifestação de um sentimento de distância de um homem em relação a outro,

baseado na diferença da força de suas vontades. Enquanto um caminha para se tornar

homem, outro precisa ser forçado a abandonar seu estado de bicho-homem. Começa aqui a

história do homem como animal avaliador. O homem que tem consciência de sua

309 Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 4. 310 Ibid., II, 5. 311 Ibid., II, 5.

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capacidade de prometer e cumprir entende este poder como algo que deve ser valorizado e

desenvolvido, de forma que despreza aquele que é incapaz de tal atitude.

A legitimidade do castigo não levava em conta nenhuma consideração sobre a

liberdade ou não-liberdade da vontade do castigado. O castigo não se justificava devido a

compreensão de que aquele que não cumpriu sua promessa poderia ter agido de outro

modo, como ocorre hoje. “(...) de fato, por muitíssimo tempo os que julgavam e puniam

não revelaram consciência de estar lidando com um ‘culpado’. Mas sim com um causador

de danos, com um irresponsável fragmento do destino”.312 O castigo era uma reparação por

um dano sofrido e a sensação de prazer ao causar sofrimentos àquele que lhe deve era o

equivalente por tal dívida. Devido a esta equivalência entre dano e dor, Nietzsche deduz

que a dor só poderia ser algo compensatório na reparação de um mal na medida em que o

homem sentia prazer em ver e fazer outro homem sofrer, principalmente aquele que lhe

havia causado algum dano. Assim, descarregar a raiva pelo dano sofrido tornava-se uma

forma de expiação do dano. “Nesse primeiro estágio, justiça é a boa vontade, entre homens

de poder aproximadamente igual, de acomodar-se entre si, de ‘entender-se’ mediante um

compromisso – e, com relação aos de menor poder, forçá-los a um compromisso entre

si”.313 A justiça começa, então, como um ajuste de forças entre os homens fortes que criam

a existência de certos compromissos que entendem como necessários e forçam seu

cumprimento aos demais. A justiça nasce da vontade de potência.

Ao poucos estas relações de direito pessoal, a partir das noções de promessa,

obrigação, contrato, troca, débito e direito começam a ser utilizadas nas questões sociais.314

Assim, a comunidade também mantém uma relação de credor com seus membros

devedores. Estes desfrutam da segurança e da proteção que a comunidade oferece às

possíveis manifestações violentas de pessoas de fora desta comunidade. O indivíduo, por

sua vez, está comprometido com essa comunidade, fez a ela uma promessa, a de cumprir

suas regras e não pode descumpri-la. Caso isso ocorra, o infrator é excluído desta

comunidade e devolvido à vida selvagem da qual buscou se proteger em comunidade.

“Sempre utilizando a medida da pré-história (pré-história, aliás, que está sempre presente,

ou pode retornar): também a comunidade mantém com seus membros essa importante

312 Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 14. 313 Ibid., II, 8. 314 Ibid., II, 8.

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relação básica, a do credor com seus devedores”.315 Quando o homem quebra sua

promessa, descumprindo uma de suas regras, sofre punições físicas, assim como ocorria

nas relações pessoais (esta é a medida pré-histórica).

O chamado “Estado”, ainda em uma forma rudimentar, começa a aparecer aqui a

partir do uso da força de determinados homens que impõem a outros suas normas e suas

regras de acordo com sua própria vontade. Aquele mesmo tipo de homem que impunha

castigos aos devedores nas relações pessoais, começa a impor regras também para o

convívio coletivo em vistas de criar uma estabilidade que torne o homem cada vez mais

previsível e confiável. Um grupo de fortes guerreiros e conquistadores que se apoderam

dos demais e lhes impõe sua vontade – eis a origem do “Estado”.

“(...) que o mais antigo ‘Estado’, em conseqüência, apareceu como uma terrível tirania, uma maquinaria esmagadora e implacável, e assim prosseguiu seu trabalho, até que tal matéria prima humana e semi-animal ficou não só amassada e maleável, mas também dotada de uma forma. Utilizei a palavra ‘Estado’: está claro a que me refiro – algum bando de bestas louras, uma raça de conquistadores e senhores que, sem hesitação lança suas garras terríveis sobre uma população talvez imensamente superior em número, mas ainda informe e nômade. Deste modo começa a existir o ‘Estado’ na terra: penso haver-se acabado aquele sentimento que o fazia começar com um ‘contrato’”.316

O que Nietzsche está chamando de “Estado” aparece, justamente, no limiar onde é

preciso impor uma constância e uma estabilidade ao bicho-homem. Criam-se as primeiras

leis e o “Estado” é aquele que irá exigir seu cumprimento. “(...) o que [a autoridade

suprema] faz sempre, tão logo se sente forte o bastante –, é a instituição da lei, a declaração

imperativa sobre o que a seus olhos é permitido, justo e proibido, injusto (...)”317 O “Estado

nasce, portanto, diretamente do estado de natureza, onde um grupo guerreiro impõe suas

regras à força e se torna a autoridade suprema. Não há contratos, há vontade de potência.

É interessante notar aqui que, ao mesmo tempo em que o “Estado” se impõe pela

força dos homens fortes, ele se torna o único a quem é permitido o uso da força a partir de

então. Agora, o homem não mais pode simplesmente descarregar sua raiva contra o

devedor, este papel torna-se exclusivo do “Estado”. Mas, se o homem forte aceita esta

aparente perda de poder é apenas porque sabe que está mais forte dentro desses novos

315 Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 9. 316 Ibid., II, 17 317 Ibid., II, 11.

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moldes que ele mesmo configurou para as relações sociais do que no antigo estado pré-

histórico. Desta forma, “os estados de direito não podem senão ser estados de exceção,

enquanto restrições parciais da vontade de vida que visa o poder, a cujos fins gerais se

subordinam enquanto meios particulares: a saber, como meios para criar maiores unidades

de poder”.318

A violência que era exercida em nível pessoal passa a ser exercida em nível

“Estatal”. Entretanto, o uso da força não é algo desejável e louvável, é algo pré-histórico e

rudimentar. Ao mostrar o processo de desenvolvimento da memória e toda violência

necessária para tal, ao dizer que o uso da violência como compensação por um dano sofrido

só poderia ser conseqüência do prazer que o homem sente com a crueldade ou ao apontar

para o surgimento da lei e do “Estado” a partir da força, Nietzsche destaca o caráter

primitivo do uso da violência. A violência para o cumprimento de regras é uma medida pré-

histórica “(pré-história, aliás, que está sempre presente, ou sempre pode retornar)”319. O

filósofo não descarta a possibilidade de que, em se aumentando o poder da comunidade,

esta não mais se preocupe tanto com as infrações cometidas contra ela e se dê até mesmo o

luxo de não mais punir seus poucos infratores.320 Se a violência aparece como medida pré-

histórica para forçar o bicho-homem a manter compromissos e se tornar homem, com o

posterior desenvolvimento deste homem, formas mais sutis do direito podem aparecer. A

justiça, que nasce a partir do uso da força e que cria uma série de procedimentos violentos,

pode terminar por suprimir a si mesma, uma vez que tenha cumprido seu papel na

formação do homem. “A justiça, que começou com ‘tudo tem que ser pago’, termina por

fazer vista grossa e deixar escapar os insolventes – termina como toda coisa boa sobre a

terra, suprimindo a si mesma”.321 Isto consistiria, com certeza, não mais em um passo do

bicho-homem em direção ao homem, mas do homem ao super-homem.

De qualquer forma, a origem do Estado não estaria em contratos e sim na vontade

de potência. O homem não delega poder ao Estado, este que o toma à força. Dentro deste

contexto é que pôde surgir o sentimento de má consciência ou consciência culpada.

Nietzsche diz que a má consciência é uma “profunda doença que o homem teve que

318 Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 11. 319 Ibid., II, 9. 320 Ibid., II, 10. 321 Ibid., II, 10.

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contrair sob a pressão da mais radical das mudanças que viveu — a mudança que sobreveio

quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz.”322 O que

ocorreu é que neste caminho da pré-história à história uma enorme quantum de liberdade

foi eliminado do mundo. A maneira como o bicho-homem costumava agir, ou seja, guiado

apenas por seus instintos, foi sendo cada vez menos aceita. Entretanto, “os velhos instintos

não cessaram repentinamente de fazer suas exigências! Mas era difícil, raramente possível,

lhes dar satisfação: no essencial tiveram que buscar gratificações novas e, digamos,

subterrâneas”.323 A má consciência é a consciência de um homem que vê tudo aquilo que

sente e quer como sendo algo ruim e proibido, é a consciência daquele homem que entende

que todas suas propensões naturais provêm de estados maus em si mesmos. A partir da

criação da ordem e da norma, aquilo que anteriormente se fazia de forma natural perdeu,

subitamente, sua liberdade de existência. Agora, não mais se poderia fazer mal a outra

pessoa. Foi preciso, então, criar uma outra forma de realização dos impulsos violentos. Ao

invés de se fazer mal a outra pessoa, o homem inicia um processo para fazer mal a si

mesmo como forma de satisfazer seus instintos.

“Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se protegia dos velhos instintos de liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre esses bastiões – fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência”.324

É interessante notar que é aquela mesma vontade de potência que cria e realiza seus

impulsos que, aqui, ao não poder exteriorizar-se, volta-se contra o próprio homem e dá

origem a má consciência. A conseqüência necessária da separação do homem de seu

passado animal é um enorme sofrimento para consigo mesmo, uma vez que seus próprios

instintos, até então naturalmente realizados, não possuíam mais o direito de se

exteriorizarem. A vontade de potência, ao perder sua possibilidade de extravasamento,

volta-se para o interior do próprio homem. Este agora, por não poder mais violentar outro

homem, começa, portanto a violentar a si mesmo. Uma vez que a válvula de escape para os

322 Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 16. 323 Ibid., II, 16. 324 Ibid., II, 16.

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impulsos estava fechada, o homem buscará outras formas de satisfazer sua necessidade de

violência.

Para Nietzsche, a má consciência atingiu seu ponto culminante devido ao trabalho

das religiões. Estas seriam a forma que o homem teve de elevar ao máximo seu auto-

martírio. Uma vez que a forma tradicional de se exercer a violência estava proibida, mas o

instinto de crueldade ainda se fazia muito presente, o homem passou a se martirizar para

satisfazer este desejo. Se, antes, a justificativa para a violência era uma dívida de outra

pessoa, ou o instinto e o prazer em fazer sofrer como um simples atributo do homem,

posteriormente a justificativa para este sofrimento vem na forma de deuses. Todo o

sofrimento da vida passa a ser explicado, então, enquanto algum tipo de relação com os

deuses. Sejam os deuses que exigem sacrifícios em seu nome, seja o deus que faz o homem

sofrer nesta vida em nome de um outro mundo supraterreno que o espera após a morte, etc.

“A relação de direito privado entre o devedor e seu credor, (...) foi (...) introduzida

(...) na relação entre os vivos e seus antepassados”. 325 A relação, nas antigas sociedades

tribais, entre os vivos e seus ancestrais aponta para uma dívida daqueles com estes. A

geração atual só subsistiria devido aos esforços das gerações mais antigas. É preciso pagar-

lhes esta dívida que aumenta proporcionalmente ao sucesso e ao poder das gerações atuais.

A dívida é tanto maior quanto o poder da tribo e chega a ponto de transformar os

antepassados em verdadeiros deuses. “(...) os ancestrais das estirpes mais poderosas

deverão afinal, por força da fantasia de temor crescente, assumir proporções gigantescas e

desaparecer na treva de uma dimensão divina inquietante e inconcebível — o ancestral

termina necessariamente transfigurado em deus.”326 Tem-se então, uma dívida com estes

deuses. A humanidade, segundo Nietzsche, herdou o sentimento de culpa para com suas

divindades. “O sentimento de culpa em relação à divindade não parou de crescer durante

milênios, e sempre na mesma razão em que nesse mundo cresceram e foram levados às

alturas o conhecimento e o sentimento de Deus”.327

Neste sentido, o cristianismo seria aquele que eleva o sentimento de culpa ao seu

máximo grau, na medida em que a culpa está associada à idéia de dívida com o deus

responsável pela existência. “O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora

325 Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 19. 326 Ibid., II, 19. 327 Ibid., II, 20.

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alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa”.328 Segundo esta

compreensão devemos nossa existência a um deus, pois o homem foi por ele criado. O

sentido da vida na Terra é, então, o de pagar esta dívida. No entanto, é uma dívida

impagável e deve-se passar a vida inteira tentando pagá-la, para desfrutar de uma outra vida

após a morte. A vida torna-se apenas sofrimento. Nega-se esta vida em nome de outra vida

supra-sensível. O que a religião faz aqui é dar um sentido para a dor transformando este

sofrimento em meio de salvação. O ser humano passa a ser o culpado pelo seu sofrimento e

já não pode mais se livrar dele. Deve sofrer a vida inteira. Nietzsche não descarta a

possibilidade do homem só se livrar dessa culpa livrando-se também do deus causador

desta culpa.

Para Nietzsche, o problema não está no sofrimento do homem com sua vida, isto é

normal, é a regra, pode ser até mesmo desejável, o problema sobre o qual se instala a moral

é o do sentido deste sofrimento. O cristianismo oferece um sentido para o sofrimento, por

isso se tornou tão presente: o sofrimento como culpa de viver, como dívida com um deus.

Quanto mais sofrimento, mais se paga a dívida, maior é a chance de salvação. Este é um

sentido que nega a vida, mas ao menos é um sentido. Os instintos que, primeiramente,

foram proibidos pelo “Estado”, são, depois, proibidos por Deus. “Ele [o homem] apreende

em ‘Deus’ as últimas antíteses que chega a encontrar para seus autênticos insuprimíveis

instintos animais, ele reinterpreta esses instintos como culpa em relação a Deus”.329 O

cristianismo é aquela religião que nega todos os impulsos naturais da vida interpretando-os

como pecado. Desta forma, conseguiu muitas vezes seduzir e convencer o homem forte de

que seus instintos eram sujos e impuros. Veremos mais adiante, como que o homem nobre,

que afirma como bom aquilo que quer, pôde se deixar levar pela moral cristã e se tornar,

assim, semelhante àquele que anteriormente desprezava.

Por fim, Nietzsche deixa claro que a idéia de deus não está necessariamente ligada a

idéia de culpa ou de automartírio. Os deuses gregos, não eram morais e, ao invés de culpar

o homem por querer, dignificavam-no ao mostrar suas virtudes e defeitos sendo realizados

pelos deuses. “Dessa maneira os deuses serviam para, até certo ponto, justificar o homem

também na ruindade; (...)”.330 A proposta de Nietzsche é clara, quer libertar os instintos do

328 Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 20. 329 Ibid., II, 22. 330 Ibid., II, 23.

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homem, que por muito tempo permanecem aprisionados em Estados e religiões, e dar-lhe a

liberdade de se tornar o que se é, de ser senhor de sua própria vontade. “Já por tempo

demais o homem considerou suas propensões naturais com ‘olhar ruim’, de tal modo que

elas nele se irmanaram com a ‘má consciência’. Uma tentativa inversa é em si possível —

mas quem é forte o bastante para isso?”.331

3) O uso da religião pelos ressentidos ou como o homem forte tornou-se fraco

Viu-se que em determinado ponto de sua trajetória o homem não mais pôde

simplesmente descarregar sua força sobre outro devido a exigências do convívio social. A

vontade de potência proibida de realização volta-se contra seu próprio possuidor, fazendo

com que este se sinta culpado por seus impulsos. Este sentimento de culpa para consigo

mesmo termina se transfigurando em religião, o sentimento de culpa em relação a si se

torna culpa em relação a um deus criador a quem se deve a vida. Esta dívida impagável é

entendida como justificação para todo sofrimento. Contudo, ao invés de curar o sentimento

de culpa, a religião o aumenta, pois o deus, além de credor é juiz e castiga seus devedores.

A compreensão moral religiosa cristã foi aquela que mais contribuiu para o

enfraquecimento do homem e para o triunfo da fraqueza de vontade. Ao se interpretar o

sofrimento da vida enquanto pecado em relação a deus, devido ao fato de se sentir impulsos

que são absolutamente naturais, ainda que possam ser nocivos ou intensos, nega-se a vida

em seu caráter mais básico e fundamental. A vida enquanto vontade de potência se torna

culpada por sentir. É um paradoxo insolúvel que prende o fiel até sua morte. Somente

depois dela, poderá o fiel viver. Assim, nega-se a vida a partir da criação de valores

superiores e metafísicos. A Igreja considera como bom todo enfraquecimento do

sentimento de vida e, ao contrário, considera como mal tudo aquilo que na vida é natural,

isto é, tudo aquilo que provém do sentimento de potência. A mais forte arma contra o

sentimento de potência foi a idéia moral de que fazer o bem seria algo bom em si. Pois a

vida, devido ao caráter natural da vontade de potência se dá através do conflito e do jogo de

forças, através da luta entre as potências por soberania. Negar esta luta significa negar a

331 Nietzsche, “Genealogia da moral”, II, 24.

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116

forma do movimento da vida, pois “a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa,

sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias,

incorporação e, no mínimo, exploração”.332

O que a genealogia da moral mostra, contrariando as formulações usualmente

aceitas, é que:

“(...) o juízo de ‘bom’ não provém daqueles aos quais se fez o ‘bem’! Foram os ‘bons’ mesmo, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo o que era baixo, e vulgar e plebeu. Desse pathos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade!” 333

A partir desta diferença fundamental no tocante à força que a vontade tem de se

afirmar, cria-se o phatos da distância, que é justamente o sentimento de superioridade que

os homens de vontade forte sentiam por serem senhores de si mesmos e capazes de fazer

aquilo que queriam. O fato de se saber senhor de si mesmo lhes dava um sentimento de

plenitude que os diferenciava dos demais.

Nietzsche continua sua pesquisa mostrando a partir do ponto de vista etimológico,

as designações para a palavra “bom” cunhadas por diversas línguas:

“Descobri então que todas elas remetem à mesma transformação conceitual — que, em toda parte, ‘nobre’, ‘aristocrático’, no sentido social, é o conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu ‘bom’, no sentido de ‘espiritualmente nobre’, ‘aristocrático’, de ‘espiritualmente bem-nascido’, ‘espiritualmente privilegiado’: um desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz ‘plebeu’, ‘comum’, ‘baixo’ transmudar-se finalmente em ‘ruim’.”334

Os nobres, devido a posição social que ocupavam, eram capazes de dar ordens, de

mandar, de controlar os menos poderosos. Esta situação fazia das pessoas desta classe as

únicas realmente livres. Por isso, eram capazes de criar. Não havia coerção para eles, ao

contrário, eram os que coagiam, submetiam os mais fracos à sua força. Dentro deste

contexto suas vontades poderiam expressar-se livremente. Diante desta liberdade não se

estranha que tenham se autodesignado como bons. Nietzsche diz que, geralmente, os nobres

332 Nietzsche, Além do bem e do mal, 259 333 Id, “Genealogia da moral”, I, 2. 334 Id, “Genealogia da moral”, I, 4

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117

designavam a si mesmos simplesmente segundo sua superioridade no poder ou em posses

materiais de riquezas335. Mas não é a isso que Nietzsche se refere quando chama alguém de

forte ou fraco, nobre ou plebeu, senhor ou escravo. É justamente o “traço típico do

caráter” 336 que interessa diretamente a ele. O caráter auto-afirmativo das antigas

aristocracias guerreiras é que deve ficar marcado como característica fundamental da

nobreza de espírito.

Diante de tamanha superioridade em poder, estes homens passaram também a se

considerar com espiritualmente superiores, membros de uma categoria de homens

melhores. Em geral, esta classe (ou casta, para usar o termo do autor em “Genealogia da

Moral”) politicamente preeminente, também é a casta sacerdotal, ou seja, possui também a

preeminência religiosa e espiritual. Constituindo, a partir daí, dois tipos de aristocracia: a

guerreira, cujas atividades envolvem o uso da força e do movimento como a guerra, a caça

e a dança dentre outros e a aristocracia sacerdotal cuja natureza menos ativa de suas

práticas os tornarão antagonistas do outro grupo aristocrático. “Já de início existe algo

malsão nessas aristocracias [sacerdotais] e nos hábitos que nelas vigoram, hábitos hostis à

ação, em parte meditabundos, em parte explosivos sentimentalmente (...)”337 As práticas

dos sacerdotes sempre foram não só quietas e pouco ativas, como, em geral, eles se

opunham às práticas diferentes das suas, isto é, às práticas ativas e viris. Nietzsche aponta

que este grupo aristocrático sacerdotal se desenvolverá justamente em oposição ao

aristocrata guerreiro, constituindo seu pior inimigo. Mas não por ser mais forte que o

guerreiro e sim “porque são os mais impotentes”.338 Todo o ódio do sacerdote nasce devido

a esta impotência de sua vontade em se afirmar. Aqui, Nietzsche começa a desvendar o

processo pelo qual a valoração aristocrática e afirmativa da vida foi sendo substituída por

uma valoração religiosa e decadente. “Já se percebe com que facilidade o modo de

valoração sacerdotal pode derivar daquele cavalheiresco-aristocrático e depois desenvolver-

se em seu oposto; em especial, isso ocorre quando a casta dos sacerdotes e a dos guerreiros

se confrontam ciumentamente, e não entram em acordo quanto às suas estimativas.”339

335 Nietzsche, “Genealogia da moral”, I, 5. 336 Ibid., I, 5. 337 Ibid., I, 6. 338 Ibid., I, 7 339 Ibid., I, 7.

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O guerreiro baseia seu juízo de valor na força física. O sacerdote, por não dispor de

tal força, desenvolve mais seu intelecto. Diante de um desentendimento entre as partes,

sabemos, a solução se impunha pela força. O sacerdote passa a odiar o guerreiro por este

ser mais forte e irá mover uma guerra de vingança contra ele. “Na sua impotência, o ódio

toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa. Na

história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes, também os mais ricos de

espírito – comparado ao espírito da vingança sacerdotal, todo espírito restante

empalidece”.340

Os sacerdotes sempre consideraram as propensões naturais do homem como coisas

ruins. Por que? – Porque não eram capazes afirmá-las. O fraco olha para o forte com

ressentimento, quer que os fortes paguem um dia pela sua força, desejam que, em algum

dia, ainda que em outra vida, possam castigar os fortes pelos seus atos de força. Buscam

fazer com que eles se envergonhem de sua felicidade. O sacerdote se vinga da força do

guerreiro promovendo uma transvaloração dos valores nobres. O sacerdote, como

representante de deus, usará este poder para promover os valores morais negadores da força

à categoria de superiores. A vontade que se exterioriza passará a ser considerada pecado e a

salvação só decorre da negação de si mesmo. O amor a si do nobre guerreiro transforma-se

em amor ao próximo. A potência, anteriormente glorificada em suas ações, é reinterpretada

como pecado e proibida de existir. O amor ao próximo, como negação de sua própria

vontade, pregado enquanto moral de virtude aparece, na verdade, a partir do ressentimento

que a aristocracia sacerdotal tinha da aristocracia guerreira, por esta ser mais forte do que

aquela e capaz de afirmação da própria vontade. Por isto Nietzsche diz que o amor nasceu

do ódio.341 O amor pregado pelos sacerdotes nasce de seu ódio contra aqueles mais fortes.

Esse amor sacerdotal é, antes, uma negação de si mesmo. Assim, o guerreiro passa a negar

sua própria força e a avaliar a fraqueza como virtude. Com essa inversão os sacerdotes

conseguiram fazer do homem forte um homem culpado, um homem que se envergonha de

seus instintos e de sua força. Esta força se desliga daquilo que ela pode e já não é mais

força, é fraqueza. Seus valores foram invertidos: a força e a vontade que se afirmavam boas

340 Nietzsche, “Genealogia da moral”, I, 7. 341 Ibid., I, 8.

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e naturais se transformaram em uma moral baixa que deprecia tudo aquilo que o homem

tem de natural em seus sentidos. Este é o início da revolta dos escravos na moral.

Neste ponto Nietzsche irá distinguir entre dois tipos de moral: a moral escrava,

plebéia ou de rebanho, que nasce de um não a um outro, a algo de fora. Sua afirmação se

dá a partir da negação do outro, esta afirmação é um ato secundário na moral de rebanho.

Enquanto que a moral nobre é uma afirmação de si, um sim à sua própria vontade.

“Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral

escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’ — e este Não é seu ato criador.”342 O

nobre afirma aquilo que quer como sendo bom, o fraco precisa, antes, negar aquilo que o

nobre valoriza, somente depois disto é capaz de formular o valor oposto como sendo o bem.

A ação do homem fraco é, no fundo, reação. Atente-se para o fato de que os conceitos

usados pelos dois tipos são diferentes. O nobre afirma seus atos chamando-lhes de bom. O

que desconsidera, chama de ruim. Já o escravo, acusa os atos nobres de serem maus, e,

posteriormente, diz então que seus atos são bons. “(...) como são diferentes as palavras

‘mau’ e ‘ruim’, ambas aparentemente opostas ao mesmo sentido de ‘bom (...)’”343

Os fortes se tornam fracos devido a uma mudança de valores morais operada pelo

tipo sacerdotal. Neste processo há um falseamento no modo de entender a vontade. A

vontade que se manifesta em ato passa a ser considerada culpada, como se pudesse não ter

agido e a fraqueza que não se afirma é tida como virtude, como se escolhesse não agir.

“Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um

querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão

absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força.”344 Viu-se no primeiro

capítulo que a força está imediatamente expressa em toda sua potência a cada instante, não

sendo possível sua não expressão. A falsificação sacerdotal decorre de uma falsificação

anterior que consiste em entender a vontade como tendo sido determinada por um sujeito.

“(...) como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para

expressar ou não a força. Mas não existe um tal substrato; não existe ‘ser’ por trás do fazer,

do atuar, do devir; ‘o agente’ é uma ficção acrescentada à ação — a ação é tudo”.345 Tal

342 Nietzsche. “Genealogia da moral”, I, 10. 343 Ibid., I, 11. 344 Ibid., I, 13. 345 Ibid., I, 13

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ilusão só é possível graças à sedução da linguagem, sendo apenas um jogo de palavras, uma

maneira como se constroem as frases. Na verdade, não há distinção possível entre a força e

suas expressões, a força já é a ação. A moral escrava, entretanto, precisa postular a

existência do livre arbítrio, pois sem ele, a vontade que se afirma não pode ser tachada de

culpada. Para Nietzsche, o livre-arbítrio é “o mais famigerado artifício de teólogos que

há”346. Seu objetivo é unicamente tornar o homem culpabilizável e legitimar seu

julgamento. “Os homens foram considerados ‘livres’ para poderem ser julgados, ser

punidos – ser culpados: em conseqüência, toda ação teve de ser considerada como querida,

e a origem de toda ação localizada na consciência”.347 É a impotência do escravo que cria

essa ilusão passando a imputar culpa a cada ação. Tem-se, desta forma, a argumentação que

legitima e exige a impotência enquanto virtude e taxa a ação de pecado.

“Por um instinto de autoconservação, de auto-afirmação, no qual cada mentira costuma purificar-se, essa espécie de homem necessita crer no ‘sujeito’ indiferente e livre para escolher. O sujeito (ou, falando de modo mais popular, a alma) foi até o momento o mais sólido artigo de fé sobre a Terra, talvez por haver possibilitado à grande maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e seu ser-assim como mérito.”348

Com o cristianismo a recompensa e o castigo são inseridos no devir. Tudo o que

acontece passa a ser interpretado como vontade divina e apenas os sacerdotes detêm o

poder de interpretar esta vontade, fazendo de sua própria vontade um mandamento de deus.

Este poder sacerdotal pode ser tão grande que os mandamentos divinos justificaram, nos

tempos de maior poder do catolicismo, a queima de pessoas vivas em praça pública e outras

atrocidades, como as cometidas aos Cátaros durante as cruzadas. É latente e indisfarçável o

caráter vingativo e violento de alguns documentos eclesiásticos antigos. Eles chegam a

defender que seus inimigos morram, ou melhor, chegam a defender que seus fiéis matem

seus inimigos, pois a vontade divina é que morram os pecadores. Em outros momentos

mais recentes da história, pregam que seus fiéis se abstenham destas violências, mas

somente porque no paraíso poderão contemplar com muito mais prazer o sofrimento dos

346 Nietzsche, “Crepúsculo dos ídolos”, VI, 7. 347 Ibid., VI, 7. 348 Id., “Genealogia da moral”, I, 13.

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infiéis no inferno.349 Nietzsche viu no cristianismo a grande revolta escrava na moral, viu

nele o mecanismo pelo qual o espírito nobre foi enfraquecido. A proposta de Nietzsche é

que os valores de abstenção de si enquanto negação dos impulsos, tão caros a um certo tipo

de cristianismo, os mais difundidos e triunfantes até hoje, devem ser superados. Por isto, o

primeiro livro da transvaloração de todos os valores se chama “O anticristo”, ou “O

anticristão”, como já foi sugerido.

4) Cristianismo

A crítica que se dirige contra o cristianismo é a de promover o enfraquecimento e

mediocrização do homem. A desvalorização de tudo o que é forte e ascendente apenas

aumentou com o cristianismo, a vida continuou a ser caluniada em nome de um outro

mundo além deste que se conhece. No cristianismo, tudo o que degrada e diminui a vida é

entendido como bom e deve ser praticado pelos fiéis. A fraqueza de espírito e o medo de

seguir suas próprias inclinações, o medo de realização dos instintos é o bicho de

consciência plantado pelos sacerdotes cristãos através da culpabilização moral dos instintos

e propensões naturais e pela postulação de valores metafísicos que devam guiar o homem

em seus atos. Uma moral que prega a abstenção de si como caminho para a salvação; um

deus que vê com maus olhos os instintos humanos e que exige que o homem não mais os

sinta, pois até mesmo senti-los é pecado; uma religião que prega a piedade como afeto

principal e ensina a não mais se defender e a não mais atacar; a busca por uma paz de

espírito que é o resultado da abstenção de si. Para o cristianismo, bom é aquilo que não faz

mal a ninguém. Vemos aí a característica defensiva da moral de rebanho. Até mesmo

alguns afetos que não fazem mal a ninguém, mas que fortalecem o homem são

considerados pecado. Enquanto, anteriormente, a virtude era sinônima de virilidade e

capacidade de autodomínio, a moral cristã pregou a virtude enquanto submissão à sua

moral. “O cristianismo como adestramento do animal gregário: as pequenas virtudes do

animal gregário como sendo a virtude”350. Aquele que a tudo obedece, este é o bom. Assim

profere esta moral. O cristianismo é a religião que exalta as características do homem fraco

349 Nietzsche, “Genealogia da moral”, I, 15. 350 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 10[75]

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esclarecidas anteriormente, é religião que prega a fraqueza enquanto virtude de alguém que,

teoricamente, não agiu porque não quis, ao invés de assumir que lhes era impossível agir,

porque são impotentes. O cristianismo aparece como a religião que protege os impotentes e

a maneira que tem de fazer isto é enfraquecendo a todos. Agora, só os impotentes serão

salvos. Com este temor, até os mais fortes se renderam ao ascetismo. A moral cristã fez

com que os homens desaprendessem a querer. Só é permitido seguir a um pastor, isto é, ao

sacerdote cristão. O cristianismo tem o homem gregário como seu ideal, pois assim pode

formar um rebanho. Porém, este ideal é o que há de mais contrário ao que Nietzsche

entende ser o objetivo de um povo ou de uma cultura. Com este ideal de homem dócil luta-

se contra o surgimento de um tipo mais forte, luta-se contra a exceção que ultrapassa a

mediocridade. “Esta eleição de um ideal foi até agora a tentação mais inquietante a qual o

homem já foi exposto; pois ela ameaça fazer desaparecer as exceções mais vigorosamente

bem sucedidas, os casos de sorte do homem, nos quais a vontade de potência e de

crescimento do tipo humano integral dão um passo adiante”.351

A questão de uma cultura é saber que tipo de homem é desejado e deve, portanto,

ser incentivado, elevado, produzido. Para Nietzsche, este homem é o tipo nobre que já

vimos. Não mais à maneira antiga de guerreiros medievais, mas enquanto pessoas capazes

de viver plenamente tudo aquilo que a vida pode oferecer-lhes. Pessoas que não mais fujam

de seus sentimentos e que sejam capazes de olhar para dentro do abismo de sua própria

existência e de lá retornar fortalecido. Ou não retornar. Que importa! Este homem já existiu

como exceção. No renascimento, por exemplo. Mas nunca foi quisto, desejado enquanto

meta. Ao contrário, sempre foi temido e posto de lado quando apareceu. “E é o medo que

ele inspira que leva a querer, a buscar, a obter enfim o tipo oposto: o homem-animal

doméstico, animal gregário, animal doente, o cristão...”352

O cristianismo travou uma luta de morte contra o tipo nobre e seus valores

afirmativos tornando-se uma espécie de véu que esconde a decadência. Nietzsche afirma

que “todos os valores nos quais a humanidade deposita atualmente suas mais altas

aspirações, são valeurs de la décadence”353. Para o filósofo, decadente é “todo animal, toda

espécie, todo individuo que perde seus instintos, que escolhe, que prefere aquilo que lhe faz

351 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 11[55] 352 Id., “L’anthéchrist”, 3. 353 Id., “L’anthéchrist”, 6.

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123

mal”354. Pois, já vimos, vida é “instinto de crescimento, de dureza, de acúmulo de forças, de

potência: lá onde falta a vontade de potência, há o declínio”355. A modernidade, como

herança do cristianismo, aspira por aquilo que a enfraquece, que a torna escrava e

homogênea.

O cristianismo pode ser definido, segundo Nietzsche, como a religião da

compaixão. Para o filósofo, a compaixão é justamente o oposto dos sentimentos fortes e

viris que quer revalorizar. A compaixão é um sentimento que deprime e entristece, ao invés

de fortificar. A compaixão aumenta o sofrimento que a vida possa trazer por si mesma. A

compaixão visa preservar os condenados e malogrados da vida, dando-lhes consolo e

acolhida, não para que se fortaleçam, mas para que permaneçam no sofrimento. O

cristianismo fez da compaixão a virtude por excelência valorizando o que é fraco e doente.

A compaixão só pode ser a grande virtude em uma religião ou filosofia niilista. Nietzsche

não cansa de criticar a compaixão, para ele, ela é a negação da vida, é a práxis do niilismo,

é um instinto depressivo contagioso, é um multiplicador da miséria e da fraqueza, é o

instrumento principal de agravamento da decadência, hostilidade à vida, é o que há de mais

doente em nossa modernidade doente...356 O deus cristão, deus da compaixão, deus dos

doentes é, para Nietzsche, a concepção mais corrompida de deus que já existiu. Isto porque,

possivelmente pela primeira vez, tem-se uma concepção de deus que vai contra todos os

instintos ascendentes e afirmativos da vida.

Para ser capaz de valorizar de tal forma aquilo que denigre a vida, os teólogos e

sacerdotes precisaram mover uma longa batalha contra o pensamento. Em todo lugar onde

houve inteligência, pensamento autônomo, ciência, eles fizeram uso de uma moral que a

isto desqualificasse. O nome desta moral é a fé. Através da fé, fecharam-se os olhos para

todas as outras possíveis manifestações da vida que contrariassem os planos cristãos.

Assim, falsearam, mais uma vez, a vida, atribuindo-lhe um sentido oculto, disponível

apenas aos sacerdotes e negando qualquer possibilidade de conhecimento fora de sua

religião. Para o sacerdote, verdadeiro é apenas aquilo que diz seu deus e que, portanto,

somente ele (sacerdote) tem acesso. Isto é, moralmente verdadeiros são todos os instintos

negadores da vida, todos os mandamentos de recusa de si e negação dos próprios instintos.

