Norberto Tiago Gonçalves Ferraz A Morte e a Salvação da Alma na ...

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Universidade do Minho Instituto de Ciências Sociais Norberto Tiago Gonçalves Ferraz A Morte e a Salvação da Alma na Braga Setecentista Abril de 2014

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  • Universidade do Minho Instituto de Cincias Sociais

    Norberto Tiago Gonalves Ferraz

    A Morte e a Salvao da Alma na Braga Setecentista

    Abril de 2014

  • Universidade do Minho Instituto de Cincias Sociais

    Norberto Tiago Gonalves Ferraz A Morte e a Salvao da Alma na Braga Setecentista

    Tese de Doutoramento em Histria rea do Conhecimento Idade Moderna Trabalho efectuado sob a orientao da Professora Doutora Maria Marta Lobo de Arajo

    Abril de 2014

  • iii

    Agradecimentos

    O percurso efetuado, ao longo de quatro anos, at concluso desta investigao de

    doutoramento, no teria sido possvel sem a colaborao preciosa de vrias pessoas e

    instituies. O seu auxlio foi fundamental para levar a bom termo este trabalho. A eles quero

    prestar os meus respeitosos agradecimentos.

    Fundao para a Cincia e Tecnologia, pela bolsa concedida que permitiu a sua

    realizao.

    Aos procos de So Vicente em funes durante o perodo de tempo do doutoramento,

    aos responsveis das confrarias desta igreja e ao seu sacristo, pelo pronto acesso que me

    possibilitaram aos fundos documentais a depositados.

    Aos responsveis pela irmandade de Nossa Senhora-a-Branca e sua igreja, bem como ao

    seu sacristo, agradeo igualmente as condies que me facultaram para a anlise dos

    respetivos fundos documentais. s tcnicas do Tesouro-Museu da S de Braga e ao provedor da

    irmandade de Santa Cruz, pela possibilidade de consulta detalhada dos arquivos sua guarda.

    No mesmo agradecimento incluo tambm os funcionrios destas instituies que me auxiliaram

    durante o perodo de recolha de dados.

    Do mesmo modo, manifesto o meu agradecimento aos procos de So Vtor e So

    Lzaro pela pronta anuncia consulta dos seus fundos arquivsticos.

    No me esqueo igualmente do contributo auxiliador dos funcionrios das bibliotecas e

    restantes arquivos onde pesquisei.

    Uma palavra especial de agradecimento minha orientadora, Doutora Maria Marta Lobo

    de Arajo, pelo seu apoio ao planeamento e execuo deste trabalho, bem como pelas palavras

    de nimo com que o guiou.

    Aos meus familiares e amigos pelo seu incentivo a este projeto. Em particular minha

    me pelo contributo fundamental na reviso textual, bem como aos familiares que me acolheram

    em Frana por ocasio do alargamento da pesquisa bibliogrfica. Em concluso, o meu

    agradecimento vai para todos aqueles que direta ou indiretamente deram o seu contributo,

    incentivo e auxlio, para tornar possvel esta dissertao.

  • iv

    A morte e a salvao da alma na Braga setecentista

    Resumo

    O nosso trabalho resulta da investigao realizada sobre a morte em Braga no sculo

    XVIII, dando a conhecer as suas diferentes vivncias e a forma como todos os fiis almejavam a

    salvao da alma.

    A morte implicava uma experincia de vida a dois nveis: o corporal, relacionado com os

    rituais e procedimentos a ter com os restos mortais dos defuntos; e o espiritual, no qual a

    importncia da salvao da alma fazia movimentar um conjunto diversificado de indivduos e

    coletividades, em torno de prticas cultuais, tendo por fim a entrada das almas no Paraso. Estas

    duas dimenses da vivncia social da morte eram enquadradas, na Idade Moderna, pela

    pregao religiosa da Igreja Catlica, que ento consagrou o Purgatrio como etapa

    imprescindvel de passagem para todas as almas que deviam ser purificadas, antes de

    alcanarem a glria eterna. A estadia das almas neste local de expiao e sofrimento podia ser

    abreviada, segundo os preceitos teolgicos, atravs da celebrao de servios religiosos, como

    as missas.

