Ninguém Precisa Saber (Ou De Como As Aparências Enganam)
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NINGUÉM PRECISA SABER (OU DE COMO AS APARÊNCIAS ENGANAM)
Dez por cento do ordenado de Nadinho, caminhoneiro e
chefe de família, é religiosamente reservado, não para o dízimo de
alguma seita evangélica, embora muito devoto, mas para os óleos e
cremes que sua digníssima esposa se serve para embelezar sua comprida
cabeleira de azeviche. Isso não o desgosta. Mais, muito mais vaidoso que
ela, ostenta-a como um prêmio e vê em seus cabelos, o ornamento final
de sua conquista. Digo esposa e não mulher, como vulgarmente se diz e
que soa com um acento machista, porque nosso herói não gosta de
parecer desrespeitoso, segue tudo à risca antiga e cultiva um obsoleto
senso de honradez. Não que a honradez possa tornar-se obsoleta.
Honradez sempre foi e será honradez em qualquer tempo ou lugar. Mas
para nosso herói honradez simplesmente confunde-se com a severa
criação que recebera, baseada nos fundamentos da força bruta e da
ignorância. Caboclo de seus quarenta e poucos, cabelos agrisalhados
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desde muito, mantém um bigode patriarcal, bem aparado, que causa à
esposa certos arrepios, não de prazer, mas da mesma espécie de temor
respeitoso que devota ao pai.
O pai de nossa heroína teve mais motivos de chorar que de
rir ao nascimento de sua filha caçula. Sua mulher morreu no parto.
Digo mulher e não esposa, porque o pai desta filha caçula jamais teve
papas na língua, transmite histórias de trancoso de alto teor sexual a
quem queira ouvir e acha que toda mulher é uma santa, unicamente
visando o prazer que estas podem lhe proporcionar. Mas não lhe
proporcionam, apesar de ele alardear vantagens homéricas. Mas é uma
boa pessoa e sua relação com o genro não é má, embora cada um
critique, à língua presa, as caretices do outro. Sua mulher partiu com a
idade de vinte e oito anos, deixando-lhe onze filhos pequenos, entre os
quais a ponta de rama, fator de sua morte e, hoje, amada e respeitada
esposa de Nadinho, Xanda.
Xanda não acredita muito que o homem foi à Lua, jura que
o filho do meio tem um problema de personalidade sério e está doida
para cortar aqueles matos que cresceram desordenadamente em sua
cabeça. Nadinho proíbe. Seu pai também. Ama os dois de coração e se
dá por satisfeita quando se recolhe à noite e deixa escapar um breve
arroto saturado de cuscuz e de um picadinho de charque, já meio
azedo, que há cinco dias fora preparado para a semana. Sente-se bem
assim e sinceramente não inveja nenhuma mulher viva. Não se sente
culpada pela morte da mãe, embora cubra o pai de mimos e cuidados
excessivos, como se ele fosse sumir a todo instante. Ela não duvida dos
feitos meio reais, meio mirabolantes que ele conta. A vida já a provara
que os maiores absurdos inventados nada eram, quando comparados aos
reais. Ela gosta de carnaval pela sua fascinação lúdica, de cores e sons e,
quando é época e ela pode, chama sua irmã, Téta, para ver o bloco
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Jacamole1 passar na segunda-feira. Tem três filhos meninos e os adora
da mesma forma, apesar de o do meio, como acima foi dito, ser julgado
um pouco diferente por não gostar que o chamem de gordo, quando
mais se assemelha a um chassi de borboleta. Chamam-no “gordo” no
intuito de ajudá-lo, pois afirmam de pés juntos que ele tem complexo
de magreza, parecer da própria psicóloga do centro de saúde, cuja
consulta fora indicada pela diretora da escolinha em que estuda.
Nadinho é muito bem quisto na empresa de logística em que
trabalha. Possui um caminhão baú muito antigo, adquirido ao custo de
suores amargos e um Chevette bege, modelo oitenta e quatro, herdado
de Raimundo, irmão de Xanda, por escolha do próprio sogro. Raimundo
morreu jovem, queimado por um incêndio provocado pela ponta de um
cigarro, enquanto cochilava completamente embriagado em seu
cubículo, em que morava sozinho. Há controvérsias. Nadinho também é
um bom filho. Visita os pais todos os domingos e não perde
oportunidade em ajudá-los ou a algum de seus irmãos, todos
motoristas. Bom genro, realiza as compras do pequeno boteco que o
sogro mantém e que lhe tem servido de sustento desde a viuvez.
Nadinho acha a companhia de Téta nociva para sua esposa, olha-a de
soslaio e faz de tudo para impedir que as duas se encontrem. Isso não
ocorre, pois o velho escolheu Xanda como predileta, confia-lhe segredos
financeiros e seus pés necrosados, o que muito aborrece Téta, que,
afinal, trabalha para o pai, segundo pensa, mais do que o necessário.
Xanda, diariamente, no fim da tarde, faz curativos na
erisipela do pai. Ele gosta e diz que ela tem mãos mais leves que as da
irmã. É um ritual que geralmente dura mais de trinta minutos. Usam-
se todos os tipos de pomadas, cremes, ungüentos, faixas, gazes e
ataduras num processo eroticamente prazeroso para o velho, que se
1 Troça carnavalesca que se apresenta na Estrada de Aldeia; notório agrupamento dos marginais das
redondezas.
