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1 NO LOCUS FRONTEIRIÇO, IDENTIDADE E ALTERIDADE ― A psique entranhada na substancia do mundo. ― Fabiana L. Binda Grazi 1 Somente o ser cuja alteridade, acolhida pelo meu ser, vive face a mim com toda a densidade da existência é que me traz a irradiação da eternidade. Somente quando duas pessoas dizem, uma-à-outra, com a totalidade dos seus seres: És tu é que se instala entre elas o Entre.[BUBER,M. Do Diálogo e do Dialógico. Trad. Marta Ekstein de Souza Queiroz e Regina Weinberg. São Paulo: Perspectiva, 2007 a.P. 65] A fronteira, muito além de separar dois lados, dois estados, duas psiques, abrange o estabelecimento de relações distintas, ou seja, existe um intercâmbio cultural, social, político e de almas. Dessa forma, tanto a identidade quanto a alteridade encontram-se presentes na estrutura do espaço fronteiriço, e é por meio de ambos que os sujeitos constroem sua cultura, seus costumes e formas de vida, diferenciando-se do Outro que habita no seu lado oposto da divisória. A construção e a reconstrução da identidade na fronteira envolvem processos de contradições e ambigüidades que estão diretamente ligados ao desenvolvimento da consciência. A Fronteira é essencialmente o lugar da alteridade, do acolhimento do Outro, do estranho. Onde as diferenças necessariamente estão presentes e a experiência dos opostos tem o seu lugar. E a partir da experiência dos opostos, o novo, ou seja, a síntese pode ocorrer. A partir da perspectiva da Psicologia Analítica de C. G Jung, dialogando com as bases ontológicas da filosofia de Martin Buber e com o sentimento de comunidade proposto por Adler, passando pela empatia, chegaremos à Psicologia Arquetípica, que devolve a alma ao seu locus original, a alma do mundo. O convite deste trabalho é para fazermos reflexões a partir do locus fronteiriço, onde o encontro com o Outro acontece e, a partir dessa perspectiva, pensarmos a nossa conexão com o mundo que nos cerca e nossa responsabilidade para com o coletivo. É recente a compreensão de que a psique é um sistema de relações. A relação da patologia individual com a patologia do coletivo é muito mais estreita do que geralmente nos permitimos perceber. A psique individual traz, pela via do inconsciente coletivo, uma estrutura interna comum a todos nós, na qual o coletivo não é uma mera abstração. Ainda que nem sempre se perceba esta constelação de totalidade, sabemos, como psicólogos profundos, que lidamos com a unidade de todos os indivíduos advinda da psique natural. A busca do conhecimento de si mesmo é o anseio de todo ser humano. A identidade se dá, a princípio, a partir daquilo que é comum a todos, para depois nos diferenciarmos e reconhecermos o que é único, nossa imparidade. O termo consciência significa “conhecer com” um outro . Sendo que conhecer na presença do outro se refere a um contexto de dualidade. A consciência nasce, de algum modo da experiência dos opostos. (Edinger, 1984. Pag 34) 1 Psicóloga Clínica. Analista Junguiana. IPAC / AJB

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NO LOCUS FRONTEIRIÇO, IDENTIDADE E ALTERIDADE ― A psique entranhada na substancia do mundo. ―

Fabiana L. Binda Grazi1

Somente o ser cuja alteridade, acolhida pelo meu ser, vive face a mim com toda a densidade da existência é que me traz a irradiação da eternidade. Somente quando duas pessoas dizem, uma-à-outra, com a totalidade dos seus seres: És tu é que se instala entre elas o Entre.[BUBER,M. Do Diálogo e do Dialógico. Trad. Marta Ekstein de Souza Queiroz e Regina Weinberg. São Paulo: Perspectiva, 2007 a.P. 65]

A fronteira, muito além de separar dois lados, dois estados, duas psiques,

abrange o estabelecimento de relações distintas, ou seja, existe um intercâmbio cultural, social, político e de almas. Dessa forma, tanto a identidade quanto a alteridade encontram-se presentes na estrutura do espaço fronteiriço, e é por meio de ambos que os sujeitos constroem sua cultura, seus costumes e formas de vida, diferenciando-se do Outro que habita no seu lado oposto da divisória. A construção e a reconstrução da identidade na fronteira envolvem processos de contradições e ambigüidades que estão diretamente ligados ao desenvolvimento da consciência.