354 Nietzsche, “L’anthéchrist”, 6. 355 Ibid., 6. 356 Ibid., 7.

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Já aquilo que engrandece a vida e a fortifica, isto torna-se falso quase que por definição. A

fé na religião é o instrumento do qual o sacerdote lança mão para forçar seus fiéis a uma

crença cega nos princípios cristãos a despeito de quaisquer outras manifestações em

contrário. “O padre, o que ele fez da ciência? Ele está bem acima dela! — E, até o presente,

o padre reinou! Foi ele quem decretara o verdadeiro e o falso!”357 Durante muito tempo,

não só o homem de ciências, mas também qualquer pessoa que se arvorasse o direito de

pensar livremente, isto é, por sua própria cabeça, ou por suas próprias víscera, foi

perseguido pela Igreja católica. “No cristianismo, nem a moral, nem a religião possuem

algum ponto de contato com a realidade. Só existem causas imaginárias (‘Deus’, ‘alma’,

‘eu’, ‘livre arbítrio’, — ou mesmo ‘servo arbítrio’); só existem efeitos imaginários

(‘pecado’, ‘redenção’, ‘graça’, ‘expiação’, ‘remissão dos pecados’); (...)” 358 O cristianismo

faz o uso das interpretações mais abusivas sobre o texto da realidade. Essas explicações

metafísicas e fantásticas foram acreditadas por inúmeras pessoas, produzindo um processo

de enfraquecimento da humanidade, pois só assim os sacerdotes poderiam dominar. A

religião criou o ódio contra o real.

Mas, então, Nietzsche se pergunta: “Quem teria o interesse em se evadir da

realidade em nome de uma mentira?” E responde, “Aqueles que sofrem da realidade.”359

Aquelas pessoas nas quais os sentimentos desagradáveis e infelizes são os sentimentos mais

fortes criam, então, uma moral de negação da vida, pois a vida lhes é difícil de suportar.

Cria-se a esperança em uma vida depois da morte, contra toda e qualquer vida terrena. Tal

esperança não pode ser nem comprovada, nem desmentida. Por isto, necessita de que se

tenha fé no mundo do além para que ele realmente exista. Quando se coloca a solução e a

motivação das questões da vida em uma recompensa de um mundo perfeito após a morte,

tem-se a conclusão de que esta vida não vale a pena e que o melhor é seguir os

mandamentos cristãos em nome de uma vida eterna após a morte.

“O que combatemos no cristianismo? O fato de que ele quer quebrar os fortes, desencorajar sua coragem, explorar seus maus momentos e suas lassitudes, perverter sua firme segurança em inquietude e em angústia de consciência, o fato que eles se colocam a envenenar e tornar doentes os instintos nobres até que sua força, sua vontade de potência venha a retroceder, se voltar contra si mesma – até conduzir os fortes a se arruinar nas extravagâncias do desprezo

357 Nietzsche, “L’anthéchrist”, 12 358 Ibid., 15 359 Ibid., 15

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125

de si e do descuidado de si: esta horripilante forma de se arruinar da qual Pascal oferece o mais célebre exemplo.”360

Fazendo uma genealogia dos deuses Nietzsche mostra que os deuses sempre foram

sinal de força. Um povo mantinha um deus enquanto este significava a superação de

dificuldades. Aquele deus era sinal da força do povo que o venerava. Era uma forma de

agradecimento e gratidão pelo fato do povo permanecer forte. Não cabia a estes deuses

fazer o bem e o mal. Ele era admirado pelo bem ou pelo mal que pudesse ter feito. Para

Nietzsche, determinar que um deus deva apenas fazer o bem significa uma castração contra

deus. Dentro deste contexto faz a pergunta: de que povo poderia vir um deus que não

conhece as glórias da vitória? De onde poderia vir um deus que não representa a força

adquirida em momentos difíceis, mas superados? – Quando um povo começa a perder sua

força, sua crença em seu futuro, começa a ver a submissão como única forma de se manter,

então, seu deus termina por refletir esta mudança. É impossível a um povo em declínio, que

viva em um contexto de decadência da vida, acreditar e manter um deus forte e guerreiro.

Ele não refletiria mais o que é aquele povo. “Ele se torna covarde, pusilânime, modesto, ele

aconselha agora a paz da alma, o fim do ódio, a indulgência, o amor frente a amigos e

inimigos.”361 Onde falta a vontade de potência, começa a decadência. Assim, um povo que

teve seu deus forte e vigoroso pode passar a ter um deus doente e impotente.

Para Nietzsche, o tipo de moral pregada pelo cristianismo reflete a história de um

povo. Para o filósofo, o cristianismo é uma conseqüência do judaísmo. Segundo Nietzsche,

para que o povo judeu continuasse existindo foi preciso que falseassem toda a realidade.

Desta forma, criaram um outro mundo a partir do qual a força da vida fosse mostrada

enquanto vilã para conseguirem dizer não a tudo o que era ascendente, potente, pleno de

vida. “(...) o povo judeu (...) colocado diante de situações dificílimas, voluntariamente e

com uma profunda habilidade para a sobrevivência, tomaram partido dos instintos de

décadence – não porque eram dominados por tal instinto, mas porque adivinharam neles

uma potência graças a qual puderam se impor contra o mundo.”362 Os judeus, em um

momento de decadência histórica, fizeram da decadência mesma, um valor, uma virtude.

Pregar a impotência como virtude foi o caminho que conseguiram para se tornarem 360 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 10[55] 361 Nietzsche, “L’anthéchrist”, 16 362 Ibid., 25

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poderosos. Nietzsche desvenda aqui a questão de como conseguir fazer da impotência a

arma com a qual torna-se a si mesmo potente. Ora, a única maneira de os fracos se

tornarem poderosos é enfraquecendo os fortes.

Inicialmente, Israel tinha uma relação tradicional com seu deus. Esperava-se vitória

e saúde. Ele daria o necessário. Mas, segundo Nietzsche, a anarquia interior do povo e os

conflitos com os assírios tornou a situação dos judeus um tanto crítica. Não mais era

possível manter aquele deus glorioso, ele não correspondia mais à realidade. Mas, preferiu-

se manter este deus a todo custo, mesmo que, para tanto, ele tivesse que permanecer

completamente desfigurado e modificado. O deus virou um instrumento nas mãos dos

sacerdotes. Agora, a bondade se torna recompensa e o mal, um castigo. Cria-se uma

causalidade antinatural em detrimento das causalidades naturais. Inventa-se uma ordem

moral universal. “O que é então a moral judia? O que é então a moral cristã? O acaso

despojado de sua inocência; a infelicidade sujada com o nome de pecado; o bem estar

conhecido como um perigo, como uma tentação, o mal estar psicológico envenenado pelo

verme roedor da consciência.”363 Para tanto, foi preciso, inclusive, falsear a própria história

de Israel. Reinterpretaram-na sob a ótica do castigo e punição.

É preciso entender a relação que a religião mantém com o sofrimento. O judaísmo

passou a entender o sofrimento enquanto culpa por uma falta cometida em vida. Introduziu

as noções de castigo e recompensa no devir, destituindo-o de sua inocência. Interpretou os

fatos da vida enquanto pecado, atribuindo culpa às ações das pessoas. Desta forma,

culpabiliza-se a vida em nome de uma moral e prega-se que se abstenha dela como meio

para a salvação. Com isto, já dissemos, o sacerdote cristão torna-se mestre do homem de

moral nobre, pois este passa a entender suas atitudes, anteriormente tidas como boas, como

sendo contrárias a deus.

Como conciliar então esta contradição? Pelo arrependimento e pela guerra contra si

mesmo. O homem nobre se torna o pior inimigo de si mesmo, pois acredita que aquilo que

sente é pecado e que, se não mudar sua conduta, não será salvo após a morte. O valor de um

indivíduo ou de um povo passou a ser medido não mais por seu poder, mas pelo grau de

obediência a deus que ele era capaz. O padre torna-se necessário. As coisas mais

elementares da vida perdem seu valor e necessitam que o padre diga que valem ou não

363 Nietzsche, “L’anthéchrist”, 25

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alguma coisa. Agora, só é bom aquilo que o padre diz estar de acordo com a ordem divina.

Quando se comete um pecado, é preciso se submeter ao sacerdote para que este lhe conceda

o perdão. Só o padre pode perdoar. “A desobediência a deus, isto é, ao padre, à ‘lei’, se

chama agora ‘pecado’; os meios de se ‘reconciliar com deus’, são, como era de se esperar,

os meios que asseguram uma submissão ainda mais profunda ao padre: só o padre

‘salva.’”364 Assim, o sacerdote se tornou mais poderoso que os demais.

Existe uma diferença entre a vida e o exemplo de Cristo e a interpretação que se fez

deste exemplo. A doutrina de Cristo foi ensinada por ele através de sua conduta, através

daquilo que ele fazia na vida. A palavra e o discurso sempre foram algo posterior e de

segunda importância. O que Cristo criticava nos judeus era esta estrutura hierárquica e

distante entre os sacerdotes e os fiéis. A boa nova de Cristo é, justamente, o fato de que a

realidade já é o fim da distância entre homem e Deus. “O ‘pecado’, assim como todo

sentimento de distância nas relações entre o homem e deus é abolido, –, e, a ‘boa nova’ é

precisamente esta”.365 A religião cristã que surgia contra o judaísmo se propunha a mostrar

que é a conduta humana que leva à beatitude e a Deus, não a fé no sacerdote. “Não é a ‘fé ’

que distingue o cristão: o cristão age, ele se distingue por uma outra maneira de agir”.366 O

cristão transforma os preceitos de não agressão e de não violência em ato. Ele não se

preocupa com ofensas, não revida a agressão, não devolve nenhuma maldade. Ele já é todo

amor e paz. Não precisa de sacerdotes lhe dizendo como chegar a deus. Essa atitude só é

alcançada por aqueles que chegaram a Deus e, simultaneamente, só se chega a Deus por

esta conduta. “A vida do Redentor não foi outra coisa senão esta prática, assim como sua

morte...” 367 As ofensas e todas as demais coisas exteriores, boas ou ruins, isto é, toda a

realidade, são trocadas por um estado de contentamento interior. Este estado deve ser a

fortaleza que permite se colocar diante do mundo sem reagir a ele. Este estado é a presença

divina. Se Cristo morreu, não foi para salvar os homens, mas para demonstrar uma conduta

reta na vida. Uma forma de viver em Deus. Desta forma, nada pode ser menos cristão do

que a apropriação que Paulo e seus discípulos posteriormente chamaram de cristianismo. É

por isto que Nietzsche diz que até hoje só existiu um cristão: Cristo. “O ‘evangelho’ morreu

364 Nietzsche, “L’anthéchrist”, 26. 365 Ibid., 33. 366 Ibid., 33. 367 Ibid., 33.

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128

na cruz. Depois deste momento, aquilo que se chamou ‘evangelho’ é já o contrário daquilo

que Cristo mesmo viveu: uma ‘má nova’, um ‘desangielium’.”368

Com a morte de Cristo, pergunta-se pelos culpados. A resposta: os judeus e a classe

dominante. Inicia-se assim, uma revolta contra o poder estabelecido. A morte de Cristo é

uma morte sem ressentimentos. É alguém que ignora os poderosos, e suas leis, a ponto de

se deixar morrer por elas sem se abater; não há ressentimento em Cristo, pois ele é superior

a este sentimento. Cristo morreu para mostrar a fraqueza dos homens e das estruturas às

quais dedicavam suas vidas e incitar as pessoas a que vivessem sem se deixar seduzir por

coisas mesquinhas. Mas, sua morte foi transformada em motivo de revolta, não foram

capazes de perdoar. Os seguidores de Cristo não foram capazes de serem cristãos, não

foram capazes de seguir os ensinamentos de seu mestre, revoltaram-se contra seu

assassinato, enquanto a atitude cristã correta seria lamentar, com uma certa tranqüilidade da

alma, a ignorância dos assassinos. Cristo foi mal interpretado! A partir daqui, a realidade do

evangelho foi posta de cabeça para baixo.

O que aconteceu, segundo Nietzsche foi que, com a difusão do cristianismo, uma

série de fracos e doentes do espírito começaram a buscá-lo. A Igreja teve necessidade de se

rebaixar aos seus seguidores para continuar crescendo. “A fatalidade do cristianismo reside

na necessidade que teve de tornar sua fé tão doente, tão baixa e tão vulgar quanto eram

doentes, baixas e vulgares as necessidades que tinha que satisfazer.”369 A igreja católica

volta-se assim, da mesma forma que sua antecessora, para o poder que uma religião é capaz

de exercer sobre o povo. A realidade não mais é levada em conta. Importa, apenas, o poder

que dela decorra para o sacerdote.

Interpretou-se a morte de Cristo não como a conseqüência natural de alguém que

conseguiu ignorar o poder e demonstrar publicamente que isto era possível, mas como o

sacrifício do filho de Deus, que o próprio Deus havia enviado a Terra para salvar os

humanos. Acrescentou-se, ainda, a esta história, uma ressurreição, para marcar a diferença

de Cristo para com todos os demais e destacar seu comportamento como impossível e

inacessível a qualquer outro mortal. Assim pôde surgir a doutrina da culpa, do castigo, da

recompensa, do juízo final, da penitência e do arrependimento, etc. Esta doutrina retira da

368 Nietzsche, “L’anthéchrist”, 39. 369 Ibid., 37.

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129

vida seu centro de gravidade, colocando-o no nada, no além, em outro mundo. Agora, a

doutrina cristã não mais era praticada em vida, mas só depois da morte. Cabia ao fiel

apenas ser infeliz em sua medíocre existência e seguir as orientações sacerdotais para que

fosse salvo quando morresse. Este pensamento destrói tudo aquilo que os instintos

naturalmente afirmam e aponta para a idéia de que somente a impotência é boa. Não se

trata de dosar a força dos instintos e usá-los a seu favor, trata-se negar todo e qualquer

instinto como sendo contrário ao mandamento divino. A partir dos valores de negação da

vida, o cristianismo julga a todo o resto. A noção de pecado nega a vida naquilo que ela tem

de mais potente. Com a moral cristã, tem-se a humanidade dominada pelo cabresto. Tornar

uma pessoa doente, esta é a verdadeira intenção do cristianismo. Na verdade, para que

alguém se torne cristão, já é necessário que esteja doente. Ao estabelecer metafisicamente

os mandamentos de deus, define-se o valor dos valores como estando acima da

humanidade. Não é mais o homem quem cria seus valores, eles já estão dados por deus e

apenas o sacerdote é capaz de interpretá-los. Retira-se do homem a capacidade de

autodeterminar sua própria vida. Por este caminho, a santidade e a beatitude se dão a partir

do agravamento da doença.

Contra todo este mundo doentio, Nietzsche recomenda uma boa dose de ceticismo.

Uma convicção, por mais forte que seja, não é um sinal da veracidade desta convicção.

Muito pelo contrário, a força com que se defende uma convicção, geralmente, é a tentativa

de se fazer acreditar em algo muito pouco provável. Algo deste gênero, ou será logo

desacreditado, ou precisa ser muito valorizado. Mas, para valorizar muito algo improvável

e imperscrutável é necessário muita fé. Eis porque a fé é tão necessária ao cristianismo. As

grandes convicções são, na verdade, grandes prisões, pois impedem que o espírito se torne

livre para buscar compreender aquilo que realmente se passa. Para o convicto, não existe

mais discussão, ele já possui a verdade. Caso esteja errado, não aceitará esta possibilidade e

dirá que aquilo que se opõe à sua convicção é um erro. O que impressiona Nietzsche é que,

se na época em que surge o cristianismo, acreditava-se verdadeiramente em sua doutrina e

em seus ditames, hoje, tais ditames não mais podem ser defendidos de forma sincera. O

padre que prega a punição aos pecadores, amedronta os fiéis com o juízo final, ele mente e

sabe que sua mentira visa a manutenção de um poderio milenar que a Igreja exerceu sobre

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as pessoas. Este poderio teve como conseqüência a pregação do ascetismo como valor

superior durante dois milênios.

5) O ideal ascético como resposta à dor e à ausência de sentido

O papel das religiões cristãs foi o de conferir à existência um sentido que trouxesse

consigo a exigência de obediência a seus preceitos morais. Ao apresentar o sofrimento

enquanto dívida para com deus e ao propor a negação de si como conduta que levaria à

salvação, o cristianismo responde a uma pergunta fundamental em qualquer cultura, a

saber, a pergunta pelo sentido do sofrimento e da dor. Contudo, ao pregar o ascetismo,

oferece o nada enquanto sentido para a vida. Nietzsche buscará entender por que a conduta

ascética foi a conduta defendida como moral pelo cristianismo até o ponto de se tornar um

ideal. Para tentar entender as razões do histórico desprezo em relação aos sentidos,

Nietzsche se pergunta “o que significam ideais ascéticos?” 370 Isto é, o que significa o fato

de a negação de si ter se tornado o sentido da vida? – O enfraquecimento dos fortes só foi

possível na medida em que a negação de si e o ascetismo se tornaram as virtudes por si

mesmas. A negação dos instintos teve que se tornar um ideal de existência para que pudesse

ser seguido com tanta força. “Porém, no fato de o ideal ascético haver significado tanto

para o homem se expressa o dado fundamental da vontade humana, o seu horror vacui

[horror ao vácuo]: ele precisa de um objetivo – e preferirá ainda querer o nada a nada

querer.”371

A conduta ascética foi tida como a conduta capaz de permitir o acesso à verdade

metafísica da existência. Esta foi a forma de transformar a negação de si em ideal de

salvação, fazendo de uma moral baixa e fraca um ideal divino. Contudo, o ascetismo, por si

mesmo, não implica em negação da vida. Nietzsche mostra a diferença entre a conduta

ascética do filósofo e este comportamento erigido em ideal por uma religião. A filosofia e o

ascetismo sempre caminharam próximos. O filosofar requer um certo comportamento

calmo e contido, nenhuma perturbação, barulho, deveres, obrigações, etc., eis o que lhes é

indispensável.372 Daí que uma certa dose de ascetismo sempre foi necessária ao filósofo. O

370 Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 1 371 Ibid., III, 1 372 Ibid., III, 8

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ascetismo, para ele, é a busca por uma espécie de condição ótima para seu trabalho, um

estado de espírito que lhe possibilite dar o melhor de si, uma forma de alcançar seu máximo

de poder. “Todo animal, portanto também a bête philosophe [besta filósofo], busca

instintivamente um optimum de condições favoráveis em que possa expandir inteiramente

sua força e alcançar o seu máximo de sentimento de poder”.373 O ascetismo propicia esta

condição. “Que significa então o ideal ascético para um filósofo? Minha resposta é – já se

terá percebido: o filósofo sorri ao seu encontro, como a um optimum das condições da mais

alta espiritualidade – ele não nega com isso ‘a existência’, antes afirma a sua existência” 374

Desta forma, é natural que exista uma forte afeição por parte dos filósofos para com este

ideal. Porém, não se trata de valorizá-lo enquanto uma moral que negue a vida. Se o

comportamento filosófico se aproxima do ascetismo, isto se dá enquanto instinto dominante

que impõe suas exigências aos demais instintos. Não se trata de uma moral ou virtude que

vê neste comportamento o bem em si ou algo do gênero. O filósofo produz melhor sua

filosofia dentro de um certo ascetismo, ele é mais potente neste estado, não há moral aqui,

há vontade de potência.375

O comportamento calmo e meditativo era mal visto em épocas guerreiras e viris,

quando a potência violenta do homem se encontrava no centro das valorações. Isto valia

para todos os tipos que faziam uso do comportamento ascético, entre eles: o sacerdote, o

adivinho, o homem religioso, etc. Tais tipos tiveram que despertar um certo medo a seu

respeito para poderem existir. “O que havia de inativo, cismador, não-guerreiro nos

instintos dos homens contemplativos, despertou por muito tempo uma profunda

desconfiança à sua volta: contra isso não havia outro recurso senão inspirar decidido temor

a si.”376 Os filósofos tinham todo o costume da época voltado contra eles e era preciso que

imitassem e acreditassem no ideal ascético, praticado principalmente pelos religiosos, para

que pudessem continuar desempenhando sua vontade de pensar. O ideal ascético era tão

antagônico aos instintos guerreiros que chegava a despertar desconfiança e medo sobre

aquele que o praticava. Tal comportamento foi tão importante que se tornou quase que a

própria filosofia.

373 Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 7 374 Ibid., III, 7 375 Ibid., III, 8 376 Ibid., III, 10

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“A atitude à parte dos filósofos, caracteristicamente negadora do mundo, hostil à vida, descrente dos sentidos, dessensualizada, e que foi mantida até a época recente, passando a valer quase como a atitude filosófica em si – ela é, sobretudo, uma conseqüência da precariedade de condições em que a filosofia surgiu e subsistiu: na medida em que, durante muitíssimo tempo, não teria sido possível filosofia sobre a terra sem o invólucro e disfarce ascético, sem uma auto-incompreensão ascética.”377

O ideal ascético foi a única forma sob a qual o filósofo pôde existir durante a maior

parte do tempo, precisando negar o mundo sensível para tanto. Porém, Nietzsche diz que a

associação entre negação da vida e filosofia é uma auto-incompreensão. Ao falar de uma

auto-incompreensão ascética, Nietzsche deixa claro que o ascetismo, entendido como

negação dos sentidos e hostilidade à vida, não é uma condição para a filosofia, embora

tenha sido outrora. Sua aspiração é que hoje as condições para a existência do filósofo

sejam diferentes, de tal modo que ele já possa existir sem que seja necessário o disfarce

ascético. O filósofo não mais precisa ser asceta.

Vemos então, duas formas diferentes de se encarar o ascetismo. Em uma, ele nada

mais é do que um comportamento exigido por uma vontade filosófica que o impõe como

meio para o aumento de potência; na segunda forma, temos o ascetismo pregado enquanto

moral e virtude que desqualifica o mundo e é hostil à vida naquilo que ela tem de mais

básico, isto é, na própria vontade de potência. O ideal ascético do filósofo não precisa ser,

necessariamente, uma negação da vida. A diferença é que o filósofo o entende não como

uma moral e sim como uma vontade. O ascetismo enquanto moral aparece como a prática

desenvolvida pelos sacerdotes de religiões que pregam este comportamento como a forma

de se chegar a um outro mundo metafísico e dessensualizado. Ao pregador desta moral,

Nietzsche chama de sacerdote ascético. Temos aqui o mesmo comportamento (ascetismo)

atuando contra e a favor da vida.

“O pensamento em torno do qual aqui se peleja, é a valoração de nossa vida por parte dos sacerdotes ascéticos: esta (juntamente com aquilo a que pertence, ‘natureza’, ‘mundo’, toda a esfera do vir a ser e da transitoriedade) é por eles colocada em relação com uma existência inteiramente outra, a qual exclui e à qual se opõe, a menos que se volte contra si mesma, que negue a si mesma: neste caso, o caso de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para essa outra existência.”378

377 Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 10 378 Ibid., III, 11

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Diferentemente do significado do ideal ascético para o filósofo, que não o coloca

contra a existência, ao contrário, usa-o a seu favor, para o sacerdote ascético este ideal

termina por negar toda sensibilidade neste mundo em nome de uma outra existência para

além da vida. O ideal ascético, na medida em que nega a vida, serviria como o caminho de

acesso ao mundo perfeito metafísico. A partir daqui, o ideal ascético se associa com a

negação da vida, pois é tido pelos sacerdotes como o comportamento capaz de levá-los ao

sentido metafísico da existência. “Supondo que essa vontade encarnada de contradição e

antinatureza seja levada a filosofar: onde descarregará seu arbítrio mais íntimo? Naquilo

que é experimentado do modo mais seguro como verdadeiro, como real: buscará o erro

precisamente ali onde o autêntico instinto de vida situa incondicionalmente a verdade.”379

A única coisa que é experimentada como “dado” são os instintos, os sentidos, o corpo, o

“mundo”, a “natureza”, o vir a ser ... O ideal ascético os interpreta como erro, como engano

e prega a negação dos mesmos em nome de uma outra coisa para além deles, que seria o

lugar onde reside a verdade. Assim, o ideal ascético nega a vida em nome da verdade e do

bem metafísicos e faz com que a vida atue contra a vida.

“Pois uma vida ascética é uma contradição: aqui domina um ressentimento ímpar, aquele de um insaciado instinto e vontade de potência que deseja senhorear-se, não de algo da vida, mas da vida mesma, de suas condições maiores, mais profundas e fundamentais; aqui se faz a tentativa de usar a força para estancar a fonte da força; aqui o olhar se volta, rancoroso e pérfido, contra o florescimento fisiológico mesmo, em especial contra a sua expressão, a beleza, a alegria; enquanto se experimenta e se busca satisfação no malogro, na desventura, no fenecimento, no feio, na perda voluntária, na negação de si, autoflagelação e autosacrifício.”380

O tipo fraco, em outros tempos, se encontrava submetido à vontade dos bem

logrados. Nesta época, travaram, à sua maneira, uma luta contra os fortes e foram capazes

de inverter os valores afirmativos. Diante da impossibilidade de lutarem pela afirmação da

potência, passaram então, a desvalorizar o comportamento guerreiro e a construir

justificações metafísicas para a impotência. O ascetismo é o valor pregado pela impotência

em vistas de inverter a valoração nobre da vida. No fundo, ainda se trata da vontade de

potência, de uma ânsia por domínio. Se, pelas vias comuns de afirmação da força lhes foi 379 Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 12 380 Ibid., III, 11

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impossível sobressair aos fortes, trataram de criar uma forma de se tornarem senhores por

outros meios. Em todo lugar onde há vida, há vontade de ser senhor. A forma como os

impotentes tiveram de sê-lo foi questionar a afirmação da vida feita pelos fortes e, assim, os

tornaram fracos. A forma que os fracos têm para lutar é tornando seu adversário igual a

eles. Isto foi sua vingança.

“Estes são todos homens do ressentimento, estes fisiologicamente desgraçados e carcomidos, todo um mundo fremente de subterrânea vingança, inesgotável, insaciável em irrupções contra os felizes, e também em mascaramentos de vingança, em pretextos para a vingança: quando alcançariam realmente o seu último, mais sutil, mais sublime triunfo de vingança? Indubitavelmente, quando lograssem introduzir na consciência dos felizes sua própria miséria, toda a miséria, de modo que um dia começassem a se envergonhar da sua felicidade, e dissessem talvez uns aos outros: ‘é uma vergonha ser feliz! Existe muita miséria!”381

Nietzsche propõe aos afirmativos que ainda existem que não se juntem aos fracos

nem tentem salvá-los, pois correm o grave risco de se contaminarem. É preciso manter a

distância entre os fortes e os fracos, “é preciso sempre armar os forte contra os fracos”382,

manter o pathos da distância. Mas, neste caso, quem oferecerá ajuda aos sofredores? Este

alguém é o sacerdote ascético.

A religião foi a forma clássica de aglutinar os sofredores e dar-lhes algum tipo de

calmante e consolo. A religião aparece como uma explicação psicológico-moral para um

problema fisiológico.383 Cria uma moral que interpreta a fraqueza como uma opção pelo

bem. Foi isto que o cristianismo fez. Em todos os casos, o que tenta aqui a religião é uma

diminuição do desprazer que se sente com a vida. A receita é, primeiramente, a conduta

ascética, pois esta proporciona uma espécie de adormecimento dos sentidos. “Esse

desprazer dominante é combatido, primeiro, através de meios que reduzem ao nível mais

baixo o sentimento vital”.384 Se a vida é o que causa sofrimento, então se faz a tentativa de

estancar o sofrimento diminuindo a atividade vital ao mínimo possível. “Se possível

nenhum querer, nenhum desejo mais; evitar tudo o que produz afeto, que produz ‘sangue’

(...); não amar; não odiar; equanimidade; não se vingar; não enriquecer; não trabalhar;

381 Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 14 382 Id., “Fragments Posthumes”, XIV, 14[123] 383 Id., “Genealogia da moral”, III, 17. 384 Id., “Genealogia da moral”, III, 17.

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mendigar; se possível nenhuma mulher, ou mulher o menos possível”.385 É verdade que tal

receita costuma funcionar naquilo que pretende, isto é, diminuir o sentimento de desprazer.

Porém, não se trata de um remédio que resolve as causas do problema. O que se tem aqui é

uma diminuição do sentimento de desprazer causado pela vida através de uma diminuição

do sentimento de vida. Se a vida é um fardo, quanto menos vida, menor o fardo. Todavia,

as causas de se sentir a vida como um fardo permanecem. A pergunta aqui seria: por que

algumas pessoas sentem a existência como um fardo e outras como uma dádiva? A

explicação de Nietzsche é que isto é apenas uma questão de interpretação. Como se

interpreta a existência, como algo mau e causador de sofrimentos ou como algo que se

justifica por si mesmo? Aquele que interpreta tudo contra si e entende que tudo é feito para

o sofrimento demonstra, desde o início, uma má disposição em relação à vida. Ao contrário,

um “homem forte e bem logrado digere suas vivências (feitos e malfeitos incluídos) como

suas refeições, mesmo quando tem que engolir duros bocados”.386 O caráter fisiológico de

que fala Nietzsche é a capacidade de afirmar ou negar a vida. Que a existência traga

consigo, necessariamente, alguma dose de sofrimento, é inegável. Mas entender este

sofrimento como um motivo para se negar a vida já é uma atitude daquele que está cansado

da mesma.

É comum a todo aquele que sofre buscar compreender o motivo ou a causa de seu

sofrimento. É comum que diga que alguém ou algo é culpado por seu sofrer. Desta forma,

acumula um ressentimento em relação ao culpado. Seu objetivo seria o de se vingar deste

culpado e lhe devolver o sofrimento que sente. A descarga de afeto ocasionada por esta

vingança serviria como um entorpecimento da dor que sente. Aqui, o trabalho do sacerdote

ascético consiste em dizer ao doente que seu sofrimento não se deve a um motivo exterior,

mas que ele mesmo é o culpado por seu sofrer. O sacerdote ascético inverte a direção do

ressentimento. Se, antes, o sofredor culpava alguém ou algo por seu sofrimento, agora

começa a pensar que ele mesmo é o culpado. O caminho adotado pelo sacerdote para aliviar

a depressão foi o aproveitamento do sentimento de culpa. O sentimento de culpa

transformado em pecado fez da vida do sofredor um eterno caminho para livrar-se dela.

Porém, era-lhe impossível. A salvação só poderia vir após a morte. O animal que, uma vez

385 Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 17. 386 Ibid., III, 16

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impedido de exteriorizar seus instintos por questões de sociabilidade, se voltou contra si

mesmo para satisfazer o desejo de fazer sofrer tem no sentimento de culpa o maior de suas

dores. Quem sofre busca a causa de seu sofrer. Sem saber ao certo o por quê de tanta dor, o

homem busca o sacerdote que lhe diz que seu sofrer se deve ao seu passado de pecador.

Todos vêm ao mundo por um pecado inicial, ninguém está a salvo. Todos são culpados por

existir. O sofrimento é a forma de expiação terrena do pecado. Apenas após a morte a paz

pode ser alcançada. Mesmo assim, apenas para aqueles que sofreram muito em vida. Desta

forma, a dor se tornava quase que um meio de salvação. Com isto, a depressão era vencida,

afetos e sentimentos eram novamente sentidos. Se a vida era um fardo, deus assim o quis e

então isto era bom. “Esse velho grande mago em luta contra o desprazer, o sacerdote

ascético – ele havia claramente vencido, o seu reino havia chegado: já não havia queixa

contra a dor, ansiava-se por ela; ‘mais dor! Mais dor!’”.387 Sequer é necessário dizer que,

mesmo que o sentimento de desprazer com a vida e a depressão tenham sido vencidos, não

se curou, de forma alguma, o doente. O que se tem é um homem “‘domesticado’,

‘enfraquecido’, ‘desencorajado’, ‘refinado’, ‘embrandecido’, ‘emasculado’ (ou seja, quase

o mesmo que lesado...). Mas tratando-se sobretudo de doentes, desgraçados, deprimidos,

um tal sistema torna o doente invariavelmente mais doentes”.388 Esta postura culpada diante

da vida fez do homem um animal ainda mais fraco, incapaz de afirmar sua própria vontade

por considerá-la como culpada. O sofrimento que sentia e o auto-martírio a que se entregou,

decorrente de uma vontade voltada contra si mesmo foram esquecidos em nome de um

sentimento maior de religiosidade que, ao mesmo tempo em que garantia um sentido para a

existência, davam vazão à vontade de auto-martírio, ao interpretar a vida como pecado. O

ideal ascético é este ideal de fraqueza e abstinência de si que, por trás de uma máscara de

virtude, encobre uma impotência em afirmar a vida.

O ideal ascético é uma espécie de corolário do pensamento metafísico; quando este

último postula que a vida possui um sentido para além dela mesma e que esse sentido já

estaria pré-determinado, cria-se uma justificativa para todo o sofrimento, cria-se um sentido

para a existência. Porém, este sentido metafísico é, necessariamente, ascético, na media em

que se encontra fora da vida mesma, fora dos sentidos, fora do plano terreno e sensível. “A

387 Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 20. 388 Ibid., III, 21.

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falta de sentido do sofrer, não o sofrer, era a maldição que até então se estendia sobre a

humanidade – e o ideal ascético lhe ofereceu um sentido!”389 Esta interpretação colocou a

vida sob a perspectiva da culpa ao retirar do devir sua inocência e conferir-lhe uma

explicação que se encontrava para além de toda vida. A justificação para o sofrimento se

tornou um sentimento de culpa pelo viver. Mesmo assim, ao menos, a existência estava

justificada. Ela agora possuía um sentido, não era mais em vão. É certo que este ideal

enfraqueceu o homem, tornando-o dócil, pacato e escravo. Porém, justamente aqui reside

uma espécie de mal menor do ideal ascético: com ele, a vontade era preservada. A

explicação metafísica faz com que a vida ainda deva ser vivida, pois deus assim o quis. O

que se tem com o ideal ascético é que, por mais que a existência traga sofrimento, ela está

justificada por uma ordem divina que lhe confere sentido.

“Não se pode em absoluto esconder o que expressa realmente todo esse querer que do ideal ascético recebe sua orientação: esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio – tudo isto significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma vontade!...”390

Mesmo pregando uma espécie de vida contra a vida, o ideal ascético não é um

caminho rumo a morte, como pode aparentar. “O ideal ascético nasce do instinto de cura e

proteção de uma vida que degenera, a qual busca manter-se por todos os meios, e luta por

sua existência;”391 Por mais que se odeie a vida, o ideal ascético decorre dos instintos de

vida mais profundos que ainda impelem o homem a existir. A negação da força é a arma

dos fracos para continuar a viver. O fato de este ideal ter se propagado com tanto sucesso

mostra, para Nietzsche, que o homem é uma espécie de animal doente. A força do ideal

ascético denuncia a condição doentia do homem social.392 Porém, se “é normal a condição

doentia do homem – e não há como contestar essa normalidade –, tanto mais deveriam ser

reverenciados os casos raros de pujança da alma e do corpo, os acasos felizes”.393 Os acasos

felizes, as bestas louras, as aves de rapina, não são o problema, como geralmente se atesta. 389 Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 28 390 Ibid., III, 28. 391 Ibid., III, 13. 392 Ibid., III, 13. 393 Ibid., III, 14.

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O problema é o homem que sente a vida como um fardo e que busca dela se evadir. São

estes que denigrem a vida e buscam fazer com que os demais homens também percam seu

prazer de viver. As conseqüências desta moral são verdadeiramente nefastas para o homem.