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entrega de pernas esticadas e arreganhadas, expressando nas feições
uma volúpia indescritível. Depois, numa malemolência cheia de
saciedade, arrasta-se com os dois pés enfaixados até sua cadeira cativa,
à entrada do boteco, para reclamar do preço do queijo coalho a
Nadinho, que aguarda pacientemente a esposa com um filho em cada
colo. O do meio está falando sozinho em algum beco escuro dos fundos.
Algumas das pomadas mais caras que servem de deleite ao
velho, são trazidas por uma enfermeira do Getúlio Vargas, de nome
Lindalva, que as surrupia em troca de algumas cervejas e de acavaladas
doses da poção mágica que o velho inventa e que a deixa, segundo diz,
muito excitada.
Os irmãos mais velhos de Xanda estão todos em Salvador,
onde enriqueceram no ramo da panificação. Saíram daqui com uma
mão na frente e outra atrás e conseguiram, à força de inumeráveis
pãezinhos, formar um monopólio e um império nas terras de Jorge
Amado. Pagam o mais caro plano de saúde para o pai e o visitam todo
ano no dia dos pais e em seu aniversário. Fazem de tudo para tirá-lo
dali e levá-lo consigo, mas o velho, por orgulho ou teimosia, prefere o
dia-a-dia da companhia dos bêbados e dos inúteis curativos à
acariciante brisa de Itapuã. Eles já tinham levado Raimundo, que
retornou com terríveis problemas de relacionamento, e Téta, que
também voltou muito chateada com os irmãos, que, machistas, não
aceitavam sua conduta devassa. Nosso casal modelo não pode, e mesmo
podendo, não quer ir. Xanda ama muito o pai e se sente obrigada para
com ele por toda a vida.
Doutor Jorge é médico. Desconhece-se sua especialidade. De
imponente porte físico e feições viris, assemelha-se a um gaúcho de
ascendência germânica. Está no meio da vida e é o responsável por uma
prole robusta e bem nutrida. Compara-se aos garanhões puros-sangues
na excelência da reprodução e no vigor dos apetites sexuais. Só anda
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armado e é brabo feito uma cutia. Tem uma pequena charrete em que
gosta de ir, nos finais de semana, de barraca em barraca,
absolutamente alcoolizado, jactanciar-se de suas qualidades inegáveis.
Possui o próprio grupo de aduladores. Dizem que chega a gozar ouvindo
seus elogios baratos.
Há uma casinha de boneca em Tabatinga. Ela é verde e
branca. Há um cão que gosta de retribuir os agrados que a ele se fazem.
Há um jardim em frente. Recoberto por uma rara variedade de
orquídeas e por girassóis perfumados. Há um quintal na parte dos
fundos em que nos domingos ensolarados sente-se o agradável aroma de
carne assada e vê-se vizinhos satisfeitos e barulhentos. Há nas noites
estreladas um pai, que com uma austeridade carinhosa, ensina seus
rebentos a serem homens de bem. Há no alvorecer um cheiro de ovo
frito e murmúrios de beijos e confissões apaixonadas de amor eterno. Há
três crianças sadias, embora o do meio seja um pouco isolado e,
responsável por tudo isso, também há um casal indiscutivelmente feliz e
convencional, que não aprecia muito as inovações de comportamento e
que, alheio aos grandes problemas metafísicos do homem moderno,
contenta-se apenas em trilhar os caminhos preestabelecidos que seus
avôs seguiram e perpetuar a espécie.
Não se sabe muito bem por que Juninho, primogênito de
Nadinho, quis ser escoteiro. Criança sadia e de bons costumes, tem a
aparência de um indiozinho, com os cabelos negros e finos como os da
mãe a cair-lhe na testa amorenada. É considerado bom colega pelos
companheiros e um pouco saliente pelas menininhas, que, não raro,
gostam de lhe ouvir as intrigantes histórias acerca de bichos nas matas,
canivetes suíços e amizades inabaláveis. Pertence a um pequeno grupo
de escotismo que se estabeleceu há algum tempo nos arredores da
escolinha em que estuda. Seu irmão do meio tem vontade de participar,
mas, além de temer suas excursões noturnas, detesta que o chamem de
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“gordo” na frente dos outros; por isso esquiva-se e gosta de rir
escondido da forma estranha e afetada com que o irmão começou a
falar. Xanda incentiva e enche a boca. O pai, apesar de desconfiar um
pouco do que lhe é estranho, discretamente congratula-se.
A experiência de camaradagem e de troca de gentilezas
nunca foi muito positiva para Doutor Jorge. Ele nunca trabalhou isso.
Considera a psicologia uma baboseira e reconhece que nem ele nem os
seus possuem qualquer desvio comportamental. Essa coisa de depressão,
paranóias e recalques, para ele, não é mais do que frescura. E frescura
se tira no pau. Gaba-se da violência recebida do pai aos filhos e, em sua
expressão de satisfação, deixa escorrer pelos lábios, grossos fios de saliva
salpicados de amendoim. Seus filhos entojam-se respeitosamente
enquanto ele os observa com um ar de completo triunfo. Ele sabe se dar
ao respeito.
Nadinho detesta a novela das oito. Sente-se constrangido de
assisti-la junto à família. Para ele devia ser proibida, assim como tantos
outros programas repletos de obscenidade. Gosta mesmo é de
entrevistas e documentários, embora confesse só para si que não
compreende grande parte do que vê. A maioria das músicas modernas
também não o agrada. Diz ser coisa de puteiro e agradece
silenciosamente por não ter uma filha. Aceita que a mulher cuide das
enfermidades do sogro, mas, no íntimo, sente ciúmes. Confia cegamente
nas regras de moral que ouviu do avô quando criança e jura que o
mundo está perdido. Fala isso num tom de prazer em que se estampa
na face mais orgulho moralista que sinceridade.