A Fronteira é essencialmente o lugar da alteridade, do acolhimento do Outro, do estranho. Onde as diferenças necessariamente estão presentes e a experiência dos opostos tem o seu lugar. E a partir da experiência dos opostos, o novo, ou seja, a síntese pode ocorrer.

A partir da perspectiva da Psicologia Analítica de C. G Jung, dialogando com as bases ontológicas da filosofia de Martin Buber e com o sentimento de comunidade proposto por Adler, passando pela empatia, chegaremos à Psicologia Arquetípica, que devolve a alma ao seu locus original, a alma do mundo. O convite deste trabalho é para fazermos reflexões a partir do locus fronteiriço, onde o encontro com o Outro acontece e, a partir dessa perspectiva, pensarmos a nossa conexão com o mundo que nos cerca e nossa responsabilidade para com o coletivo.

É recente a compreensão de que a psique é um sistema de relações. A relação da patologia individual com a patologia do coletivo é muito mais estreita do que geralmente nos permitimos perceber. A psique individual traz, pela via do inconsciente coletivo, uma estrutura interna comum a todos nós, na qual o coletivo não é uma mera abstração. Ainda que nem sempre se perceba esta constelação de totalidade, sabemos, como psicólogos profundos, que lidamos com a unidade de todos os indivíduos advinda da psique natural.

A busca do conhecimento de si mesmo é o anseio de todo ser humano. A identidade se dá, a princípio, a partir daquilo que é comum a todos, para depois nos diferenciarmos e reconhecermos o que é único, nossa imparidade.

O termo consciência significa “conhecer com” um outro. Sendo que conhecer na presença do outro se refere a um contexto de dualidade. A consciência nasce, de algum modo da experiência dos opostos. (Edinger, 1984. Pag 34)

1 Psicóloga Clínica. Analista Junguiana. IPAC / AJB

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A função psicológica de conhecer ou ver requer, em primeiro lugar, que a experiência indiferenciada e difusa seja cindida num sujeito e em um objeto, o conhecedor e o conhecido.

O ser humano passa pelo processo de reconhecer-se enquanto um corpo, uma identidade corporal, marcada e definida por raça, cor, traços e vestes, cultura e crenças. Depois de formada esta identidade, ele passa pela busca natural de si-mesmo, uma busca pela singularidade. Esta noção de identidade será forjada pela complexidade e desdobramento de imagens e fantasias advindas de seu inconsciente.

O conhecimento de si acontecerá através da relação com o outro semelhante e diferente de si. Para se conhecer é necessário ser e estar com o Outro e não há como conhecer-se sem experimentar a emoção da divindade manifestando-se, sem a emoção do símbolo emergindo na consciência.

A união dos opostos no vaso do ego é o aspecto essencial da criação da consciência. A consciência é o terceiro elemento que surge do conflito com a dualidade, e este terceiro, a condição transcendente, traz nova energia disponível à consciência.

Segundo Byington, o arquétipo da alteridade é o arquétipo que propicia à consciência o encontro dialético com os opostos, através do qual a elaboração simbólica pode alcançar sua capacidade plena. Dialética aqui significa que os polos de todas as polaridades podem se relacionar em oposição, mas também em harmonia, dependendo do contexto. Trata-se da relação de um encontro pleno entre o Ego e o Outro, no qual os símbolos podem ser elaborados até o máximo de seu potencial metafórico, e, portanto, necessitam a extensão plena da elaboração simbólica permitida pelo princípio de sincronicidade. (BYINGTON, 2002, p. 26).

Assim, a dinâmica da alteridade possibilita ao ego não só considerar a posição do Outro, o “não-Eu”, mas, assimilar as polaridades, integrando os opostos.