Este não mais vive suas paixões e, por fim, termina por questionar sua própria confiança na

vida. O excesso de homens cansados e impotentes produz uma espécie de nojo em relação

ao próprio homem. Ao olhar este tipo sente-se nojo e compaixão. Nojo ao ver uma

existência que nega a si mesma e que busca aquilo que lhe é antagônico, compaixão pela

tristeza que uma tal visão pode causar. “Supondo que esses dois um dia se casassem,

inevitavelmente algo monstruoso viria ao mundo, a ‘última vontade’ do homem, sua

vontade de nada, o niilismo.”394 A vontade de nada decorre desta combinação e estagna a

potência diminuindo o homem. Querer o nada ainda é uma forma de viver. Uma forma

decadente, mas é uma forma.

6) Morte de Deus e niilismo

O ocidente viveu por mais de dois milênios guiado pelos valores forjados pelos

sacerdotes. Estes valores defendiam a negação do corpo e dos impulsos e usaram a força do

argumento da verdade divina como suporte de legitimação. A fundamentação da moral em

alicerces metafísicos tornava-os inquestionáveis, fortalecendo-os. Porém, o próprio ideal de

verdade pregado pela moral metafísica, religiosa ou filosófica, termina por voltar-se contra

si mesma. A moral da verdade termina por fazer a crítica da própria verdade e,

principalmente, de deus. Se a verdade moral residia na crença da perfeição absoluta de

deus, este impulso para a verdade termina por negar a própria existência divina. A morte de

Deus é a

“conseqüência de uma educação para a verdade que dura dois mil anos, que finalmente se proíbe a mentira de crer em Deus... Vê-se o que triunfou realmente sobre o Deus cristão: a própria moralidade cristã, o conceito de veracidade entendido de modo sempre mais rigoroso, a sutileza confessional da consciência cristã, traduzida e sublimada em consciência científica, em asseio intelectual a qualquer preço.”395

394 Nietzsche, “Genealogia da moral”, III, 14. 395 Id., “Gaia ciência”, 357

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139

Os valores mais caros à cultura ocidental, todos os pilares sobre os quais se

construiu toda tentativa de justificação da existência, todos os parâmetros morais de

sociabilização tiveram suas bases questionadas pelo mesmo impulso que construiu todos

estes valores.396 A vontade de verdade termina por entender-se como vontade de engano. A

condição contemporânea é a condição trágica que, de alguma forma, aceitou a crítica à

verdade metafísica que dava sustentação a toda moralidade religiosa ou filosófica. Com

isto, a moral perdeu sua força, sua legitimação, sua razão de ser. Com a crítica à verdade e a

deus, a moral não possui mais força para prevalecer. Esta perda de forças da moral é a

morte de Deus, sua conseqüência inicial é o niilismo.

O que Nietzsche chama de morte de Deus é o fato de que a crença na moral cristã

não é mais tão forte como foi em outros momentos da história. “O maior acontecimento

recente – o fato de que ‘Deus está morto’, de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito

– já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa”.397 Não se trata propriamente

de não mais se acreditar em deus ou em religiões, mas trata-se do fato de que a religião se

tornou um assunto necessariamente privado, e que, em verdade, a Igreja perdeu grande

parte de sua influência no estabelecimento de normas morais. Se, antes, o que era

considerado bom estava diretamente ligado à religião e à metafísica, isto não mais se

verifica com tanta clareza. Mesmo quando se opta por uma religião, em geral, sabe-se que

isto é uma opção, não um determinismo.

Para Nietzsche, o homem viverá nos próximos dois séculos as conseqüências desta

desvalorização dos valores supremos. “Isto que apresento é a história dos dois próximos

séculos. Descrevo o que virá, o que não pode acontecer de outra maneira: o advento do

niilismo.”398 O niilismo é a conseqüência natural e necessária da perda de valor dos valores

superiores nos quais a humanidade acreditou durante tanto tempo. Tudo aquilo até então

venerado perde seu valor a partir da descrença em deus e da desmistificação da verdade;

um vazio de valor se instaura.

“Por que o advento do niilismo é, de agora em diante, necessário? Porque são nossos valores eles mesmos que, de si, tiram suas últimas conseqüências; porque o niilismo é a lógica de nossos valores e ideais levada a seu termo – porque será necessário viver o niilismo para

396 Esta crítica foi desenvolvida no primeiro capítulo. 397 Nietzsche, “Gaia ciência”, 343. 398 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 11 [411]

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desvendar qual era o valor propriamente dito destes ‘valores’... Nos faltará, a qualquer momento, os novos valores...”399

Ainda que de uma maneira decadente, o cristianismo foi capaz de conferir um

sentido à existência. Era um sentido que negava a vida naquilo que ela tem de mais básico e

necessário, conduto, ao menos conferia um sentido para a vida e para o sofrimento e dor

que esta pudesse oferecer. A moral trazia uma resposta segura à falta de sentido prévio da

existência, sabia-se ao certo o que era bom e deveria ser feito. Moral e verdade andavam

juntas. A partir da descrença nos valores superiores, o homem perde seu centro de

gravidade e não possui mais parâmetros para lidar com a dor ou a falta de sentido. Todavia,

como viveu por mais de dois milênios sob a proteção destas explicações, ele não consegue

criar seus próprios valores. “Niilista é o homem que julga que o mundo tal como é não

deveria ser assim e que o mundo como deveria ser não existe.”400 O conceito de niilismo

aponta para a impotência da vontade a partir do momento em que a metafísica cai por terra,

ele atesta a incapacidade para a criação dos próprios valores.

Para Nietzsche, efetivamente, não há sentido prévio nem escondido na existência,

mas o homem, diante de tal fato, preferiu mascarar esta realidade e construir um mundo que

foi tido por verdadeiro sobre mentiras que o confortassem e dessem segurança. Uma vez

que se faz a crítica a este mundo supostamente verdadeiro e às categorias que o sustentam

retira-se o suporte que permitia a crença em valores absolutos. O fim desta crença causa a

perda do valor das coisas. “Brevemente: as categorias de ‘fim’, ‘unidade’, ‘ser’, pelas quais

conferiu-se valor ao mundo, eis que as retiramos – e, desde então, o mundo parece sem

valor...”401 Se o homem atribuiu valor e sentido às coisas a partir da sua capacidade

intelectual de forjar a verdade, uma vez que duvida desta capacidade, o mundo perde seu

sentido e valor. “Resultado: a crença nas categorias da razão é a causa do niilismo – nós

medimos o valor do mundo por essas categorias, que ergueram um mundo puramente

fictício.”402

O niilismo aparece como o sentimento resultante da desmistificação dos valores até

então tidos por superiores. A conseqüência é a incapacidade do homem de atribuir por si

399 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 11 [411] 400 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9[60] 401 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 11 [99] 402 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 11 [99]

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mesmo um sentido à dor e à existência e de acreditar que a vida vale a pena ser vivida. “O

perigo dos perigos: nada possui sentido”403; esta situação é perigosa, pois na ausência de

uma meta e de uma boa interpretação para a vida, esta voltará a ser negada. Contudo, desta

vez a vida não será negada em nome de valores superiores, o fim destes valores superiores

significa que a humanidade não mais crê em um motivo para viver. “Niilismo: falta a meta;

falta a resposta ao ‘por quê’?; o que significa niilismo? – que os valores supremos se

desvalorizaram.”404 A falta de uma meta, de uma crença, de um objetivo, o vazio

existencial traz o perigo de que a vida seja negada por si mesma, perigo de que a vida possa

ser considerada como indigna de ser vivida.

Com a morte de Deus vive-se um momento de crise na moral, não se sabe o que é

bom e o que é ruim. Um código moral deve resumir séculos de sabedoria, séculos de

conhecimento moral empírico. São precisos meios demorados e trabalhados para dar

autoridade a uma verdade. Sente-se a falta de um código. Com o fim da crença no código

moral cristão, ao mesmo tempo em que tudo passou a ser possível, nada mais é confiável de

ser bom e, portanto, para muitos, nada mais importa, tudo tanto faz. Se, por um lado, pode-

se fazer de tudo, tudo é permitido, pois não há mais um valor superior e metafísico que

condene alguma atitude, ou não mais se acredita no Juízo Final, por outro lado tem-se que,

com isto, não se sabe o que é bom e o que é ruim, não se tem uma definição unívoca sobre

o bem e o mal, daí que, para muitos, diante da impossibilidade de garantir o bem ou o bom

com alguma dose de certeza, passam a sentir que tudo tanto faz, uma vez que nada pode

estar certo, assim como nada pode estar errado.

“‘Nada é verdadeiro, tudo é permitido’... Pois bem, isto é a liberdade de espírito, com isto a fé na própria verdade é abandonada...”405

O niilismo é o sintoma da falta de preparo da humanidade para a liberdade de

espírito. Realmente, não existe mais uma definição unívoca sobre bem e mal, mas,

justamente por isto, somente agora se tornou possível pensar o que é bom e ruim levando-se

em contas as diferenças entre os homens. As definições anteriores eram absolutas. Agora o

homem sabe que é ele quem cria seus próprios valores, mesmo quando o faz por filosofias e 403 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 2 [100] 404 Id., “Fragments Posthumes”, XIII 9[35] 405 Id., “Genealogia da moral”, III, 24

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religiões. O fim da crença em valores absolutos aumentou em muito o peso do homem no

mundo e hoje se vive a dificuldade para lidar com isto. O niilismo é apontado por Nietzsche

como o sentimento daqueles que não conseguem viver sem um sentido metafísico para a

existência. “Niilismo como sintoma de que os fracassados não possuem mais consolação:

de que destruíram para serem destruídos, de que, sem a moral, não mais possuem razão de

‘se sacrificar’”406 O niilismo é o fruto da ausência de sentido para a dor e para o sofrimento

uma vez que as justificativas anteriormente aceitas perderam o crédito. “O niilismo aparece

hoje não porque o desgosto com a existência seja maior que outrora, mas porque o homem

tornou-se desconfiado em geral a respeito de um ‘sentido’ para o mal, ou mesmo para a

existência.”407

Porém, esta não é a única alternativa possível diante do descrédito aos valores

superiores. Para que se lamente e se sinta a falta da força destas valorações seria preciso

que se tenha necessidade delas. Este homem que necessita de explicações fantasiosas para

seu próprio consolo sempre foi alvo de duras críticas por parte do filósofo. Negar a vida a

partir da criação de valores metafísicos é uma atitude decadente, assim como negá-la pela

perda destes. O niilismo é o sintoma de fraqueza daqueles que são incapazes de criar um

sentido por si mesmos. “Mas assim fala uma espécie de homens que não ousa mais possuir

uma vontade, uma intenção, um sentido: para toda espécie de homens sãos, o valor da vida

não se aprecia pura e simplesmente segundo o grau destas coisas marginais. Uma

preponderância do sofrimento seria possível e, não obstante a esta, uma vontade potente,

uma adesão à vida; um ter-necessidade desta preponderância.”408 Chegar à conclusão que a

verdade não mais pode ser tratada de uma forma metafísica e absoluta e não ter mais em

Deus uma justificativa para o sofrimento e para a existência são considerados pontos

positivos para Nietzsche. É preciso que comece uma era trágica, onde o homem não mais

buscará o sentido do mundo por trás do mundo e aprenderá atribuir seu próprio valor às

coisas. Neste sentido, o niilismo não só é necessário, como é preciso que se viva este

período, para que se chegue a um outro ponto de desenvolvimento da cultura.

A argumentação desenvolvida no primeiro capítulo tem, justamente, o objetivo de

apresentar a critica aos valores absolutos e busca devolver ao homem sua capacidade de

406 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 5[71] 407 Id., “Fragments Posthumes”, XII, 5[71] 408 Id., “Fragments Posthumes”, XIII 9 [107]

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criar valores, apontando para o fato de que suas propensões naturais, até então desprezadas,

devem ser preponderantes. A crítica à verdade metafísica, a apresentação da verdade como

interpretação perspectiva e crença, o deslocamento da moral para a vontade de potência são

pontos que não têm por pressupostos nada de fixo e seguro. Ao contrário, fazem parte da

tentativa de Nietzsche de escapar às prisões criadas pela impotência e que direcionaram

toda nossa cultura para uma situação de decadência. A filosofia de Nietzsche tem o intuito

de contribuir para a desvalorização dos valores supremos, apontando sua história e seus

interesses e objetivos. Diante da morte de Deus existem duas possibilidades. “Deus está

morto, eis a causa do maior de todos os perigos: o quê? Ela pode ser também a causa da

maior de todas as coragens!”409

Se a morte de Deus traz consigo um sentimento de vazio que representa um perigo

capaz de destruir a vontade humana, por outro lado, somente agora se tem também a total

abertura para a verdadeira liberdade de espírito necessária para o fortalecimento do homem.

Depreciar a vida por esta não mais oferecer segurança é apenas uma face do niilismo, o

niilismo passivo, que foi descrito até agora. Contudo, Nietzsche é um dos grandes críticos

dos valores superiores metafísicos e fez uma fortíssima crítica da verdade e de deus como

legitimadores de regras morais. Se desta crítica decorre necessariamente o niilismo, este

niilismo pode ser de dois tipos: o passivo, acima citado, mas também existe um niilismo

ativo, afirmativo, que é exatamente o niilismo que afirma a ausência de sentido e segurança

nas experiências do homem e que tem nisto o único solo possível a partir do qual entende

ser possível a recriação do homem. “Niilismo enquanto signo da potência engrandecida do

espírito: enquanto NIILISMO ATIVO. Ele pode ser um sinal de força: a força do espírito

pode aumentar de tal forma que as metas fixadas até agora (‘convicções’, artigos de fé) não

estão mais à sua altura.”410

Nietzsche chama sua compreensão crítica de niilismo ativo. Toda crítica

desenvolvida no primeiro capítulo sobre a verdade e as regras morais e no segundo sobre a

forma como o homem divinizou valores decadentes também pode ser entendida como

niilismo, porém, um niilismo da força, um niilismo entendido como capacidade de

afirmação da existência mesmo em seu caráter trágico.

409 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 2[129] 410 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9[35]

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“Que não há verdade de forma alguma; que não há alguma conformação absoluta das coisas, alguma ‘coisa em si’ – isto mesmo é um niilismo, e na verdade o mais extremo. Ele encontra o valor das coisas precisamente no fato de que nenhuma realidade corresponde a este valor, mas somente um sintoma de força naqueles que instituíram os valores, uma simplificação para os fins da vida”411.

O niilismo aparece entendido como um período necessário após a descrença nos

valores superiores. Mas esta descrença pode acarretar a negação da vida ou pode abrir para

a sua mais pura afirmação, sua afirmação trágica e dionisíaca. “O niilismo radical é a

convicção do caráter absolutamente insuportável da existência, em se tratando dos

supremos valores que se conhece, ele abarca a compreensão de que não temos o menor

direito de instituir um além ou um em si da coisas que seria ‘divino’, a imagem viva da

moral.”412 Esta é a verdadeira demonstração de força a qual o homem está submetido. “O

grau de força de vontade se mede pelo grau até onde se pode dispensar do sentido nas

coisas, até onde suporta-se viver em um mundo desprovido de sentido: porque se é capaz

de organizar por si mesmo um pequeno fragmento deste.”413 Não mais buscar o sentido das

coisas por detrás das coisas, é preciso criar o sentido do mundo. O sentido sempre foi

criado, mas estas criações sempre foram tidas por verdade. “‘Vontade de verdade’ –

enquanto impotência da vontade de criar.”414 A desvalorização da verdade enquanto

fiadora de um mundo bom e justo obriga o homem a criar uma nova meta e um novo

sentido.

A questão clássica de nossa história foi a de ter necessitado atribuir um valor à

existência. O homem só foi capaz de viver caso atribuísse um valor para a vida que a

justificasse. Ele não foi capaz de afirmá-la incondicionalmente, ela deveria se inserir em

algum tipo de lógica divina ou racional que a fizesse caminhar espontaneamente para o bem

e o bom, para o justo. Sem esta crença, o homem não viveria. Por isto Nietzsche vê a

história do homem como história da vitória dos fracos e decadentes, pois a vida só foi

possível a partir da justificação fantástica do acaso. E isto para Nietzsche é sinal de

fraqueza. Para Nietzsche, “o devir é de igual valor a todo instante: a soma de seu valor resta

411 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9[35] 412 Id., “Fragments Posthumes”, XII, 10[192] 413 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9[60] 414 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9[60]

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145

igual a si mesma: em outros termos: não há algum valor, pois falta qualquer coisa segundo

a qual o mundo seria avaliável e relativamente ao qual a palavra ‘valor’ faria sentido.”415

Não apenas se critica a valoração metafísica da vida, como a própria valoração da vida. É

ao homem impossível avaliar positiva ou negativamente a vida, o valor desta é algo que se

encontra fora do alcance do homem. Por isto, a descrença nas valorações metafísicas do

mundo não precisa levar o homem ao desespero, mas a prova de força para a humanidade

hoje significa, justamente, dar conta de viver com a idéia de ausência não só de sentido,

mas de valor para o mundo e para a vida. “Juízos, juízos de valor acerca da vida, contra ou

a favor, nunca podem ser verdadeiros, afinal; eles têm valor apenas como sintomas, são

considerados apenas enquanto sintomas – em si, tais juízos são bobagens. É preciso

estender ao máximo as mãos e fazer a tentativa de apreender essa espantosa finesse, a de

que o valor da vida não pode ser estimado.”416

Se Nietzsche é niilista, é apenas na medida em que é capaz de afirmar a ausência de

sentido para a vida. Nietzsche se vê como “o primeiro niilista perfeito da Europa, mas que

já venceu o niilismo nele mesmo, pois o levou a seu termo – que o tem atrás de si, abaixo

de si, fora de si...”417 Superar o niilismo significa retomar a potência criativa do homem e

imprimir na existência mesma o sentido que direcione a humanidade para seu mais alto

grau. Superar a decadência implica não só em fazer a critica de seus valores, mas opor-lhes

a afirmação da vida, uma vida em direção ao aumento de potência. Este é o sentido da

filosofia de Nietzsche, buscar a forma de elevar o homem ao seu mais alto grau de força.

7) O espírito livre como experimento

Com a morte de Deus se encerra o período de vigência de um código moral

específico, o cristão. Este fato é sentido por muitos com desespero e pessimismo, mas, para

Nietzsche, trata-se de uma liberação para o espírito. Liberação de uma tradição que por

muito tempo cercou e prendeu o homem em uma moral que lhe negava as prerrogativas

mais elementares de seu instinto. Durante mais de dois milênios, os impulsos mais naturais

do homem foram considerados maléficos, hoje, não há mais uma moral metafísica que o

415 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, 11[73] 416 Id., “Crepúsculo dos ídolos”, II, 2 417 Id., “Fragments Posthumes”, 11[411]

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146

impeça de afirmá-los. Este período de inicial liberdade de espírito é, necessariamente, um

período de experimentação, uma vez que será preciso fazer a tentativa de um novo homem.

“De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’, ante a notícia de que ‘o velho Deus morreu’ nos sentimos como que iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos parece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto ‘mar aberto.’” 418

Uma questão muito interessante que aparece neste fragmento é a idéia de que

aqueles que buscam o conhecimento correm perigo. Durante milênios a idéia de

conhecimento e sabedoria esteve ligadas à observância de valores morais específicos. Estes,

por sua vez, se encontravam legitimados por fundamentos metafísicos. A busca por

conhecimento era a busca por alicerces cada vez mais primordiais, era a busca por

fundamentos que chegassem o mais próximo da verdade moral. Mas a verdade moral já

existia, era preciso conhecê-la, não criá-la. Ser sábio era ser obediente aos preceitos já

existentes, ser sábio era, no máximo, buscar cada vez mais os fundamentos metafísicos de

tais preceitos, isto era saber viver. O mais longe possível, portanto, da ousadia.

Como vimos, tais estruturas e sistemas não mais subsistem com tanta força. A busca

por conhecimento perdeu seu caráter de busca por uma moral absoluta, já existente e

verdadeira. O fim da crença em fórmulas morais lança a todos no labirinto existencial no

qual é preciso tecer seu próprio fio de Ariadne. O conhecimento, agora, só pode ser

conhecimento da vida. Não há mais receitas. Dentro deste contexto, a busca por

conhecimento terá que ser feita a partir de experiências, experimentações. Criticando os

religiosos pregadores da moral Nietzsche diz: “Mas nós, os sequiosos de razão, queremos

examinar nossas vivências do modo rigoroso como se faz uma experiência científica, hora a

hora e dia a dia! Queremos ser nossos experimentos e nossas cobaias.”419 Vivenciar os

próprios impulsos e sentimentos se tornou um caminho aberto, o filósofo terá neste solo sua

fonte inesgotável de possibilidades e rumos. A sabedoria se torna a capacidade de escolher

as experiências que lhe são necessárias e conseguir crescer com elas. Caminho perigoso e

desconhecido, onde se corre sempre o risco de se viver algo de insuportável e morrer.

418 Nietzsche, “Gaia ciência”, 343 419 Ibid., 319

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“Independência é algo para bem poucos: – é prerrogativa dos fortes. (...) Ele penetra num

labirinto, multiplica mil vezes os perigos que o viver já traz consigo; dos quais um dos

maiores é que ninguém pode ver como e onde se extravia, se isola e é despedaçado por

algum Minotauro da consciência.”420 A morte de Deus traz a independência frente a moral

e a abertura para a experiência de si.

A partir da perda de parâmetros, abre-se um período de experiências e de riscos

quanto ao futuro do homem. O caminho para a liberdade do espírito e para o conhecimento

é um caminho de experiências, pois quando se decide viver por sua própria vontade, a partir

de um impulso de autodeterminação contra a moral, não se pode saber de antemão o

caminho a ser tomado. O próprio caminho se torna uma construção a qual se chama vida. A

vida liberta da moral é a única que permite o verdadeiro engrandecimento do espírito, pois

este engrandecimento é, necessariamente, uma conseqüência do aprimoramento e

esmeramento de uma grande paixão e de uma grande vontade. Este é o movimento ético. A

vida se torna uma experiência do conhecimento, conhecimento perigoso e trágico, mas com

certeza gratificante. “Não, a vida não me desiludiu! A cada ano que passa eu a sinto mais

verdadeira, mais desejável e misteriosa – desde aquele dia em que veio a mim o grande

liberador, o pensamento de que a vida poderia ser uma experiência de quem busca conhecer

– e não um dever, uma fatalidade, uma trapaça!”421

Encerrar a vida no dever significa determinar um grau fixo e baixo para a potência.

Ao contrário disto, “ninguém, é certo, até agora, determinou o que pode o corpo”422, é

preciso explorar suas potências, elevá-las ao maior grau que se consiga, isto é sinal de

força. Fazer de si uma experiência do conhecimento é perigoso, pois não sabemos o que

somos nem do que somos capazes. “Toda ação da qual um homem é incapaz é dele

desconhecida.”423 Ética é a coragem para fazer da vida a tentativa de descobrir aquilo de

que se é capaz. Ética é elevar sua vontade à máxima potência. A moral sempre direcionou o

homem para um sentido enfraquecedor, pois ela é a arma dos impotentes contra os fortes,

ética é o oposto da moral.

420 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 29 421 Id., “Gaia ciência”, 324 422 Espinosa, “Ética”, III, 2, escólio. Citado em Deleuze, “Espinosa, filosofia prática”, pág, 24. 423 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 1[14]

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“Aquele que refletir sobre os meios de levar o tipo homem a seu esplendor e a sua maior potência compreende que ele deve se manter fora da moral: pois a moral tem essencialmente por meta o contrário, tentar bloquear ou negar esta esplendida evolução no momento em que ela está em marcha. (...) Uma tendência hostil à vida é então própria da moral, na medida em que ela quer subjugar os tipos de vida mais fortes.”424

Ao contrário do niilismo passivo e da prostração, o desejo que domina o homem

forte a partir da morte de Deus é um ímpeto de autodeterminação, um sentimento de

liberdade frente a tudo, uma necessidade de seguir a si e somente a si mesmo. Eis a tarefa

fundamental do espírito livre: “O que diz a sua consciência? – ‘Torne-se aquilo que você

é.”425 Contudo, justamente por seguir a si mesmo e por não se saber o que se é, este talvez

seja o mais perigoso dos caminhos. “Para um homem que pensa o gênero de coisas que

devo pensar, o perigo de se destruir é sempre iminente.”426 Uma vez que toda moral e dever

das virtudes anteriormente aceitas não correspondem a uma sabedoria de espíritos livres,

este terá que criar seus valores a partir de suas experiências. A insegurança e a solidão

serão seus companheiros, mas assim se engrandece a vida. “Pois, creiam-me! – o segredo

para colher da vida a maior fecundidade e a maior fruição é: viver perigosamente!”427 Se a

vida é vontade de potência, o enobrecimento se dá pelo aumento de potência, contudo,

trata-se de um caos de potência a ser maestrado; é preciso viver a potência da vontade para

tornar-se aquilo que se é, e esta experiência além de não ser segura é imprevisível.

“Acreditamos que um homem deve ter vivido de maneira absolutamente ‘não filosófica’,

segundo os critérios tradicionais, e sobretudo não em tímida virtude – para poder julgar os

grandes problemas a partir de suas experiências.”428 Se a maneira filosófica por excelência

era o ascetismo, as experiências constituem uma espécie de ideal contrário, não-filosófico.

A filosofia não mais aparece ligada a um dever e uma virtude tradicional, ao

contrário, esta vida de experimentos é perigosa e se assemelha à doença. Sua manifestação

pode ser nefasta, principalmente no princípio, quando o homem a inicia, ainda sem saber ao

certo o por quê de seu rumo nesta direção. “Ela é simultaneamente uma doença que pode

destruir o homem, essa primeira erupção de vontade e força de autodeterminação, de

determinação própria dos valores, essa vontade de livre vontade: e quanta doença não se 424 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 5[98] 425 Id., “Gaia ciência”, 270 426 Id., “Fragments Posthumes”, XII, 1[1] 427 Id., “Gaia ciência”, 283 428 Id., “Fragments Posthumes”, XI, 35[24]

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exprime nos selvagens experimentos e excentricidades com que o liberado, o desprendido,

procura demonstrar seu domínio sobre as coisas!”429 Este estado doentio é o despertar dos

monstros esplendidos, é a mordida dos cães selvagens, é o ponto onde, acima da moral,

começa o caminho em direção a si mesmo. Caminho perigoso, pois não fomos ensinados a

nos conhecer e a nos dominar, não se tem coragem para os próprios apetites, eles foram por

milênios caluniados, envergonhamo-nos de nossos impulsos, não o realizamos ou quando o

realizamos o fazemos de forma bruta e autodestrutiva. Dominar esta situação é a sabedoria

ética.

Mesmo chamando esta intensidade do espírito de doença, Nietzsche não a está

desqualificando. Em verdade, a própria diferença entre saúde e doença não só é tênue como

mal estabelecida. “Pois não existe uma saúde em si, e todas as tentativas de definir tal coisa

fracassaram miseravelmente. Depende do seu objetivo, do seu horizonte, de suas forças, de

seus impulsos, seus erros e, sobretudo, dos ideais e fantasias de sua alma, determinar o quê

deve significar saúde também para seu corpo.”430 Mesmo que se pudesse definir a saúde

com precisão, “permaneceria aberta a grande questão de saber se podemos prescindir da

doença, até para o desenvolvimento de nossa virtude, e se a nossa avidez de conhecimento

e autoconhecimento não necessitaria tanto da alma doente quanto da sadia; em suma, se a

exclusiva vontade de saúde não seria um preconceito, uma covardia e talvez um quê de

refinado barbarismo e retrocesso.”431 As idéias de doença e saúde se associam com a de

experiência, pois o conhecimento da vida após a moral somente pode ser tentado a partir da

experimentação. Contudo, a experimentação do afeto, a mais forte potência da natureza, é

uma experiência perigosa da qual nada se sabe até que se a tenha. O caráter violento e, não

poucas vezes, autodestrutivo destas experiências tornam-nas semelhantes a doenças que

machucam e podem até matar. O espírito livre transita entre estes estados e deles retorna

sempre com algo a mais. Este estado fisiológico, esta tonalidade da alma, esta intensidade

do afeto é o que Nietzsche chama de “grande saúde – uma tal que não apenas se tem, mas

constantemente se adquire e é preciso adquirir, pois sempre de novo se abandona e é

preciso abandonar...”432 A grande saúde é a coragem para a ética trágica, é a coragem de

429 Nietzsche, Humano, demasiado humano, prólogo, 3 430 Nietzsche, “Gaia ciência”, 120 431 Ibid., 120 432 Ibid., 382

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deixar a moral e partir rumo a si mesmo, rumo aos seus próprios afetos e dominá-los,

conhecê-los e, depois, perder-se de novo. A “grande saúde, o excesso que dá ao espírito

livre o perigoso privilégio de poder viver por experiência e oferecer-se à aventura”433.

Somente resta ao homem arrogar-se de seu próprio espírito e criar seu próprio

caminho, tornar-se si mesmo. O caminho do espírito livre é, necessariamente, um caminho

de solidão, pois é preciso que encontre sua própria vontade, sua grande paixão, o impulso

primordial que dá sentido a sua própria vida, o que não se assemelha em nada a seguir uma

moral qualquer. A liberdade frente a moral é a conseqüência imediata da morte de Deus,

esta liberdade pode ocasionar uma desilusão com a vida (como é o caso do niilismo), mas

também pode ser recebida como um pré-requisito para a liberdade de espírito. “A

preocupação moral situa um indivíduo no mais baixo degrau da hierarquia”.434 Falta-lhe o

sentimento de liberdade para ser à parte, para ser si mesmo. É o rebanho que busca se

igualar aos demais e assim dissimular sua mediocridade. O homem de rebanho “não possui

seu valor à parte: ele pode ser comparado, possui seu igual, não possui o direito de ser

singular...”435 Já o espírito livre é único, pois torna-se aquilo que é. Este é o objetivo de

Nietzsche, superar a moral em direção a um novo homem, um super-homem. O caminho

em direção a um homem e a uma cultura superior se dará pela experimentação de novos

pensamentos e novos valores. “Uma cultura de exceção, de experimentação, do risco, da

nuance enquanto conseqüência de uma grande riqueza de forças: toda cultura aristocrática

obedece a esta tendência.”436

8) Os valores modernos e a nobreza de espírito

Nietzsche é extremamente crítico ao pensar os valores modernos aos quais a

humanidade se prendeu após a morte de Deus. Mesmo com a derrocada das justificações

absolutas para a conduta, o homem moderno ainda não foi capaz de forjar para si novos

valores que o fortaleçam. Longe de ver em valores modernos como a industrialização e a

democracia algo de transformador, o filósofo vê esses movimentos como a continuação da

433 Nietzsche, “Humano, demasiado humano”, prólogo, 4 434 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9[152] 435 Id.,“Fragments Posthumes”, XIII, 10 [85] 436 Id.,“Fragments Posthumes”, XIII, 9[139]

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151

cultura de uma moral de rebanho que nivela e homogeneíza os homens perseguindo sempre

as exceções. A moral de rebanho que sempre perseguiu o homem forte por este ser

diferente permanece ativa no mundo contemporâneo. Esta moral se fortalece com o avanço

desgovernado de uma sociedade industrial que tem, no argumento político da democracia,

um valor quase incontestável a partir do qual garante a homogeneização naquela época da

Europa e hoje em escala mundial. “Chame-se ‘civilização’, ‘humanização’ ou ‘progresso’

àquilo em que se vê a distinção dos europeus; chame-se-lhe simplesmente, sem louvar ou

censurar, e utilizando uma fórmula política, o movimento democrático da Europa: por trás

de todas as fachadas morais e políticas a que remetem essas fórmulas, efetua-se um

tremendo processo fisiológico, que não pára de avançar – o processo de homogeneização

dos europeus (...)”437

Nietzsche teme que a homogeneização do homem termine por impossibilitar o

aparecimento de novos homens de exceção, uma vez que o homem de rebanho se sentirá

fortalecido por ver seus anseios mesquinhos compartilhados por uma enorme massa de

pessoas. Neste sentido, o pensamento sobre a grandeza do homem deve passar pelos

valores contrários aos valores gregários da modernidade. “Hoje, inversamente, quando na

Europa somente o animal de rebanho recebe e dispensa honras, quando a ‘igualdade de

direitos’ pode facilmente se transformar em igualdade na injustiça: quero dizer, em uma

guerra comum a tudo que é raro, estranho, privilegiado, ao homem superior, ao dever

superior, à responsabilidade superior, à plenitude de poder criador e dom de dominar – hoje

o ser-nobre, o querer-ser-para-si, o poder-ser-distinto, o estar-só e o ter-que-viver-por-si são

partes da noção de grandeza;”438 O objetivo de toda filosofia de Nietzsche é criar uma

grande cultura, uma cultura que ele chama de superior onde os homens sejam fortes o

suficiente para agüentar todo o peso de uma existência sem fundamentação metafísica e

capazes de criar grandes obras a partir de sua grande paixão. O gênio deve ser o objetivo de

uma cultura. “Um povo é o rodeio que faz a natureza para chegar a seis ou sete grandes

homens. – Sim: para em seguida evitá-los.”439

Nietzsche teme que, com a propagação do ideal democrático, perca-se o respeito à

idéia de hierarquia de espírito, tão fundamental para a elevação do homem e construção de

437 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 243 438 Ibid., 212 439 Ibid., 126

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152

uma cultura nobre. Com o advento da democracia, Nietzsche diz que será perdida uma das

atitudes mais importante no tocante a cultura e ao cultivo do espírito: a subordinação. “(...)

e quando esta subordinação não for mais possível, já não haverá como obter muitos dos

efeitos mais assombrosos, e o mundo se tornará mais pobre.”440 Se todos são iguais, por

que se subordinar?

O que Nietzsche quer dizer é que nada de grande pode ser realizado sem

subordinação, obediência e disciplina – valores pouco apreciados dentre as idéias

modernas. Neste sentido, Nietzsche afirma que a nobreza se distingue pela “arte de saber

comandar e a arte da obediência orgulhosa”.441 Ser nobre é também saber obedecer àquele

que é maior e que, portanto, merece reverência. Em contrapartida, “a vulgaridade de certas

naturezas esguicha de repente como água suja, quando por ela passa algum vaso

sagrado,”442 É a reverência diante do que é grande e a capacidade de obedecer e se

disciplinar para se tornar grande que Nietzsche teme que se perca com o ideal democrático.

Ao contrário da reverência e da subordinação em busca de algo maior para si e para

a cultura, os valores modernos entronizam o utilitarismo como sua marca principal. “A

moral dos escravos é essencialmente uma moral da utilidade”.443 A falta de respeito e

reverência da modernidade por tudo aquilo que não se enquadra imediatamente em sua

moral utilitária do lucro termina por desvalorizar qualquer coisa que não consiga subsistir

financeiramente. A capacidade de subsistir financeiramente termina por se tornar o próprio

critério de valoração, pois, se algo não subsiste financeiramente é porque não é bom.

Contudo, o crescimento, desenvolvimento e fortalecimento das questões espirituais de uma

cultura nobre não se enquadram neste ideal de comerciantes. O resultado é a perda da

nobreza de espírito e o direcionamento da cultura cada vez mais para um ideal mercantil.

Mais uma vez, o caminho para o desenvolvimento de uma nobreza de espírito é fechado

pela moral de rebanho que é incapaz de aceitar a diferença. O resultado é a

homogeneização dos desejos e a incapacidade de sequer se reconhecer outras necessidades

que não econômicas. Os verdadeiros problemas de uma cultura são deixados de lado. Em

440 Nietzsche, “Humano, demasiado humano”, 441 441 Ibid., 440 442 Nietzsche, “Além do bem e do mal”, 263 443 Ibid., 260

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153

uma sociedade onde o dinheiro é o valor que proporciona o maior sentimento de poder, a

hierarquização dos afetos (isto é, a ética) é entendida como algo supérfluo.