A consorte de Doutor Jorge não está muito satisfeita com a
conduta do marido que, segundo ela, não cumpre mais suas funções
amorosas. Ele reclama de fadiga ao que ela desembolsa o resto da
pensão do primeiro esposo em pesadas drogas contra a insônia que a faz
passar as madrugadas em claro, assistindo a programas de televisão que
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não lhe causam nenhum interesse e sonhando de olhos arregalados com
as mais endiabradas fantasias sexuais. Ele dorme sozinho. Numa rede.
Diz que se sente mais à vontade, não fazendo mais que manter um
costume adquirido desde os tempos em que morava com os pais no
interior. Ela pode jurar que a bebida está lhe tirando o vigor. Ele nega,
retrucando rispidamente que não é dado a pilhérias. Ela, cabeça baixa,
volta às suas pílulas e aos seus sonhos eróticos. Ele ri-se internamente,
satisfeito com mais uma prova de sua autoridade. É um homem de
moral.
As pessoas com quem Xanda conversa enquanto espera a
Kombi que a leva às purulências do pai não imaginam que aquele
aspecto meio despojado, espécie de índia relaxada, talvez até
malcheirosa, esconda uma mulher bem tratada, bela à sua maneira e
extremamente embelezada por todo tipo de vitaminas que o marido faz
questão que ela ingira. Todos a estimam. De um jeito ou de outro. Por
ser de certa forma dada e simpática, de uma carismática simplicidade,
consegue atrair a boa vontade dos outros, principalmente daqueles que
a vêem mais habitualmente. Costuma pegar a mesma lotação. O
motorista e o cobrador a adoram, perguntando sempre por seus filhos,
nunca pelo idolatrado marido. Ao se referirem pelo garoto do meio,
deixam entrever uma risadinha maliciosa.
Juninho anda meio preocupado, revelando pelos oitões da
casa trejeitos nos olhos e nos cantos da boca que até então não tinha.
Ninguém parece perceber, exceto o irmão franzino, que, de tempos em
tempos, pergunta se ele, em suas trilhas pela mata, já viu a Comadre
Fulôzinha2. Não se alimenta mais com o mesmo apetite, apesar de
comumente devorar com voracidade a severa dieta, feita apenas de
grãos, ervas e frutas vermelhas, prescrita pelo líder de sua tropa de
escoteiros. Após observar as intermináveis noites insones do filho,
2 Entidade mítica que costuma confundir aventureiros e caçadores que praguejam em mata fechada.
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Nadinho finalmente o convoca para uma conversa de homem para
homem e escuta, não antes de ministrar-lhe conselhos edificantes, que o
guardião mestre da sétima chave do poder sumiu na mata do Ronca3,
esbravejando e variando palavrões muito feios a insultos entre dentes e
que, desde então (na ocasião um sábado à noite), não fora visto.
Perguntando que porra é esse negócio de guardião, ouve dos lábios do
filho, que durante toda a prosódia não param de tremer, que o pai deve
ter mais respeito ao se referir ao grande chefe de sua unidade de
escotismo. Nadinho então suspira, sorrindo aliviado, afaga a vasta
cabeleira do filho, que tanto lembra a da mãe, e convida-o para dormir
a pulso, sob o castigo iminente de uma pisa bem dada.
Há uma coisa em que o esposo de Xanda, apesar de toda
sua boa vontade, não se sente muito honrado em fazer, especialmente
quando acorda com alguma indisposição causada pela sopa requentada
da noite anterior, que é ir todo sábado de manhã bem cedo, ao
mercado público de Camaragibe, para realizar as compras da lista que o
sogro com seus pés recém enfaixados, entre gemidos, lhe passou. Há
nela, além do queijo, charque, fumo de rolo, lingüiças, iscas de camarão,
analgésicos, broas, badoques, parafusos e toda sorte de especiarias...
Depois de tudo feito, compensa a ligeira irritação estacionando na vídeo
locadora da qual é sócio. Caminha à sua seção preferida, observa os
títulos disponíveis (desviando o olhar da prateleira para a atendente), e
após minuciosa escolha, na qual não são gastos menos de trinta
minutos, leva para casa quatro ou cinco fitas bem surradas.
Doutor Jorge está sempre disposto a provar alguma coisa a
alguém, mesmo que para tanto lhe custe a verdade. Agastado com a
forma com que a mulher o está tratando, bebe cada vez mais. Não
suporta o menosprezo, embora não seja exatamente isso o que ela afeta.
3 Fazendola comunitária cercada de vegetação tropical, localizada nas profundas grotas da Cobrança
(designação comum da estrada da antiga sede da Telebrás, quilômetro doze da Estrada de Aldeia).
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Ele está em busca de algo novo, que prove uma vez mais sua
superioridade que vacila, e que, para ele próprio, nunca foi muito firme.
Contenta-se mais em parecer ser, do que propriamente ser, e isso o
atormenta, mas seus companheiros de cachaça continuam a lhe encher
o ego de lisonjas fúteis e falsas provas de amizade, ao que
momentaneamente esquece quem de fato é e, como num perigoso baile
de máscaras, não se reconhece frente ao espelho do banheiro de algum
boteco, quando entra para se limpar dos múltiplos orgasmos que teve.