    Os fiis deviam seguir diariamente os ditmes comportamentais e espirituais da Igreja,

    como forma de estarem preparados para o surgimento da morte. Todavia, quando se tornasse

    patente que a vida das pessoas estava em risco, estas deviam solicitar a presena do sacerdote

    para dele receberem os sacramentos e o conforto espiritual necessrio aos ltimos momentos.

    Dos familiares, amigos e vizinhos esperava-se igualmente a sua presena e apoio, atravs das

    suas oraes, para que o agonizante fosse acolhido por Deus. Ao mesmo tempo, o moribundo

    devia efetuar o testamento, por forma a deixar definidas no s as questes materiais, como

    tambm as determinaes relativamente ao destino do corpo e aos socorros espirituais para a

    alma, que deviam ter lugar. O indivduo encomendava-se a Deus e pedia o auxlio dos

    intercessores celestes para a sua causa.

    O cuidado e o respeito devidos aos restos mortais dos defuntos eram fundamentais.

    Procurmos, pois, apresentar de que modo os habitantes da cidade de Braga pretendiam ver os

    seus corpos amortalhados e velados. O acompanhamento dos defuntos sua ltima morada era

    um momento solene, para o qual eram convocados familiares e amigos, mas tambm o clero e

    as confrarias da cidade. As igrejas paroquiais e confraternais constituam-se como os principais

    locais de repouso dos defuntos, aguardando o juzo final. De facto, muitas confrarias

  • v

    bracarenses detinham um papel importante, quer no acompanhamento sepultura dos seus

    confrades e de outros fiis falecidos, quer no tumulamento dos mortos.

    Mas se o destino do corpo era importante, a preocupao com a salvao da alma era

    fundamental. Assim, analismos as missas solicitadas pelos fiis para este fim e a sua reduo

    no final do sculo XVIII. Neste aspeto particular, as confrarias locais desempenhavam um papel

    importante na assistncia espiritual s almas dos seus membros, determinando a celebrao de

    sufrgios que conheceram um forte acrscimo, na primeira metade setecentista. Estas

    instituies constituram-se igualmente como recetoras de legados de missas perptuas,

    destinadas salvao da alma. Todavia, a segunda metade do sculo XVIII assistiu a uma

    reduo no nmero de legados recebidos, bem como a uma crescente dificuldade confraternal

    no cumprimento das obrigaes pias por eles determinadas. Este facto, associado reduo dos

    sufrgios no perptuos, solicitados para depois do enterro, so sintomas de uma crise na forma

    como a vivncia da morte e do Purgatrio estavam estruturados.

    Detivemos igualmente o nosso enfoque sobre os principais locais de celebrao

    sufrgica, analisando a relevncia dos altares privilegiados. Procurmos tambm estudar as

    caratersticas dos elementos do clero, em especial os que estavam ao servio confraternal, os

    quais possibilitavam o funcionamento regular deste setor scio-religoso e as suas relaes, nem

    sempre pacficas, com os indivduos e organizaes que serviam.

  • vi

    Death and the soul salvation in XVIII century Braga

    Abstract

    Our work is the result of an investigation done about death in Braga in the XVIII century,

    making to know the diferent ways of living it and the way how all the faithful wanted their souls

    salvation.

    Death implicated two levels of experiencie: the body one, related to the rituals and

    procedures to have with the mortal remains of the dead; and the spiritual, in wich the importance

    of soul salvation made a diversified group of individuals and coletivities move, around cultual

    practices, with the purpose of the entry of souls in Paradise. These two dimensions of the social

    experience of death were backgrounded, in Modern Age, by the religious preaching of the

    Catholic Chruch, wich then consacrated Purgatory as an indispensable step of passage for all

    souls that needed to be purified, before reaching eternal glory. The permanence of souls in this

    place of expiation and suffering could be shortened, accordind to theological precepts, through

    the celebration of religious services, like the masses.