Nietzsche caracteriza a sociedade industrial e a moral burguesa como uma forma de

escravidão generalizada. Sendo que tais escravos podem ser ricos ou pobres. O senhor, ao

contrário, é aquele para quem a renda não é motivo suficiente para justificar o trabalho. A

distinção entre senhores e escravos em Nietzsche não passa pela ordem da riqueza material

ou pelo acúmulo de poder estatal, ou coisa do gênero. Em um mundo onde a busca por

poder se tornou busca por dinheiro, os escravos são todos aqueles que se entregam sem

reflexão a esta nova moral de rebanho. “Os meios da ânsia de poder mudaram, mas o

mesmo vulcão ainda arde, a impaciência e o amor desmedido reclamam suas vítimas: e o

que antigamente se fazia ‘em nome de Deus’ hoje se faz pelo dinheiro, isto é, por aquilo

que agora proporciona o máximo de sensação de poder e boa consciência”.444 Hoje, pelo

fato de que o dinheiro é aquilo que traz mais poder, acredita-se que este seria o objetivo da

vida. Mas a riqueza, longe de libertar da escravidão, pode criar uma nova escravidão ao

incentivar uma busca incessante e irracional pelo mesmo.

“A infelicidade dos homens ativos é que sua atividade é quase sempre um pouco irracional. Não se pode perguntar ao banqueiro acumulador de dinheiro, por exemplo, pelo objetivo de sua atividade incessante: ela é irracional. Os homens ativos rolam tal como pedra, conforme a estupidez da mecânica – Todos os homens se dividem, em todos os tempos e também hoje, em escravos e livres; pois aquele que não tem dois terços do dia para si é escravo, não importa o que seja: estadista, comerciante, funcionário ou erudito”.445

Mesmo quando Nietzsche fala da necessidade de escravos no trabalho, isto não deve

nos assombrar de imediato. Segundo a definição de escravo acima, a grande maioria das

pessoas do mundo hoje são escravas, inclusive aquelas a quem se costuma chamar de

dominantes. Nos parece inclusive que está cada dia mais difícil não ser um escravo no

mundo moderno, mesmo que se seja rico. Possivelmente, aquele que é escravo de espírito

terá uma ocupação que o torna escravo também no trabalho. Por outro lado, aquele que é

nobre não se deixará ocupar com este tipo de trabalho.

444 Nietzsche, “Aurora”, 204 445 Id., “Humano, demasiado humano”, 283

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“Buscar trabalho pelo salário – nisso quase todos os homens dos países civilizados são iguais; para eles o trabalho é um meio, não um fim em si; e por isso são pouco refinados na escolha do trabalho, desde que proporcione uma boa renda. Mas existem seres raros, que preferem morrer a trabalhar sem ter prazer no trabalho: são aqueles seletivos, difíceis de satisfazer, aos quais não serve uma boa renda, se o trabalho mesmo não for a maior de todas as rendas”.446

Assim como os homens abrem mão de si mesmos em nome do dinheiro, também as

nações que abrem mão de sua cultura em nome da riqueza perdem todo o manancial de

onde poderia florescer um novo homem.

“Serão vocês cúmplices da atual loucura das nações, que querem, sobretudo, produzir o máximo possível e tornar-se o mais rica possível? Deveriam, isto sim, apresentar-lhes a contrapartida: as enormes somas de valor interior que são lançadas fora por um objetivo assim exterior! Mas onde está seu valor interior, se nem sabem mais o que significa respirar livremente? Se mal têm a posse de si mesmos? Se com freqüência estão enjoados de si, como que de uma bebida esquecida e estragada?” 447

Sobre a cultura em sua configuração industrial atual, Nietzsche diz que “é a mais

vulgar forma de existência que jamais houve.”448 Esta cultura torna a todos escravos de um

sistema puramente mercantil que não é capaz de produzir nada de grande, pois a grandeza

espiritual e artística não obedece às regras de desenvolvimento do mercado; “é uma teoria

como a do livre-comércio, pressupondo que a harmonia universal tem que produzir-se por

si mesma, conforme leis inatas de aperfeiçoamento.”449 Ao contrário, justamente por ser

uma cultura de exceção, a cultura da nobreza de espírito não é compreendida pelo escravo,

seja este escravo patrão ou empregado. “As pessoas já se envergonham do descanso; a

reflexão demorada quase produz remorso. Pensam com o relógio na mão, enquanto

almoçam, tendo os olhos voltados para os boletins da bolsa – vivem como alguém que a

todo instante pode ‘perder algo’. ‘Melhor fazer qualquer coisa do que nada’ – este princípio

é também uma corda, boa para liquidar toda cultura e gosto superior.”450 Não se tem mais

tempo para o cultivo dos afetos e para o longo e árduo trabalho de esmeramento e

aperfeiçoamento de si em questões pouco ou nada lucrativas. “Essa agitação se torna tão

grande que a cultura superior já não pode amadurecer seus frutos; (...) Por falta de

446 Nietzsche, “Gaia Ciência”, 42 447 Id., “Aurora”, 206; 448 Id., “Gaia ciência”, 40 449 Id., “Humano, demasiado humano”, 25 450 Id., “Gaia ciência”, 329

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tranqüilidade, nossa civilização se transforma numa nova barbárie. (...) Logo, entre as

correções que necessitamos fazer no caráter da humanidade está fortalecer em grande

medida o elemento contemplativo.” 451 Por isto Nietzsche pode dizer:

“Procuramos situações nas quais a moral burguesa não tenha mais nada a dizer, menos ainda a clerical (...) A ‘boa sociedade’ é esta onde nada no fundo interessa a não ser aquilo que é interdito e suscita má reputação na sociedade burguesa: isto vale também pra os livros, música, política (...)”452

É preciso se distanciar da moral mercantil burguesa caso se queira redirecionar a

cultura para um nível mais elevado. Nietzsche não era contra a difusão dos meios materiais

de subsistência, muito pelo contrário, chega até mesmo a elogiar a democracia na medida

em que esta promoverá tal igualdade, uma vez que, a partir daí, o homem poderá se dedicar

às verdadeiras questões da cultura. Em anotações para seu livro, Nietzsche escreve:

“Zaratustra feliz por que a luta por condições sociais foi terminada, e que agora, enfim, se

abre a época de uma hierarquia dos indivíduos.”453 O fim desta luta pelas migalhas da

sobrevivência seria o mínimo retorno esperado a partir do avanço tecnológico, científico e

industrial do mundo moderno, o que permitiria a cultura a se voltar para suas verdadeiras

questões. O fato de tal situação ainda não ter sido alcançada, apesar de já existirem todos os

meios para tanto, nos faz questionar os valores defendidos pela política contemporânea.

Isto significa que este estado de coisas está longe de se resolver pelos caminhos

tradicionais da política. Esta, ao contrário, se encontra cada vez mais comprometida em

promover a homogeneização e a indiferença através do mercado. Os valores que a política

contemporânea defende são os mesmos valores mesquinhos da sociedade industrial. Diante

da mediocridade da cultura moderna, Nietzsche se pergunta “com o que deve ocupar-se

doravante a nobreza, se cada dia mais parece indecente envolver-se com a política?” 454 Em

um mundo cada vez mais industrial, a política perdeu sua função e se tornou uma busca por

poder. A filosofia de Nietzsche, na medida em que é uma filosofia da cultura, precisará

declarar guerra aos valores modernos. “Declaro guerra. Não entre povos: não encontro

palavras para exprimir o desprezo que me inspira a abominável política de interesses das

451 Nietzsche, “Humano, demasiado humano”, 285 452 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 10[119] 453 Id., “Fragments Posthumes”, XI, 39[3] 454 Id., “Aurora”, 202

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dinastias européias (...) Não entre classes. Pois não temos classes superiores, e, por

conseqüência, nem inferiores: isto que, na sociedade de hoje, está em cima, são

fisiologicamente condenados (...)”455, com este entendimento, Nietzsche lança sua idéia de

política como guerra de espíritos. “A idéia de política será inteiramente reformulada em

uma guerra de espíritos, todas as formas de poder serão relativizadas – haverá guerras como

nunca houve sobre a terra.”456

Nietzsche se pergunta pela contrapartida ao ideal da riqueza material. Onde estariam

aqueles que buscam algum tipo de enriquecimento interior para que, assim, possam dar à

luz a estrelas dançarinas, uma vez que as nações, os governos, as pessoas, encontram-se

todos envolvidos em um processo de homogeneização generalizada.

“Procurar-se-á em vão em nossos dias, e sem dúvida por muito tempo, os homens capazes destas criações grandiosas, os verdadeiros grandes homens, tais como os entendo; eles fazem falta. Depois virá o tempo onde, depois de muitas decepções, se começará a compreender porque fazem falta e como nada é mais hostil a seu nascimento e a seu crescimento do que o que se chama na Europa ‘a moral’, como se não houvesse e não pudesse haver mais que uma, esta moral gregária caracterizada tão fortemente, que trabalha com todas suas forças para realizar a felicidade do grande número, uma felicidade de rebanho no pasto, quero dizer a segurança, a ausência de perigo, o bem-estar, a facilidade da vida e, ‘se tudo correr bem’, a esperança de poder se dispensar finalmente de toda espécie de pastor ou de condutor.”457

Esta enorme falta de grandeza no homem termina por causar um niilismo entendido

como tédio e cansaço do homem consigo mesmo. O domínio total da moral de rebanho

força Nietzsche a fabular um ideal contrário. “A mediocridade crescente do ser humano é

precisamente a força que nos faz sonhar com o adestramento de uma raça mais forte: que

encontraria seu excedente em tudo que a espécie medíocre se enfraqueceria (vontade,

responsabilidade, segurança de si, capacidade de estabelecer metas).”458 Contra dos valores

modernos de massificação dos anseios, Nietzsche vai lançar sua proposta de adestramento e

seleção do homem em vistas a formar um tipo superior. É preciso formar um grupo que se

direcione para as altas questões da cultura e não para o dinheiro e o poder. A estratégia de

Nietzsche para se contrapor ao movimento moderno de homogeneização e mediocrização

será a de incentivar ainda mais rapidamente o seu desenvolvimento. “A homogeneização do

455 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV, 25[1] 456 Id., “Fragments Posthumes”, XIV, 25[6] 457 Id., “Fragments Posthumes”, XI, 37[8] 458 id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9[153]

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homem europeu é hoje um grande processo irreversível: deve-se ainda acelerá-lo.”459 Os

valores modernos produzem um homem dócil, frágil e obediente que busca apenas a

segurança de sua pequena felicidade aburguesada. Na medida em que este ideal se torna o

ideal gregário em escala planetária, é cada vez mais difícil a ele se contrapor. Mas esta

dificuldade fará também com que os espíritos fortes e nobres tenham que ser cada vez mais

fortes e nobres se quiserem ser senhores, fazendo deste período de homogeneização um

possível período de preparação para uma grande cultura.

“As mesmas novas condições em que se produzirá, em termos gerais, um nivelamento e mediocrização do homem – um homem animal de rebanho, útil, laborioso, variamente versátil e apto –, são sumamente adequadas a originar homens de exceção, da mais perigos e atraente qualidade. Pois, (...) enquanto a impressão geral causada por esses futuros europeus será, provavelmente, a de trabalhadores bastante utilizáveis, múltiplos, faladores e fracos de vontade, necessitados do senhor, do mandante, como do pão de cada dia; enquanto a democratização da Europa resulta, portanto, na criação de um tipo preparado para a escravidão no sentido mais sutil: o homem forte, caso singular e de exceção, terá de ser mais forte e mais rico do que possivelmente jamais foi – graças à ausência de preconceitos em sua educação, graças à enorme diversidade de sua excitação, dissimulação e arte. Quero dizer que a democratização da Europa é, simultaneamente, uma instituição involuntária para o cultivo de tiranos – tomando a palavra em todo sentido, também no mais espiritual.”460

O tipo escravo como ideal de uma sociedade produz uma enorme massa de pessoas

aptas a trabalhar para qualquer coisa, ávida por seguir um senhor que lhes diga o que é

certo. A história do século XX está repleta de exemplos de tiranos (no sentido menos

espiritual do termo) que promoveram genocídios com o apoio e a boa consciência das

massas, inclusive das massas letradas e “cultas”. Contrário a este ideal de baixa política,

Nietzsche aponta o filósofo como sendo o responsável por tomar estes escravos em seu

poder e fazer com que seu trabalho seja direcionado para os fins de uma cultura de exceção.

“Os verdadeiros filósofos são aqueles que comandam e são legisladores; eles dizem: isto

deve ser assim! Eles começam por fixar o sentido e a meta da ação, sua utilidade; eles

definem o que é útil aos homens, eles dispõem do trabalho preparatório dos outros

filósofos, eles são os subjugadores do passado.”461 Adestrar uma raça mais forte de seres

humanos é o que Nietzsche contrapõe ao gregário anseio por segurança. Para o filósofo este

será o sentido de tamanha massa de escravos, eles servirão de sustentáculo, nas mãos dos 459 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9[153] 460 Id., “Além do bem e do mal”, 242 461 Id., “Fragments Posthumes”, XI, 38[13] e “Além do bem e do mal”, 211

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homens superiores, para erigir uma grande cultura. “Esta espécie igualada, desde que esteja

realizada, exige uma justificação; ela reside no fato de servir a uma espécie soberana, a

qual repousa sobre a precedente e somente baseada sobre ela é que poderá se elevar à sua

própria meta.”462

Em oposição a uma modernidade niveladora, Nietzsche crê que é preciso adestrar

uma casta de homens que seriam responsáveis por conduzir a humanidade para fora do

acaso que até então sua história apresenta, direcionando-a para uma cultura superior. Esta

casta se constituiria em uma aristocracia de espírito responsável por elevar a cultura e o

patamar do ser humano, não se assemelhando em nada a uma hierarquia de poder ou

econômica. “Os meios seriam os ensinados pela história: o isolamento para fins de

conservação, ao inverso disto que hoje forma a média: o exercício dos valores inversos; a

distância enquanto phatos; a livre consciência em tudo o que é hoje o menos estimado e o

mais repreensível.”463 Nietzsche diz que toda “elevação do tipo ‘homem’ foi, até o

momento, obra de uma sociedade aristocrática – e assim será sempre: de uma sociedade

que acredita numa longa escala de hierarquias e diferenças de valor entre um e outro

homem, e que necessita da escravidão em algum sentido.”464 Esta casta dominante seria

capaz de utilizar-se das condições modernas a seu favor, para que, enfim, possa conferir um

ideal de força para a cultura.

Mesmo com a derrocada dos valores superiores, a humanidade ainda não foi capaz

de tornar-se senhora de seu próprio destino. A força dos milênios vividos sob uma moral

paralisadora culmina em uma modernidade que segue um caminho cego rumo a nada.

Nietzsche vê em nossa época a abertura ideal para que o homem possa tomar o sentido da

existência em suas próprias mãos e criar por si mesmo seu ideal e seu objetivo. Permanecer

em uma cultura homogeneizante seria o desperdício de uma enorme oportunidade somente

aberta após a morte de Deus. “Eis aqui chegando, inelutável, hesitante, temível como o

destino, esta grande questão, este grande problema: como governaremos a Terra? E para

quais fins a ‘humanidade’ em seu conjunto, e não mais enquanto povos ou raças, deverá ser

elevada e selecionada?”465

462 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9[153] 463 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9[153] 464 Id., “Além do bem e do mal”, 257 465 Id., “Fragments Posthumes”, XI, 37[8]

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É chegado o momento do homem traçar sua própria meta para sua existência. A

moral da impotência foi superada, o que significa que hoje é possível traçar um ideal

robusto baseado na força dos afetos e do espírito. “Em suma, o fato que tenhamos uma

meta por amor a qual não se hesita nada em sacrificar vidas humanas, em correr todos os

riscos, a tomar para si tudo o que há de mal e pior: a grande paixão.”466 Sacrificar vidas

humanas significa utilizar-se dos escravos para seu ideal. Significa não se ater a “salvar” os

seguidores da moral de rebanho do mercado, mas utilizar seu trabalho e o avanço que

produzam em determinadas áreas para a meta de um novo homem e de uma nova cultura.

Mas, qual a meta? Qual é o rumo que a humanidade seguirá de agora em diante? Pela

primeira vez o homem pode formular esta questão nesses termos e tem-se a grande

oportunidade de conscientemente se desenvolver rumo à meta que decidir traçar. Será o

homem capaz de se colocar esta questão enquanto humanidade?

“Para novos filósofos, não há escolha; para espíritos fortes e originais o bastante para estimular valorizações opostas e tresvalorar e transtornar ‘valores eternos’, para precursores e arautos, para homens do futuro que atem no presente o nó, a coação que impõe caminhos novos à vontade de milênios. Ensinar ao homem o futuro do homem como sua vontade, dependente de uma vontade humana, e preparar grandes empresas e tentativas globais de disciplinação e cultivo, para desse modo pôr um fim a este pavoroso domínio do acaso e do absurdo que até o momento se chamou ‘história’ – o absurdo do maior número é apenas sua última forma – : para isto será necessária, algum dia, uma nova espécie de filósofos e comandantes, em vista dos quais tudo o que já houve de espíritos ocultos, terríveis, benévolos, parecerá pálido e mirrado.”467

Pela primeira vez em sua história, o homem pode escolher o que quer de si mesmo.

As decisões quanto ao futuro estão em suas mãos. Os caminhos que a cultura e a sociedade

seguirão podem ser pensados e trabalhados para uma meta específica. Nietzsche sonha que

os homens consigam tomar o destino da espécie em suas próprias mãos e o direcione para

um ideal de grandeza. Ensinar ao homem que seu futuro depende de sua vontade significa

inverter as valorações metafísicas que apresentavam o futuro do homem como bem-

aventurança apenas após a morte, mas que, durante a vida, este deveria seguir aos

mandamentos da Igreja. O futuro do homem não mais depende do cumprimento de regras

morais enfraquecedoras e este futuro não se realizará apenas após a sua morte. É preciso

466 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9[107] 467 Id., “Além do bem e do mal”, 203

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substituir o niilismo por um ideal de vida para o homem, um ideal ascendente que o

fortaleça, que o faça desenvolver e espiritualizar cada vez mais sua própria vontade,

somente isto pode ser um ideal de grandeza.

“(...) o que é necessário à exaltação do tipo humano é o perigo, a dureza, a violência, o perigo no interior do coração e o perigo na rua, a desigualdade de direitos, a humilhação, o estoicismo, a arte de dissimular e toda espécie de diabrura, breve o contrário de tudo o que deseja o rebanho. Uma moral que tenha estes alvos paradoxais, que queira elevar o homem e não rebaixá-lo a um nível cômodo e medíocre, uma moral que vise selecionar uma casta dominante – esta dos futuros mestres da Terra – deve, para que se possa ensiná-la, se separar da lei moral estabelecida e lhe imprimir sua linguagem e suas aparências.”468

O homem tornado senhor de si poderá se desenvolver rumo a algo diferente do

gregarismo moderno. Contra os ideais modernos que promovem a homogeneização e a

massificação de desejos gregários como segurança, Nietzsche incentiva os filósofos do

futuro a serem os arquitetos e engenheiros de um novo tipo. É possível, a partir do trabalho

sobre si, a partir do trabalho ético sobre a própria vontade, elevar a humanidade a um outro

patamar, um patamar tão alto que talvez se trate não mais do homem, mas de um além do

homem, de um super-homem. “O quantum de potência decide seu lugar: o resto é

fraqueza.”469 É possível engendrar uma cultura que produza o homem de exceção como

meta, uma cultura que não mais enfraqueça as propensões naturais do homem qualificando-

as como pecado, mas que o ensine a fortalecê-las e usá-las a seu favor. Neste sentido, a

ética é o sentido de uma cultura nobre. É para os que anseiam por uma cultura superior à

mesquinharia moderna que Nietzsche escreve seu livro mais importante. “Seus

ensinamentos [de Zaratustra] foram destinados até agora apenas às futuras castas de

dominadores. Estes mestres da Terra deverão daqui para frente substituir Deus, e obter a

confiança profunda e incondicional dos dominados.”470 Após a morte de Deus, o niilismo

passivo aparece como grande perigo. Os ideais modernos, antes de se desviarem deste

caminho, o fortalecem promovendo a homogeneização dos anseios medíocres do rebanho

como meta e ideal social. Ao contrário desta busca por segurança, é preciso se destacar

desta massa e buscar um novo tipo de homem, fortalecer uma nova casta que seja capaz de

468 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI, 37[8] 469 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 11[36] 470 Id., “Fragments Posthumes”, XI, 39[3]

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comandar a Terra e elevar o homem a uma cultura de alto nível, se sobrepondo ao

calculismo utilitário de uma sociedade industrial.

“(...) os futuros ‘mestres da Terra’; – uma nova e prodigiosa aristocracia, fundada sobre a mais dura autolegislação, onde a vontade dos violentos dotados de sentido filosófico e dos artistas-tiranos desenvolverá uma dureza que se estenderá sobre os milênios : – um tipo de homens superiores que graças à preponderância de sua vontade, de seu saber, de sua riqueza e de sua influência se servirão da Europa democrática como de seu instrumento mais dócil e flexível para tomar nas mãos o destino da Terra, para trabalhar como artistas para formar o ‘homem’ ele mesmo. Em suma, chega o tempo onde se aprenderá de novo sobre política.”471

Nietzsche não se dirige à massa, não pretende criar regras ou leis sociais que se

dirijam a todos. Sua idéia é que os espíritos livres do futuro serão capazes de enxergar na

modernidade a mesma pobreza de espírito que ele já antevia há mais de um século. Se o

ideal de uma sociedade industrial é o desejo de uma maioria, não é a esta maioria a quem

Nietzsche se dirige. Nietzsche acredita que a maneira de se opor ao atual estado da cultura é

o de se organizar em pequenos grupos para o cultivo de valores opostos aos valores

socialmente aceitos hoje. O trabalho de auto-desenvolvimento é um trabalho solitário e o

pathos da distância em relação ao rebanho é um de seus pré-requisitos mais importantes,

contudo, não se trata de um individualismo na filosofia de Nietzsche, é preciso que os

homens de espírito se juntem e unam forças para transformar o atual estado de coisas.

Apenas em grau coletivo é possível uma transvaloração dos valores. “É preciso que existam

numerosos super-homens: toda bondade desenvolve-se apenas ao seio de um elemento que

seja seu idêntico. Um só deus não seria nunca algo mais do que um diabo! Uma raça

dominante. Para ‘os mestres da Terra’.”472 Estes grupos, de homens de estudo e de

pensamento ou de artistas tiranos, aos poucos, se fortalecerão como espíritos realmente

opostos ao espírito gregário moderno. Então, serão capazes de forjar um outro ideal para

humanidade. Humanidade esta que estará solicitando por este ideal, uma vez que a

democracia liberal e a industrialização não suprem sequer as necessidades mais toscas.

O mundo hoje caminha a passos largos para seu colapso, a política faz apenas

legitimar a exploração industrial da Terra e dos homens. Uma nova definição de política,

entendida como guerra dos espíritos, se apresenta. É preciso disputar não o poder, mas os 471 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 2 [57] 472 Id., “Fragments Posthumes”, XI, 35[72]

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afetos. A grande política de Nietzsche não trata de uma nova forma de governo ou coisa

assim, trata de uma outra sensibilidade para o homem, uma outra valorização das coisas,

uma atenção maior para si e para suas necessidades imateriais, trata-se de colocar a ética

como centro do debate pela vida e pelo desenvolvimento, é preciso redefinir a idéia de

desenvolvimento. Ética e política se unem aqui e não poderiam possuir um significado mais

diferenciado em relação ao significado moderno que possuem essas palavras. Com a ética

não se quer dizer seguir os valores morais do bem e da compaixão de uma falsa democracia

forjada para garantir a exploração e dominação de ideais utilitários e medíocres, com a

política, não se trata de entrar no jogo imundo destes que enchem a boca para falar de ética

e democracia e que, no fundo, aspiram a poder e dinheiro. O homem nobre não se envolve

com este “mundo dos homens”473. Seu mundo é outro, seu ideal é outro, ele lançará a seta

de seu anseio para a ética entendida como engrandecimento do espírito e, portanto, em nada

relacionado a seguir algum valor moral qualquer, e entenderá a política como este trabalho

de transvaloração dos valores modernos a partir de uma guerra dos espíritos.

“Transvaloração de todos os valores: eis a minha fórmula para um ato de suprema auto-

gnose da humanidade, que em mim se fez gênio e carne.”474 O que se deve opor ao dinheiro

e ao poder é a força de um espírito bem logrado e sua grandeza materializada em beleza. O

sentido do filósofo hoje é o de ser a má consciência de seu tempo e a ponte para um super-

homem.

9) O eterno retorno como pensamento ético e doutrina seletiva

Tendo em vista o niilismo decorrente da morte de Deus e os dois milênios de

moralidade cristã que precederam este atual estado das coisas, Nietzsche lança sua proposta

afirmativa para o homem. Se este sempre viveu a partir de ideais que o enfraqueciam,

fazendo-o negar a potência de sua vida em nome de um além inapreensível, é preciso

procurar por um ideal contrário. No caminho da transvaloração dos valores gregários e de

decadência, Nietzsche formulará uma ética da afirmação da vida, uma ética que terá por

objetivo formar um homem o mais forte possível, uma ética capaz de formar um homem

473 Escobar. “Nietzsche, dos companheiros...” 474 Nietzsche, Ecce homo, Porque sou um destino, 1.

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163

bem logrado em relação a si e a seus impulsos e forte o bastante para adentrar o “mundo

dos homens” e transformá-lo em algo afirmador. Contra o pessimismo e o niilismo,

Nietzsche apresenta o pensamento do eterno retorno. “Procuro o ideal inverso – uma forma

de pensamento que seja dentre todos os pensamentos possíveis o mais pleno de coragem, o

mais vivo e o mais afirmativo a respeito do mundo; eu o encontrei ao levar a seu termo a

concepção mecanicista do mundo: na verdade, é preciso ter o melhor humor do mundo para

suportar um mundo do eterno retorno tal qual este que ensinei por intermédio de meu filho

Z<aratustra> – quer dizer, para nos suportarmos a nós mesmos como parte do eterno da

capo.”475 O pensamento do eterno retorno será o pensamento chave da ética trágica de

Nietzsche, será a verdadeira prova de fogo para os espíritos livres e arautos do super-

homem. É preciso um pensamento que aceite a ausência de fundamento metafísico para a

existência, que postule a inocência do devir enquanto atuação da vontade de potência e, ao

mesmo tempo, dê ao homem um sentimento de força e plenitude que o torne capaz de

suportar e querer estas novas conclusões trágicas.

“No lugar da metafísica e da religião, a doutrina do eterno retorno (este enquanto meio de adestramento e seleção).”476

Nietzsche formula o pensamento do eterno retorno enquanto uma doutrina capaz de

selecionar os espíritos livres capazes da transvaloração de todos os valores. Este

pensamento é o pensamento ético que se sobrepõe aos mandamentos morais sacerdotais ou

do rebanho moderno, pois não postula nenhuma regra moral como absoluta e não possui

um fundamento para além do próprio pensamento e da própria vontade de potência. Este

pensamento é capaz de selecionar apenas aqueles capazes da afirmação trágica da vida, isto

é, capazes de uma afirmação incondicional da existência em tudo o que ela possa ter de dor,

sofrimento, tragédia e também de alegria. Contra o niilismo e o ideal ascético, o eterno

retorno apresenta-se como uma doutrina da afirmação incondicional da vida, o que não a

torna algo fácil e agradável, ao contrário, o pensamento do eterno retorno é seletivo na

medida em que apenas os mais fortes são capazes de a ele se vincular. Eis como Nietzsche

o apresenta:

475 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XI, 34 [204] 476 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 9 [6]

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164

“O maior dos pesos – E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: ‘Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá que viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma seqüência e ordem – e assim também essa aranha e este luar entre as árvores, e também este instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!’. – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: ‘Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!’. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal qual você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa ‘Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?’, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela?”477

Esta apresentação é muito interessante, pois apresenta toda dificuldade inerente à

afirmação da vida. Se não houvesse necessidade de justificação para o sofrimento e se

todos afirmasse sua vida, seria fácil dizer sim ao demônio e chamá-lo de anjo ou deus. Por

trás desta fábula, Nietzsche propõe um pensamento que, em sendo afirmado, traz consigo a

afirmação incondicional de toda a existência para além da moral. Se a vida retornasse

infinitas vezes sempre e de novo de forma idêntica, isto nos obrigaria a tentar torná-la o

mais agradável possível ainda aqui na Terra. Mais do que isto, este pensamento nos

obrigaria a fazer da vida algo que deveria ser afirmado a todo custo, pois se repetirá

infinitas vezes. O pensamento do eterno retorno traz a questão de saber se seríamos capazes

de querer de novo infinitas vezes aquilo que fazemos uma vez. Contra as doutrinas morais

que apresentam um valor específico como necessário a uma salvação após a morte ou como

bem em si, o eterno retorno traz o valor infinito de cada ação a cada instante, pois ela

retornará infinitamente. Longe da moral, o eterno retorno afirma que somente aquilo que se

é capaz de querer infinitamente de novo é digno de ser querido. Se este princípio guiasse a

vida do homem, este estaria praticamente forçado a fazer desta vida algo digno e

afirmativo, jamais a poderia negar como algo desprezível, pois agora, após a morte, não há

outra vida de bem-aventurança apenas para os homens morais, mas há, sim, esta vida de

novo e de novo infinitas vezes. Com o eterno retorno, a vida adquire um peso infinito e

precisará ser afirmada em todas as suas possibilidades. Seríamos capazes de tamanha

477 Nietzsche, “Gaia ciência”, 341

Page 165: Nietzsche - Por uma Ética Trágica - Gustavo Arantes Camargo

165

afirmação e adesão em relação à existência? – Para tanto, seria preciso afirmar cada

instante como desejável um número infinito de vezes. Trata-se de uma proposição ética que

não mais permite a negação da vida e nem de um momento sequer, pois cada instante é

absolutamente necessário para que o instante seguinte se suceda tal como ocorreu e

retornará e que, portanto, precisa ser infinitamente afirmado.

“A supor que digamos Sim a um só instante, no mesmo ato teremos dito Sim não somente a nós mesmos, mas a toda existência. Pois nada se resume apenas a si mesmo, nem em nós, nem nas coisas: e se nossa alma vibrou e ressoou de felicidade ainda que só uma vez, como uma corda tencionada, foi preciso toda uma eternidade para suscitar este Único evento – e toda eternidade, neste único instante de nosso Sim, foi aceita, salva, justificada e aprovada.”478

Mais do que apenas propor uma doutrina ética afirmativa, o eterno retorno é capaz

de se opor a toda forma de teleologia temporal que negue a inocência absoluta do devir e a

falta de finalidade última no tempo e na existência. Para que algo aconteça, é fundamental

que tudo o que aconteceu antes tenha acontecido de maneira exatamente igual a como

aconteceu. O desejo, por menor que seja, de que algo tivesse acontecido de maneira

diferente da forma como ocorreu implica, necessariamente, na negação de toda a série de

acontecimentos que levaram ao momento presente. Neste sentido, negar qualquer ponto dos

acontecimentos significa negar toda a existência e, em contrapartida, afirmar um instante

significa afirmar a tudo o que já passou. A afirmação incondicional da existência se torna

afirmação incondicional de todos os instantes, daí o seu enorme peso, pois afirmar aquele

que se é significa afirmar tudo o que foi como absolutamente necessário para o instante que

se afirma. Desejar o retorno de um instante significa desejar o retorno da eternidade.

Pode-se, ao contrário da necessária afirmação incondicional do instante, entender

que a afirmação é o que menos importa no instante, uma vez que um determinado instante é

decorrência necessária de todos os instantes anteriores, este instante jamais poderia ter sido

diferente do que foi e que, portanto, a afirmação ou não do mesmo não faz a menor

diferença. Na medida em que todo o encadeamento dos acontecimentos da eternidade

obedece a uma série necessária, cada instante já estaria sempre pré-determinado pelo

encadeamento natural das séries precedentes. Porém, o eterno retorno não nega a existência

478 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XII, 7[38]

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166

do acaso do instante ao postular a necessidade de todo acontecimento. Rememorando

Heráclito e o lance de dados de sua criança, temos o pensamento sobre o devir em sua

relação com o acaso e a necessidade, muito bem explicado por Deleuze. O acaso não nega a

necessidade e vice-versa. O lance de dados, entendido como instante, é o acaso, pois todas

as combinações são possíveis no ato do lançamento e nada é previsível, mas a combinação

que caiu é necessária, pois não poderia ter sido outra, uma vez que assim já o foi. A

afirmação do devir enquanto lance de dados é, pois, ao mesmo tempo, a afirmação do acaso

e da necessidade inerentes a cada instante. “A necessidade é afirmada com o acaso

conquanto o próprio acaso seja afirmado.”479

A afirmação do instante não é obtida pela repetição do instante ou pela negação dos

instantes anteriores, é preciso que o acaso de cada instante seja afirmado como necessário

para que então o próximo instante possa se dar. Não se trata de obter o número vitorioso

pelo excesso de tentativas, ao contrário, uma única tentativa é suficiente na medida em que

se afirma o resultado do acaso enquanto uma necessidade. Somente esta afirmação

incondicional comporta o eterno retorno. Uma vez que todo lance será sempre afirmado, o

lance seguinte pode advir e repetir a operação. O encadeamento dos lances forma uma

cadeia necessária, de tal forma que o n-ésimo lance só poderá existir caso tenham existido

todos os lances anteriores na seqüência em que ocorreram. Ou seja, o acaso do instante está

sempre em relação com a afirmação de todos os instantes anteriores, que são necessários

para o acaso presente, antes que este mesmo se torne necessário para o próximo

lançamento. A afirmação desta cadeia é a afirmação da inocência do devir e do eterno

retorno. “E, sem dúvida, afirmamos todo o acaso de uma vez no pensamento do eterno

retorno.”480 Apenas a afirmação do acaso como necessidade pode trazer de volta o lance de

dados. A negação da combinação que cai significa a impossibilidade de continuar o jogo,

significa a negação do devir e da vida, significa impor ao devir um sentido pré-existente e

teleológico. Afirmar e querer a combinação é o amor fati481, é a prova ética de afirmação

incondicional daquilo que já foi como tendo sido querido. Assim, Nietzsche pode falar: “o

pensamento do eterno retorno, a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto

479 Deleuze. “Nietzsche et la philosophie”, pág. 30 480 Ibid., pág. 50 481 Ibid., pág.. 31

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167

alcançar(...)”482 Contra a moral da negação da vontade que seleciona o medíocre enquanto

objetivo da cultura, é preciso um pensamento capaz de selecionar apenas os mais fortes. Os

mais fortes são apenas aqueles capazes de afirmar a existência de maneira incondicional.