Ela não é muito afeita a sonhos, tem os dois pés bem
fincados no chão e, quando perguntada por algum passageiro, que já se
sente com a intimidade suficiente que ela própria permitiu, como vai
seu pai, responde com seu peculiar sorriso que está bem, mesmo
sabendo que a putrefação corrói-lhe as pernas com uma ligeireza
assombrosa. Gosta de, às sextas-feiras, ir mais cedo ao boteco dele,
aonde chega com os filhos a tiracolo, mais emperiquitada que o
habitual, sedenta pelas novidades da irmã e preparada para ouvir os
rudes gracejos dos alcoólatras do lugar. Depois é só cuidar dos curativos
do pai e esperar pelo venerado esposo que chega ao início da noite com
as pálpebras semicerradas pelo cansaço para fazer com o sogro a lista
que tanto o desagrada. Nesses momentos serve-se de todos os
apetrechos e adornos que ele tanta questão faz com que use. Sente-se
recompensada pelos olhares que dele recebe. A noite deve ser animada.
Não é. Sua mãe morreu numa sexta-feira.
Juninho está mais aliviado, pois soube que encontraram seu
mestre. O segredo dos dourados dragões, afinal, sobreviverá e não vai
mais ter buraco nas matas tropicais de Aldeia que ele não vasculhe.
Com o pequeno coração aos saltos, saltita empinando-se de um lado a
outro da casa, cantarolando canções romanescas e estalando os dedos
repetidamente. Seu irmão do meio não sabe por que, ao invés dele,
aquele escoteiro de gestos esnobes não está fazendo o tratamento
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psicológico ao qual é submetido pela única razão de ser magro. Os pais
também ficam contentes ao repararem na satisfação do primogênito,
presenteando-o com uma infinidade de bandeirolas coloridas,
compradas no cais de Santa Rita, e três ou quatro conjuntos de
uniforme afeminados. Há coisas que ocorrem na infância e que marcam
para sempre a vida de uma pessoa, e disso há um exemplo em Juninho,
que, depois da euforia, sabe das verdadeiras circunstâncias em que o
guru da sua tropa fora encontrado. Descobriram-no num cabaré de Chã
de Cruz4, repasto de larápios, muito concentrado em trapacear numa
violenta jogatina de vinte-e-um e entupindo a caveirinha de cachaça.
Dizem que se comunicava numa esquisita língua indígena. Seu posto está
vago.
Quando o cabeçote do videocassete de Nadinho está sujo,
ninguém o reconhece. Blasfema e deita impropérios aos quatro ventos,
ouvindo como eco, o convulsivo choro da esposa, que, nervosa, não sabe
muito bem o que fazer, outorgando-lhe o divino direito da
arbitrariedade. Então, zangado, escarra aos seus pés, batendo a porta
de casa com brusquidão. Ela arranja-se com algodão e álcool, às vezes
tíner, enfiando sua mão calejada na enferrujada abertura do aparelho,
e, não antes de levar alguns choques, aguarda ansiosamente o
digníssimo para receber-lhe o aval. Geralmente conserta. Ele costuma
trancar-se num pequeno quarto, reservado militarmente para si,
passando horas a fio lá dentro, só saindo para respirar um pouco de ar
fresco, inteiramente banhado de suor frio e com um saciado olhar de
peixe morto. A família não sabe o que ele faz ali. Resigna-se sem
curiosidade. Ele sabe o que faz.
Em seus passeios de charrete habituais, Doutor Jorge gosta
de conhecer lugares novos, aventurando-se para onde seus caprichos o
levem. Sua fiel legião de escudeiros o acompanha, obedecendo
4 Vilarejo situado no final da Estrada de Aldeia, quilômetro dezessete.
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prontamente as suas ordens e achando muita graça em tudo que ele
fala. E é numa ensolarada tarde de sábado que vai dar em Tabatinga5,
onde, com o juízo povoado por idéias extravagantes, acomoda-se num
imundo pardieiro que se arvora da honra de vender os mais
envenenados coquetéis etílicos, vizinho a uma construção engraçada,
estranhamente pintada de cores berrantes e completamente tomada
por motivos infantis, em que se lê na faixa que lhe cobre a entrada, a
inscrição: “PRECISA-SE DE UM LÍDER”. Doutor Jorge não é cego e sabe
ler. Muito bem. Principalmente os três volumes de educação sexual que a
mulher, com zelo talvez exagerado, conserva em sua cabeceira. É
sábado, está bêbado, sua infantaria não pára de provocar arruaças, mas
aquela sentença não sai de sua cabeça, cujas letras garrafais
embaralham-se teimosamente, sugerindo-lhe mais um convite divino,
que um aviso de emprego. Deixa para segunda-feira a entrevista.
Apesar de não estar nem aí para os avanços da astronomia,
Xanda curte uma lua cheia. Não tem o hábito da leitura, mas possui
uma edição de “O Livro Negro”, de São Cipriano, furtada do pai
quando ainda era adolescente. Tem fascinação pelo fogo, jamais
deixando faltar vela em casa. De todos os tipos. Inclusive fabrica
artesanalmente algumas, aromáticas e com belos desenhos mitológicos.