Alteridade desloca o indivíduo em direção ao outro, isto é, possibilita uma experiência profunda da relação com o Outro, a integração da realidade interior com a exterior, de tal forma que a experiência com o outro pode se tornar uma experiência de desenvolvimento para o indivíduo. A integração dos opostos é um dos maiores desafios da individuação – por isso mesmo, a projeção desse arquétipo faz com que o indivíduo seja absorvido pela relação com o Outro. (MORAES, 2010).

Durante anos a Psicologia tomou como objeto de estudo o “biográfico eu”, e manteve o Eu dentro do interior da pessoa. Até então o foco da Psicologia era do avanço apenas no âmbito da consciência pessoal, o que reflete um afastamento do olhar para o mundo baseado na empatia cósmica, que mantém o humano voltado apenas para a subjetividade.

Nos últimos anos noções importantes nas quais a psicologia tradicional se baseou estão sendo desconstruídas e novas possibilidades têm surgido a partir das pesquisas da ecopsicologia e da sincronicidade, as quais encontraram suas bases na obra de Jung.

Segundo Hillman, por Psicologia entendemos o estudo (logos) da alma (psyche). Isso implica que toda Psicologia é, por definição, uma psicologia profunda, pois, desde Heráclito ― há dois mil e quinhentos anos atrás ― a alma tem sido definida como profunda e sem localização.

Estabelecer os limites da psique para a psicologia é ainda mais complicado quando nos deparamos com a noção de inconsciente; é difícil colocar limites precisos

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na identidade humana, pois, aos sairmos do âmbito da consciência, adentramos um universo de memórias irregulares, sombras, intuições e irrupções espontâneas que demonstram claramente o quanto seu ponto de origem é difícil de definir e inabarcável.

A Partir do conceito de inconsciente coletivo de Jung; as raízes inconscientes estão plantadas em territórios de qualidade universal, principalmente quando nos referimos ao fenômeno psicóide, parcialmente material, parcialmente psíquico, uma mescla da psique e da matéria. Essa fonte psicóide refere-se ao substrato da vida.

As camadas mais profundas da psique perdem a sua singularidade individual à medida que aumentam a profundidade e a escuridão. Para baixo quer dizer que, aproximando-se dos sistemas funcionais autônomos, se tornam progressivamente mais coletivas até se universalizarem e desaparecerem na materialidade do corpo, isso é nas substancias químicas. O carbono do corpo é simplesmente carbono, portanto, no seu âmago, a psique é simplesmente mundo. (JAFFÉ, 1989. pg. 26 – O mito do significado).

Jung afirma em “A Natureza da Psique” que:

Como a psique e a matéria estão encerradas em um só e mesmo mundo, e, além disso, se acham permanentemente em contato entre si, e em última análise, se assentam em fatores transcendentes e irrepresentáveis, há não só a possibilidade, mas até mesmo uma certa probabilidade de que a matéria e a psique sejam dois aspectos diferentes de uma só e mesma coisa. Os fenômenos da sincronicidade, ao que me parece, apontam nessa direção, porque nos mostram que o não psíquico pode se comportar como o psíquico, e vice e versa, sem a presença de um nexo causal entre eles. (JUNG, #418, 1991).

Jung descreve o psicóide como um adjetivo que “é aplicável a qualquer tipo de arquétipo, expressando a conexão essencialmente desconhecida, mas passível de experiência, entre a psique e a matéria” (Jung APUD Sharp, 1997, p. 129).“Parece-me provável que a verdadeira natureza do arquétipo não possa ser levada à consciência, isto é, seja transcendente, motivo pelo qual eu a defino como psicóide. ” (Jung CW XI). Isto significa que os arquétipos são, em sua natureza, psicóides ― cunhados entre o psíquico e o orgânico em uma construção de interconexão.

Avançando nas ideias de Jung, Cambray nos apresenta em Sincronicidade (2013) um universo interconectado, onde natureza e psique ocupam uma região limítrofe, um locus fronteiriço dentro dos limites do psíquico e do orgânico. Leva-nos a uma concepção da psique como “entranhada na substancia do mundo” (CAMBRAY, 2013, p. 18).