“A necessidade absoluta do mesmo evento em um processo universal como em todos os outros de toda eternidade não é um determinismo, mas somente a expressão de que o impossível não é possível... que uma força determinada não poderia ser outra coisa que não esta força determinada; que ela não pode se desviar ao encontro de uma resistência de quantum de energia conforme sua própria força – evento e evento necessário, pura tautologia.”483

A necessidade de cada evento está relacionada à teoria da vontade de potência, na

medida em que cada força expressa toda sua potência a cada instante e a não expressão da

potência não é sinal de virtude, mas de impotência. Desta forma, o pensamento do eterno

retorno decorre em parte da teoria da vontade de potência, uma vez que esta última instaura

o instante enquanto resultado do combate entre forças cujo resultado, mesmo sendo

imprevisível, não poderia ter sido diferente. A teoria cosmológica de Nietzsche não se

encontra expressa somente pelo pensamento do eterno retorno, mas por esta em conjunto

com a teoria da vontade de potência, pois o mundo e todas as coisas são e sempre foram

manifestações imediatas de potência e nunca puderam não tê-lo sido nem poderão deixar de

sê-lo. Neste sentido, o movimento do devir nunca se iniciou e nunca cessará enquanto

houver potência, isto é, enquanto algo existir. A simples idéia da existência como vontade

de potência nos obriga ao movimento infinito como expressão imediata e eterna de

potência. A potência não tem começo nem fim, ela devém a cada instante, sua expressão

imediata se dá a cada instante como necessidade. É este jogo que é afirmado como

existência no pensamento do eterno retorno. “O mundo subsiste; ele não é qualquer coisa

que devém, nem qualquer coisa que passa. Ou, mais ainda: ele devém e passa, mas jamais

começa a devir e nunca pára de passar – ele se mantém nesses dois processos... Ele vive de

si mesmo: seus excrementos são sua nutrição...”484 Desta forma, Nietzsche pode postular

que não existe princípio e nem fim para o devir ou para o tempo, uma vez que tudo o que é,

só pode ser na medida em que é expressão de potência em luta com demais potências a

482 Nietzsche, “Ecce homo”, Assim falou Zaratustra, 1 483 Id., “Fragments Posthumes”, XIII, 10 [138] 484 Id., “Fragments Posthumes”, XIV, 14[188]

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cada instante, não havendo a possibilidade do não-ser ou do negativo. Procurar o início do

movimento significa negar todo o vir-a-ser, pois seria preciso um ponto inicial extático

somente concebível pela religião. A religião, inclusive, propõe este ponto inicial apenas

para fazer de seu deus o criador e credor da existência e dos homens os devedores.

Se o mundo nunca iniciou seu devir e nunca pára de devir, então podemos formular

a hipótese de que se existisse a possibilidade de algum estado de equilíbrio no universo,

este já teria sido alcançado, na medida em que o quantum total de potência não pode ser

sempre crescente. Se o devir não possui começo e sempre existiu, o tempo passado

constitui-se em uma eternidade; não há a possibilidade de um estado de finalidade último

para o devir, pois se houvesse algum ponto aonde chegar, por que já não haveria de tê-lo

chegado? E se houvesse um ponto de partida estático, por que haveria de ter iniciado seu

movimento? “Se o movimento universal tivesse um estado final já o teria alcançado. Ora, o

único fato fundamental é que não há nenhum estado como meta (...) Procuro uma

concepção do mundo que faça justiça a este fato: o devir deve ser explicado sem recorrer a

este gênero de intenções finalistas: é preciso que o devir apareça justificado a cada instante

(ou inavaliável: o que dá no mesmo)”485 O eterno retorno responde não só a uma questão de

comportamento amoral a partir de uma doutrina de afirmação incondicional da vida capaz

de selecionar os mais fortes, como também é capaz de se opor às compreensões religiosas

sobre o começo e a finalidade da existência, restituindo inocência ao devir. A existência

não mais possui uma finalidade teleológica ou metafísica que legitime um comportamento

moral qualquer que seria capaz de tornar um mundo metafísico acessível após a morte. O

pensamento do eterno retorno apresenta a existência como fluxo eterno de um devir de

forças que sempre retorna e não visa a um estado durável, justificando a afirmação da

vontade.

“Se o mundo pode ser pensado como uma grandeza determinada de força e como um número determinado de fontes de força – e qualquer outra representação resta imprecisa e, por conseqüência, inutilizável, – daí resulta que ele deve passar por um número calculável de combinações no grande jogo de sua existência. Em um tempo infinito, toda combinação possível será obtida em um momento ou outro; melhor ainda: ela será obtida um número infinito de vezes. E como, entre cada ‘combinação’ e seu ‘retorno’ seguinte, todas as outras combinações possíveis deverão ter se apresentado, e cada uma destas combinações determina toda a seqüência das combinações na mesma série, assim se teria provado um ciclo de séries

485 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 11 [72]

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169

exatamente idênticas: o mundo enquanto ciclo que se repete um número infinito de vezes e que joga seu jogo in infinitum.”486

Apenas a afirmação do eterno retorno cumpre a tarefa de valorização da existência

tal qual Nietzsche entende ser necessária para se opor à moral da decadência e à cultura da

mediocridade. A ética enquanto capacidade de afirmar a ausência de fundamento metafísico

para a existência, a inocência do devir e a afirmação da vontade em toda sua potência

expressiva é resumidas por este pensamento apresentado também enquanto doutrina de

adestramento e seleção do homem, para que este seja capaz de afirmar a vida em toda sua

tragicidade. O eterno retorno entendido como doutrina ética decorrente da teoria da vontade

de potência, com o intuito de elevar o homem a um patamar onde este homem atual não

seja sequer compreendido como sendo da mesma espécie: o super-homem.

486 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIV, 14 [188]

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170

Conclusão

Fazer a crítica da moral significa muito mais do que simplesmente pensar os valores

morais aos quais o ocidente esteve ligado nos dois últimos milênios e opor a eles valores

novos. Nietzsche percebeu que a força da moral residia nos efeitos de poder produzidos por

todo discurso que se quer como verdade. Se um valor moral se encontrasse sustentado por

uma espécie de pensamento aceito como verdadeiro, então ele estaria legitimado. A

psicologia de Nietzsche foi capaz de enxergar outros interesses por trás do pensamento

filosófico que buscava o conhecimento puro e desinteressado. A fachada de conhecimento

deu ao pensamento a ilusão de que uma criação humana pudesse ser mais do que apenas

uma perspectiva sobre as coisas. Acreditou-se que o pensamento, através da linguagem,

fosse capaz de alcançar as coisas mesmas e não fosse apenas uma forma de relação do

homem com as coisas. Desta forma, o bem e o mal foram definidos como absolutos, pois o

conhecimento que os legitimava era entendido como verdade. Fazer a crítica da moral

implicava em fazer a crítica daquilo que servia como base de sustentação para esta moral.

Nietzsche percebeu que os valores morais tiravam sua força coercitiva deste

discurso de verdade e foi além. Desvendou que as próprias teorias filosóficas do

conhecimento, que diziam buscar a verdade de um ponto de vista desinteressado, possuíam,

no fundo, o enorme interesse em propor os seus próprios valores como verdades do

conhecimento. Ao apontar para este interesse por trás do “desinteresse”, Nietzsche mostra

que não é possível um conhecimento desinteressado, pois não é possível um conhecimento

que não seja perspectivo. Todo pensamento, toda teoria, parte de um ser humano, de um

pensador, de um cientista, suas conclusões são, portanto, conclusões que se relacionam com

a perspectiva que o engendrou, isto é, a do próprio ser humano. Não há como um

pensamento não ser perspectivo, pois ao nascer, ele nasce de algum lugar e vê as coisas

deste ponto. Não há como o conhecimento abarcar o todo, nem todas as perspectivas. Neste

sentido, o conhecimento só pode aparecer como uma interpretação possível dentre outras,

sendo sempre parcial.

É importante enfatizar o caráter interpretativo de toda perspectiva. O homem através

de sua ciência, de seu conhecimento e também de sua arte interpreta o mundo com o qual se

relaciona. Estas criações, por mais belas e eficientes que sejam, são formas que o homem

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171

tem de se relacionar com as coisas e o faz a partir de seus meios como a linguagem. Todo

conhecimento, na medida em que é expresso em uma linguagem que o homem inventou, se

mostra como uma forma de relação entre o homem e as coisas. O que significa que não

pode mais se sustentar como verdade, no sentido metafísico até então defendido pela

filosofia. O conhecimento filosófico que era capaz de apresentar a verdade sobre o bem e o

mal se torna uma interpretação perspectiva tornada possível através do uso de meios

inventados pelo próprio homem para tentar traduzir o que pensa e sente. Se o próprio

pensamento se der pelo uso da linguagem, então talvez seja completamente impossível ao

homem fugir do antropomorfismo.

“Matemática – Vamos introduzir o refinamento e o rigor da matemática em todas as ciências, até onde seja possível, não na crença de que por essa via conheceremos as coisas, mas para assim constatar nossa relação humana com as coisas. A matemática é apenas o meio para o conhecimento geral e derradeiro do homem.”487

Vê-se que a crítica à moral implica em uma longa crítica da idéia de verdade e da

maneira como se pensou até hoje o conhecimento. Contudo, seria então impossível, ou ao

menos inútil, todo trabalho filosófico ou científico? – Nietzsche não deixa que sua crítica se

acabe em um pessimismo vazio, onde nada mais valeria a pena. Ao contrário, esta sensação

de vazio decorre do fato de que por muito tempo o homem viveu acreditando que era

preciso a segurança da verdade em suas criações. Contudo, em todos os casos foi este

mesmo homem quem concedeu os valores às coisas. Se o conhecimento é uma relação do

homem com as coisas, não chegando a algum tipo de realidade em si, é porque foi o próprio

homem quem criou a idéia de verdade e acreditou que ela existia da forma como queria. Se

ele hoje percebe que a criou e não mais crê, então, ao contrário de se ver em um vazio

desprovido de valor e sentido, pode perceber que pela primeira vez tem a oportunidade de

criar seus valores e seus sentidos sabendo que isto é uma criação. A humanidade está diante

da liberdade. Tudo aquilo que o homem entendeu como moral, conhecimento e verdade

são criações humanas, mas isto não quer dizer que ele não possa mais criar, ao contrario,

isto quer dizer que somente agora ele pode criar a si mesmo como quiser. O homem enfim é

possível. Até então, sua potência estava limitada pela lógica, pela moral, pela idéia de

verdade e conhecimento. Tais limitações visavam manter o homem em um patamar baixo 487 Nietzsche. “Gaia ciência”, 246

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172

de potência, tais pensamentos objetivavam o enfraquecimento do homem. Por isto, para

Nietzsche, toda moral e todo discurso de verdade é um sintoma de fraqueza, na medida em

que visa controlar toda a potência dos afetos humanos, sem lhes desenvolver e aperfeiçoar,

mas lhe extirpando. O sentido de sua crítica foi o de liberar esta potência até então proibida

e ele consegue na medida em que tira o sustentáculo do conhecimento científico e abre

então para os demais tipos de conhecimento, até então recalcados pela tradição.

É neste ponto que Nietzsche apresenta também a sua criação, a sua proposta, a sua

interpretação parcial e perspectiva da vida. O fato de que o conhecimento seja uma criação

não impede que Nietzsche crie. Ao contrário, para Nietzsche somente agora a filosofia é

possível, pois somente agora ela poderá criar de acordo com seus objetivos. O objetivo de

Nietzsche é criar uma filosofia que seja capaz de levar o homem ao seu mais alto grau de

potência e desenvolvimento. É neste sentido que formulará as idéias de vontade de

potência, eterno retorno e super-homem.

A vontade de potência é sua interpretação amoral da constituição das coisas. Tudo o

que existe é manifestação imediata de potência. Esta potência não poderia não se realizar,

pois, neste caso, não seria potência, seria impotência. A potência está expressa a cada

instante. Com isto, termina-se com a idéia de que existe um bem e um mal por detrás do

mundo e que regeria todos os acontecimentos. Ao contrário, os acontecimentos são

entendidos como resultantes da correlação entre as forças expressas a cada instante. Esta

interpretação restaura a inocência do devir e ainda aponta para a boa consciência que se

deve ter para com suas próprias vontades.

Por mais que Nietzsche apresente a vontade de potência como hipótese

interpretativa, ele não deixa de ver e interpretar o mundo a partir desta perspectiva. O

filósofo realmente crê que o que há são correlações de forças expressas em potência a cada

instante. Mas sabe também que esta é a sua forma de interpretar o mundo, sabe que é uma

forma de enxergar as coisas e pensá-las. Nietzsche sabe também que a vontade de potência

é uma idéia expressa em conceitos que tenta tornar inteligível para o homem o modo como

as coisas são. E que, por mais que se concorde com a adequação da idéia ao objeto, isto não

faz com que a vontade de potência seja uma verdade.

Com a crítica feita à verdade e a partir da teoria da vontade de potência, tem-se um

deslocamento da questão moral. Ela não pode mais subsistir com tanta força, pois seus

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173

meios de coerção não possuem mais a mesma persuasão. O homem, quando liberado da

moral e do dever, é obrigado a encontrar-se consigo mesmo. A sensação de vazio e de

impotência é uma das formas como o homem passou a sentir a vida a partir da ausência da

verdade moral. Contudo, se não há moral e se a verdade é uma criação, então existe uma

contra-partida a este sentimento de impotência que é o seu extremo oposto. Para Nietzsche

somente agora o homem pode olhar para si mesmo com boa consciência, pois seus desejos

não são mais caluniados por uma moral que negue as propensões naturais do homem em

nome da algo inventado como verdade. Agora o homem pode dar vazão à sua força e

tornar-se cada vez mais forte e maior. Tem-se enfim, que pensar a ética. Ética em Nietzsche

significa este trabalho do homem liberto da moral sobre si mesmo em busca de grandeza, a

partir das suas próprias paixões e desejos. Por isto foi preciso derrubar a moral. Esta, como

estratégia dos fracos, impedia o homem de realizar sua paixão e seu desejo, isto é, impedia

o homem de tornar-se si mesmo. A ética será este trabalho de criar a si mesmo em direção à

grandeza e à beleza do mais alto grau de potência.

O ponto culminante desta ética seria o super-homem, um homem tão forte e pleno

que poderia ser considerado como algo além do homem. Diante do estado de torpor niilista

em que vive o homem após a perda de suas crenças, Nietzsche cria um novo objetivo para a

vida. Se, antes, o sentido da vida era o de obedecer a regras morais filosóficas ou religiosas,

e o sentimento de estar ao lado da verdade ou de estar salvo junto a deus era a recompensa

que trazia o bem-estar, hoje essas justificativas não mais proporcionam este mesmo

sentimento. E se não proporcionam é pelo simples fato de que nelas não mais se crê como

antigamente. A crença na existência de deus e em que a obediência a seus mandamentos

traria a salvação proporcionava um sentimento de resignação frente à dor que a vida

poderia causar. Hoje em dia não mais se aceita esse tipo de explicação para se conferir

sentido à existência. Sofre-se de um vazio de sentido existencial. É preciso, pois, conferir

um sentido à existência. Um sentido que a engrandeça e a fortaleça. Um sentido que torne a

vida digna de ser vivida. Para Nietzsche este sentido é o super-homem. O homem pode se

direcionar para o desenvolvimento de si mesmo e de sua própria grandeza. Esta é a ética de

Nietzsche: viver, a partir de suas próprias paixões e desejos, aquilo que lhe dá o maior

sentimento de força e amor e, a partir daí, desenvolver-se ao máximo neste caminho,

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174

produzindo uma grandeza passível de ser apreciada por inúmeras gerações e, quem sabe,

pela eternidade.

Contudo, Nietzsche sabe que está a criar um objetivo e um sentido. Nietzsche

inventa o super-homem e o apresenta como ideal de grandeza para a humanidade. Mas

Nietzsche sabe que inventou um ideal. Nada pode parecer mais contraditório do que a

invenção de um ideal por parte de Nietzsche. Mas o filósofo sabe que está a inventar, a

criar, e sabe que este é o único caminho afirmativo possível para a humanidade hoje. Pode-

se voltar às crenças metafísicas e aos messianismos, pode-se prostrar-se em um niilismo

passivo e querer o nada, até mesmo nada querer, mas, para que a vida humana seja

afirmada, é preciso que se crie uma proposta e que se saiba que esta proposta é uma

criação. O saber-se criação por parte do ideal do super-homem o diferencia de todos os

demais ideais anteriores. O super-homem é uma proposta, precisa ser querido para

acontecer, ele não é uma imposição que precisa ser obedecida. Ele não é uma verdade, é

uma vontade. O super-homem aparece como a proposta afirmativa de Nietzsche para a

vida. Um ideal de grandeza em oposição a toda negação e fraqueza diante da vida. O

sentido do super-homem é levar a humanidade ao seu mais alto grau de potência. Mas é só

uma proposta, podemos escolher o último homem: o homem mesquinho, inseguro, medroso

diante da vida, que busca apenas proteger sua pobre existência de qualquer risco e qualquer

tentativa, em suma, o homem burguês.

O eterno retorno aparece, aqui, como uma espécie de prova de afirmação da vida.

Nietzsche cria um pensamento que, caso seja afirmado, implica na afirmação incondicional

da vida. O eterno retorno seria uma forma de adestrar os homens em direção ao super-

homem e de selecionar os realmente aptos para a tarefa. Se descobríssemos que viveremos

nossas vidas um número infinito de vezes, seríamos capazes de gostar desta profecia? Se

isto não fosse uma escolha, seríamos obrigados a fazer de nossas vidas algo de bom, pois

ela retornaria: “a questão em tudo e em cada coisa, ‘Você quer isso mais uma vez e por

incontáveis vezes?’, pesaria sobre seus atos como o maior dos pesos.”488 O eterno retorno

pode ser pensado como um questionamento ético, na medida em que afirmá-lo implica em

aderir de forma incondicional à vida com tudo o que ela tenha de dor ou de alegria. Quem

for capaz querer o eterno retorno de tudo aquilo que já passou é porque sente-se justificado

488 Nietzsche, Gaia ciência, 341

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175

no instante presente. O eterno retorno implica em não somente aceitar, mas também querer

tudo o que foi. Somente assim afirma-se a toda a existência de uma só vez.

Em oposição a uma história que sempre buscou diminuir a vida, Nietzsche

apresentou a genealogia da moral. Diante dos escombros da decadência, ele ergue suas

interpretações e propostas afirmativas para toda humanidade. Não há como entender

Nietzsche como um pessimista ou niilista. Ao contrário, Nietzsche nos mostrou como

estivemos atados a valores que nos diminuíam e como se pode agora criar para si mesmo

um ideal de grandeza. Nada poderia ser mais afirmativo e pleno de vitalidade. A alegria de

viver.

Neste ponto é de suma importância reafirmar e enfatizar o caráter hipotético e

especulativo não só da filosofia, mas de todo e qualquer pensamento. Pode até mesmo

parecer contraditório que a total ausência de fundamentos e bases possa formar algum tipo

de alicerce sobre o qual se possa erguer uma teoria ou um pensamento qualquer. Mas é para

isto que Nietzsche chama atenção quando diz que enfrentou e superou o niilismo.

“Só tarde demais temos coragem para aquilo que sabemos ser pertinente. Só há muito pouco tempo confessei a mim mesmo que, até então, fui profundamente niilista; a energia e a apatia com as quais segui em frente enquanto niilista, me enganaram sobre este fato fundamental. Quando caminhamos em direção a uma meta, parece inconcebível que ‘a ausência de meta em si’ possa ser nosso princípio de crença.”489

Até mesmo para o próprio Nietzsche foi difícil aceitar que a direção e a meta

possam nascer diretamente da ausência de metas. Este aforismo mostra que é justamente a

partir da ausência de fundamento e sentido prévio para a existência e para o conhecimento,

que é justamente a partir do entendimento da verdade moral enquanto crença, que se pode

formular novas propostas para a humanidade. Somente ao se aceitar esta condição trágica

inicial é que a meta, o objetivo e o sentido poderão ser entendidos como humanos,

demasiado humanos. Somente assim poderão respeitar a vida em seu caráter criador e

ilusório. Caráter este que Nietzsche não se cansou de enfatizar como mais importante do

que a verdade. O pensamento e a solução de questões humanas somente podem ser

apresentados de um ponto de vista humano. Toda filosofia, na medida em que se outorgar o

caráter de solução definitiva estará repetindo o movimento de acreditar no próprio mito. É

489 Nietzsche, “Fragments Posthumes”, XIII, 9[123] (grifo nosso)

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176

desta forma que a ausência de sentido e meta deve forçar o homem a ser capaz de criar um

sentido e uma meta. A real força do pensamento ético de Nietzsche consiste em devolver ao

ser humano o poder de criar para si o sentido de sua própria existência a partir de suas

paixões e com boa consciência.

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177

ENSAIO:

ASSIM APRENDI COM ZARATUSTRA

Neste apêndice trata-se de um ensaio interpretativo sobre aquele que Nietzsche

considerava ser seu trabalho mais importante. Não temos, de forma alguma, a intenção de

apresentar uma grande interpretação que fosse capaz de exaurir todas as questões do livro

ou algo do gênero. Em muitos pontos, inclusive, abre-se mão de qualquer interpretação

mais detalhada e deixa-se correr o texto. O próprio formato escolhido foi o do ensaio por

termos sentido que era preciso criar um texto em que o “ambiente” poético e romanceado

do livro estivesse presente. Se esta parte de nosso trabalho vem por último e em forma de

anexo é porque sentimos que apenas após um tratamento teórico mais detalhado da filosofia

de Nietzsche se poderia tentar algo assim. Repetimos não ter pretensão nenhuma ao fazer

esta tentativa a não ser a de apresentar uma leitura pessoal sobre a obra prima do autor que

estudamos, leitura esta que entendemos reforçar a nossa tese sobra a existência de uma

ética na filosofia de Nietzsche. Salvo pouquíssimas exceções, não foram usadas passagens

de outros livros e os bons comentários escritos sobre esta obra de Nietzsche, por mais que

possam ter sido lidos, não serão explicitamente mencionados. Este ensaio pressupõe que o

leitor já possua alguma familiaridade com o livro de Nietzsche, uma vez que as menções ao

texto serão feitas de forma velada na grande maioria dos casos, além de não nos

preocuparmos muito com algum tipo de caráter narrativo.

Este ensaio buscará apresentar “Assim falou Zaratustra” como um livro de ética,

onde o protagonista se apresenta como alguém que traz novos pensamentos para os homens

a fim de lhes incentivar à grandeza e lhes desviar da mediocridade, passando por várias

questões anteriormente abordadas na tese. “Assim falou Zaratustra” apresenta a história de

um sábio que, após permanecer longo tempo como eremita, retorna aos homens trazendo-

lhes seus ensinamentos. Nestes ensinamentos podemos ver de forma velada, ou nem tanto,

as mais importantes idéias da filosofia de Nietzsche. Acreditamos que o estudo de “Assim

falou Zaratustra”, quando articulado com os temas da filosofia de Nietzsche abordados em

seus demais trabalhos, pode ajudar a esclarecer pontos difíceis de sua filosofia justamente

ao abordá-los com uma outra linguagem, uma linguagem não acadêmica e bastante lírica e

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poética. Nele encontraremos sua crítica à cultura moderna, delineando como o filósofo vê

os caminhos da cultura no presente; temos sua contra-proposta a este ideal moderno: o

super-homem – aqui, inclusive, a idéia do super-homem aparece com muita freqüência

fazendo-nos entender melhor o que Nietzsche apresentou como proposta ao niilismo;

Zaratustra se apresentará como mestre do eterno retorno e as passagens em que este

ensinamento é apresentado podem também nos esclarecer uma vez que Nietzsche pouco

falou dele em outros textos.

Neste livro, Nietzsche, através de uma fábula poética, sem fazer o uso clássico dos

conceitos tradicionais da filosofia, condensa todo seu pensamento. Cremos que um dos

principais motivos para este formato inusitado é o de ser capaz de se desviar da linguagem

tradicionalmente usada na filosofia e fortemente marcada negativamente, além de ser

excessivamente provocativo quanto à forma do pensamento tradicionalmente aceito. O

livro de Nietzsche foi uma espécie de resposta a tudo o que ele criticou. É uma resposta que

não poderia ser mais afirmativa, pois é fortemente artística e, ao mesmo tempo, mantém a

profundidade filosófica do pensamento no mais alto grau. Cabe a nós, no máximo, apenas a

liberdade de uma tentativa, de uma tentação, de uma experiência, um breve ensaio.

Prólogo:

1 – Zaratustra, aos trinta anos de idade ― adulto, porém ainda jovem ― se retira de sua

cidade natal e se torna um eremita, morando em uma caverna, no alto de uma montanha, na

floresta. Zaratustra precisava de solidão e nela viveu por dez anos, gozando seu próprio

espírito. A solidão é uma característica muito enfatizada por Nietzsche para aqueles que

buscam a si mesmo. A independência frente a moral impõe a busca por seus próprios

valores a partir de seus próprios impulsos. A solidão é esta condição necessária para o

engrandecimento do próprio espírito.

Zaratustra se ausenta do convívio com os homens em busca de seus mais altos

pensamentos e não se cansa com isto. Contudo, passado algum tempo, sentiu Zaratustra a

necessidade de voltar a se relacionar com os homens para doar aquilo que havia aprendido

e acumulado por este tempo todo. Referindo-se ao Sol, astro rei e estrela sem a qual a

existência de vida na Terra seria impossível, Zaratustra diz que até para este Sol existe uma

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necessidade de doação. A vida do Sol seria enfadonha se não existissem aqueles a quem

ilumina. A luz e o calor do Sol são emanações supérfluas deste astro, entretanto, para nós,

delas dependentes, são uma benção. Necessidade de doar: é isto que Zaratustra sente e, por

isto, precisa retornar aos homens. É de suma importância enfatizar o caráter deste

movimento de Zaratustra: ele precisa trocar com os homens, precisa se relacionar com eles,

pois muito aprendeu em sua solidão sobre coisas do espírito e entende que seus

ensinamentos ajudarão as pessoas a crescer.

Fica claro que a filosofia de Nietzsche trata de questões humanas e o faz de um

ponto de vista ético-cultural. Este é o centro da filosofia de Nietzsche. Por isto, Zaratustra

deve descer às profundezas do homem e doar-lhes seus ensinamentos. Porém, para

Zaratustra, esta descida se assemelha a um ocaso, pois ele se encontra em um estado de

plenitude de forças e a doação será como o transbordamento de um copo. A doação é uma

característica apenas dos fortes, como o Sol, e, assim, Zaratustra se entrega à sua senda,

mas não sem antes pedir a benção ao mais forte dos astros.

2 - Ao iniciar a descida de sua caverna, Zaratustra encontra um santo que morava na

floresta. Este diz que Zaratustra saiu da cidade levando suas cinzas e, hoje, retorna a ela

com o fogo. Se Zaratustra está abundante e precisa doar, quando se retirou da cidade estava

fraco e precisando de solidão. Zaratustra se fortalece consigo mesmo em sua solidão.

Mesmo assim, ama os homens e quer com eles trocar mais uma vez. Contudo, o santo sabe

que os ensinamentos de Zaratustra, por serem amorais e ímpios, são como fogo para o

homem de rebanho. Há uma menção clara aos riscos da autodeterminação dos próprios

valores quando se vive em sociedade. O santo diz que, assim como Zaratustra, também já

amou os homens, mas estes são pobres demais para seu amor. Por isto, também se refugiou

na floresta, só que vive a louvar a deus. Neste ponto Zaratustra se pergunta por que foi falar

de amor. Está claro que o amor de Zaratustra é diferente do amor do santo. O santo não

amava os homens, em verdade, ele era apenas mais um niilista fugindo da vida. Amando a

deus, agora, ama o além, o fim, o nada, ao contrário de Zaratustra, que ama os homens, isto

é, a vida. Amar a vida significa amar os homens. Com certeza, amar a vida significa mais

do que amar apenas os homens, mas sem este amor aos homens, o amor à vida torna-se

questionável. Nietzsche sempre criticou a noção abstrata de humanidade e sempre duvidou

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180

de um amor pela humanidade, mas, vemos aqui, mais uma vez, que sua filosofia trata,

explicitamente, de questões humanas. O niilismo não é algo metafísico, embora a

metafísica seja uma característica do niilismo. Se o niilismo é algo de humano, trata-se de

pensá-lo aí, e de aí propor outra vida e outros valores. É o que Zaratustra pretende ao descer

de sua caverna na montanha. Ao final deste ponto aparece a primeira menção, ainda pouco

esclarecedora, sobre a morte de deus. O santo fala de deus, mas deus não estaria morto?

3 – Zaratustra se dirige à praça pública, onde estava programado um espetáculo de

entretenimento para a massa. Lá, profere a todos um discurso. Zaratustra faz uma crítica ao

homem tal qual o conhecemos hoje. Um homem que, por mais que tenha “progredido” de

seu antigo estado animalesco, ainda tem muito de macaco em sua forma de ser. Neste ponto

apresenta-se o grande ensinamento de todo o livro: o super-homem. Tal ensinamento não se

dissocia dos demais ensinamentos como morte de deus e vontade de potência, mas

Zaratustra desceu aos homens para falar-lhes do super-homem, o super-homem é o sentido

de todos os ensinamentos, a meta da cultura, a opção ao niilismo. Diante de um homem

fraco e impotente, a proposta é por uma elevação, um fortalecimento de tal ordem que se

possa falar em outra espécie. “O homem é algo que deve ser superado”.

A primeira dica que Zaratustra nos dá é que permaneçamos fiéis a Terra, ao nosso

planeta. A crença em determinadas religiões e deuses fez com que o homem desprezasse a

própria vida, desprezando, assim, a Terra. Mas trata-se, justamente, de valorizar a Terra e a

vida. Depois de dois mil anos de cristianismo, é preciso reacender a chama do amor pela

vida. É este deus, de certos cristianismos, que morreu. Agora, a valorização da vida é o

principal ponto na luta contra o niilismo e contra a cultura da mediocridade, na luta por si

mesmo, na luta por um super-homem. Se, antes, o sentido da Terra era tido como algo

obscuro, pertencente à vontade divina, revelada pelo pastor, agora fica claro que o futuro da

Terra e da vida na Terra depende apenas do homem e de sua capacidade de se enxergar

assim responsável. O super-homem, como proposta de auto-elevação do homem, é uma

proposta que depende da vontade do homem, é preciso querer o super-homem, é preciso

querer e criar o sentido da vida e da cultura na Terra. Esta é a grande mudança do mundo

contemporâneo em relação ao passado: agora se pode decidir conscientemente a que

caminhos seguir, individual e coletivamente.

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É interessante que este super-homem, longe de ser algo agradável e que seria de

bom grado a todos buscá-lo, decorre, na verdade, de um ocaso, de um perecimento. É

preciso que o homem atual, com todos os seus valores, suas crenças e suas felicidades,

pereça. Este homem é um rio imundo. Somos todos rios imundos. (Imundos em um sentido

amoral, isto é, somos imundos não por sermos pecadores, mas por sermos medíocres)

Seremos capazes de nos enxergar assim? – Caso não sejamos, certamente é por falta de

rigor na crítica! Aliás, uma superficial satisfação consigo mesmo, um grande apreço por sua

pequena felicidade é característica do animal de rebanho. O super-homem, ao contrário, é a

hora do grande desprezo. Há um momento em que até a felicidade se converte em náusea.

Há um momento em que os frutos de uma cultura mesquinha se mostram tão medíocres que

se percebe o quão ridículo é o espetáculo de nossa busca por esta pequena felicidade. No

momento em que a felicidade, a razão, a virtude, a justiça e a compaixão se apresentarem

como valores incapazes de dar sustentação à existência o niilismo se tornará aparente.

Neste ponto, será preciso desprezar estes valores, que foram os mais caros ao homem até

aqui. Desprezá-los, pois ficará claro que tais valores levam o homem não ao seu apogeu,

como ainda acreditam alguns, mas ao seu mais baixo grau.

4 – Nietzsche começa este ponto falando justamente do perigo da vida, isto é, do perigo que

viver representa. Sendo o homem uma ponte entre o animal e o super-homem, a vida é a

travessia da ponte. Travessia perigosa de transpor, perigoso olhar para trás, parar, tremer.

Mas o que há de grande no homem, diz Zaratustra, é que ele é esta ponte, ou seja, uma

transição. A partir deste ponto, Zaratustra enumera uma série de característica do homem

que seria esta ponte. Ele é sempre aquele que quer seu próprio ocaso, pois quer o super-

homem. “Amo os que não vivem senão no ocaso, porque estão a caminho do outro lado”.

Como já foi falado, trata-se de se arriscar na experiência da busca de um outro patamar para

a existência. Assumir os riscos de uma outra vida, assumir os riscos da criação de outros

valores, nem que isto signifique a própria morte. Este é um passo em direção ao super-

homem.

Em uma das últimas frases, Zaratustra diz que quem tem o espírito e o coração

livres tem a cabeça como uma víscera do coração. Nietzsche sempre priorizou os afetos

emotivos ao invés da razão. Saber ouvir ao seu próprio coração e ter coragem para seguí-lo

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182

são, talvez, os pontos mais importantes de toda a filosofia de Nietzsche. Aí, não há espaço

para a moral. A grandeza de espírito e em obras decorre da grandeza de um coração pleno

de amor e coragem para este amor.

5 – Um dos discursos mais importantes do prólogo. Aqui se apresenta e se descreve os

caminhos atuais da humanidade, aquilo que ela está se tornando quase que como um ideal:

o último homem. O texto fala por si próprio, sem muita necessidade de interpretação. “Já é

tempo de o homem estabelecer a sua meta. Já é tempo de o homem plantar a semente da

sua mais alta esperança. Seu solo é ainda bastante rico para isso. Mas, algum dia, esse solo

estará pobre e esgotado, e nenhuma árvore poderá mais crescer nele. Ai de nós! Aproxima-

se o tempo em que o homem não mais arremessará a flecha do seu anseio para além do

homem e em que a corda de seu arco terá desaprendido a vibrar! Eu vos digo: é preciso ter

ainda um caos dentro de si, para dar à luz a uma estrela dançante. Eu vos digo: há ainda

caos dentro de vós. Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem não dará mais à luz

nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, que

nem sequer saberá mais desprezar-se a si mesmo. Vede! Eu vos mostro o último homem.”

A multidão, após criticar a idéia de super-homem, clama pelo último homem. Este é

o ideal da modernidade, este é o atual sentido da Terra. É contra este estado de coisas que

se dirige a crítica de Nietzsche. Este último homem é um homem pequeno, mesquinho,

conformado, sem anseios de crescimento, sem desejos nem força. A humanidade possui,

ainda, uma bagagem cultural que a permite viver, se desenvolver e crescer. Mas o atual

estado da cultura tende a empobrecer cada vez mais este solo. Não é à toa que o último

homem diz que inventou a felicidade. Para ele a felicidade é a homogeneização de todos,

sem o diferente, sem a exceção, ele pode se sentir feliz em sua mediocridade. É a felicidade

do rebanho, que se torna náusea, pois não é capaz de produzir nada de grande ou de belo.

Ao final, Zaratustra chama a atenção para o caráter gregário da modernidade. “Nenhum

pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais; e quem sente de outro

modo vai, voluntário, para o manicômio.” A força de homogeneização deste processo é tão

grande que aquele que pensa de forma diferente sofre tanto que poderia se direcionar ao

manicômio. É possível que ele próprio se sinta realmente louco, tamanha a força do

processo homogeneizador. Por isto, há a necessidade não somente da solidão, mas da

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capacidade de nela se fortalecer e manter-se sereno, com claridade de pensamento, para se

poder enfrentar tudo isto.

6 – Enfim, começa a apresentação do funâmbulo na praça em que Zaratustra proferia os

discursos. Sobre uma corda estendida entre duas torres tenta passar este homem que foi

adestrado para tal serviço. Alguns entendem ser fácil ver aqui a menção ao super-homem,

sendo o funâmbulo o homem que tenta fazer a travessia. Aqui ocorre a primeira aparição do

chamado espírito de gravidade. Aparece sob a forma de um palhaço que insulta e depois

derruba o funâmbulo, saltando por cima deste, que morre. Quem seria este espírito de

gravidade que derruba o homem de seu caminho e o mata? E por que estaria na forma de

um palhaço? – Parece-nos que seria algo interessado em que o homem não siga seu

percurso, algo responsável por manter o homem a meio caminho entre o animal e o super-

homem. Pode ser a moral, a Igreja, a má consciência, a boa consciência de um animal de

rebanho, o medo... Não sabemos...