    The faithful should always follow the comportamental and spiritual rules odf the Church,

    so they could be prepared for the apearance of death. However, when it was plain obvious that

    ones life was at risk, he should demand the presence of a priest to receive the sacraments and

    the necessary spiritual confort for his last moments. People hoped that their relatives, friends and

    neighbours were also present, and could support with their prayers, in order to be welcomed in

    the after life by God. At the same time the dying one should made his testament, in a way that

    his material matters were defined, but also to determinate his body destiny and the spiritual help

    that should take place. The individual delivered himself to God and asked the help of celestial

    intercessors, for his cause.

    The care and respect towards the mortal remains fo the dead, were fundamental. So, we

    wanted to present in wich way the habitants of the city wanted to see their bodies dressed up

    and vigilated. The acompaniement of the deceased to their last adress was a solenm ocasion, to

    wich relatives, friends but also the clergy and the confraternities were called. The parochial and

    confraternal churches were the main rest places for the deceased, waiting the final judgement. In

    fact, many confraternities of Braga had an importante paper, in the acompaniement of their dead

    coleagues and other faithful, and in the burial of the deceased.

  • vii

    But if the destiny of the body was important, the preocupation with the salvation of the

    soul was fundamental. In so, we analised the masses asked by the faithful with this purpose and

    their reduction in the latest parto of the XVIII century. In this particular topic, the local

    confraternities had an important paper in the spiritual assistance to the souls of their brethrens,

    determinating the celebration of masses that saw a great growing, on the first half of the XVIII

    century. These institutions also made themselves as receivers of legacys of perpetual masses,

    destinated to the salvation of the soul. However, the second half of the XVIII century saw a

    reduction in the number of legacys received, and a growing confraternal dificulty in the fulfillment

    of the pious obligations determinated by them, as well. This fact, associated with the reduction of

    the non perpetual masses, solicitated to be celebrated after the burial, are syntomns of a crisis in

    the way how the living experiencie of death and the idea of Purgatory were structured.

    We also stood our focus on the main places of celebration, analising the relevance of the

    privileged altars. We also looked to study the characteristics of the clergy elements, particulary

    those who were at confraternal service and that made possible the regular running of this social-

    religious sector, as well as their relations, not always peaceful, with the individuals and

    organizations that they worked for.

  • viii

    ndice Geral

    Agradecimentos p. iii

    Resumo p. iv

    Abstract p. vi

    Indce Geral p. viii

    Indce de Quadros p. xi

    Indce de Gravuras p. xiv

    Abreviaturas p. xv

    Introduo p. 1

    Captulo I

    A morte e a salvao da alma: o Purgatrio p. 12

    Captulo II

    O movimento confraternal na Idade Moderna: solidariedades da vida e na morte p. 53

    2.1 O movimento confraternal bracarense p. 71

    2.2 As confrarias das Almas de Braga p. 87

    2.2.1 Os mecanismos de atuao das confrarias das Almas bracarenses p. 103

    Captulo III

    A passagem da alma do mundo dos vivos para o dos defuntos e o destino final do corpo p. 123