Os fenômenos sincronísticos vêm carregados de um conhecimento absoluto (da fonte de toda sabedoria) que não foi transmitido pelos órgãos dos sentidos, mas constituem uma forma de conhecer inconsciente mediada por processos arquetípicos.

Nessa perspectiva o arquétipo torna-se o background profundo organizando a força para todo conhecimento, ou dos universos físicos e psicológicos; a própria psicologia se torna a guardiã das artes e ciências, guardando as chaves para os segredos cosmológicos e ontológicos.

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Portanto a teoria da sincronicidade busca apresentar ao mundo um princípio universal, como âmago da existência não só da existência humana, mas do mundo em si, valorizando a profunda interconexão entre todas as coisas.

Estes conceitos nos permitem demonstrar o quanto o ser humano está, na realidade, envolvido todo o tempo neste vasto mundo da natureza.

O homem moderno perdeu sua conexão com a natureza, envolvidos em uma sociedade narcísica de gratificação imediata, do vazio existencial, da liberdade sem limites, da aceleração e da alienação. Sintomas como a depressão, o stress e o medo, entre outros, sinalizam que a alma necessita de mais atenção.

Verena Kast (2016) aborda a ressonância como uma possibilidade de transmitirmos determinadas freqüências uns aos outros; somos tocados por algo e sentimo-nos um com aquilo que nos toca. Quando estamos apaixonados, experimentamos o estar em ressonância com outra pessoa, o vibrar na mesma freqüência. Esta profunda ressonância transmite a sensação de união ― e, às vezes, essa sensação se estende ao mundo inteiro. Quando este relacionamento consegue perdurar às fantasias e projeções e alcança uma dimensão amorosa e realística, o que também inclui as sombras, essa ressonância gera um “entre” que a autora chamou de eu relacional.

O eu relacional é um eu que surge entre duas pessoas quando estas se envolvem uma com a outra: Trata-se da interiorização da dinâmica de um relacionamento vivo e empenhado. Esse eu relacional é formado pelo relacionamento Eu-Tu, pelo encontro, na ressonância mútua e nos atos diários, naquilo que formamos e construímos juntos. Ressonância significa conscientizar-se do outro, influir sobre o outro e assim confirmar e questionar constantemente a própria identidade. (...) A própria identidade - refletida no outro - se torna visível. Mas ela não é apenas refletida, ela é também ativada, agitada, formada. Tornar-se eu por meio do Tu. (KAST, 2016, p. 25)

Martin Buber (1878-1965) foi o filósofo vienense que concebeu a existência humana a partir da dimensão da relação. Buber traz uma importante contribuição para a visão de homem e do mundo da Psicologia Fenomenológica (Trueb: 1952, 1973; Sborowitz: 1955; Stevens: 2001), tendo contribuído significativamente para construir os fundamentos de relacionamentos humanos responsáveis. Ele definiu sensivelmente as profundas questões humanas de relacionamento e sofrimento interpessoal e introduziu a proposição de que, no espírito de um diálogo responsável, Eu ― Tu, o Self é recompensado.

Para Buber existem duas atitudes básicas do homem ser-no-mundo: Eu-Tu e Eu-Isso, que são igualmente necessárias e complementares. Lidar com essa dupla atitude existencial implica: - de um lado, atender aos afazeres de nosso dia-a-dia, trabalhando, construindo, possuindo e guardando coisas, recebendo informações, etc., que caracterizam nossa atitude Eu-Isso; por outro, sentimos a falta inata das experiências Eu-Tu, através das quais nos realizamos como seres humanos.

A proposta buberiana de inclusão implica numa forma singular de responsabilidade com o outro. Estabelece-se, portanto, o papel da alteridade quando ela é compreendida a partir de seu caráter de participação no cosmo. A compreensão do fenômeno da relação implica um caráter de reciprocidade entre o Eu e o Tu como condição do mundo primordial.

Buber aborda em sua obra o “entre”, o locus do encontro com o outro, local não espacial que torna possível o “conhecer” o outro. (BUBER, 2004, p. 249).