O funâmbulo conversa com Zaratustra antes de morrer e diz que se sente apenas

como um animal adestrado em quem o diabo deu uma rasteira. Mas Zaratustra diz-lhe que é

um homem digno, pois fez do perigo seu ofício. Diz-lhe também que não há diabos ou

coisas assim. Mais uma vez apresenta-se com clareza a questão de que é preciso pensar o

sentido da vida e da Terra de um ponto de vista humano, como criação e não como

determinismo religioso ou metafísico. Todos na praça aguardavam o entretenimento a ser

proporcionado pelo espetáculo, mas ninguém se pôs a ajudar o funâmbulo quando caiu,

apenas Zaratustra.

7 – Zaratustra se percebe longe dos homens. Sua fala em praça pública não atingiu

ninguém, a não ser um cadáver e, mesmo assim, acidentalmente. Como ensinar o super-

homem?

8 – Ao sair da cidade pela noite, Zaratustra é abordado pelo mesmo palhaço que saltara

sobre o funâmbulo à tarde. Este lhe diz que os bons e os justos assim como os homens de fé

daquela cidade odeiam Zaratustra. Somente não o mataram, pois entenderam-no como um

palhaço. Os ensinamentos de Zaratustra não são aceitos neste contexto e serão fortemente

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criticados e proibidos. Forte é a pena para aquele que segue um caminho amoral. A

incompreensão em relação a aquele que pensa de forma diferente do homem de rebanho

desenvolve-se em ódio e ostracismo. Zaratustra segue seu caminho e encontra-se, ainda,

com algumas pessoas que caçoam e riem dele, desprezando-o. É assim que aqueles que

criam seus próprios valores são tratados pela cultura moderna do animal de rebanho.

Zaratustra segue sozinho e com fome pela floresta carregando o morto e encontra uma casa,

onde um eremita lhe oferece pão e vinho e quer que o morto também coma. Parece não se

importar com o fato de que esteja morto.

9 – Outro parágrafo importantíssimo na compreensão de toda a filosofia de Nietzsche e de

toda a proposta de Zaratustra. Repentinamente, como muitas vezes nos surgem grandes

pensamentos, Zaratustra chega à conclusão de que precisa, em verdade, de companheiros.

Zaratustra percebe que agira como um pastor ao falar a todos em praça pública. Parecia

estar buscando fiéis para uma seita. Mas, é sempre uma minoria de pessoas que se coloca

de forma verdadeiramente crítica diante do mundo que têm à frente. Ao falar a todos,

atinge-se a maioria, o rebanho, a massa, atinge-se pessoas que se mostram satisfeitas com o

atual estado de coisas. Como a homogeneização na mediocridade torna a todos iguais, não

há necessidade de grandeza, há a segurança na mediocridade. Quando todos são iguais,

pode-se excluir a exceção, o diferente. Zaratustra entende que precisa se ligar àqueles a

quem possa chamar de companheiros, àqueles que o sigam porque querem seguir a si

mesmos e o abandonarão se necessário. Zaratustra percebe que não deve agir como pastor e

formar um rebanho, ao contrário, deve atrair para fora do rebanho aqueles capazes de auto-

afirmação frente à moral. Referindo-se ao seu encontro anterior com o palhaço, Zaratustra

diz quem são aqueles que se intitulam os bons e justos: são os pastores do rebanho, são os

que defendem as regras diminuidoras do homem e odeiam aqueles que não seguem sua

moral, são aqueles que praticam os valores estabelecidos e exigem que estes sejam

praticados pelos demais. Contra estes, Zaratustra clama por companheiros. Quem são estes

companheiros? – Aqueles que quebram as tábuas de valores, os destruidores, que são

também os criadores de novos valores.

Zaratustra procura participantes na criação e aqueles capazes de colher o fruto desta

criação. Através da criação de novos valores pode se dar alguma transformação. É a vida,

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185

comprometida consigo mesma, que, ao viver a si mesma na plenitude de sua paixão

transforma o mundo. Isto quer dizer que é o homem, comprometido com seu coração e com

sua vontade, que, a partir do pensamento crítico sobre o niilismo e sobre a modernidade,

através da prática de seus próprios sentimentos e valores, transforma o mundo. O

fortalecimento do homem nobre, que quer transformar a cultura e transvalorar os valores, se

dá pela sua união com pessoas de sentimento próximo, pessoas que também tenham

vontade e coragem para seguirem a si mesmos. A filosofia de Nietzsche não é

individualista. O respeito à individualidade é fundamental, mas, mesmo Zaratustra precisa

de companheiros.

10 – Aparecem os animais de Zaratustra. O mais altivo (águia) e o mais prudente (cobra)

entre os animais sob o Sol. Zaratustra fala mais uma vez como é perigoso o caminho

daqueles que se propõe a ser a ponte para o super-homem. Por isto, necessita da prudência.

Mas não uma prudência medrosa e sim uma prudência altiva, exuberante, forte e corajosa

para enfrentar os perigos que hão de vir. Outro ponto a se notar é o fato de que a águia é

predadora natural da cobra. Porém, aqui, são companheiras. Talvez porque queiram

também crescer e se fortalecer, vendo nesta união uma força maior do que a relação que

possuíam anteriormente.

1ª Parte

Das três metamorfoses – Neste árduo caminho para tornar-se si mesmo, em busca de,

assim, ser também uma ponte para o super-homem, o espírito passa por três metamorfoses.

Primeiramente, o espírito crítico e forte, ao se deparar e pensar seriamente sobre a moral de

rebanho, sobre o mundo niilista, inicia uma jornada que mais se parece com a de um

camelo. Por sofrer diante de um mundo em decadência, termina por se responsabilizar e,

até mesmo, se culpar diante de tanta podridão. Incumbe-se de carregar, assim, pesados

fardos e, de certa forma, machuca a si mesmo, como que testando sua própria força. Este é

um momento difícil, em que se busca seu próprio deserto, quer-se conhecer melhor a si

mesmo e a seus sentimentos. Em meio a estas reflexões, caso continue seu caminho em

direção a si mesmo, percebe que terá que enfrentar grandes lutas no decorrer deste. É

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preciso, pois, que seu espírito se torne leão. É preciso saber por que sofre, por que não pode

ser livre, a quem estaria ele preso por algum dever que não se lembra de ter prometido.

O leão é aquele que quer conquistar sua própria liberdade e tornar-se senhor de si e

de seu deserto. Para isto, é preciso que seja independente em relação aos valores já

estabelecidos. O leão precisa ser forte o suficiente para dizer “não” a todo dever moral que

lhe é imposto. Contra a moral, o leão é capaz de opor a sua própria vontade, “eu quero”, diz

o leão, contra toda e qualquer imposição moral que se lhe oponha. O que se opõe à moral é

a vontade, o querer, quando se quer algo proibido moralmente, é a vontade que deve

prevalecer sobre a regra. Não é tarefa fácil. Sem perceber, muitas vezes nos deixamos levar

por valores milenares e que, quando rigorosamente escrutados, não nos falam ao espírito,

ao contrário, muitas vezes seguimos coisas que nos destroem e enfraquecem, ao invés de

nos fortalecer. Muitas vezes o pensamento crítico acerca dos valores que se pratica nos leva

a conclusões que nos colocam diante de grandes decisões. A resposta nestes momentos só

pode ser dada por si mesmo, nunca pode vir de fora, senão se constituiria em outra moral. A

força necessária para seguir seu próprio coração nestes momentos, a despeito de toda

moral, é a força do leão. Somente o espírito de leão é capaz de conquistar o direito de criar

seus próprios valores e de seguir seu próprio caminho rumo a si mesmo.

Mas ainda falta a última transformação: a do leão em criança. Uma vez conquistada

a liberdade frente a moral, trata-se então de criar seus próprios valores. Para que seja

possível este novo começo, livre dos pesados fardos de antes e vencido o dragão da moral,

é preciso o esquecimento dos valores antigos e a criação de novos a partir da total inocência

de uma criança. A criança é sempre a mais sincera, pois é também a mais inocente. É esta

inocência nos atos e nos sentimentos que é preciso resgatar.

Das cátedras da virtude – É muito comum dizer que, quem realiza algo de errado não

dorme bem, pois terá problemas de consciência e ficará pensando neles. A proposta deste

sábio é apenas a de que não se deve fazer nada que seja considerado errado e que, vivendo

assim, buscando pequenas felicidades e rindo das coisas simples se terá uma boa vida.

Trata-se ainda de seguir valores estabelecidos e se sentir bem por ser obediente. Contudo,

esta sabedoria não inclui um sentido e uma direção para os sonhos, “era a sabedoria do

sono sem sonhos”. Zaratustra diz que, caso sua vida não tivesse sentido algum,

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187

possivelmente agiria assim. Mas sabemos que Zaratustra é um passo em direção ao super-

homem e, desta forma, seu espírito não está em busca de adormecer.

Dos transmundanos – Neste discurso diz-se que até mesmo os deuses aos quais se deveria

dedicar a vida em nome da salvação eterna são criações humanas. Uma criação humana que

se apresenta como vinda de um além e que nos exige a vida. Este deus é, na verdade, um

fantasma. E Zaratustra, ao pensar sobre isto, faz com que o fantasma desapareça. Este deus

é um valor e Zaratustra cria então outro valor, um valor que seja afirmativo da vida. Este

deus transmundano, que nega a vida e o corpo, que nega a Terra e o homem, é uma criação

de pessoas decadentes, pessoas que sofriam e não tinham explicação para seu sofrer. O

sofrer sem sentido fez com que tais sofredores criassem um deus que fizesse sofrer a todos.

Mas quem criou este deus ainda foram os homens, isto é, seus corpos doentes. Zaratustra

diz que o homem deve valorizar seu próprio corpo como a voz mais honesta e pura, criando

assim o sentido da terra. “Não mais enfiar a cabeça na areia das coisas celestes, mas, sim,

trazê-la erguida e livre, uma cabeça terrena, que cria o sentido da Terra!” Os

transmundanos criaram um sentido para a Terra: o além. Trata-se de criar um novo sentido

para esta mesma Terra: o super-homem.

Dos desprezadores do corpo – Logo após criticar os que denigrem este mundo em nome de

outro mundo além, chamando a atenção para o fato de que foram os próprios homens e a

fraqueza de seus corpos que criaram esta ilusão metafísica, Zaratustra faz a critica também

daqueles que desprezam o corpo. O desprezo ao corpo em nome de uma alma está a serviço

das mesmas forças que o desprezo do mundo por um além. Este desprezo ao corpo decorre

justamente da fraqueza deste próprio corpo. Aquilo que se chama alma e sentidos nada

mais são do que instrumentos do corpo. O corpo é uma espécie de grande razão, “uma

multiplicidade com um único sentido”. Todo o resto existe em função desta grande razão

que é o próprio corpo. O corpo possui sua própria razão e seus próprios caminhos que vão

muito além do entendimento humano. O pensamento também é uma função do corpo, serve

a ele e, por vezes, contra ele se volta. Neste caso, a busca por fatores além do corpo

esconde um corpo que “quer morrer e volta às costas à vida”. Os desprezadores do corpo

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são aqueles que não conseguem criar para além de si mesmos. A meta contrária é o super-

homem.

Das alegrias e das paixões – Quando falamos em seguir as paixões e espiritualizá-las, trata-

se de torná-las virtudes. Virtudes não em um sentido moral, pois esta palavra foi usada com

freqüência na história da filosofia para se definir os valores morais aceitos e estabelecidos

como bons, mas em um sentido ético. A virtude é a paixão espiritualizada, é o impulso que

move todo o ser em direção à grandeza. Virtude aqui entendida como aquilo que lhe é

primordial, aquilo que se ama e que se quer acima de tudo. Algo como o motor de sua

própria existência. “Um tempo, tivestes paixões e as dizias más. Agora, porém, restam-te

somente as tuas virtudes: brotaram das tuas paixões. No centro dessas paixões puseste o teu

alvo mais alto: tornaram-se elas, então, as tuas virtudes e alegrias. E, ainda que fosses da

raça dos coléricos ou dos voluptuosos, dos fanáticos ou dos vingativos, todas as tuas

paixões, por fim, tornaram-se virtudes e todos os teus demônios, anjos. Noutro tempo, tinha

cães ferozes no porão da tua casa; no fim, porém, transformaram-se em maviosas aves

cantoras.”

O tempo em que se negavam as paixões foi um tempo moral, agora, sabe-se que é

da espiritualização das mesmas que nasce a grandeza. As paixões podem ser destrutivas e

nocivas, são como cães e monstros, como demônios. Mas a prisão em jaulas morais não

eleva o homem, apenas o controla. O caminho da grandeza de um super-homem passa por

esta transformação do animalesco em sublime, da paixão em virtude. Cada um tem a sua

própria virtude e é única. Não se pode compartilhar o que há de específico em si mesmo e é

justamente este impulso único que move um ser específico que é a sua paixão e a sua

virtude única. “Inexprimível e sem nome é o que faz o tormento e a delícia da minha alma,

e que é, também, a fome das minhas entranhas”. Esta é a virtude: tormento e delícia. A

virtude aqui não é algo apenas bom e louvável. É, antes, o impulso vital que nos move a

fazer aquilo que queremos. Algo que pode ser agradável, mas também perturbador. Algo

como, por exemplo, a filosofia foi para Nietzsche. Mesmo quando pensava que morreria,

ou quando as dores lhe eram insuportáveis e o suicídio passava-lhe pela cabeça, a vontade

de pensar o que pensou e escrever o que escreveu, a vontade de quebrar a história da

humanidade ao meio, deu-lhe força para seguir adiante. É verdade que nem todas as

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virtudes são tão fortes assim, mas um bom caminho para fortalecê-las é tê-las em menor

número possível. Uma só, como era o caso de Nietzsche, é o que recomenda Zaratustra

como sendo o melhor, pois as virtudes disputaram entre si o corpo ao qual pertencem e sua

força sempre ficará comprometida, se comparada com o caso onde fossem apenas uma.

Do ler e do escrever – Discurso maravilhoso, porém difícil de escrever sobre ele. “De tudo

o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Escreve

com sangue; e aprenderás que o sangue é espírito”. Opondo-se a todo tipo de erudição inútil

ou charlatanismo acadêmico, a escrita somente deve ser a máxima expressão do espírito.

Não o escrever por escrever, não o escrever por profissão, mas o escrever por não haver

outra opção. O espírito em letras, isto é sangue. Nietzsche escreveu com sangue não só

porque seus pensamentos o faziam sofrer e temer os lugares aonde chegava, mas

principalmente porque escreveu com o coração. Tais escritos tentam traduzir pensamentos

sublimes e pensar não é tarefa fácil. Nietzsche tenta formular o pensamento que ultrapasse

o niilismo e, assim, quem sabe, consiga atingir aqueles que, como ele, também querem

ultrapassar este momento difícil da história. Mas sabemos que é difícil encontrar aqueles

que entendam ser preciso fazer esta travessia, ainda mais aqueles que estejam dispostos a

fazê-la, ou, pelo menos, tentá-la. “Corajosos, despreocupados, escarninhos, violentos ―

assim nos quer a sabedoria: ela é mulher e ama somente quem é guerreiro.” O caminho para

as alturas, longe de ser um caminho ascético, é um caminho de guerreiros. É preciso

experimentar a aventura rumo a si mesmo, que é o primeiro passo em direção ao super-

homem. Ao final desse texto, Nietzsche nos dá um exemplo de escrita com sangue, o texto

vai se tornando cada vez mais belo e leve. Escrever com sangue não precisa ser algo

pesado, ao contrário, a altura do espírito se assemelha ao vôo de um pássaro, a sabedoria de

um deus se assemelha a uma dança.

Da árvore no monte – Eis que Zaratustra encontra um jovem. A juventude é a idade onde

começa o desejo por crescimento e liberdade. Entretanto, Zaratustra diz que quanto mais se

almeja e se alcança o alto, mais se desce, ao mesmo tempo, às profundezas e à maldade.

Por que? – Porque se elevar significa, também, se desprender de toda a moral e se guiar

pelos próprios instintos. Porém, com isto, até os maus impulsos querem vir à tona. “Sair

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para a liberdade querem os teus cães ferozes”. A moral não é mais a segurança aceita para

contê-los, mas isto não quer dizer que se está a salvo. Por isto o caminho ético de

autodeterminação é muito perigoso, é preciso conceder a liberdade a todos os instintos e ser

forte o suficiente para a eles não sucumbir. Deflagrar a guerra dos impulsos e crer que o

mais forte e vencedor será um impulso engrandecedor e não algo menor. Aqueles que

sucumbem aos impulsos selvagens tornam-se zombadores, libertinos, apenas destruidores,

“vivem em prazeres de breve duração e já não lançavam meta alguma para além do mesmo

dia”. Há o perigo da vitória dos cães selvagens, mas não se pode mantê-los presos à moral.

Esta é a purificação de que fala Zaratustra, não mais buscar a liberdade tendo que combater

os impulsos contraditórios, mas ter a certeza da força de seu amor e de sua esperança. A

meta, o amor, a virtude, a grande paixão dominante são a esperança. Não uma esperança de

que algo se realizará por si, mas a esperança na grandeza do próprio espírito, a esperança na

força dos impulsos primordiais que se tornarão virtudes, purificando o espírito e tornando-o

verdadeiramente nobre. Outra dificuldade não pequena é que nos momentos mais difíceis

deste caminho, não há a quem recorrer. Quando se decide pela autodeterminação, não há

aquele que possa ajudar com precisão, pois poucos são os que seguem o próprio caminho, e

menos ainda os que não desistem no meio e se tornam inimigos dos novos tentadores. Daí a

necessidade de um mestre. Não só Zaratustra precisava doar, mas sabia da necessidade que

aqueles sedentos de si tinham de alguém em quem pudessem confiar e ganhar mais

segurança.

Dos pregadores da morte – Mais um discurso contra os que negam a vida, seja em nome do

além seja por falta de justificativa metafísica para o sofrimento. Com relação a estes,

Zaratustra diz: “Gostariam de estar mortos; e nós deveríamos, realmente, aprovar-lhes a

vontade!” Os que pregam a morte são também aqueles que pregam a vida eterna.

Da guerra e dos guerreiros – Zaratustra profere este discurso a seus irmãos de guerra. Isto

quer dizer que ele, mesmo que não seja um guerreiro, participa da mesma guerra que seus

companheiros. Neste percurso que estamos aqui descrevendo, chama-se a atenção neste

discurso para a importância da guerra. Da guerra contra a moral e o niilismo, em nome de

um pensamento maior: o super-homem. Nossa dúvida é quando Zaratustra diz que, para o

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guerreiro, o ‘tu deves’ é mais agradável que o ‘eu quero’. Seria o guerreiro um tipo

diferente daquele que passa pelas três transformações do espírito e de quem estamos

falando todo o tempo? É verdade que Zaratustra diz que a ordem a que devem seguir os

guerreiros é o pensamento que está posto deste o prólogo, a saber, que “o homem é algo

que deve ser superado”. Isto certamente faz com que os guerreiros estejam do mesmo lado

que Zaratustra e seus companheiros. Mas seria este tipo guerreiro um companheiro de

Zaratustra tal qual o entendemos até agora? Acredito que não. Mas, então, quem seria? Um

tipo que não seja forte o suficiente para se elevar ao tipo nobre, mas que participa da luta

pela transvaloração? Talvez, para aqueles que não chegam a mandar em si mesmo, ou que

são repletos de ódio e inveja, a melhor opção seja se tornar um guerreiro, isto é, uma peça

fundamental no processo transvalorador, mas que obedece, pois não sabe mandar em si

mesmo.

Do novo ídolo – O Estado é o novo ídolo, pode até mesmo substituir deus como fiador da

segurança do rebanho. Zaratustra critica duramente o Estado, pois o governo, em sua forma

contemporânea, se tornou um entrave a mais para a verdadeira cultura. O Estado é o

contrário de povos. Um povo é uma identificação mútua entre as pessoas diante de

costumes, valores e metas em comum. Por mais que se reconheça algo próximo a isto nos

países de hoje, também pode se reconhecer facilmente que o Estado mente em todos os

países. Nenhum Estado no mundo faz o que diz fazer, todos são demagógicos, todos

almejam apenas o poder, todo usam o povo como um instrumento de seus próprios

interesses pessoais. Tudo no Estado é falso. Aqueles que lutam pelo Estado são supérfluos.

O Estado não é capaz de promover a cultura, apenas de usá-la a seu favor e, com isto, dizer

que está promovendo a cultura. Zaratustra diz com todas as letras, a alavanca do poder é o

dinheiro, e quanto mais ricos se tornam os homens supérfluos do Estado, mais pobres

ficam. Este ponto é importante, pois a riqueza e nobreza a que almejam Nietzsche e

Zaratustra é a de espírito e, muitas vezes, a riqueza material tem por conseqüência uma

perda do espírito. “Na verdade, quem pouco possui, tanto menos pode tornar-se possuído:

louvada seja a pequena pobreza!” O homem nobre não precisa de muito, seu espírito já lhe

dá o que precisa. Em contrapartida, a forte crença no dinheiro é uma crença pobre de

espírito. Chamando, mais uma vez, a atenção para a urgência do tempo ― como quando

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disse que o solo do homem era ainda rico o suficiente para que possa lançar uma semente

com um anseio (prólogo #5)― Zaratustra diz que ainda há espaços na Terra que estão

livres para a solidão das grandes almas. Embora estejam acabando. E termina: “Onde o

Estado cessa ― olhai para ali, meus irmãos! Não vedes o arco-íris e a ponte do super-

homem?”

Das moscas e da feira – Zaratustra compara o mundo hoje com uma feira, uma enorme

algazarra, onde se fala muito e se pensa pouco. Os famosos estão na feira, Zaratustra

aconselha a distância da feira. Quando Zaratustra falou a todos, não foi compreendido,

passou então a procurar por companheiros. Zaratustra tem uma proposta para a

humanidade, superar-se. Mas a massa de rebanho não quer esta proposta, a pequena

felicidade e a mesquinharia são alimentos suficientes para a maioria. A feira é onde se

encontra essa maioria. Para aquele que quer crescer e transvalorar todos os valores, a

solidão é indispensável. É no momento em que se está a só consigo mesmo que se dá a

caminhada. O homem baixo ataca o forte como faz uma mosca venenosa. Pequenas

provocações em nome dos valores estabelecidos, que não são seguidos pelo forte, mas que

são insistentemente cobrados com escárnio, terminam por machucar. Não cabe a aquele que

busca a nobreza de espírito convencer o animal de rebanho da diferença de grau nessas

questões, apenas se sofre mais com isto. Por isto Zaratustra aconselha a solidão para longe

da feira. “Foge, meu amigo, foge para tua solidão e para lá onde sopra um vento rude e

vigoroso. Não nasceste para enxota moscas.”

Da castidade – O impulso sexual é um dos mais fortes que existem. Todos somos ou já

fomos, de uma maneira ou de outra, arrebatados por tal impulso. Para grande maioria das

pessoas “nada de melhor conhecem, na terra, do que dormir com uma mulher”. São desta

natureza também, muitos dos impulsos que tentamos enjaular. Um forte e controverso

impulso é um prato cheio para a moral. O sexo é um dos pontos onde ela se instala de

maneira mais impregnante. O impulso sexual é um impulso controverso e difícil de lidar, é

fácil dele se tornar escravo ou dele querer-se livrar para sempre. A castidade é o impulso

controlador da concupiscência, no sentido de medida. Zaratustra não aconselha que se

reprima o impulso sexual, quer apenas a inocência do mesmo. Quando falávamos dos

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impulsos selvagens e que, a busca por liberdade exigia, não só que fossem conhecidos, mas

também que fossem libertados, mas que a liberdade mesma seria o bem conviver com tudo

isto, falávamos da inocência dos sentimentos. A inocência é uma chave para se viver os

impulsos.

De mil e um fitos – O que define um povo é sua história comum. As pessoas se identificam

umas com as outras e têm orgulho daquilo por que passaram. Assim, criam suas leis. Um

povo é aquele que cria seus valores e suas leis. Os valores são a expressão da superação de

um povo, daquilo que lhe foi mais caro e difícil e, por isto, também é o mais valorizado. Ou

seja, é a vontade de potência que cria os valores. Mas é importante perceber que os valores

de um povo são, necessariamente, diferentes dos de outros povos. É isso que os diferencia,

e os povos têm orgulho desta diferença. Zaratustra deixa claro que “foram os homens a dar

a si mesmos o seu bem e o seu mal.” Todos esses valores dos quais os povos se orgulham,

não são de ordem metafísica. É o homem quem confere sentido às coisas. O homem é

aquele que avalia e avaliar é criar. O povo é uma criação de homens fortes. A existência

terá o sentido que formos capazes de atribuir-lhe. Não existe sentido prévio. É o homem

que avalia e, assim, cria; é ele que cria e, assim, dá sentido, o seu sentido, o sentido de sua

vontade de potência. “Mudança dos valores ― é mudança dos criadores. Sempre destrói,

aquele que deverá ser um criador.” A transvaloração passa pela destruição dos valores da

decadência e pela afirmação da vida como valor. Zaratustra fala sobre um sentido para toda

a humanidade. A humanidade caminha ainda sem rumo. Zaratustra quer-lhes ensinar o

super-homem. Com isto, Nietzsche pretende criar um valor afirmativo da vida para toda a

humanidade. Mas a humanidade ainda segue seu caminho às cegas. Talvez porque ainda

não exista o que se costuma chamar por humanidade. A idéia de humanidade carece de algo

que a defina para além do conjunto amorfo de seres humanos, é preciso uma meta de

crescimento conjunto, uma grande política em direção ao super-homem.

Do amor ao próximo – Durante muito tempo, a moral do amor ao próximo foi pregada

como mais importante do que o amor a si mesmo. É uma forma de esconder o

descontentamento consigo e com a vida. É preciso saber ficar a sos consigo mesmo e a

gostar de si. Ao invés deste amor ao próximo, onde se escondem inúmeras filosofias da

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negação da vida, Zaratustra aconselha o amor ao distante, ao futuro, ao super-homem. Ser

capaz de se atribuir uma tarefa longa e difícil, isto é a grandeza. Com isto, a “humanidade”

cresce muito mais do que com a compaixão.

Do caminho do criador – Mais um discurso em que ficam claras as intenções dos

ensinamentos de Zaratustra. O caminho para o crescimento que Zaratustra está a falar, o

caminho para uma ultrapassagem do homem, o caminho para super-homem, este é o

caminho para si mesmo. Tornar-se si mesmo: esta máxima pode parecer fácil e nos dar a

entender que nada mudaria caso a assumíssemos como vontade. Mas assim parece apenas a

um olhar superficial e a quem jamais a levou a sério. Tornar-se si mesmo, descobrir qual a

vontade que quer vir à tona e fazer da vida a realização desta vontade. Qual é esta vontade?

Isto também quer dizer, para quê tornar-se livre? É uma vontade em direção ao super-

homem?

Neste caminho, trata-se de fazer da própria vontade uma lei a qual se estará

submetido e a qual se fará todos os esforços para que se realize. Neste caso, somente a

própria pessoa pode ser o juiz desta lei. No começo da caminhada, ainda se tem coragem e

esperanças, mas o caminho para si mesmo nos afasta de todos e de toda moral. O solitário é

desprezado pelo rebanho, mas é preciso que este solitário despreze a si mesmo antes, pois

ele quer que a vontade se realize e, para isto, ele mesmo terá que perecer, em nome de sua

vontade. Mesmo assim, caso consiga brilhar, deve fazê-lo para todos, não só para seus

companheiros. “Mas o pior inimigo que podes encontrar serás sempre tu mesmo (...)

Solitário, percorres o caminho no rumo de ti mesmo! E teu caminho passa por ti mesmo e

pelos teus sete demônios!” O caminho em direção a si mesmo é recusado e sequer pensado

porque se separar da moral é algo difícil, uma vez que será preciso determinar a si mesmo

os próprios valores. Isto implica em conhecer os próprios demônios e a grande maioria foge

de seus próprios demônios. É preciso transformá-los em algo criador e grandioso, para

tanto, trata-se de novo de se fortalecer e se aproximar do seu próprio amor, de sua própria e

mais forte vontade. Fazer com que esta vontade se torne virtude e amor e vença todos os

demônios. A atividade criadora é a arma do amor. Esta é uma batalha que se trava sozinho.

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Da virtude dadivosa 1 – Zaratustra despede-se de seu discípulos, dizendo querer caminhar

sozinho. Mais uma vez apresenta-se a necessidade da solidão. O caminho de si é um

caminho solitário. Dedicar a vida a si mesmo é um egoísmo. Mas um egoísmo que tem por

fim a produção de uma virtude dadivosa. Todo este engrandecimento seria de pouco

proveito se não transbordasse para os demais. Zaratustra sente necessidade de descer até os

homens novamente e dar-lhes aquilo que considera de mais valioso. Aquilo que se

consegue tornando-se si mesmo é sua mais alta virtude, é aquilo que se tem de maior valor

e é aquilo que deve ser doado, sem que se fique mais pobre por isto. Neste ponto, a dádiva

é, na verdade, o fim do egoísmo. Não porque a dádiva seja moralmente melhor do que o

egoísmo, mas porque faz parte dos frutos do egoísmo serem desfrutados. Toda fruta

saborosa quer ser saboreada. Caso contrário, seria um desperdício. O caminho do

crescimento é um caminho solitário, mas é preciso doar aquilo que se alcança com esta

solidão. Somente assim se enriquece o mundo. A ética de Zaratustra visa homens que

enriqueçam o mundo. A virtude dadivosa é antagônica a outro pensamento: àquele

pensamento que diz: “Tudo para mim”. Estes, quanto mais conseguem, mais pobres ficam.

Esta moral da ganância e do egoísmo excessivo causa horror a Zaratustra. É um sinal de

degeneração. A virtude é aquela que se apodera de todas as demais e confere um sentido

para a vida de seu possuidor, da qual já falamos outras vezes. “Quando vos anima uma só

vontade, quando essa transformação de todas as necessidades chama-se, para vós, o

indispensável: ali está a origem da vossa virtude”.

Da virtude dadivosa 2 – Zaratustra fala de novo do sentido da Terra, da importância de

conferir um sentido humano para a Terra, um sentido que engrandeça a vida, o corpo, os

instintos. A história da humanidade é, ainda, acaso, mas temos já a capacidade de conferir

um sentido a toda a vida na Terra, e um sentido de grandeza. Trata-se de um caminho

duplo: primeiro, engrandecer a si mesmo, tornar-se grande e de bem com tudo o que se é.

Depois, doar essas virtudes em direção a uma vida mais plena. Os possuidores de uma

virtude dadivosa ainda são os solitários, mas serão um povo. Aqueles homens fortes e

capazes de afirmar sua própria vontade contra toda a moral, os transvaloradores de todos os

valores se tornarão numerosos o suficiente para constituírem algo que possa ser chamado

de povo. Aqui, configura-se uma política. Uma política por uma humanidade, uma política

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para que se possa tirar a Terra deste acaso que ainda a governa. Uma política para formar

homens grandes e, depois, o super-homem. O caminho de Zaratustra e de seus

companheiros em direção a si mesmos é um caminho ético-político. Trata-se de mudar o

rumo do mundo, trata-se de criar algo que possa ser chamado de humanidade, trata-se de

crescer e, com isto, fazer crescer também o mundo à sua volta. “Vós, os solitários de hoje,

os segregados, sereis, algum dia, um povo; de vós elegestes a vós mesmos, deverá nascer

um povo eleito; e, dele – o super-homem”.

Da virtude dadivosa 3 – Neste ponto Zaratustra se despede de seus companheiros e diz-lhes

que sigam sós. Ele, Zaratustra, também quer voltar à solidão. Zaratustra diz que seus

companheiros o acharam, pois não haviam procurado a si mesmos. É preciso pois, que cada

discípulo procure a si mesmo e se descubra nesta busca. Para tanto, Zaratustra não pode

fazer mais do que já fez. Agora é uma parte solitária do caminho. Cabe a cada um pensar no

que aprendeu de Zaratustra e descobrir a si mesmo, caso contrário, os ensinamentos de

Zaratustra podem se tornar uma verdade absoluta, e não é esta a proposta. Ao contrário, ao

seguir a si mesmo é possível que se distancie do próprio mestre. Só após esta busca de si

Zaratustra voltará a encontrar seus discípulos. Mas será em um outro momento, em um

momento onde o número de setas para o super-homem já terá crescido. Será então, a hora

do grande meio dia. Para tanto, é preciso primeiro que cada discípulo de Zaratustra torne-se

si mesmo, assim como fez seu mestre. “Retribui-se mal a um mestre quando se permanece

sempre e somente um discípulo”. Um dia se encontrarão de novo e serão um povo.

Esta primeira parte do livro aponta para ensinamentos iniciais. É uma espécie de

pré-requisito para a doutrina ética que Zaratustra propõe. Zaratustra trouxe alguns para fora

do rebanho, mas estes, sedentos de algo maior do que ser apenas rebanho, precisam ainda

procurar a si mesmos. Nesta primeira parte Zaratustra fala contra os transmundanos, fala da

morte de deus, diz que se deve criar um sentido para a humanidade e que este sentido passa

pela valorização da Terra e do corpo, este é um sentido humano, este é um sentido de

grandeza de espírito, conseguido pela caminhada em direção a si mesmo, é o super-homem.

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2ª. Parte

O menino com o espelho – Depois de ter se separado de seus amigos, Zaratustra permanece

um tempo só. Mas a segunda parte começa tendo já passado este período. Zaratustra quer

voltar e reencontrar seus amigos. Principalmente porque teve um sonho onde sente que sua

doutrina está sendo desfigurada por seus inimigos. A sua ausência fortaleceu seus inimigos

que certamente criticaram seus ensinamentos. Aqui, é interessante chamar a atenção para o

fato de o próprio Zaratustra chamar seus ensinamentos de doutrina. A palavra aparece em

itálico no texto, é uma palavra forte, mas não é equivocada. Trata-se de uma proposta e

uma tarefa para a vida inteira, em nome de algo a que se quer um dia chamar humanidade,

em busca de um super-homem. Zaratustra decide voltar a seus amigos.

Zaratustra alerta para o perigo que representa sua própria sabedoria e liberdade, elas

são selvagens. Por isto, assustam tanto aos amigos quanto aos inimigos. Já foi dito antes,

que o caminho proposto por Zaratustra não é um caminho fácil. O caminho em direção a si

mesmo é o caminho em direção ao humano, demasiado humano que se tem em si. Há que

ter muita coragem para seguí-lo. Apenas neste caminho é possível se entender porque a

sabedoria é selvagem.

Nas ilhas bem aventuradas – Zaratustra critica mais uma vez a idéia de deus. Mas esta

crítica será um pouco diferente das anteriores. Aqui, deus é colocado como uma suposição,

um pensamento, uma hipótese. É preciso testar o limite desta hipótese. Critica-se o fato de

precisar-se de um deus para se sentir seguro ou feliz. Zaratustra critica o antropomorfismo

que existe na crença em deus e na verdade. Esta atitude significa buscar alento no

inconcebível e obscuro. “Podeis criar um Deus?”, “Podeis pensar um Deus?”. Assim

Zaratustra testa a hipótese. Neste ponto aparece o grande ensinamento: a criação. Ao invés

de deus ser a meta, que a meta seja o super-homem. É preciso que se tornem criadores

todos aqueles que desejam o super-homem. O criador é, antes de tudo, criador de si mesmo.

“Criar – essa é a grande redenção do sofrimento, é o que torna a vida mais leve.” Se deuses

foram criados para oferecer um sentido para o sofrimento, pode-se criar novos sentidos,

sentidos que engrandeçam a vida.