    3.1.1 A vivncia dos ltimos momentos p. 123

    3.1.2 A escolha da mortalha fnebre p. 135

    3.2 O anncio sonoro da morte: o toque de sinos p. 150

  • ix

    3.3. O cortejo fnebre: o acompanhamento dos defuntos sepultura p. 162

    3.3.1 Os acompanhamentos confraternais p. 177

    3.3.2 Discrdias e conflitos nos enterros p. 203

    3.3.3 Os alugueres dos esquifes p. 212

    3.4 A ltima morada dos defuntos: os locais de sepultura p. 216

    3.4.1 Os sepultamentos nas igrejas confraternais p. 237

    Captulo IV

    Modalidades para alcanar a salvao p. 262

    4.1 Os intercessores p. 262

    4.2 Os servios fnebres e os sufrgios celebrados p. 272

    4.3 Os legados pios perptuos p. 299

    Captulo V

    Os locais de celebrao e os celebrantes p. 333

    5.1 Os locais de celebrao: igrejas e altares p. 333

    5.2 Os celebrantes: os capeles p. 349

    5.2.1 Os conflitos com os capeles p. 374

    5.3 Os ajudantes das celebraes: os servos p. 389

    5.3.1 Os salrios dos servos p. 400

    Captulo VI

    As manifestaes pias confraternais de salvao coletiva e individual p. 407

    6.1 O aniversrio das irmandades p. 407

    6.2 Outras manifestaes pias de salvao coletiva p. 423

    6.2.1 O pedido de indulgncias p. 430

  • x

    6.3 As missas pelos irmos das confrarias p. 443

    Captulo VII

    As transformaes ocorridas no campo da salvao da alma em Braga, na segunda

    metade do sculo XVIII p. 483

    7.1 As leis pombalinas e a diminuio de investimento na salvao da alma p. 483

    7.2 As dificuldades crescentes na celebrao dos compromissos pios perptuos p. 500

    7.3 A procura de solues: os Breves de Reduo p. 522

    Concluso p. 541

    Anexos p. 550

    Anexo 1: Mortalhas solicitadas pelos testadores bracarenses no sculo XVIII p. 550

    Anexo 2: Locais de sepultura (igrejas, conventos e capelas) p. 552

    Anexo 3: Nmero de missas de corpo presente (excluindo as includas nos ofcios) p. 554

    Anexo 4: Locais de celebrao das missas de corpo presente, incluindo as celebradas

    nos ofcios (sculo XVIII) p. 556

    Anexo 5: Locais de celebrao dos sufrgios aps o enterro (sc. XVIII) p. 558

    Anexo 6: Locais de celebrao das missas dos legados perptuos (sc. XVIII) p. 560

    Anexo 7: Missas celebradas no aniversrio das confrarias de So Vicente,

    Santas Chagas, Nossa Senhora do e das Almas de So Vtor p. 562

    Anexo 8: Legados reduzidos na confraria de Santa Cruz por via judicial eclesistica