Para o próprio consumo. Há quem diga que ela se transforma quando
está diante das chamas. A arte das técnicas hipnóticas e o segredo das
sete encarnações não lhe são estranhos. Sente-se atraída pela noite,
particularmente as estreladas, sob a qual realiza diversas experiências
no quintal, num caldeirão bem mais velho que ela. Tem também um
grosso calhamaço de receitas que jamais deixa à vista e uma vassoura
escalavrada em mogno, sem nenhuma utilidade prática, que o esposo
teima em deitá-la fora, mas não consegue pelo grande valor
5 Vilarejo maior, pertencente ao município de Camaragibe, situado logo no início da estrada; concentra o
maior número de bandidos por metro quadrado do Brasil.
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sentimental que ela parece lhe devotar. Nadinho vê isso como um
capricho de uma filha caçula grosseiramente mimada e retorna ao seu
quartinho. O primogênito está muito ocupado em pensamentos sobre
que rumo sua patrulha vai tomar. O do meio acha aquilo um pouco
esquisito, mas, afinal, não é ela quem se irrita quando a chamam de
“gorda”.
Ele não rasgou as bandeirolas nem picotou os uniformes,
mas passou quinze dias murcho, macambúzio, sem querer ir à escola,
nem falar com ninguém. Sofrera a primeira grande decepção e isso lhe
marcará pelo resto da vida. Entretanto o tempo passa, vem a noite,
vem o dia, e nada há que perdure para sempre, principalmente na
consciência de um jovem em formação. Começa a se reanimar aos
poucos, devagar, sorrindo amarelamente com uma lorota dita pelo pai
ou juntando-se aos outros para escarnecer de seu irmão, atribuindo-lhe
a alcunha de “HE-MAN6”. Pouco depois já não vive pelos cantos nem se
lhe escutam as pragas lancinantes dirigidas contra os embusteiros do
mundo. Mas não se desengana completamente. É preciso separar o joio
do trigo. Está ciente que absorveu toda a carga positiva do movimento
que adotou e não seria um elemento cercado de incógnitas, verdadeiro
pelintra, que lhe estragaria a seiva bruta de seu pequenino coração
tupinambá. O mundo não acabou, continuará sendo escoteiro e mantém
a fé nos princípios sagrados, sacramentados num juramento de sangue,
enquanto aguarda a decisão da diretoria para escolher um novo líder.
Nem seus broches, nem seus pingentes em forma de unicórnio, feitos de
latão, foram jogados fora.
Não ignorando o fato de que a esposa vai às sextas-feiras
mais cedo para o boteco do pai, Nadinho só trabalha meio turno e, às
vezes, ainda chega a vê-la saindo apressada. Ele se esconde. Leva
consigo um volumoso pacote, repleto de fitas de vídeo. É quando se
6 Desenho animado dos anos oitenta, famoso pela força hercúlea de seu herói.
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sente mais feliz, julgando-se pelo brilho que seu olhar emite. Esse brilho
não é constante, pois, como se sabe, está sempre com as pálpebras
como que arriadas quando chega para buscar a família. Só então entra
em casa e depara-se com o retrato do avô pendurado na sala. Despe-se
rapidamente e suas feições assumem caretas zombeteiras, enquanto
gesticula depravadamente para o homem muito sério do quadro, que,
talvez para sua surpresa, não esboça qualquer reação. Depois em seu
recanto solitário, espécie de toca saturada de mofo, numa avidez
impressionante, abre a bolsa que não larga, rasgando o plástico e
desmantelando a caixa para introduzir no videocassete um filme, senão
erótico, tremendamente pornográfico.
Parece mentira, mas por ser médico, de pele branca, de
estável condição social e, principalmente por possuir uma charrete,
Doutor Jorge preencheu os requisitos que a vaga exigia, segundo a
direção, mais que o suficiente. Disseram que ele nasceu para a coisa. Ele
agradece sem muita vontade, como se cumprissem uma obrigação tê-lo
escolhido, e sem nenhuma vergonha de ser visto, vai comemorar no bar
vizinho. Não permanece por não ter ali ninguém que lhe massageie o
ego. Resolve então ir para casa. Está animado, mas a ninguém quer dar
a saber a causa dessa animação. Chegando em casa tranca os filhos no
porão e manda a mulher preparar-se. “Pra quê?”, ela questiona,
fazendo-se de rogada. Sem dar muita trela, ele vai tirando a própria
roupa e com mãos grosseiras, inábeis à sensibilidade feminina, tenta
arrancar-lhe do corpo as estranhas lingeries que ele nunca viu.
Finamente rendadas. Como seu desajeitamento o atrapalhe, retardando
o processo, ela, com muito mais perícia, no furor uterino em que está,
desvencilha-se dos entraves e arremessa-se em cima dele. Após longo
tempo de frustradas tentativas de ressuscitação, ela o vê muito confuso,
silabando desculpas para si mesmo e correndo porta afora
desesperadamente.
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Embora não demonstre, Xanda cultiva uma adoração mais
que doentia pela mãe. Conserva suas roupas e seus penduricalhos numa
gaveta muito bem trancada. Costuma vê-la em sonhos, absurdamente
verossímeis. Sua imagem, apesar de não tê-la conhecido, não lhe sai da
mente, entremeada dos gestos e da forma de falar que a mãe de fato
tinha. Possui um medalhão de prata que ao ser aberto, deixa à mostra
um retrato muito antigo da genitora, vestida como uma Pombagira7 e
montada num imponente alazão; enquanto na outra face está ela
própria, recém-nascida e com uma cintilação fantasmagórica nas
pupilas. Acredita entabular diálogos extramundanos nas noites em que
seus canais escancaram-se pelo assombro de uma prece de São Cipriano.