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Quem deve guiar o andarilho é a sua própria vontade, pois a vontade é criadora. Se

existe alguma dica para aqueles que percorrem o caminho ético, a dica é que sigam sua

própria vontade, somente ela lhes dará o caminho a si mesmo. A liberdade só é alcançada

depois que se conhece até mesmo seus instintos mais baixos. É, justamente, ao se deparar

com as vontades mais profundas que se percebe porque a sabedoria de Zaratustra é

selvagem.

A criação exige também destruição. Ao criar a si mesmo, o anterior perecerá. É algo

doloroso ser o assassino e a parturiente de si mesmo ao mesmo tempo. A vontade é a

libertadora. É preciso libertar os sentimentos, os afetos, os instintos. A verdadeira vontade

deve ser capaz de quebrar os grilhões da moral, transvalorar os valores e libertar o querer.

Este ensinamento é tão importante que Zaratustra diz: “O querer liberta: é esta a verdadeira

doutrina da vontade e liberdade — e, assim, a vós a ensina Zaratustra”. O deus moral é um

atavismo para a vontade, se há deus não há mais o que criar. Deus, sendo aquele que

determina o que é certo e errado, cria assim uma moral inquestionável e acaba com o

espaço do homem. Caberia a este, apenas se resignar e viver uma vida calcada em valores

exteriores à sua vontade. Mas Zaratustra tornará sempre a dirigir sua vontade criadora aos

homens, chamando a atenção para a necessidade de pensarmos o homem. Somente assim,

poder-se-á superar o niilismo. O homem se assemelha a uma escultura feita em pedra, a

estátua é o que a vontade do escultor quiser. Ora, cada um é o escultor de si mesmo, cada

um é o que a sua própria vontade quiser, só resta tentar ser um bom artesão. O super-

homem também está para ser esculpido em uma pedra, na mais dura e feia de todas elas,

naquilo que chamamos hoje de homem. Ao esculpir a si mesmo, dão-se as primeiras

marteladas na direção do super-homem.

Dos compassivos – A compaixão é um valor cristão que esconde uma insatisfação consigo

mesmo, uma incapacidade de alegrar-se com a vida e uma multiplicação da dor. Ao invés

de se compadecer do sofrimento, o melhor é alegrar-se e minimizar a dor. Se o homem

sempre buscou razões para o sofrimento e, para tanto, criou religiões e justificativas

fantásticas, seu erro foi sempre ter pouco se alegrado com a vida. “E, se aprendermos a

alegrar-nos melhor, será este o melhor modo de desaprendermos a fazer sofrer os outros e a

inventar novos sofrimentos”.

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Contudo, a história do homem aponta para uma vitória dos fracos e ressentidos,

estes criaram uma cultura decadente cuja forma moderna é o niilismo. Temem o mal e

assim o negam, contudo, pensam mesquinhamente e este é o pior tipo de pensamento. O

mal se apresenta tal como é, mas o pensamento mesquinho esconde-se e tem vergonha de

si, pois se sabe medíocre. O amor deve ser mais do que compaixão, o amor precisa ser

criador e direcionar para o alto. Aquele que ama e é forte também possui uma inclinação

para a compaixão, mas é uma inclinação produzida pelo excesso de força, o que não torna

este afeto menos perigoso.

Outras idéias interessantes são expressas: “Àquele, contudo, que é possuído pelo

demônio, cochicho estas palavras ao ouvido: ‘O melhor é, ainda, fazeres o teu demônio

crescer! Também para ti há um caminho de grandeza!” O demônio ao qual Zaratustra se

refere é a vontade violenta, o demônio é o instinto que, de tão baixo e de tão nocivo, pode

ser chamado por este nome. Mesmo assim, há um caminho de grandeza para ele, é preciso

vivê-lo. É interessante este ponto, pois Zaratustra fala da liberdade aos instintos, da

grandeza e da purificação, mas pode haver casos em que o demônio é a mais forte das

vontades, neste caso, resta apenas deixá-lo crescer, pois até mesmo aí há uma grandeza. A

ética se mostra oposta à moral, pois não há vontades permitidas e vontades proibidas, todas

são permitidas, a ética consiste na grandeza das mesmas sejam elas anjos ou demônios.

Ao falar da ajuda a um amigo, algum amigo desiludido, Zaratustra propõe que os

ajudemos, mas não os deixemos acomodar-se. É preciso que ele levante o mais rápido

possível, para tanto, o ideal é que a ajuda seja como uma cama de campanha.

Outra idéia interessante é que, quando se faz mal a quem se gosta, faz-se mal a si

mesmo. O amigo pode até nos perdoar, mas sempre nos perguntaremos: por que fizemos

aquilo? O grande amor supera a compaixão e o perdão.

Dos sacerdotes – Mais um discurso em que Zaratustra critica a religião, em especial as

religiões cristãs. Este trecho é dedicado a pensar os sacerdotes como pastores para o

sofrimento. Uma grande frase deste discurso: “E não souberam amar o seu Deus de outro

modo, senão crucificando o homem!” Uma religião para fazer sofrer, uma religião para dar

um sentido a todo o sofrimento na Terra, mas um sentido supraterreno, para domesticar o

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homem fazendo com que não pense em seu próprio crescimento. Estas religiões sempre

foram realmente muito cruéis.

Dos virtuosos – Zaratustra já falou de virtude e já se sabe que virtude é o nome da vontade

que domina e vence todas as resistências sendo capaz de conferir um sentido para aquela

existência. Mas este nome, virtude, é um nome controverso, muitos sentidos já teve esta

palavra. Uma boa parte deste discurso tem por objetivo explicitar alguns sentidos negativos

que a palavra virtude já possuiu. Sentidos que diferem diametralmente do sentido que

Zaratustra lhe confere. Muitos ainda por cima pretendem obter recompensas por sua

virtude. Zaratustra deixa claro que castigos e recompensas para as atitudes são ilusões. E

querer ser recompensado por sua virtude é o mesmo que uma mãe querer ser recompensada

por seu filho. Estas são mais algumas ilusões clássicas da religião cristã. A virtude é a

vontade principal, a que comanda, é a própria pessoa, não um envoltório superficial. A

virtude é aquela que cria coisas grandes, não um valor moral a ser seguido.

Da canalha – Existe um tipo de gente que é o mais repugnante possível, capaz de

contaminar até mesmo a água mais pura e sagrada, é a canalha. Muitos se cansam da vida

devido ao excessivo contado com este tipo. Zaratustra chama a atenção para o fato de que o

dominar hoje está contaminado pela canalha. O governar se tornou um regatear e traficar

pelo poder com a canalha. O poder não visa o governar, visa mais e mais poder. Para tanto,

a canalha está sempre presente. Nosso governo de hoje é um governo da canalha. Para

vencê-la, ou melhor, para não lhe ter contato, é preciso subir muito e se tornar tão puro que

a canalha não seja capaz de lhe alcançar, pois é baixa e mesquinha. A única coisa a se fazer

com relação a este tipo é se tornar uma pessoa tão rica, tão abundante e tão grande, que as

artimanhas da canalha já não o atinjam. A política se torna uma guerra de espíritos, pois em

outro caso, se tornará um jogo de barganha com a canalha.

Das tarântulas – Vingança é o que quer dizer esta imagem da tarântula. Zaratustra quer que

o homem seja redimido de toda a vingança, quer que o homem não mais se deixe levar por

este afeto nocivo. A questão da vingança voltará ainda a este livro em um ponto decisivo.

Neste ponto, a vontade de vingança está associada aos pregadores da igualdade. Zaratustra

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201

critica radicalmente aqueles que pregam a igualdade como sendo vingativos e rancorosos

em relação àqueles que são fortes. De fato, não há igualdade entre os homens, todos são

diferentes. Uma moral que pregue que todos ajam de forma igual visa conter a força do

forte para que ele não aja, fazendo da impotência uma virtude. A tarântula é a imagem

usada, pois a doutrina da igualdade vem revestida de um pomposo ar de benevolência e

caridade em nome dos sofredores e pobres, mas Zaratustra vê o espírito de vingança contra

os fortes por trás deste valor, este seria o veneno da tarântula.

Dos famosos sábios – Quem é o povo para Zaratustra? Não o povo que um dia poderá ser

criado pelos que desejam o super-homem, mas o povo que Zaratustra critica? – Povo é

aquele que ignora o que é o espírito, são os sem espírito, isto é, a maioria em uma

sociedade decadente, por isto são povo. Como são a grande maioria, é comum acreditar que

seus valores refletem os valores bons por si mesmos. Contudo, em geral, tais valores são

mesquinhos e pequenos, pois refletem a moral do animal de rebanho, que exclui o

diferente. O espírito livre é odiado pelo povo. Os sábios, adorados pelo povo, são apenas

também animais de rebanho em busca de fama, mas não apresentam nada de real valia.

O canto noturno – Zaratustra é um sábio que doa seus ensinamentos e suas virtudes. Porém,

de quem ele conseguiria beber e se saciar? Para estes grandes mestres, não há grandes

mestres que os supram de alguma necessidade. Por isto, quanto mais alto se chega, mais

solitário se permanece. Zaratustra dá amor, mas quem teria tanto amor quanto Zaratustra

para dar-lhe também? Zaratustra vive e sofre de sua própria luz e força.

Do canto de dança – A vida nos parece imperscrutável. Ela pode nos enganar, mas mesmo

assim a amamos. A sabedoria se assemelha em muito à vida. Ambas são selvagens. Por

isto, é preciso sabedoria para viver. É esta proximidade que fica ressaltada neste canto. A

sabedoria deve ser uma sabedoria de vida, caso contrário, de nada vale. Ao fim deste canto,

Zaratustra sente-se triste. Como se perdesse o sentido de sua caminhada.

O canto do túmulo – Um canto sobre a juventude. Zaratustra chama seus momentos de

juventude de olhares e momentos divinos. Na juventude é quando a alma fala com maior

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202

inocência, depois da criança. Mas a criança, tirando o fato de ser radicalmente criativa,

ainda não possui a autonomia da juventude. Na juventude é quando se decide querer ser

livre ou não. Mas, os momentos de juventude de Zaratustra passaram rápidos, foram

assassinados. Ele permanece rico e invejável, pois, por mais curta que tenha sido sua

juventude, ele permanece como sua conseqüência. E foi uma juventude a que ele chama de

olhares e momentos divinos, ou seja, valeu a pena. Os olhares e momentos divinos, que

eram a esperança juvenil de Zaratustra, era o que ele tinha de melhor, e lhe foi tirado. Por

isto, Zaratustra não cessa de amaldiçoar os assassinos. O que são estes olhares e momentos

divinos de que fala Zaratustra? – Em nossa interpretação, são seus companheiros, os

espíritos bem-aventurados. “Assassinastes as visões e as mais queridas maravilhas da

minha juventude! Tirastes-me os meus companheiros, os espíritos bem-aventurados!” Ora,

o que foi tirado de Zaratustra em sua juventude foram os jovens. A juventude em um

mundo decadente é assassinada, pois é um perigo. A juventude é a idade do risco, da

experiência, da sinceridade consigo mesmo, é um período único e decisivo da vida. Caso os

jovens tivessem coragem e capacidade de arcar com todos os riscos de uma juventude digna

deste nome, a moral estaria sempre em xeque. Para vencer o niilismo é preciso a coragem

de afirmar a si mesmo. Alguém que não afirma a si mesmo quando jovem, dificilmente o

fará quando velho. Por isto, a juventude é o principal alvo dos inimigos de Zaratustra. Na

juventude é que se lança o anelo para além de si mesmo, tarefa para toda a vida. Mas antes

mesmo de se começar o caminho, o jovem é alvejado por todos os lados e impelido a se

tornar, o quanto antes, um adulto a mais no mundo. Tudo aquilo que ele quer, gosta e

acredita é, constante e incessantemente, criticado e desqualificado pela “voz da

experiência”, que o aconselha a desistir de sua juventude, isto é, a desistir de lançar um

anelo para além de si mesmo e do homem. É na juventude que são questionados os valores

vigentes e as morais caquéticas, somente a juventude pode derrubar tamanha hipocrisia. O

jovem possui a inocência que sonha e a força de realização deste sonho, por isto é visto

como perigoso, por isto é sempre mais cedo chamado a se integrar. É neste ponto que o

jovem, se não for forte, é assassinado e impedido de viver sua própria vida. Ao desviar-se

de si mesmo, daquilo que quer, o jovem morre prematuramente. No futuro, o preço desta

covardia ou fraqueza será pago com o cansaço da vida. Aquele que não é si mesmo, ou

cansa-se de viver – uma vez que a vida que vive não é a sua, e sim, a que a moral lhe

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ordenou – ou se torna um rancoroso e vingativo assassino de jovens, por inveja de uma

juventude bem lograda.

Zaratustra, assim como qualquer jovem, só conseguiu permanecer firme em sua

proposta pois possui um ponto invulnerável a ataques de qualquer ordem, já sabemos: a

vontade. Aquele possuidor de uma forte e inquebrantável vontade, aquela vontade a qual

pode-se chamar virtude, que a tudo domina e confere um sentido, apenas o possuidor deste

tipo de vontade é forte o bastante para vencer os inimigos da juventude. Lembremos que

esta vontade não é uma espécie de dom místico ou graça divina, é um trabalho longo e

árduo não só do pensamento quanto do corpo e de todo o resto daquilo que se chama

homem. É preciso criar e cultivar a vontade. Descobrir, pelos afetos, a vontade ou as

vontades predominantes e, a partir daí, trabalhá-las para que se fortaleçam. Este é, também,

o caminho em direção a si mesmo de que tanto falamos, isto é, a capacidade de sentir,

identificar e trabalhar para fortalecer a vontade que se considera como soberana. Este

trabalho começa com toda força na juventude e, por isto mesmo, esta é o alvo preferido

para a cobrança em relação aos valores estabelecidos.

Do superar a si mesmo – Este discurso que se segue ao “Canto do túmulo” vem elucidar a

questão da vontade de potência. Vida é vontade de potência, tudo aquilo que vive, quer

crescer e se tornar mais forte, este é o caminho da vontade, um caminho para a potência.

“Mas, onde quer que eu encontrasse vida, ouvi, também, falar em obediência. Todo vivente

é um obediente. E, em segundo lugar: manda-se naquele que não sabe obedecer a si

mesmo.” A vontade não é uma graça divina, é uma relação de mando e obediência.

Somente a vontade forte é capaz de mandar, pois, para isto, é preciso que domine as demais

vontades, isto é, force-as a obedecer. Há uma relação de luta entre as vontades dentro de

um mesmo organismo. Todas querem tornar-se mais potentes. Aquilo a que se chama

homem é antes a conseqüência do que a causa da vontade. A vontade forte manda e as

vontades fracas obedecem. Virtude é quando uma vontade é forte o bastante para mandar

sempre. Aquele que não consegue trabalhar suas vontades para que se tornem virtudes,

termina por obedecer àqueles que conseguem, pois estes últimos criam os valores.

Zaratustra ainda deixa claro que é mais fácil obedecer do que mandar. Exercer o comando

traz consigo um alto grau de responsabilidade difícil de lidar.

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204

Se a vida é vontade de potência, então a vida também quer se tornar cada vez mais

potente. Por isto a vida diz a Zaratustra em segredo que ela é aquilo que deve sempre

superar a si mesmo. A busca por si mesmo é, também, uma busca por superar a si mesmo,

uma busca por se tornar cada vez maior e se superar. Os valores são conseqüências de

vontades fortes. Quando se é forte o suficiente para se afirmar a própria vontade, cria-se os

valores. Mas, se os valores são criados, eles podem também ser destruídos. “Um bem e um

mal que fossem imperecíveis — isso não existe!” Muitas vezes, para se criar um valor, é

preciso destruir outro. O trabalho transvalorador soa como pérfido e imoral devido ao fato

de que contraria todos os valores vigentes. Mas os ensinamentos de Zaratustra se

direcionam justamente para a derrubada dos valores da decadência e para a criação do

super-homem. Caminho que se dá, em ambos os casos, pela afirmação da vontade acima da

moral.

Dos seres sublimes – Zaratustra fala daqueles que buscam o conhecimento. Muitas vezes,

tornam-se sublimes, mas a seriedade com que acreditam em tal conhecimento não os deixa

tornarem-se belos. São rijos. Muitas vezes entendem a vida ainda como uma penitencia e,

nem sempre, amam o que é terrestre. É preciso fazer deste conhecimento algo alegre, como

uma gaia ciência. Aqui, Zaratustra fala da bondade. Daqueles grandes e fortes, que buscam

superar a si mesmos, Zaratustra espera a bondade, justamente porque sabe que são capazes

das piores maldades. Espera que ponham toda esta força em favor de algo bom e alegre,

assim como ele mesmo o fez. Zaratustra saiu em busca de doar aquilo que tinha, saiu em

busca de passar ao homem seus ensinamentos principais. Assim, propõe aos demais

homens grandes que sejam dadivosos, que não se fechem em seus castelos.

Do país da cultura – Este discurso critica radicalmente os homens do presente. Estes não

crêem em nada, mas desta forma não crêem também em uma meta e um sentido para a

cultura. Não possuem anseio e são estéreis. São vaidosos e acreditam ser grandes homens,

mas não passam de repetidores escravos. Mas Zaratustra tem fé em sua caminhada e em seu

anseio. Não é uma fé extramundana onde Zaratustra crê que tudo terá um final feliz porque

deus quer. É uma fé em si mesmo e em seus ensinamentos. Mesmo diante de toda pobreza

de espírito, Zaratustra segue seu caminho carregando seu anseio pela superação do homem.

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Seu anseio é dirigido claramente para o futuro, para os filhos dos homens do presente. Mas

não há teleologia nesta proposta. Não existe caminho fixo, o super-homem, mesmo que seja

uma meta é, também, uma direção, um sentido a se dirigir, não é um lugar fixo e estático.

Mesmo que o super-homem seja uma meta futura que confira sentido ao presente, esta meta

não é teleológica, pois não é natural ou absoluta, ela depende da vontade. É preciso querer

o super-homem para que ele exista. E, em todo o caso, pode-se escolher o último homem,

como, aliás, parecem fazer os homens do presente. O homem pode se superar, mas tal

superação será uma ação da vontade e não de algo natural no desenvolvimento teleológico

da história.

Do imaculado conhecimento – Zaratustra deixa claro que não existe conhecimento puro

nem apenas contemplativo. Todo o conhecimento está ligado a Terra e aos homens que o

produziram. O que é chamado de conhecimento é uma construção humana que, muitas

vezes, se traveste de conhecimento puro e desinteressado. Isto é uma ilusão. Aqueles que

pregam este tipo de conhecimento são, em verdade, desprezadores da terra e do corpo.

Quando amam a terra, amam com vergonha, pois gostariam de poder creditar todo o

conhecimento a um deus ou a algum outro fundamento metafísico que lhes desse segurança

naquilo que crêem. Mas o fato de que todo conhecimento foi construído pelo homem e não

passa de uma interpretação possível do que se vê os atormenta, pois impede que seu desejo

por um conhecimento puro seja possível. Estes são os estéreis eruditos do país da cultura,

incapazes de lançar uma seta do anseio, pois não têm anseio.

Dos doutos – É o quarto discurso seguido sobre a forma do saber moderno. Dirige-se contra

a idéia de que a sabedoria é igual à erudição e que a erudição é uma espécie de

conhecimento neutro e desinteressado. A doutrina ética de Zaratustra não poderia ser mais

diferente do conhecimento de doutores estéreis. Zaratustra fala da vida, e vive a vida, sua

sabedoria é uma sabedoria da vida e a favor da vida. Ele quer criar para a vida e para que

esta cresça e se supere, pois a vida é aquilo que quer superar a si mesmo, pois é vontade de

potência. Assim, Zaratustra há muito se distanciou dos doutos, pois querem coisas

diferentes e estes últimos não são capazes de compreendê-lo, por isto desdenham. Mas este

desdém é aquela velha característica do rebanho de negar a nobreza.

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206

De grandes acontecimentos – Os grandes acontecimentos começam devagar e de forma

imperceptível, são a criação de novos valores. É isto que transforma o mundo.

Do adivinho – Niilismo, é o que anuncia o adivinho. Como já foi visto no prólogo, chegará

o momento em que o homem se cansará de si mesmo e desta pequena felicidade que tem.

Perceberá o quão vazia e mesquinha ela é. Até aqueles que chamamos fortes estarão

fadados a se sentirem cansados. Repetindo o verso do prólogo: “Aproxima-se o tempo em

que o homem não dará mais à luz nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxima-se o tempo do

mais desprezível dos homens, que nem sequer saberá mais desprezar-se a si mesmo.” Este é

o último homem. Lembremos que há, ainda, uma disputa de possibilidades. Contra este

último homem, Zaratustra propõe o super-homem. Ainda há tempo, mas o adivinho parece

prever que Zaratustra perderá esta guerra. Depois de ouvir ao adivinho, Zaratustra se

entristece profundamente e permanece por um bom tempo assim. Parece realmente

acreditar nas palavras do adivinho. Depois disto, Zaratustra mergulhou em sono profundo.

Ao acordar, contou um sonho muito estranho e tenebroso. Um de seus discípulos tentou,

imediatamente, decifrar o sonho. Mas Zaratustra pareceu não concordar com a

interpretação. Entendemos que a interpretação do discípulo foi excessivamente otimista, e

pareceu não levar muito a sério a gravidade da situação. Segundo esta interpretação,

Zaratustra seria o grande salvador de todos e já teria conseguido vencer sua batalha contra o

niilismo. Apresentamos outra interpretação, que nos pareceu simplista, mas que, mesmo

assim, faremos, ainda que Zaratustra também a reprove. No sonho, Zaratustra nos pareceu

realmente derrotado, habitante de um castelo fúnebre e sombrio. A vida lhe olhava vencida.

Perdeu-se a guerra, o niilismo venceu a vida, tem-se o último homem. Em meio a toda esta

tristeza, uma espécie de demônio invade o castelo e comemora sua vitória sobre Zaratustra.

O grito de horror que deu o acordou. Este sonho não tem um final feliz. O tempo urge e

estamos cada vez pior.

Da redenção – Zaratustra vê os homens não como homens inteiros e íntegros, mas como

fragmentos de homens e pedaços descontínuos, membros avulsos de homens. Ora faltam-

lhe pedaços importantes, ora possuem apenas uma coisa em demasia. Esta crítica nada mais

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é do que a crítica à fraqueza da vontade; o homem não é capaz de querer algo com toda sua

força até que a vontade torne-se soberana, não consegue fazer para si um objetivo de

grandeza. Mesmo quando Zaratustra olha para o passado, vê que a história mostra ainda

esses fragmentos de homens apenas. “O presente e o passado na terra – ah, meus amigos, é

isso, para mim, o mais insuportável; e não saberia viver, se eu não fosse, também, um

vidente daquilo que deve vir”. Mais uma vez fica claro o sentido dos ensinamentos de

Zaratustra, eles apontam para o futuro do homem. O homem fraco e impotente pode ser

redimido em um homem inteiro. Assim, Zaratustra se coloca como aquele que aponta o

sentido da Terra para além dos homens fragmentados e seus membros avulsos, contra o

acaso puro e simples no qual sempre caminhou a humanidade. O homem agora pode se

direcionar rumo a uma meta de crescimento próprio em busca de superar este horrendo

acaso que é ele próprio hoje. Zaratustra vê nestes mesmos fragmentos horrendos do

presente, os fragmentos de um futuro possível. “Eu caminho entre homens como entre

fragmentos do futuro: daquele futuro que eu descortino”. Zaratustra já ensinou que o

caminho para este futuro é a própria vontade do homem, que ele transforme sua vontade em

algo extremamente forte e engrandecedor. A vontade liberta da moral e cria o grande

homem.

Contudo, Zaratustra entende que a própria vontade libertadora se encontra ainda em

cativeiro, impossibilitando o homem de buscar seu crescimento. Tudo o que passou não

pode ser modificado, não pode ser transformado, “foi assim”. A insatisfação da vontade é

que, por mais forte que seja, não é capaz de transformar o que já aconteceu e “foi assim”. A

vontade insatisfeita com o passado termina por odiar este passado e se tornar um espírito de

vingança não somente contra o passado, mas contra toda a vida. A vontade, para se vingar

da vida por esta comportar um passado contra o qual esta vontade é impotente, cria a idéia

de castigo para justificar todo passado ruim. Ao invés de aceitar todo “foi assim”, a vontade

insere no devir a idéia de castigo como justificação para o sofrimento. Onde há sofrimento,

onde a vontade não pode atuar para trás mudando o “foi assim”, é porque a existência

mesma decidiu castigar os viventes e puni-los por viverem. Assim o espírito de vingança

interpreta o tempo. Zaratustra busca a redenção desta loucura da vontade, que nada mais é

do que sua prisão nas cadeias morais criadas pelos fracos por vingança aos fortes. “ ‘Pelo

ângulo moral, acham-se as coisas ordenadas segundo o direito e o castigo. Oh, onde está a

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208

nossa redenção do caudal das coisas e do castigo da ‘existência’?’ Assim pregou a loucura.

/ ‘Pode haver redenção, se há um direito eterno? Ah, impossível de rolar-se é a pedra ‘Foi

assim’: eternos devem, também, ser todos os castigos!’ Assim pregou a loucura. / ‘Nenhum

ato pode ser destruído: como poderia ser desfeito pelo castigo! É isto que há de eterno no

castigo da existência: que a existência deve de novo e sempre tornar-se ato de culpa! A não

ser que a vontade, finalmente, se redimisse a si mesma e o querer se tornasse em não

querer’ – mas vós conheceis, meus irmãos, essa cantiga da loucura.”

Fica clara a crítica que é feita contra a moral, principalmente sacerdotal.

Transformar a vida em culpa e a existência em castigo eterno, sempre em nome de uma

vida para além desta própria, até que a vontade, por fim, negue a si mesma, uma vez que é

impotente contra tudo o que passou. A moral sempre ensinou a negação da vontade, pois

sempre foi a arma dos impotentes, sua vingança é tornar a vontade do forte culpada e

impotente. “Definição da moral: Moral – a idiossincrasia dos décadents, com o oculto

desígnio de vingar-se da vida – e com êxito. Dou valor a esta definição.”490 Mas Zaratustra

busca a redenção e libertação em relação a esta doutrina da vingança. Seu ensinamento da

vontade como libertadora e criadora se opõe radicalmente a este espírito de vingança.

Contudo, permanece a questão da impossibilidade de querer para trás, a vontade não pode

mudar o que passou. Aqui entra mais um passo importantíssimo da ética, é preciso afirmar

todo o passado e tudo aquilo que já foi, é preciso transformar o “foi assim” em um “mas

assim eu quis”. Somente com esta afirmação do passado pode-se afirmar

incondicionalmente toda a existência e redimi-la de toda doutrina moral. A afirmação

incondicional da existência é o sim dionisíaco à vida, mesmo em tudo o que ela possa trazer

de trágico, esta afirmação é uma afirmação da vontade criadora. Apenas a afirmação do

passado como tendo sido querido é capaz de libertar uma vontade que queira se vingar

daquilo que já aconteceu. Esta capacidade de afirmação trágica da vida diante do acaso

passado é um dos pontos fundamentais da doutrina do eterno retorno, que ainda será

apresentada.

A hora mais silenciosa – Este discurso é impressionante. Estamos aqui a falar de vontade,

força, afirmação, potência, acreditar em si mesmo e eis que Zaratustra hesita. Aquilo a que

490 Nietzsche, “Ecce Homo”, Porque sou um destino, 7

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Zaratustra chama sua hora mais silenciosa é quando ele chega a um ponto onde não sabe

mais obedecer e tem que mandar. Ele teme a responsabilidade. Zaratustra precisa ficar

sozinho, pois agora é chegada a hora de ele se tornar verdadeiramente mestre. Isto foi tudo

aquilo para o que ele direcionou sua própria vida, mas o tamanho e o peso da

responsabilidade o faz hesitar. Zaratustra parece não acreditar mais em si mesmo, parece ter

perdido toda aquela força de que estamos falando sempre que é preciso ter. Chegou a hora

em que os ensinamentos de Zaratustra começam a ser seguidos e que ele terá que arcar com

as conseqüências destes ensinamentos. É o silêncio que diz isto a ele. Zaratustra,

inicialmente, foge à responsabilidade. Por isto, se retira para um momento de decisão

radical. Este discurso mostra que, mesmo que sigamos nosso próprio caminho, daí a se

tornar um mestre existe uma diferença enorme, pois enorme é a responsabilidade daquele

que quer ser uma ponte para o super-homem. Este discurso se segue à primeira aparição

ainda velada do eterno retorno, tendo apenas um discurso entre eles. Zaratustra hesita

diante da responsabilidade e do peso que o pensamento do eterno retorno traz consigo. Ele

ainda não é capaz de afirmar este pensamento, apesar de já o saber. Assim termina a

segunda parte.

3ª. Parte

O viandante – Decidido a partir mais uma vez para a solidão, em direção a seu mais alto

cume, Zaratustra segue seu caminho em direção a outras terras. São esses caminhos que

constituem a experiência de Zaratustra, pois “só se vive a experiência de si mesmo.”

Zaratustra amadurece e se, antes, o caminho para o alto levava também para baixo, em um

momento adiante ambas as coisas se unem purificadas. “Cume e abismo — resolveram-se

numa única coisa!” Zaratustra percorre o caminho de sua própria grandeza que é o caminho

de suas próprias experiências, é impossível que outro caminho seja igual ao dele, é

impossível também seguí-lo. Experiência que dizer que cada um faz apenas o caminho de si

mesmo. Que este caminho seja um caminho da grandeza é a proposta de Zaratustra. Neste

ponto de máxima solidão, Zaratustra precisa aprender a crescer a partir de si mesmo, a

superar a si mesmo, pois como seguiste o caminho de sua própria experiência até o máximo

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210

da força de sua vontade, Zaratustra se encontra na maior solidão possível. É aí que terá que

chegar ao seu mais alto cume e vencer seu maior desafio.

Da visão e do enigma 1 – Certamente um dos maiores perigos, senão o maior, que

Zaratustra enfrentou foi o encontro com um anão, que representa o espírito de gravidade.

Um diabo que a tudo degrada, a tudo denigre e puxa para baixo, um ser que nada valoriza e

que desqualifica qualquer esforço humano por elevação, um espírito pesado que busca

sempre diminuir o homem. Enquanto Zaratustra subia um monte, possivelmente este mais

alto cume para o qual buscou novamente sua solidão, um anão, montado em suas costas,

desqualificava sua jornada. Lembremos aqui que a alegoria das montanhas é uma imagem

que tenta demonstrar a elevação do espírito na busca por si mesmo. Uma busca árdua.

Durante um desses caminhos, Zaratustra se depara com este espírito de gravidade que

desqualifica seu esforço dizendo-lhe que, por mais que se eleve, Zaratustra cairá, será

esquecido ou duramente criticado, apedrejado, humilhado. O anão repete as advertências

que se faz a todos que fogem à moral de rebanho. Os ensinamentos de Zaratustra, ao propor

que cada um busque a si mesmo, levam seus discípulos a caminhos tortuosos e difíceis de

se ultrapassar. É muito comum o medo diante da autodeterminação. De fato, é sempre

muito mais fácil permanecer sempre fazendo aquilo que todos fazem e seguir sempre a

moral vigente. Ao seguir o caminho do rebanho, nunca se está a sós e sempre se tem a

sensação de segurança causada pelo gregarismo. — ‘Ora, se todos fazem algo, tal coisa não

pode ser ruim’. Assim pensa o rebanho, e segue seu caminho entendendo a vida como

mimese de outras vidas também miméticas. No fundo, renuncia-se a viver, por comodidade,

por gregarismo, por instinto de rebanho, por medo. O medo de seguir a si mesmo é o medo

de se ver fazendo coisas diferentes da grande maioria. É o medo de possuir valores que não

são compartilhados pelo rebanho. É o medo de sofrer as sanções que o rebanho impõe ao

desviante. O rebanho não costuma perdoar o diferente, pois este levanta suspeita sobre

aquilo que o rebanho faz, pelo simples fato de mostrar que outra forma de vida é possível.

O rebanho quer que sua forma de vida seja entendida não só como a melhor, mas como a

única possível. Somente assim, consegue se sentir um pouco mais seguro. Este é o

comportamento que instaura a moral. A moral são os valores do rebanho e este fará de tudo

para que todos sejam rebanho. O desviante, o diferente é excluído.

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211

É preciso muita coragem para vencer a moral do rebanho e tornar-se si mesmo, pois

no rebanho tem-se a sensação de segurança. Por isto, acreditamos que o anão representa

aqui, o medo. É o medo que o anão tenta incutir a Zaratustra. O caminho de Zaratustra é

único e o anão tenta desencorajá-lo. Zaratustra resolve enfrentar o anão, enfrentar o medo.

Manda-lhe que desça de suas costas e diz: “Anão! Ou tu ou eu! — É que a coragem é o

melhor matador”. É preciso coragem para enfrentar o medo. Enfrentar o medo significa

tentar encontrar em si mesmo seu próprio caminho e questionar-se sobre a diferença entre a

moral do rebanho e seus próprios valores. Quando Zaratustra diz ao anão que ou um ou

outro deve prevalecer, ele quer dizer que, ou ele, Zaratustra, segue seu caminho vencendo o

medo, ou abrirá mão de si mesmo por medo de criar seus próprios valores, neste caso, o

espírito de gravidade vencerá. Uma das grandes causas do niilismo é o fato de que grande

parte daqueles que se colocam a questão sobre si mesmo descobrem aquilo de que gostam e

querem fazer, mas não têm a coragem de seguir em frente e afirmar a própria vontade,

preferindo a suposta garantia de um lugar seguro dentro da moral estabelecida. A vida não

perdoa tal covardia e o sofrimento encontrado pela negação de si mesmo é, muitas vezes,

maior do que o sofrimento que se encontre pelo caminho. A coragem deve ser capaz de

enfrentar até mesmo a morte, pois sendo a morte parte da vida, ela deve ser também

afirmada.

Da visão e do enigma 2 – Sendo o anão uma imagem para o medo e para o espírito de

gravidade, Zaratustra apresenta-lhe um pensamento que o mata, o eterno retorno. Existe um

pensamento capaz de superar todo o medo de viver. Se o tempo nunca começou nem nunca

terminará, se o tempo sempre existiu e sempre continuará existindo, não seria possível

afirmar que tudo aquilo que já aconteceu e que ainda vai acontecer, em verdade, já

aconteceu infinitas vezes? Se entendermos o tempo como eternidade nestes termos, então

pode-se dizer que tudo que poderia acontecer já aconteceu e acontecerá de novo. Em um

tempo infinito é possível que todas as coisas possíveis de acontecer aconteçam. Porém,

tanto o passado quanto o futuro constituem-se em eternidades. Olhando para trás, tem-se

uma eternidade onde tudo o que poderia ter acontecido certamente aconteceu. Contudo,

olhando-se para frente, tem-se um futuro também infinito, onde tudo o que pode acontecer

acontecerá novamente.

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212

Este pensamento traz consigo a afirmação incondicional da vida. Imagine que sua

vida se repetirá, tal qual foi até agora, tal como está sendo e tal como ainda será, por um

número infinito de vezes. Seremos capazes de querer nossas vidas um número infinito de

vezes? Seremos capazes de afirmar nossa própria vida? Ora, se amamos a vida, por que não

a querer de novo? Este pensamento, que Zaratustra lança contra o anão, é a grande doutrina

de afirmação da vida, pois só uma vida afirmada pode ser desejada ainda infinitas vezes.