    nacional (1780) p. 563

    Glossrio p. 565

    Fontes Documentais p. 567

    Fontes Impressas p. 581

    Dicionrios e Enciclopdias p. 582

    Bibliografia p. 583

  • xi

    ndice de Quadros

    Introduo

    Quadro 1: Confrarias bracarenses analisadas p. 4

    Captulo II

    Quadro 1: Receitas das confrarias bracarenses em 1762 p. 86

    Quadro 2: Receitas e despesas das confrarias das Almas de Braga em 1762 p. 91

    Quadro 3: Esmolas da juza Ana Maria de Magalhes p. 101

    Quadro 4: Peditrios dos mordomos e servos das confrarias das Almas de So Joo

    da Ponte e So Vtor (1710-1800) p. 107

    Quadro 5: Rendimento dos responsos rezados no dia de Fiis de Deus na confraria

    das Almas de So Vtor (1724-1800) p. 110

    Captulo III

    Quadro 1: Razes invocadas para a elaborao do testamento p. 131

    Quadro 2: Preo das mortalhas p. 140

    Quadro 3: Elementos presentes nos acompanhamentos de defuntos p. 162

    Quadro 4: Nmero de clrigos acompanhantes p. 169

    Quadro 5: O pedido da tumba pelos testadores p. 175

    Quadro 6: Acompanhamentos pagos nas irmandades de Santa Cruz e So Vicente p. 191

    Quadro 7: Acompanhamentos pagos nas irmandades de So Crispim e de Nossa

    Senhora do do Hospital p. 193

    Quadro 8: Acompanhamentos pagos nas irmandades do Menino Deus e

    So Gonalo e das Almas de So Joo da Ponte p. 194

  • xii

    Quadro 9: Montantes dos acompanhamentos e alugueres do esquife da irmandade

    das Almas de So Vtor p. 197

    Quadro 10: Alugueres do esquife da irmandade de So Vicente p. 213

    Quadro 11: Locais de sepultura a nvel geral p. 218

    Quadro 12: Motivos de escolha da sepultura p. 230

    Quadro 13: Deposio dos defuntos p. 233

    Quadro 14: Locais especficos de deposio dos defuntos p. 234

    Captulo IV

    Quadro 1: Intercessores pela alma nos testamentos bracarenses p. 262

    Quadro 2: Servios religiosos solicitados desde o falecimento at ao enterro p. 273

    Quadro 3: Nmero de clrigos nos ofcios sem missas includas p. 276

    Quadro 4: Nmero de clrigos nos ofcios que incluam missas p. 278

    Quadro 5: Celebrao de outros servios religiosos aps o enterro p. 283

    Quadro 6: Nmero de sufrgios no perptuos aps o enterro p. 284

    Quadro 7: Intenes das missas de corpo presente p. 287

    Quadro 8: Intenes das missas celebradas depois do enterro p. 289

    Quadro 9: Intenes familiares das missas de corpo presente e posteriores p. 293

    Quadro 10: Preos das missas de corpo presente p. 295

    Quadro 11: Preos das missas celebradas depois do enterro p. 296

    Quadro 12: Forma de estabelecimento dos legados pios confraternais p. 300

    Quadro 13: Legados pios perptuos recebidos pelas confrarias de So Vicente, Santa

    Cruz, Bom Jesus dos Santos Passos, Nossa Senhora-a-Branca e Almas de So Vtor p. 302

    Quadro 14: Montantes pagos pela celebrao de missas quotidianas p. 312

    Quadro 15: Montantes pagos pela celebrao de missas semanais p. 315

    Quadro 16: Intenes das missas perptuas p. 317

  • xiii

    Quadro 17: Intenes familiares das missas dos legados perptuos confraternais p. 321

    Quadro 18: Categorias scio-profissionais dos instituidores de legados p. 322

    Captulo VI

    Quadro 1: Nmero de missas pelos confrades defuntos de So Vicente, de Santa Cruz,

    de So Crispim e So Crispiniano, das Santas Chagas da Cividade e do Bom Jesus

    dos Santos Passos p. 445

    Quadro 2: Nmero de confrades que solicitaram tochas para o velrio nas confrarias

    de Santa Cruz, de So Vicente, do Bom Jesus dos Santos Passos, de So Crispim

    e So Crispiniano e de Nossa Senhora do p. 466

    Quadro 3: Referncias a missas em atraso pelos irmos defuntos das confrarias

    do Santo Nome de Deus e So Gonalo, So Tiago da Cividade, Santo Homem Bom p. 474

    Quadro 4: Referncias a missas em atraso pelos irmos defuntos das confrarias

    de So Vicente, Santa Cruz, Nossa Senhora-a-Branca e Bom Jesus dos Santos Passos p. 476

    Captulo VII

    Quadro 1: Legados estabelecidos nas confrarias bracarenses mais importantes,

    no sculo XVIII p. 491

    Quadro 2: Legados institudos em outras confrarias bracarenses do sculo XVIII p. 493

    Quadro 3: Preo das missas de legados das confrarias bracarenses p. 515

    Quadro 4: Reduo de legados da confraria de So Crispim e So Crispiniano da S

    em 1791 p. 525

    Quadro 5: Reduo de legados recebidos em testamento na confraria de Santa Cruz

    (1780) p. 531

    Quadro 6: Reduo de legados provenientes da confraria do Bom Jesus dos

    Santos Passos (1780) p. 534

  • xiv

    Indce de Gravuras

    Gravura 1: As almas sofredoras do Purgatrio, Estatutos da confraria das Almas de

    So Vicente, 1667 p. 47

    Gravura 2: Retbulo do altar das almas da S de Braga p. 94

    Gravura 3: Ossadas encontradas na igreja da S de Braga p. 220

    Gravura 4: Claustro de Santo Amaro da S de Braga p. 223

    Gravura 5: Casula de sacerdote utilizada nas celebraes, Museu da S p. 280

    Gravura 6: Busto-relicrio de So Pedro de Rates, Museu da S p. 338

    Gravura 7: Indulgncias das sete igrejas da cidade de Braga, Museu da S p. 441

    Gravura 8: Folha de rosto dos Estatutos da confraria das Santas Chagas, 1719 p. 505