A família está muito ocupada para perceber-lhe nessas horas as
mudanças até mesmo físicas. Transtorna-se. Seus olhos arregalam-se,
irradiando chispas avermelhadas; os músculos contraem-se, num retido
princípio de esgotamento nervoso; seus beiços pintados de escarlate
agoniam-se em reproduzir o que uma força, muito mais forte que ela,
impele sem qualquer escrúpulo. Há coisas que a ciência não explica.
Apenas o filho do meio, reconhecendo tamanha mudança, olha-a de
esguelha, tratando-a com frieza, pois não crê que a mãe, nesses
momentos, seja realmente a mulher que o pariu.
Por mais que se esforce, Juninho não é capaz de ocultar o
contentamento que sente: segundo todos os comentários, há enfim um
homem à altura de um posto tão nobre; dizem-no profundo conhecedor
dos mistérios da natureza, detentor de uma raríssima pedra verde e
um dos poucos a ter visto o verdadeiro pássaro azul. Juninho, julgando-
se assim em boas mãos, pululante de alegria, convida a todos que
conhece para a abertura da nova temporada das incursões florestais,
numa grandiloqüente homenagem ao primeiro dia da unidade sob a
liderança do já incontestável mito. Falam também que o iluminado
7 Popular entidade da umbanda; uma Exu-fêmea. Diz-se ter sido amante do Cão-Cinza.
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mestre faz-se valer de uma poderosa terceira visão e que se locomove
numa estranha charrete, puxada por dois unicórnios alados. Atribuem-
lhe poderes místicos. É engraçado e quase sempre desastroso, mas um
boato, quando repetido várias vezes, ganha contornos de realidade e
amiúde transforma-se, no inconsciente coletivo das consciências médias,
em fato consumado. E é por isso que seu próprio irmão do meio,
maravilhado com tão fantásticas imagens, deixa-se persuadir, e aceita
pela primeira vez, malgrado as perturbações de que sabe ser o alvo,
tomar parte da esquadra aventureira da qual já tanto riu. O pai
permite, não entendendo muito o que se lhe pede, cabisbaixo de
cansaço. A mãe, ultimamente tão estranha e distante, nem sequer é
procurada.
Não se satisfazendo mais com aquela profusão de belas
mulheres que jamais saberão que ele sequer existe, Nadinho põe fogo
(com uma vela ornamentada de estrelinhas azuis e de símbolos
cabalísticos) em toda sua coleção de revistas e de longas indecentes,
cultuada secretamente desde meados dos anos setenta, numa revolta
repentina, própria de adolescentes impúberes, quando confrontados
com a profunda dimensão da donzelice. Ele agora quer algo real, que se
toque e se cheire, excetuando-se os toques e a horrível catinga de inhaca
daquela mulher, que ele desconfia ser catimbozeira e que dorme em sua
cama. Não sabe como ela foi parar ali e assusta-se quando esbarram-se
pela casa. Há também três indiozinhos que de vez em quando aparecem
e que ele jura serem visagens provocadas por ela. Acha aquilo uma
invasão imperdoável, não admitindo mais que continue, sob o risco de
parecer louco aos vizinhos, que o sabem de uma moral acima de
qualquer suspeita. Precisa dar uma bela lição ou os intrusos vão se
acostumar a aperrear-lhe a paz de espírito (aquelas intermináveis horas
de isolação, preenchidas pelos viciosos hábitos que o cristianismo da
idade média repudiava, culminaram por alterar-lhe o juízo). Uma orgia.
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É isso, uma puta de uma orgia. E é nesse estado de ânimo que Nadinho
sai de casa, não para trabalhar, mas para, pelas zonas de prostituição
mais sórdidas das redondezas, reunir os ingredientes da receita com que
pretende exorcizar, de uma vez por todas, aquelas desagradáveis
aparições que lhe habitam o lar. Após ouvir desconfiadas escusas,
permeadas de histéricas gaitadas, ele retorna acompanhado de cinco
prostitutas, duas das quais travestis (perdoa-se pela sua ignorância no
assunto). Por sorte e pela demora em realizar o agrupamento, não
encontra nenhum dos fantasmas em casa. Mas não tem importância:
está disposto às maiores diabruras até o instante em que ressurjam,
com aquele horroroso mau cheiro, seguido do atrevimento que já se lhes
tornou característico.