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Para Buber, a palavra entre é a expressão mais adequada para o ethos (ética). Do encontro ético nasce a responsabilidade: como resposta ao outro e, ao mesmo tempo, como responsabilidade para com o outro. A responsabilidade transcende o nível moral para um nível mais amplo: a ética da reciprocidade.

O entre ou, como denomina Kast (cit.), o eu-relacional, está sempre em processo de transformação, muda com o tempo e com o relacionamento. Os envolvidos vivenciam este entre a partir seu próprio ponto de vista individual, mesmo quando o que é vivenciado é compartilhado. As projeções exercem um papel fundamental. As relações significativas vivenciadas pela pessoa são projetadas sobre esse Tu.

Ainda segundo Kast (cit.), quando não estamos em ressonância, o Tu se transforma em Isso, mas pode, por meio de um processo relacional, transformar-se em Tu.

O relacionamento Eu- Isso inclui o dia a dia compartilhado, interesses compartilhados, obras realizadas em conjunto (filhos, empreendimentos) os quais também são fundamentais para a vida das pessoas e tornam possíveis realizações que não teriam aconteceriam sem o Outro. Um participa da vida do outro sob a sua perspectiva.

A ressonância, fundamento deste encontro entre Eu e o Outro, manifesta-se não somente em encontros felizes, mas também em troca sincera e profunda. O Outro nos conta algo que ressoa em nós, que nos faz lembrar algo e então compartilhamos e criamos algo novo em conjunto. Nessas conversas, que se fundamentam numa ligação pelo inconsciente, em que a relação Eu-Isso não domina, um se envolve verdadeiramente com o outro, envolvidos no locus perturbador da alteridade. Quando nos envolvemos verdadeiramente com outra pessoa, nossa própria identidade é revivificada. Nós nos estendemos para a vida do outro e experimentamos a ressonância, mas também a solidão e a separação. Para que o eu relacional possa ocorrer é preciso tempo e abertura para distúrbios e perturbações. Estas perturbações são indícios importantes para o conhecimento de nós mesmos, dos nossos limites e fantasias.

Quando a relação Eu-Isso domina, o diálogo restringe-se apenas à solução de problemas. Não se pode ouvir verdadeiramente o Outro; o Eu envolvido apenas consigo mesmo não consegue ser tocado ou envolvido pelo Outro.

Empatia e ressonância estão intimamente ligadas. Senão quisermos apenas instrumentalizar, usar, explorar o Outro, mas mantermos um relacionamento respeitoso e inquietante da alteridade, a empatia é imprescindível.

Pesquisas recentes em neurociências demonstram que os humanos tendem a imitar e a sincronizar-se inconscientemente com o comportamento emocional de outras pessoas, especialmente pessoas com quem mantêm alguma intimidade. Estes estudos levaram à conclusão de que o Si-mesmo é inerentemente social e baseado na experiência intersubjetiva.

Segundo Cambray (cit.), a empatia não se restringe ao contágio ou transmissão de afetos; é muito mais complexa: Através da empatia intuímos o que uma pessoa está para fazer, como uma conversa se desenvolverá, como o outro se sente, sentimos dor quando o outro se machuca, reconhecemos emoções nas feições do outro, somos capazes de sentir como o outro.

É importante ressaltar que a empatia deve permitir uma simetria temporária, conectando Eu e Outro em um campo unificado, mas para que haja uma reflexão psicológica é necessário emergir desse estado de imersão. Uma ruptura desta simetria transitória precisa ocorrer.

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Uma pessoa que vivenciou pouca empatia pode ter dificuldades de se identificar com os sentimentos do outro. A imaginação é o caminho para desenvolvermos a empatia, quando mergulhamos nas histórias do Outro podemos encontrar em nossa fantasia ressonância com essas histórias. As histórias nos ensinam muito sobre o Outro e sobre nós mesmos.

As pessoas que têm a capacidade de serem empáticas com o Outro também possuem a capacidade de serem empáticas consigo mesmas. A empatia torna mais fácil que a pessoa tome consciência de seus sentimentos, o que lhes permite olharem para a situação que estão vivendo com algum distanciamento. Desta forma a pessoa reconhece o que é e abre caminho para uma solução criativa, relacionando-se com o Outro que existe em Si-mesmo.