  • xv

    Abreviaturas

    ADB Arquivo Distrital de Braga

    AFTUCB Arquivo da Faculdade de Teologia da Universidade Catlica de Braga

    AINSB Arquivo da Igreja de Nossa Senhora-a-Branca

    AISB Arquivo da Igreja da S de Braga

    AISC Arquivo da Igreja de Santa Cruz

    AISL Arquivo da Igreja de So Lzaro

    AISV Arquivo da Igreja de So Vtor

    AISVTE Arquivo da Igreja de So Vicente

    ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo

  • 1

    Introduo

    A morte uma componente indissocivel da condio humana. J na pr-histria o

    homem comeara a estabelecer certos rituais prestados no cuidado dos mortos. Posteriormente,

    as primeiras civilizaes manifestaram uma preocupao crescente com o destino dos defuntos

    no outro mundo. Ao longo dos sculos, esta questo foi vivida e percecionada de diferentes

    modos, enquadrados em contextos religiosos, sociais, econmicos e polticos especficos. Assim,

    sendo um fator perene s manifestaes scio-culturais verificadas ao longo da evoluo da

    humanidade, era natural que os investigadores se debruassem sobre a vivncia da morte no

    passado. A Idade Moderna, pautada por diferentes concees crists acerca do alm, que

    emergiram aps a reforma protestante e o Conclio de Trento, tem oferecido um importante

    campo de investigao, destacando-se os trabalhos analticos levados a cabo por autores

    franceses, espanhis e ingleses.

    Do mesmo modo, tambm em Portugal se tm produzido estudos focalizados nesta

    temtica, centrados na anlise da realidade a nvel local. Outros trabalhos realizados, ainda que

    no fossem diretamente centrados sobre o problema do fim da vida ao longo da histria,

    focaram-se igualmente sobre esta questo, inserida numa perspetiva complementar ao estudo

    de instituies como a Igreja, as Misericrdias, as irmandades ou as ordens religiosas. Ora,

    relativamente cidade de Braga, a questo da temtica da morte tem sido abordada igualmente

    nesta perspetiva. Os trabalhos efetuados so muito poucos, todavia possibilitam uma primeira

    perceo da vivncia da morte na cidade ao longo dos sculos. Todavia, faltavam ainda estudos

    que procurassem estudar este fenmeno, de forma profunda e alargada, projeto que nos

    propusemos desenvolver para o sculo XVIII.

    Como sabido, Braga, desde o fim Idade Antiga, tornou-se cabea de diocese,

    constituindo-se como um dos mais antigos e importantes centros religiosos e clericais do

    catolicismo peninsular. O seu devir histrico ficou infalivelmente marcado pelo peso da existncia

    e atividade de um poderoso lder temporal e episcopal, como era o arcebispo local. A este nvel,

    o sculo XVIII ficou marcado pelo exerccio de dois arcebispos pertencentes casa real: D. Jos

    de Bragana (1741-1756) e D. Gaspar de Bragana (1758-1789), demonstrando a

    proeminncia poltica que a titularidade deste cargo ento alcanou. Todavia, o final do sculo

    assistiria a reduo dos seus poderes temporais, decidida pelo estado aquando da entronizao

    de D. Frei Caetano Brando (1790-1805).