Ao pedir para sair mais cedo da clínica em que é
plantonista, ninguém imagina os propósitos que Doutor Jorge tem em
mente. Chega no horário predeterminado, não antes de ter ido em casa
buscar sua charrete, agora meio que remodelada: pintada de azul-
celeste, com o assento maior e berrantemente enfeitada com as
entidades fantásticas da mitologia das matas brasileiras. Uma pequena
multidão de pupilos e curiosos o aguarda ansiosa. Suas feições irradiam
uma espécie de satisfação pessoal, muito próxima da loucura. Está
vestido com um uniforme pequeno demais para ele e que em conjunção
ao quepe, de um cáqui desbotado, dá-lhe a aparência de um ridículo
solene. Está armado. Sem nenhuma necessidade. Pronuncia um breve
discurso em que se denota uma auto-suficiência incoerente, mas que na
febre dos aplausos, toma a forma de sapientíssimas palavras. Inicia-se,
pois, o passeio, sob os esfuziantes gritos de alegria das crianças que
seguem, escoltando animadas a charrete estrada afora, cantando e
marchando entusiasticamente. O trajeto é longo: Tabatinga - Estrada
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de Aldeia - Oitenta8. No percurso, Doutor Jorge, irritado, quase saca o
revólver para disparar contra um Chevette cinza, que lhe banha o corpo
de lama, ao passar por uma poça d’água. Mas reconhecendo nele Zé
Bracinho, companheiro de boteco, desiste e chama para perto de si,
dois indiozinhos, que lhe chamam muito a atenção pelo empenho e pela
admiração que parecem lhe consagrar. Os meninos, embasbacados e
cheios de orgulho, sobem na carroça como se numa carruagem
encantada, deixando transparecer nas atitudes uma soberba que muito
irrita os companheirinhos. Alcançando o Oitenta, adentram mais e
mais, por trilhas improvisadas aos caprichos do mestre, até atingir o
ponto mais denso da mata. Ali, em meio à vegetação cerrada, Doutor
Jorge ajusta as incumbências do grupo, dividindo-o em pequenas
unidades. São missões de caráter investigativo e experimental. Os
pimpolhos espalham-se ao redor, muito concentrados em averiguações
tão bizarras quanto inúteis. Os únicos a quem não foi dada qualquer
espécie de tarefa, para decepção do mais velho e certo ar de
desconfiança do irmão, que agora começa a desiludir-se com o chefe,
que, sem o conhecer, já o apelidou de “Pequeno Hulk9”, são os pequenos
indígenas. Aproveitando-se da situação, em atitudes premeditadas, o
grande líder desvia a atenção dos garotos para assuntos sem qualquer
importância e, num gesto decidido, tenta levar a cabo seus censuráveis
projetos de bolinagem. Adivinhando-lhe o propósito, numa maturidade
pouco vista em meninos de sua idade, o irmão do meio, já inteiramente
tomado de ojeriza contra suas chacotas, mete-lhe na cabeça por vezes
seguidas uma das traves de madeira que servem de apoio ao encosto da
charrete, ganhando tempo para que seu irmão fugisse. Juninho, porém,
assustado com tudo aquilo, parece demorar a entender o que está
8 Outra localidade às margens da estrada; situa-se nas imediações do quilômetro cinco e meio. Alguns dizem
lá ter visto distintas espécies de lobisomem nas noites de lua cheia. 9 Super-herói surgido das histórias em quadrinhos, que, quando irritado, torna-se verde, extremamente
agressivo e inconseqüente.
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acontecendo, reprovando a conduta do irmão e tentando proteger com
os braços a cabeça de seu mestre. É com muita presença de espírito que
Doutor Jorge, percebendo o retorno dos garotos que ouviram as
pauladas, tira-lhe a trave da mão, desiste de seus pedófilos impulsos e
inflige ao “gordo” severas punições, sob a geral aprovação e as
insuportáveis injúrias galhofeiras.
Se alguém da família reparasse em como Xanda desperta
nessa sexta-feira, notaria a espantosa modificação que se processou em
sua alma. Mas ninguém repara: Nadinho está fazendo uma pequena
fogueira no quintal, com o aspecto apavorado dos que têm mania de
perseguição; enquanto os meninos afobam-se em se vestir rapidamente
para o dia de estréia do novo mestre. Só resta o caçula, ainda muito
inocente para perceber os surtos de loucura que se apossam das mentes
humanas. Entretanto, se ninguém repara em Xanda, ela não repara em
ninguém. Levantando-se ainda mais cedo que de costume, perambula
pelos cômodos com uma voluntariedade obstinada, como se não se
permitisse ficar parada, temendo o desperdício de um tempo precioso.
Suas atitudes esgazeadas vasculham pelos armários e gavetas o que de
fato lhe pertence. Não toma banho, encharcando-se de perfumaria
barata. O futum espalha-se. Veste-se com três saias, uma por cima da
outra, ciganamente estampadas e de um tecido muito grosso, e um
blusão de caxemira que recende a mofo. Não esquece de pôr nos dedos e
nas orelhas os enferrujados anéis e brincos que há quase quarenta anos
não são vistos. Consuma o embonecamento com o velho medalhão de
prata sobre o colo. Desentranha do armário um disco muito antigo,
religiosamente conservado e com figuras de camponeses suspensos no ar
ao mesmo tempo em que tocam flautas de Pã e acordeões. Seus olhos
estufados, agora caracterizados por uma fosforescência perscrutadora,
metem medo nas pessoas com quem costuma conversar, enquanto
aguarda a Kombi com seu filho mais novo, que agora o trata como neto.
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Exige respeito do motorista e do cobrador que, notando-lhe a insólita
aparência, esparramam-se em brincadeiras ardilosas. Mas ao ouvirem
da boca de Xanda: “vocês não sabem quem eu sou”, calam-se,
entreolhando-se. Ficam ainda mais assustados quando ela chega ao
destino, pois gargalha sardonicamente e afirma num timbre muito
grave, como se, num ronco distante, sua voz viesse de épocas remotas:
“eu sou a cabôca de Iorubá10!”. Entrando no boteco do pai, com o
aspecto irradiando dignidade, distribui ordens pouco coerentes, numa
brabeza matriarcal. Manda que os bêbados se comportem bem, pois
estão numa casa de família, e, embora seja ainda cedo, ordena que
acendam logo aquela fogueira que prepararam para o São João. Quer
comer milho. Téta, perplexa, ao dizer com afoiteza que ela nunca gostou
de milho, ouve como réplica que se cale e vá tratar de cuidar do almoço
do pai. Aproximando-se do velho, afaga-lhe os cabelos de algodão, não
como filha, mas num carinho próprio de esposa saudosa e, com um
olhar muito doce, confessa-lhe que tem uma surpresa, perguntando
entre cicios pela radiola. Está no quartinho dos curativos. Tão logo estão
sozinhos, ela tranca a porta e coloca o vinil que trouxe para girar.