As imaginações criam um vínculo entre os mundos interior e exterior, elas se encontram “entre” eles. Elas nos permitem estar conosco mesmos, mas também a imaginar o Outro, o seu mundo, aquilo que ele pensa e sente. (KAST, cit., p. 39).

A força da imaginação pode ter um efeito sobre o cérebro e pode provocar mudanças biológicas no corpo. Estudos recentes demonstram que durante a psicoterapia alteram-se estruturas e não apenas processos no cérebro. Nossas imaginações podem nos transformar e podem transformar também o mundo.

A ressonância com mundo nos leva a uma conexão com o que nos cerca e, através da imaginação, a vida exterior e a vida interior têm significado. No símbolo, o mundo e a psique, o dentro e fora conectam-se. Este aspecto inconsciente ligado ao símbolo é a expressão da alteridade, do imensurável, que nos preenche de emoções fortes e imagens estranhas que nos elevam acima do ordinário, e que sempre contém algo acima da nossa capacidade de compreensão. A partir dos símbolos conectamos nossa história pessoal com a história da humanidade, entrando em ressonância também com ela.

A falta de conexão do homem contemporâneo com seu substrato mitopoético o têm reduzido ao vazio e à perda de sentido.

“A falta de algo definitivo no centro da alma impele o ser humano em direção a atividades externas. ” (SIMMEL, 1900; in Kast, cit., p. 69)

“Vivemos hoje uma mediocridade aceitada, as decisões, mas também a percepção do mundo, aplainadas, tudo já está resolvido de alguma forma, mas não é percebido de forma consciente. ” (KAST, cit.).

Devemos dedicar atenção à imaginação atrofiada, moldada e socialmente aceita que dominou a sociedade contemporânea. As estruturas profundas da alma encontram-se cada vez mais enrijecidas. O que se cristaliza no reverso, ou seja, na sombra da aceleração que temos vivenciado hoje em dia é a estagnação, que se revela em lentidão, vazio e paralisia da alma. (KAST, cit.).

Quando o indivíduo mantém-se conectado com o próprio Self, um sentimento de identidade, de conexão com o mundo e da experiência do significado se mantém. Devemos estar atentos às necessidades da alma. Dedicarmos tempo para ouvirmos os temas ocultos de nossas almas, para onde nossos interesses e imagens nos levam, desfrutar de nossas experiências, tempo para a ressonância, para o convívio.

Jung reiteradamente insiste em que a individuação só pode dar-se no mundo e não leva a um isolamento do sujeito, implicando sempre na interação intersubjetiva, na comunicação humana profunda. É importante não esquecer que os arquétipos se constituem e ganham forma em situações de interação, só tendendo a funcionar como entidades independentes e autônomas em casos patológicos, pois, em contextos compartilhados, sua função natural é facilitar a interação e a comunicação.

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Por outro lado, somos constantemente alertados pelo autor dos perigos de regressão, contágio ou intoxicação psíquica, criados pela dependência mútua, perda de autonomia, massificação e fuga do confronto consigo próprio.

Parece-me que explorar o inconsciente, na relação com o Outro, é tão importante quanto experimentá-lo pela introversão através de sonhos ou imaginação ativa. A experiência da necessidade de pertencermos a um grupo é um anseio da alma. O indivíduo sente que pertence a algo maior, pode vivenciar tanto conformidade quanto singularidade, buscar auto sustentação, conviver com diferentes tipologias e pontos de vista, vivenciar situações numa concretude maior e, além disso, amplia-se o trabalho com as projeções e as possibilidades de um relacionamento genuíno. Nas bases desta busca está o sentimento de pertença.

“A alma busca por uma experiência profunda de comunidade como uma de suas necessidades mais fortes. ” (BARCELLOS, 2009, p. 43). Gustavo Barcellos retoma Adler e sua “preciosa noção” (Barcellos, cit.) de Gemeinschaftsgefuh, sentimento de comunidade, como um sentido expandido de identidade.