  • 2

    Por outro lado, a Idade Moderna, aps o Conclio de Trento em meados do sculo XVI,

    viu surgir, no mundo catlico, uma crescente preocupao com a salvao da alma, depois da

    Igreja ter reforado e confirmado a existncia do Purgatrio, incentivando o seu culto, ao invs

    do que sucedeu nos pases que seguiram o protestantismo. A preocupao dos fiis com o

    destino final da alma era, pois, um fator que devia guiar o seu quotidiano. Todavia, como

    veremos, o sculo XVIII ficou marcado pelo incio de uma crise neste modo de vivncia religiosa

    e social do catolicismo. Como se teriam manifestado estes factos, na Braga setecentista?

    Na verdade, os objetivos principais que nortearam a elaborao desta tese foram no

    sentido de conhecer e analisar como os bracarenses deste sculo vivenciavam a morte, quer ao

    nvel da dimenso corporal, quer ao nvel da dimenso espiritual. Como se preparavam para os

    ltimos instantes de vida? Que rituais envolviam o cuidado com os restos mortais dos defuntos?

    E que mecanismos religiosos eram postos em ao, individual e coletivamente, para as almas

    alcanarem o caminho da salvao?

    Com o fim de levarmos a cabo esta investigao decidimos proceder ao estudo e anlise

    de fontes documentais conservadas em diferentes arquivos. Em primeiro lugar, para podermos

    compreender diversas dimenses sobre a temtica da morte e da salvao da alma foi

    imperativo procedermos a um estudo dos testamentos das parquias da cidade. De facto, a

    anlise testamental permitiu abordar e investigar vrios aspetos sobre o tema que nos

    propusemos estudar, sendo possvel detetar as tendncias ento verificadas. Estes documentos

    possibilitaram-nos responder a vrias questes, inseridas em objetivos especficos deste

    trabalho. Atravs dos testamentos, os habitantes locais exprimiam o modo como devia ser

    tratado o seu corpo, bem como a forma cerimonial atravs da qual devia ser acompanhado at

    sua ltima morada. Quais as principais mortalhas solicitadas? Que grupos-chave eram

    escolhidos para os acompanhamentos dos defuntos? Para alm destes aspetos, a anlise de tais

    documentos contribuiu decisivamente para conhecermos o destino final dos restos mortais dos

    defuntos. Ou seja, quais os principais locais de sepultura determinados pelos testadores da

    poca? Haveria templos que suscitavam maior procura, enquanto locais de eterno descanso? E a

    que critrios religiosos e sociais obedecia o tumulamento dos defuntos?

    O estudo testamental no abriu somente portas para a compreenso relativa ao destino

    dos corpos. Nestes documentos os fiis manifestavam igualmente a sua crena na f e dogmas

    catlicos e apelavam para os intercessores celestes que podiam contribuir para a salvao da

    sua alma, no momento do juzo individual. Que intercessores eram esses? Encontraremos

  • 3

    figuras-chave da teologia e dos santos da igreja Catlica, a quem os habitantes de ento

    confiavam a sua salvao? Por outro lado, os homens e mulheres pretendiam no apenas salvar

    a alma da condenao eterna, como tambm libert-la posteriormente das penas do Purgatrio.

    Para alcanarem estes dois objetivos determinavam, nas suas ltimas vontades, a celebrao de

    servios religiosos, em quantidades e qualidades que deixavam expressas nesses documentos.

    Assim, quais foram os servios solicitados pelos bracarenses, para benefcio da sua alma? Qual

    a sua evoluo quantitativa e qualitativa ao longo da centria? Que custo representava para os

    indivduos? Estes servios eram apenas destinados salvao das almas dos testadores? E em

    que locais deviam ser celebrados?