Ouve-se uma música cigana11. Ela quer dançar. O velho estende-se na
cama numa postura de sultão. Está boquiaberto. Então, em movimentos
inicialmente lentos, sugestivos, ela vai se alvoroçando pouco a pouco,
serpeando o corpo com maestria, contorcendo-se com toda a alma e
girando furiosamente suas três saias enquanto revira os olhos e açoita o
pai com a farta cabeleira revoltosa. Ele reconhece a finada, tem um
princípio de ereção e se envergonha. Grita, mandando que a filha tenha
modos. Xanda desacata a ordem e ordena que feche o bico. Faz isso com
uma autoridade tão natural que ele respeita e fica a espreitar-lhe o
10
Espírito feminino terrível e malicioso, oriundo das comunidades indígenas de Pesqueira, e que tem em
Maninha (Madrinha para os queridos), sua receptora principal. 11
“Romanian Folk Game From Muntenja”, executada pela Tchorkarlia Folk Orchestra.
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tom com que fala, apavorado como quem está diante de uma
assombração.
Muito irritado com o irmão, Juninho crê finalmente que sua
tropa de escotismo caminha a passos largos para a redenção. Seu
mestre mostrou-se digno da fama que lhe atribuíram. Apenas sente-se
um pouco constrangido pelo vexame que a psicopatia de seu mano
causou. Jurou a si mesmo que nunca mais levaria o “Rambinho12” para
qualquer expedição. Ele o envergonhava. Seus pais não mostraram muita
curiosidade em saber como foi aquela estréia. Engoliu amargamente as
estripulias do irmão, deixou de falar com ele e entregou-se de corpo e
alma à sabedoria que o grande líder encerrava. O “gordo” mergulha
cada vez mais em si mesmo. Prefere calar o que houve num acordo
tácito com o mais velho. Envergonha-se por ele. Não sente muita falta
de sua companhia. Acha-o cabuloso. E sonso.
Assim que a bacanal tem início, Nadinho desmaia, torturado
pelo esgotamento mental. Desperta sozinho, completamente nu,
banhado de cidra e cheio de marcas de mordidas e arranhões nas costas
e nas nádegas. Sente náuseas e vomita uma gosma avermelhada e
viscosa. Senta-se na cama, mas não suporta a dor, levantando-se e
procurando a carteira, que não encontra, o relógio, que também não
acha, e a chave do carro, escondida entre as cinzas da fogueirinha que
fizera de manhã. Tivera ainda tempo dessa última precaução.
Envergonhado, limpa as sobras da festa, arruma-se, nota que seu
sagrado videocassete fora roubado, juntamente com duas televisões
pequenas, um travesseiro com a estampa de Pato Donald13, a vassoura
de Xanda e uma panela de pressão antiga, e sai para buscar a esposa,
olhando para os lados e sem coragem de se ver no retrovisor ou de
ouvir o próprio som da voz.
12
Diminutivo zombeteiro de “Rambo”, personagem de muito sucesso, encarnado numa insuportável
seqüência por Sylvester Stalonne. 13
Caricatura afrescalhada de um pato falante, criada por Walt Disney nas mais controversas circunstâncias.
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No outro dia, ao tomar café com a família, Doutor Jorge
evita seus olhares. Põe a respeitável roupa branca que sua mulher com
diligência arrumou sobre a cômoda, distribui ordens inúteis, não
consegue responder satisfatoriamente por que enfeitou a charrete
daquele jeito e sai, dizendo que o plantão será longo, embora saiba que
jamais trabalha aos sábados. Não sente remorsos. Acredita na própria
mentira. Quando chega para encontrar seus idólatras n’algum buraco
imundo, fala algo sobre uma pirâmide social que lhe outorgou altas
patentes e sobre como realizou no dia anterior, leoninas proezas sexuais,
numa orgia com três estagiárias da clínica. Aplaudem-no os inigualáveis
feitos enquanto pedem um tira-gosto qualquer. Nesses momentos suas
expressões assumem certo ar imbecil, saciado.
Terrivelmente espantado com as atitudes da filha, que ele
reconhece estar possuída pelo espírito da mãe, o velho bodegueiro, que
possui conhecimentos extra-sensoriais de exorcismo, principia a
cerimônia de esconjuração, num dialeto bárbaro e servindo-se de
raríssimas ervas, cujos poderes, só ele e mais uns poucos parecem
conhecer. Ao fim de mais ou menos uma hora, em que são ouvidos do
lado de fora rosnados histéricos de inconformação e um debater-se
frenético, Xanda reaparece molhada de suor, esgotada e faminta.
Ignora o que a deixou nesse estado de prostração e releva os olhares
enviesados que a si são dirigidos. Observa-se com estranheza dos pés à
cabeça. Acautela-se. Téta, cismada, vem lhe dar uma espiga de milho
que assou demais. Está queimada. Ela, com seu jeito natural, diz
simpaticamente que não gosta muito de milho assado, prefere canjica,
mas que não custa nada guardar um ou dois para o digníssimo esposo,
que não tardará em vir buscá-la. Inquirido por Téta sobre como contar
o estranho comportamento de Xanda a Nadinho, o velho responde que
ninguém precisa saber. Ele dispensa os curativos nesse dia.
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