Hillman, remetendo-se a Adler, afirma que a psique é inerentemente altruísta e que o ser social é uma necessidade do ser humano. E relembra-nos ainda que entramos em comunhão com os outros em função da empatia de nossos erros e de nossa inferioridade. Sendo assim,

(...) o sentido de imperfeição, a sombra de Jung, é a única base possível para o objetivo do sentimento de comunidade de Adler. (HILLMAN, cit., p. 175).

A psicologia arquetípica tem apontado na direção da alma do mundo, ou seja, a anima mundi como uma perspectiva de trazer de volta a alma para seu locus natural, ampliando a noção de realidade psíquica para um mundo objetivo almado. (HILLMAN, 1983).

O foco tradicional na relação ego-self, com ênfase na personalidade individual ou cultural, está expandindo-se para incluir contemplações do Self do mundo. Atualmente o campo de reflexão e pesquisa que está envolvido na busca por uma visão de Homem que integre estes aspectos é a Ecopsicologia.

Segundo Theodore Roszak, um dos mais importantes idealizadores da Ecopsicologia, existe uma inteligência ecológica maior, tão profundamente enraizada nas fundações da psique como os instintos sexuais e agressivos. A psique está enraizada dentro do que chamamos de Anima Mundi.

A Ecopsicologia, baseada no conceito Junguiano de inconsciente coletivo, afirma que na raiz da nossa psique existe uma conexão básica com a natureza. O conceito do inconsciente ecológico funciona como a presença da natureza na psique, que se expressa para o mundo natural com a mesma disposição ética reservada aos seres humanos. Segundo Roszak, essa dimensão da psique é o campo natural das experiências de reciprocidade com o meio e guarda os sentimentos e afetos que nossa espécie sempre dirigiu aos não – humanos.

A ecologia é o estudo da conectividade, a natureza ao nosso redor revela níveis e níveis de complexidade estruturada, habitamos um universo ecológico densamente conectado, onde nada existe em estado de isolamento.

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A ilusão da separação que nós criamos de maneira a totalizar as palavras “Eu sou” é parte de nosso problema no mundo moderno. Nós sempre estivemos mais distantes de nossos padrões no globo do que nossos egos temerosos podem tolerar . . . Preservar a natureza é preservar a matriz através da qual podemos experimentar nossas almas e a alma do Planeta Terra. (Walter CHRISTIE. Apud Roszak,p. 12, 1995).

Os padrões arquetípicos do mundo natural muito têm a nos ensinar sobre a psique objetiva; a diversidade da natureza mantém a imaginação humana viva, o processo criativo animado e a tolerância pelas diferenças. Ao encontrar um lugar entre humano e natureza, uma janela abre-se e nós somos profundamente tocados. Nós nos lembramos de nossa herança psíquica, enraizada essencialmente nos ritmos da natureza.

Sabemos que a ampliação da consciência individual de cada um resulta em uma relação mais solidária e ética com a humanidade e com a natureza. Se os alicerces da consciência estão no inconsciente, nele também se encontram as bases da consciência ética. Através da individuação ocorre uma transformação na relação intersubjetiva do indivíduo, que sente ainda mais profundamente a necessidade de uma comunicação com o Outro.

A ética brota naturalmente da consciência de uma pessoa que se percebe separada e preocupada com a maneira como se relaciona com o Outro e com a natureza. Este ser que se vê separado avançou e, seguindo a ética natural advinda da psique objetiva, percebe a existência humana como um aspecto de um organismo cósmico unitário.

Sabemos hoje que, em muitos níveis, a vida neste planeta fundamenta-se em interdependência mútua e que todo acontecimento tem repercussões comunitárias e mundiais.

A Psicologia está agora trazendo o sujeito de volta para o mundo. A Psicologia Arquetípica tem buscado despertar a Psicologia moderna a retomar a noção platônica de um mundo almado, e de que a alma do indivíduo não pode nunca avançar além da alma do mundo, porque elas são inseparáveis. Qualquer alteração na psique humana ressoa na psique do mundo. (Hillman, 1993, p. 16 Cidade e Alma)

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