Mas, quem é forte o bastante para tanto? Mais do que isto, se a vida retornará por um

número infinito de vezes, então é preciso que se viva de uma tal maneira que se queira

viver infinitas vezes. É preciso viver, a cada momento, a cada instante, de forma tal que se

queira seu eterno retorno. Assim, este pensamento faz com que se afirme a própria vontade

sempre e a cada instante, pois a vida retornará e, com ela, tudo aquilo que já foi e será. Esta

parte da doutrina do eterno retorno se combina com a parte descrita no discurso “Da

redenção”, pois para se afirmar de forma incondicional a vida, querendo seu eterno retorno,

é preciso vencer o espírito de vingança. A afirmação de tudo aquilo que já foi, transforma

todo o “foi assim” em um “assim eu o quis”. Com este pensamento se vence o medo, pois

afirmar a vida significa afirmar a si mesmo e a própria vontade. Afirmar o eterno retorno

significa afirmar a vida com tudo o que ela tem. Depois de ouvir este pensamento, o anão

desaparece. Aquele que afirma querer viver infinitas vezes a mesma vida é porque não a

teme. Querer o eterno retorno é uma prova de coragem e adesão à vida, contra todo o medo

de ser quem se é.

Depois disto, Zaratustra encontra um pastor com uma enorme cobra agarrada dentro

de sua garganta. Zaratustra tenta tirá-la com as mãos, mas não consegue. Então,

repentinamente, ele grita para que o pastor morda-a. O pastor a morde e se salva. Então

começa a rir como nenhum homem jamais riu. Zaratustra se pergunta pelo significado de

tal visão, pergunta-se por quem seria aquele pastor. O próprio Zaratustra responderá a esta

questão mais adiante, mas interpretamos que a cobra é uma imagem que significa o

niilismo, que está entalado na garganta do homem, sufocando-o. A única forma de vencê-lo

é mordendo-lhe a cabeça. É preciso que cada um morda a cabeça da cobra de seu próprio

niilismo. Ninguém pode ajudá-lo, assim como Zaratustra não conseguiu ajudar ao pastor. O

eterno retorno pode ser entendido como a doutrina que nos ensina a morder e a arrancar a

cobra de nossas gargantas.

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213

Da bem-aventurança a contra gosto – Zaratustra ainda não tem coragem para seu

pensamento mais abissal. É um pensamento muito forte e pesado, para o qual ele ainda não

está preparado. O eterno retorno é uma experiência de si mesmo. Zaratustra ainda não quer

alegrar-se, pois não está à altura de sua doutrina, precisa sofrê-la com toda intensidade. Mas

este momento ainda não chega. A alegria que sente é como que uma bem-aventurança a

contra gosto.

Antes que o sol desponte – Zaratustra e o céu dizem sim e amém a tudo, ilimitadamente.

Da virtude amesquinhadora 2 – Um ótimo discurso onde Zaratustra torna a falar da pequena

felicidade, uma felicidade mesquinha, medíocre. Zaratustra diz que, por mais que o povo

fale dele e de sua doutrina, não pensa sobre o que Zaratustra diz. Falta coragem para pensar

sobre Zaratustra, pois este seduz a ovelha para longe do rebanho. Aos olhos do animal de

rebanho, Zaratustra representa perigo, pois segue a si mesmo.

Para Zaratustra, o que torna o homem tão pequeno é a sua própria doutrina da

felicidade e da virtude. Trata-se de uma crítica aos valores modernos, onde a pequena

felicidade é aquela que quer o bem estar acima de tudo, é aquela que busca neste bem estar,

a segurança, e faz isto por medo, medo da vida. “Ingenuamente, querem acima de tudo, no

fundo apenas uma coisa: que ninguém lhes faça mal. (...) Isto, porém, é covardia – muito

embora se chame ‘virtude’”. Esta moral da pequena felicidade direciona o homem para que

não busque fazer algo grande de si mesmo, pois no fundo o que ela esconde é a

incapacidade para a grandeza. Esta forma de pensar transforma o homem em um animal

doméstico. O ensina a se resignar diante do fracasso de sua vida, pois pensa que isto é a

vida. Mas, na verdade, não teve coragem de vivê-la. “Isto, porém, é mediocridade – muito

embora se chame de moderação”.

Da virtude amesquinhadora 3 – A moral da mediocridade e do bem estar é, também, a

moral da pequena felicidade, dos pequenos prazeres e vícios e da resignação. Diante do

medo em relação a si mesmo, o que há é uma resignação covarde de aceitação de si na

pequenez do rebanho, pois todos são iguais, não há porque objetar algo contra si. Contra a

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214

resignação, tem-se a vontade. “E são meus pares todos aqueles que se dão a si mesmos a

sua vontade e repelem de si toda resignação.” A vontade é forte e afirmadora, afirma a si

mesma e cria; a resignação aceita um estado medíocre de não afirmação da vontade em

troca de segurança e bem estar, esta é sua pequena felicidade. A vontade é capaz de afirmar

até mesmo o acaso. O acaso afirmado torna-se vontade e afirmação da vida.

Do passar além – Zaratustra passa à porta de uma grande cidade e encontra com um louco

espumando de raiva. Este louco é alguém que sabe um pouco dos ensinamentos de

Zaratustra e lhe diz uma série de coisas horríveis sobre aquela grande cidade, antes que este

entre nela. Dentre outras coisas, o louco fala como que aquela grande cidade mais parece

um lodaçal, pois não há mais espírito, tudo se tornou jogo de palavras e opinião pública.

Fala também que é uma cidade de merceeiros e mercadores, onde o maior valor é o

dinheiro e o ouro. Mas o louco fala com muita raiva e ódio de tudo. Por isto Zaratustra o

interrompe e o questiona sobre o por quê de ele, louco, ainda estar vivendo naquela grande

cidade. “Por que moraste tanto tempo no pântano, a ponto de tornar-te, tu mesmo, rã e

sapo?” O louco pode até ter razão em suas críticas, mas o fato de permanecer muito tempo

tão próximo daquilo que tanto odeia fez com que odiasse a vida e se tornasse aparentado de

tudo o que maldissesse. Ele mesmo se transformou em algo tão odioso quanto aquela

cidade, e não porque fosse louco, mas sim porque agia com ódio. Zaratustra ensina que

“Somente do amor deve alçar vôo o meu desprezo e o meu passaro acautelador; não de um

pântano!” O louco se transformou em um pântano tal qual a cidade e a ela maldizia com

raiva e ódio. Por pior que seja a situação, não só na cidade, mas no mundo, o amor deve

prevalecer. Este é o cerne da questão, o amor. Se existe uma proposta de transformação e

transvaloração, esta proposta tem que ser seguida por amor. Primeiramente, amor a si

mesmo, devido à própria afirmação da vontade. E, para aqueles que forem verdadeiramente

capazes, pois Nietzsche duvida deste discurso muitas vezes retórico, amor pelo homem e

pela grandeza que poderia atingir. Mesmo criticando o louco, Zaratustra passa além da

grande cidade e não entra. Nesta, por sua vez, nada pode melhorar nem piorar, mas chegará

o dia em que arderá em chamas. Entendemos este arder em chamas como significando que

chegará o dia em que a vida em nossa “grande civilização desenvolvida” terá se tornado

impraticável. Será o grande meio dia.

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215

Dos renegados 1 – Fala-se mais um pouco sobre a covardia. Neste caso, da covardia dos

jovens. Aqueles que, em um momento quiseram seguir a si mesmos, mas rapidamente se

cansaram e se acomodaram. Estes são a maioria, diz Zaratustra. “– Ah, são sempre apenas

poucos, aqueles cujo coração guarda longamente a coragem e o entusiasmo; nesses,

também o espírito se conserva paciente. O resto, porém, é covarde! –” retoma-se a temática

da coragem. É preciso coragem para tornar-se si mesmo. Engana-se aquele que pensa que a

afirmação da própria vontade é apenas realizar seus pequenos desejos. Talvez seja isto para

os pequenos, mas para os possuidores de uma virtude tal qual a definimos anteriormente, a

afirmação da vontade consiste em um árduo trabalho de criação de si mesmo. A maioria

teme as conseqüências de se tornar si mesmo, por isto prefere a cômoda situação de seguir

o rebanho da moral vigente e, sempre que puder, desmerecerá filosofias como esta.

Nota – Em toda a terceira parte até aqui, em diversos discursos, Zaratustra se mostra um

pouco triste, ou um pouco brando, ou menos eloqüente e fervoroso do que em outros

momentos. Isto aconteceu desde que hesitou diante da sua responsabilidade, no último

discurso da segunda parte. Esta terceira parte mostra Zaratustra em busca de sua grande

solidão, onde possa ainda aprender sobre este momento que vive. Zaratustra está triste, mas

não foge de sua tristeza, ao contrário, a deseja como mais uma etapa necessária até que se

torne mestre. Estes últimos discursos depois “Da visão e do enigma” apontam fortemente

para a crítica dos valores mesquinhos modernos e para a crítica da covardia diante de si

mesmo.

O regresso – Eis então que Zaratustra chega de volta a sua caverna. Este discurso é um

longo elogio da solidão. A solidão é diferente do abandono. Zaratustra, por diversas vezes

se sentiu abandonado, mesmo que estivesse cercado de seguidores. Em verdade, Zaratustra

diz neste discurso o quanto que os homens lhe parecem superficiais. Falam muito, mas não

escutam. Não pretendem aprender algo realmente valioso da vida, seguem-na buscando ser

poupados. Zaratustra sofreu muito durante sua estadia perto dos homens. O seu maior

perigo sempre foi sentir pena desta pequenez humana e sempre tentou ajudá-los, mesmo

quando isto o enfraquecia. Mas, chegou um momento em que não pôde mais agüentar, e

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216

voltou para sua caverna. Os homens ainda não têm ouvidos para seus ensinamentos: ou o

tomam por superficial ou por um ídolo. Mas, mesmo neste segundo caso, são incapazes de

entender o que Zaratustra lhes diz. Isto porque não conhecem a solidão. É na solidão onde o

processo de tornar-se si mesmo ocorre. Este processo, por mais que necessite da vida

cotidiana para se desenvolver, só pode ser minimamente posto em prática se a solidão for a

marca mais radical daquele que o tenta. É na solidão, quando se estás a só consigo mesmo,

que é mais difícil mentir. Os pensamentos arrebatam e vão a fundo nas questões que nos

são mais sérias. As conclusões do pensamento são sempre imprevisíveis. Não são poucas as

vezes que nos contradizemos ante aquilo que queremos de fato e aquilo que dizemos

querer, isto é, aquilo que gostaríamos de querer. O pensamento é, também, vontade. Ao

pensar a fundo, encontra-se a vontade oculta no coração. É, na verdade, a própria vontade

que atrai o pensamento para si mesma, mostrando o que ela quer. Cabe ao pensante, ter

coragem de afirmá-la e tornar-se si mesmo desta forma. Caso contrário, segue-se outros

pensamentos que, no fundo, apenas encobrem nossa impotência em seguir a si mesmo

disfarçada de virtude. Nestes casos, não é a força que rege o pensamento e a vontade

dominantes, é a fraqueza. A vontade fraca separa, por medo e covardia, a vontade forte

daquilo que ela pode. A vontade não mais se afirma na pessoa covarde que, também agora,

não é mais um pensante, pois seu pensamento se desligou daquilo que ele pode, por medo

das conseqüências. A solidão atua contra a covardia. É muito difícil ser hipócrita consigo

mesmo (hipócrita significa: quando se criam subterfúgios racionais para se negar a

verdadeira vontade que pulsa); mas mais difícil ainda é ser hipócrita consigo mesmo e

permanecer pensando tais questões que o incomodam. Não sabemos se isto é possível.

Sabemos apenas que a grande maioria do tipo covarde e fraco pára de pensar na mesma

hora em que sua vontade lhe mostra o quão assustadora ela é. A partir dai, cria-se uma

desculpa e não se volta mais a tocar no assunto. Foge-se, então, de toda a solidão, pois ela

sempre irá lembrá-lo de sua covardia.

Do espírito de gravidade – Contra o espírito que tudo puxa para baixo, Zaratustra apresenta

sua sabedoria das alturas. A sabedoria de Zaratustra ensina, por fim, a voar. A maior altura

da vontade atinge cumes e alpes, atinge até mesmo o céu. Torna-se leve. O caminho

significa descobrir a si mesmo. “O homem é difícil de descobrir e, mais difícil que tudo,

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217

descobrir-se ele a si mesmo; muitas vezes mente o espírito a respeito da alma. Assim obra o

espírito de gravidade. / Descobriu-se a si mesmo, porém, o homem que diz: ‘Este é o meu

bem e mal.’ Destarte, fez calar a toupeira e anão que diz: ‘Bem e mal para todos.’” Está

mais do que claro o que significa seguir a si mesmo e a sua própria vontade, significa, com

isto, criar seus próprios valores e, conseqüentemente, sua própria grandeza. “Experimentar

e interrogar, consistiu nisso todo o meu caminhar”

Das velhas e novas tábuas – Zaratustra quebra as tábuas de valores antigos e propõe novos.

Segue aqui apenas um breve resumo de alguns deles:

2) A moral sempre estipulou o que era o bem e o mal, mas a moral sempre precisou

falsificar para fazer valer seus valores. Por isto, Zaratustra diz que “o que é bem e mal, isso

ninguém ainda sabe – a não ser o criador! / – Mas é tal quem cria um fito para o homem e

dá a Terra o seu sentido e o seu futuro: somente ele faz com que algo seja bem e mal.” É

preciso criar o seu bem e o seu mal, isto é, seus próprios valores.

4) “O homem é algo que deve ser superado. / Muitos caminhos há e modos de superá-lo: a

escolha cabe a ti!”

9) A favor do acaso, contra a necessidade. “Outrora, acreditava-se em adivinhos e

astrólogos; e, por iss, acreditava-se: ‘Tudo é destino: deves, porque é inevitável! / Depois,

voltou a descrer-se de todos os adivinhos e astrólogos; e, por isso, acreditou-se: ‘Tudo é

liberdade: podes, porque queres!”

12) “Ó meus irmãos, eu vos consagro e indico uma nobreza: devereis tornar-vos criadores,

os cultivadores e os semeadores do futuro – / – não, na verdade, uma nobreza que poderíeis

comprar como fazem os merceeiros e com o ouro dos merceeiros: pois tem pouco valor

tudo o que tem preço.”

16) “O querer liberta, pois querer é criar: assim ensino eu. E somente a criar deveis

aprender!”

23) “E reputemos perdido o dia em que não se dançou nem uma vez! E digamos falsa toda

a verdade que não teve, a acompanhá-la, nem uma risada”

25) Ao destruir valores antigos, abre-se o caminho para a criação de novos, são como novas

fontes, pois abarcam vontades antes proibidas. Em torno destas novas fontes e valores

reúne-se um povo. São experimentadores. “O terremoto revela novas fontes. Ao ruir de

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velhos povos, irrompem novas fontes. / E aquele que ali gritar: ‘Eis uma fonte para muitas

sedes, um coração para muitos anseios, uma vontade para muitas ferramentas’ – em torno

dele reunir-se-á um povo – ou seja, muitos experimentadores. / Quem pode comandar e

quem pode obedecer – é isso o que ali se experimenta! E com que longas buscas e acertos e

malogros e estudos e novas tentativas! / A sociedade humana: é uma tentativa, assim eu

ensino – uma longa procura; mas ela procura aquele que comanda! – / – uma tentativa,

meus irmãos! E não um ‘contrato’! Parti, parti tal palavra dos corações sem fibra e dos

homens tíbios!”

26) “Os bons têm de crucificar aquele que inventa a sua própria virtude! Esta é a verdade!”

“O criador é quem eles mais odeiam: aquele que parte tábuas e velhos valores, o

destroçador – e chamam-lhe criminoso.”

O convalescente 1 – Um dia Zaratustra acorda aos berros em sua caverna como se tivesse

tido um pesadelo. Então, profere um discurso onde clama por seu pensamento mais

abismal, que acreditamos ser o eterno retorno. Mas, quando este pensamento chega,

Zaratustra tem um ataque de nojo e cai desmaiado. Lembremos que Zaratustra já havia

recusado chamar a este pensamento, ele o trazia consigo, mas ainda não o afirmara, pela

primeira vez ele chama o eterno retorno, pede por ele, sente-se preparado para tornar-se

mestre do grande círculo, mas sofre de algo que, talvez, fosse o que lhe impedisse de tê-lo

afirmado antes.

O convalescente 2 – Os animais de Zaratustra tentam reanimá-lo com algumas palavras e

ele se alegra com a tagarelice que lhe dizem. Mas, aqui, Zaratustra retoma aquela visão da

cobra que morde o pastor. Deixa claro que a cobra que vira mordendo o pastor mordera a

ele Zaratustra na garganta e que ele a cuspiu longe. Aqui Zaratustra diz com todas as letras

que a cobra significa o cansaço que Zaratustra sente diante da pequenez humana. “O grande

fastio que sinto do homem – isto penetrara em minha goela e me sufocava; e aquilo que

proclamava o adivinho: ‘Tudo é igual, nada vale a pena, o saber nos sufoca’”. Em “Da

visão e do enigma” esta cobra aparece logo depois que Zaratustra afirma o eterno retorno,

quando faz sumir o anão. Aqui Zaratustra elucida esta visão depois que se sente forte para

chamar pelo eterno retorno. Ao afirmar o eterno retorno de todas as coisas, Zaratustra é

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forçado a afirmar também o eterno retorno do homem pequeno e mesquinho. É isto que lhe

causa tanto nojo, a ponto de quase morrer. “‘Eternamente retorna o homem de que estás

cansado, o pequeno homem’ – assim bocejava a minha tristeza, arrastando da perna e sem

poder adormecer”. “—‘Ah, eternamente retorna o homem! Eternamente retorna o pequeno

homem!” “Demasiado pequeno o maior! – era este o fastio que eu sentia do homem. E

eterno retorno também do menor! – era este o fastio que eu sentia de toda a existência!”

Somente depois de afirmar também o eterno retorno do pequeno homem, Zaratustra se

torna mestre do eterno retorno. Para agüentar tal afirmação trágica, os animais de Zaratustra

o aconselham a aprender a cantar. É interessante a transfiguração da dor em canto, pois a

tendência inicial da alma de Zaratustra é a de chorar. Sua vontade quer elevar o homem à

sua máxima potência, mas diante do eterno retorno do homem medíocre e mesquinho ele

prefere cantar a chorar, isto é, transfigurar a dor em beleza.

Nota 1: Existe um debate que vê uma contradição entre o pensamento do eterno retorno e o

do super-homem. Pois o super-homem precisa dizer não e desprezar aquilo que ama, a

saber, os homens, para buscar sua elevação máxima. O super-homem despreza a

mediocridade e seleciona a grandeza. Em contrapartida, o eterno retorno significaria a

afirmação incondicional de toda a existência, incluindo aí, o homem medíocre. Como o

super-homem poderia afirmar o eterno retorno se nega a mediocridade? – A este falso

problema, o próprio Nietzsche nos responde com seu conceito de dionisíaco. Em “Ecce

homo”, após citar um trecho de “Das velhas e novas tábuas, III”, Nietzsche escreve:

“Mas esta é a idéia mesma do Dionísio – Outra consideração conduz igualmente a

ela. O problema psicológico no tipo Zaratustra consiste em como aquele que em grau

inaudito diz Não, faz Não a tudo a que até então se disse Sim, pode no entanto ser o

oposto de um espírito de negação; como o espírito portador do mais pesado destino,

de uma fatalidade de tarefa, pode no entanto ser o mais além e mais leve – Zaratustra

é um dançarino –: como aquele que tem a mais dura e terrível percepção da realidade,

que pensou o ‘mais abismal pensamento’, não encontra nisso entretanto objeção

alguma ao existir, sequer ao seu eterno retorno – antes uma razão a mais para ser ele

mesmo o eterno Sim a todas as coisas, ‘o imenso ilimitado Sim e Amém’ ... ‘ A todos

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os abismos levo a benção do meu Sim’... Mas esta é a idéia do Dionísio mais um

vez.”491

Nota 2: A terceira parte termina então com três cantos em louvor à vida. Assim deve-se

superar o nojo, amando a vida e a sabedoria que ensina a viver. Esta sabedoria é a do canto

e da dança, da leveza e da beleza. Assim, Zaratustra supera sua tristeza e seu nojo, estando

pronto para a última parte, o seu maior perigo.

4ª. e última parte

O sacrifício do mel – Zaratustra ainda aguarda o dia em que o homem se elevará à sua

altura. Mas não está descontente ou impaciente. Ele tem certeza que chegará o dia em que

um outro mundo será vivido. O mundo e o homem são muito ricos de coisas singulares. Em

breve, todas estas singularidades e outras tantas terão livre curso para florescer. Disto,

Zaratustra tem certeza.

Zaratustra se apresenta como um pescador de homens, jogando o mel de sua

sabedoria e fisgando homens para trazê-los à sua altura. A filosofia se torna política quando

a ética se torna uma espécie de alegria, o prazer do crescimento que é capaz de fisgar

alguns para fora do rebanho... O que se deve opor ao mundo de uma cultura decadente é a

alegria de uma vida plena, a força e a grandeza de uma vontade bem lograda. Isto seduz e

muda o curso das coisas. Zaratustra joga a isca de sua ética, para fisgar homens como

peixes, certo de que outro tempo virá. “ – a minha própria felicidade arrojo a todas as

distâncias e direções, entre a aurora, o meio-dia e o pôr-do-sol, para ver se muitos peixes

humanos não aprendem finalmente a dar puxões e sacudidas, presos na minha felicidade–”

O grito de socorro – Em sua caverna, Zaratustra volta a encontrar o adivinho. Aquele

mesmo que proferiu a previsão de um niilismo onde nada mais valia a pena. O adivinho do

cansaço da vida. Este diz a Zaratustra que veio lhe induzir ao seu último pecado. O último

pecado de Zaratustra é a compaixão pelos homens superiores. A miséria e a angústia

crescem com a mediocridade da cultura. Zaratustra ama os homens e quer lhes ensinar algo

491 Nietzsche, Ecce Homo, Assim falou Zaratustra, 6.

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maior, mas ao vê-los tão pequenos e descrentes de si mesmos com o fim dos velhos valores

e com a fraqueza dos valores modernos, Zaratustra corre o risco de ver seu amor

transformado em compaixão. Esta seria sua miséria, por isto, é seu último grande desafio:

não sentir pena diante da infelicidade que o homem sente com a mesquinharia de seus

valores. Zaratustra ouve gritos de socorro nos arredores de sua caverna e parte para ajudar

aqueles que pedem ajuda.

Nota: Zaratustra sai à procura dos grandes homens que gritam por socorro, mas encontra

apenas caricaturas destes. Encontra homens que já buscaram a grandeza, porém, são

decadentes, estão à beira do niilismo, não acreditam mais em suas próprias capacidades,

parecem tomados pelos dizeres do adivinho ao proferir que tudo é igual. Estes homens que

Zaratustra encontra são: reis (mas hoje, os reis são apenas uma fachada), o homem

consciencioso do espírito (que deixa que sanguessugas se apropriem do que sabe), um

feiticeiro penitente do espírito (que sabe que fracassou na busca por grandeza), o último

papa, o mais feio dos homens (que era, também, o assassino de deus), um mendigo

voluntário e sua própria sombra. Todos eles já tinham ouvido falar de Zaratustra e

conheciam parte do que havia dito. Porém, não tinham apreendido o sentido de seus

ensinamentos, pois continuavam acreditando em valores decadentes. Zaratustra a todos

convida para que o esperem em sua caverna, onde, à noite, haveriam de fazer uma festa.

O feiticeiro, 2 – “O dia de hoje é da plebe: quem ainda sabe o que é grande, o que é

pequeno! Quem buscaria, com bom êxito, a grandeza? Somente um louco: nisso os loucos

são bem-sucedidos”.

Ao meio dia – Ainda caminhando pela floresta, Zaratustra resolve dar uma cochilada à

sombra de uma árvore, ao meio dia. Diante de um prazer tão simples como um cochilo em

um lugar agradável, Zaratustra diz: “Não acabou o mundo de atingir a perfeição?”

Zaratustra já havia dito que é preciso muito pouco para alcançar a felicidade. Mas, agora,

ele diz que, em verdade, o mínimo, o imperceptível, faz a melhor felicidade. Este

ensinamento não provém de uma humildade cristã e inusitada, e sim, do fato de que o

mundo é belíssimo e a vida está aí para ser vivida e desfrutada. Para tanto, não se precisa de

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222

muito, pois o mundo está aí para todos que vivem. Basta saber viver. E, tal felicidade, em

nada se assemelha àquela pequena felicidade do último homem. Esta pequena felicidade é

baseada na busca por segurança devido ao medo de que alguém o moleste. Muitas vezes

acredita-se que, para atingi-la, é necessário muito dinheiro e glórias. Esta felicidade de

Zaratustra é uma felicidade da plenitude diante de coisas simples e únicas. Diante de

prazeres que, por mais que estejam acessíveis a todos, são poucos os que conseguem

apreciá-los.

O grande meio dia é o momento de grande tomada de consciência por parte da

humanidade a respeito de toda sua mediocridade atual, é uma espécie de ponto de inflexão

que Nietzsche espera produzir no mundo a partir de seus pensamentos como o do eterno

retorno. A partir daqui, até mesmo os homens cansados dos valores estabelecidos e

sofredores da morte de deus chegam a esta conclusão. O meio dia é este momento onde a

humanidade terá que repensar a si mesma e estabelecer o seu futuro.

A saudação – Zaratustra retorna à sua caverna e descobre que o grito por socorro que havia

ouvido vinha daqueles próprios homens que já havia encontrado. Eles são os supostos

homens superiores. Na caverna, esses homens dizem a Zaratustra que estavam cansados da

vida, estavam tomados pelo niilismo e que apenas Zaratustra poder-lhes-ia restituir a força

para viver. Zaratustra oferece-lhes segurança e ajuda, mas lamenta que seus ensinamentos

tenham atraído os homens fracos e cansados da vida. O próprio adivinho já o tinha alertado

para o fato de que os desesperados buscariam Zaratustra e o levariam consigo. As palavras

de Zaratustra atingiram, justamente, aqueles que criticara. Os desesperados querem

aprender a viver. Mas, Zaratustra se lamenta, pois não é este tipo de companhia de que

precisa. Ele sabe que é impossível curar certos tipos de doentes. Zaratustra anseia por outro

tipo de homem, homens capazes de querer verdadeiramente aquilo que ele ensina, isto é,

perecer em prol do super-homem. Os hóspedes dizem que precisam aprender de novo a ter

esperanças, a ter um fito para que possam querer de novo a vida. Mas Zaratustra não

acredita na capacidade destes homens cansados ditos superiores. Zaratustra sabe que os

homens dos quais precisa ainda estão por vir. Esta parábola mostra bem o estado daqueles

que seguem e acreditam nos valores até hoje praticados. Estão cansados, pois esses valores

não levam ninguém à grandeza, não respeitam as diferenças entre os homens e não mais se

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223

é capaz de conferir a deus questões como segurança e bem estar, estes chamados grandes

homens são a decorrência da morte de deus, quando os valores antigos não mais dão

sustentação e os novos ainda estão por serem criados. Zaratustra sabe que esses homens não

serão capazes de criar valor algum e estão cansados da vida, são niilistas.

Do homem superior – 1) Ao dirigir a vontade de grandeza para a plebe, esta lhe responde

dizendo que todos são iguais, pois não é capaz de reconhecer a grandeza. 2) Com a morte

de deus o homem superior pode criar os valores de grandeza necessários para uma

elevação. Aquele que cria valores se torna senhor. 3) O anseio de Zaratustra dirige-se não

ao homem, mas ao super-homem. Resignação como virtude dos fracos. O homem superior

não sabe viver na sociedade moderna, pois tudo é plebe, tudo é igual, homogêneo na

mediocridade. 4) CORAGEM!!! 6)O homem deve perecer para que o super-homem viva.

Caminho de sofrimento, pois a vida se torna cada vez mais dura. Mas somente assim cresce

a força necessária para engendrar o super-homem. Sofremos de nós mesmos, de nossas

angústias pessoais, mas não sofremos do homem. Zaratustra sofre do homem, pois quer sua

elevação, quer que ele seja superado, quer um caminho de grandeza para este homem, este

caminho consiste em ser a ponte para o super-homem. 7) A sabedoria de Zaratustra não

deve esclarecer os homens de hoje, deve cegá-los. Tamanha é a diferença do desejo. 8) Não

querer acima da própria capacidade. “Porque nada é mais raro e precioso, aos meus olhos,

do que a honestidade.” 9) A plebe não usa razões, segue cegamente. Os doutos são estéreis.

11) A vontade não possui motivos racionais, não faz algo “por” ou “para” ou “porque”, ela

simplesmente se realiza, expressa a própria potência. O egoísmo criador se expressa em sua

própria obra. 13) “Cresce, na solidão, aquilo que cada qual traz dentro de si, inclusive seu

animal interior”. Por isto é preciso a solidão. Somente ela é capaz de apontar o caminho de

si mesmo.

O canto da melancolia – Quando Zaratustra se cala, sente necessidade de sair de sua

caverna para respirar um pouco de ar puro. Neste momento, o feiticeiro se levanta e inicia

um canto melancólico, pregador de palavras novamente causadoras de náusea. Os demais

hóspedes começam a se deixar levar por tal canto e voltam a se tornar medíocres. São

homens cansados após a morte de deus.

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224

Da ciência – Zaratustra volta para a caverna e os homens superiores pedem que permaneça

lá, pois sua simples presença afastou de novo o espírito de gravidade. O homem

consciencioso diz: “Porque o medo – é o sentimento hereditário e fundamental do homem;

pelo medo tudo se explica, o pecado original e a virtude original. Do medo nasceu também

a minha virtude, que se chama: ciência.” Este homem tem medo de seguir os caminhos

perigosos da sabedoria de Zaratustra, prefere a segurança da verdade, para tanto, precisa

acreditar na ciência. “O medo, precisamente, dos animais bravios – é esse que há mais

tempo se incutiu no homem e inclui o medo do animal que ele esconde em si mesmo e teme

– o animal interior, chama-lhe Zaratustra.” Evita-se seguir a si mesmo por medo de seus

próprios animais interiores. Mas Zaratustra aparece e diz exatamente o contrário do que

estavam dizendo: diz que o homem foi até hoje coragem. “O medo, com efeito – é a nossa

exceção. Mas coragem, gosto pela aventura, pelo incerto, pelo que ainda não foi ousado –

coragem parece-me toda a pré-história do homem. / Ela invejou e arrebatou todas as

virtudes dos animais mais bravios e mais corajosos; somente então tornou-se – homem. /

Essa coragem, finalmente afinada, espiritualizada, essa coragem humana com asas de águia

e prudência de serpente, essa coragem, ao que me parece, chama-se hoje... Zaratustra”

Ética é a coragem diante da vida.

O despertar 1 – Depois disto, a sombra faz um canto e todos se põem a rir. Zaratustra

alegra-se, pois isto é sinal que estão vencendo a náusea e adquirindo uma forma de vida

melhor, embora dificilmente consigam se curar por inteiros. Zaratustra entende que lhes

despertou novos desejos e, com isto, um pouco do prazer de viver.

O despertar 2 – Mas, tão logo Zaratustra retorna à sua caverna, eis que encontra todos seus

hóspedes de joelhos louvando o burro. O burro profere, logicamente, a sabedoria do asno,

que sempre diz sim a tudo. O burro é aquele que nunca diz não, diz apenas sim. Os

hóspedes vangloriam isto como se fosse sinal de aceitação a tudo e a todos. Mas, sabemos

que, dentro da proposta de Zaratustra, é preciso dizer não e destruir muitas coisas, para que

se possa dizer sim e edificar tantas outras. Pode-se apontar aqui o fato de que a afirmação

incondicional de todo o devir, proposta pelo eterno retorno, não significa uma dizer sim a

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tudo, mas a seleção daqueles capazes de dizer sim à vida. Dizer sim a tudo é uma sabedoria

de asnos.

A festa do burro 1 – Zaratustra critica alguns de seus convidados, mas estes, parecem não

mais querer o que Zaratustra lhes diz, pois todos acreditam na ressurreição de deus. Se a

morte de deus traz um niilismo passivo, estes niilistas não hesitariam em louvar novamente

a um deus, bastando que lhes oferecessem um no qual pudessem acreditar. O deus no caso é

um burro.

A festa do burro 3 – Mas, após um breve momento de raiva causado pela decepção,

Zaratustra se alegra com o rito inventado por aqueles homens e diz que isto é um bom sinal,

pois voltaram a estar alegres, mas, principalmente, tornaram-se capazes de criar novamente.

O canto ébrio – Todos que estavam reunidos na caverna de Zaratustra saíram para

contemplar a noite. Então, o mais feio dos homens diz que, pela primeira vez na vida, está

feliz de ter vivido. Ao afirmar o momento, afirma toda a existência e diz querê-la de novo.

Os demais hóspedes tomaram consciência desta mudança e pareceram curados também. Ao

afirmarem o eterno retorno, os hóspedes se alegraram com a vida.

Era próximo de meia noite e Zaratustra queria ouvi-la. Enfim, Zaratustra sente-se

forte para chamar pelo eterno retorno. Então entoa cantos em louvor a seu pensamento. Nos

demais cantos ébrios, Zaratustra fala sobre prazer e dor, de uma forma que se refere ao

eterno retorno. O prazer quer a eternidade, quer que ele mesmo sempre retorne. Mas, para

que um simples momento retorne, é preciso que todos os demais momentos retornem

encadeados da mesma forma como tudo ocorrera antes. Zaratustra canta, mais uma vez, o

eterno retorno. Ali, meia noite é, também, o meio dia. Zaratustra comemora com cantos a

proximidade de um novo dia, o dia em que o homem será superado. Zaratustra chama por

seu pensamento mais abissal, já é capaz de querê-lo e chamar por ele. 10) “um sábio é

também um louco”. “Dissestes sim, algum dia, a um prazer? Ó meus amigos, então o

dissestes, também, a todo o sofrimento. Todas as coisas acham-se encadeadas, entrelaçadas,

enlaçadas pelo amor – / – e se quisestes, algum dia, duas vezes o que houve uma vez, se

dissestes, algum dia: ‘Gosto de ti, felicidade! Volve depressa, momento!’, então quisestes a

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volta de tudo! – tudo de novo, tudo eternamente, tudo encadeado, entrelaçado, enlaçado

pelo amor, então, amastes o mundo – / – ó vós, seres eternos, o mais eternamente e para

todo o sempre; e também vós dizeis ao sofrimento: ‘Passa, momento, mas volta!’ Pois quer

todo o prazer – eternidade!”

O sinal – Mesmo diante de uma aparente cura de seus hóspedes, Zaratustra diz que não é

por eles que espera. Ao acordar, Zaratustra é cercado por inúmeras pombas que o saúdam.

No meio destas pombas, Zaratustra encontra um leão e diz que este é o sinal. Estão

aproximando-se os homens de que precisa. Ao acordarem, os hóspedes de Zaratustra vão à

porta da caverna para saudá-los. Mas o leão ruge e os espanta. Zaratustra pensa sobre o

grito que eles acabaram de dar e percebe que era igual ao grito de socorro que ouvira na

manhã anterior, quando o adivinho o induziu a seu último grande pecado. Este é o último

grande perigo que pode ocorrer a alguém que busca algum tipo de grandeza na vida: se

acercar, por compaixão, de pessoas fracas e sem cura, fazendo malograr sua própria tarefa

também. Todo o percurso aqui proposto é feito por amor à vida, a si mesmo e ao homem

como um todo. Mas, o amor ao homem, que nos faz amar a todos, até mesmo aos piores,

não pode permitir que se desvie de sua proposta inicial, qual seja, tornar-se si mesmo e,

com isto, uma ponte para o super-homem. Homens que não querem ou não podem tornar-se

si mesmos muitas vezes desviam aqueles que podem de seu caminho. Estes últimos, se

deixam desviar, quase sempre, por pena.

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