    A anlise testamental foi possibilitada pelo arquivo distrital local, atravs do fundo dos

    testamentos de provedoria. Este fundo era constitudo, relativamente ao sculo XVIII, por cerca

    de 3600 testamentos, dos quais analisamos uma amostra de 222 exemplares, correspondendo

    este nmero a cerca de 6% dos testamentos setecentistas acima referidos. Todavia, a anlise

    testamental no se circunscreveu aos que estavam depositados deste fundo. Socorremo-nos

    igualmente de mais 28 documentos similares transcritos em dois livros includos no arquivo da

    S de Braga. No total, analismos 250 testamentos. A diviso analtica, deste quantitativo

    documental, seguiu a seguinte metodologia: dividimos a centria em cinco perodos de 20 anos

    e, em cada um dos mesmos, estudmos 50 testamentos. Foi, portanto, nosso propsito

    estabelecer uma anlise equitativa ao longo do sculo XVIII. Devido impossibilidade de, em

    tempo til, estudarmos todos os testamentos existentes, impunha-se uma seleo com critrios.

    A referncia ao arquivo da S serve-nos para abordar tambm o segundo enfoque da

    nossa investigao, centrada no papel desempenhado pelas confrarias locais no campo da

    morte. Efetivamente, estas instituies prestavam auxlio caritativo e espiritual aos seus

    membros na hora da morte, quer atravs da sua participao nos acompanhamentos dos

    irmos defuntos sepultura, bem como na celebrao de missas de sufrgio pela sua alma.

    Para alm disso, as organizaes confraternais receberam legados pios, com os quais se

    comprometiam a mandar rezar, a ttulo perptuo, missas pelas almas dos respetivos legatrios.

    Como na Idade Moderna muitos indivduos procuravam inscrever-se nestas organizaes, a fim

    de poderem desfrutar destes benefcios, o estudo das irmandades bracarenses era fundamental.

    Tal como os testamentos, tambm as fontes confraternais permitiram dar resposta a certas

    questes e objetivos deste trabalho. Qual a evoluo dos socorros espirituais destinados

    salvao da alma, concedidos pelas confrarias aos seus membros, aps a morte? Existiam

  • 4

    somente apoios de cariz individual a cada irmo? Ou as irmandades determinavam tambm

    cerimnias que sufragavam as almas de todos os confrades em conjunto? Que critrios estavam

    subjacentes atividade dos sacerdotes recrutados para este efeito? Por outro lado, relativamente

    s fundaes perptuas institudas, procurmos analisar as caratersticas econmico-financeiras

    que as sustentavam, o perfil dos instituidores, a periodicidade das celebraes e o mbito das

    suas intenes sufrgicas.

    Para responder a estas questes, trabalhmos nos arquivos das igrejas de So Vicente,

    da S, de Nossa Senhora-a-Branca, de Santa Cruz, de So Lzaro e de So Vtor, para podermos

    estudar as fontes documentais dos fundos confraternais a depositados. Para alm destes

    arquivos, consultmos tambm o da Faculdade de Teologia da Universidade Catlica de Braga,

    onde igualmente pudemos avaliar documentao relativa a estas instituies. Os livros de

    estatutos, de atas das mesas, das receitas e despesas, bem como os de missas pelos confrades

    defuntos e de missas de legados, entre outros, constituram instrumentos de trabalho

    extremamente teis para os objetivos a que nos propusemos. No quadro 1 enumermos as

    confrarias includas no mbito desta investigao.

    Quadro 1: Confrarias bracarenses analisadas Confrarias Fundao Extino Almas da S 1723 Desconhecido Almas de So Lzaro Desconhecido Uniu-se das Almas de So Vtor em

    1776. Almas de So Joo da Ponte Anterior a 1701 Depois de 1800

    Almas de So Vicente 1666 Em atividade recente Almas de So Vtor 1704 Em atividade no sculo XX Bom Jesus dos Santos Passos Fins do sculo XVI Uniu-se de Santa Cruz em 1772 Nossa Senhora-a-Branca Anterior a 1701 Em atividade. Nossa Senhora da Ajuda 1613 Uniu-se em 1753 de Nossa

    Senhora da Graa Nossa Senhora da Boa Memria da S 1634 Em atividade no ano de 1800 Nossa Senhora da Boa Nova Desconhecido Uniu-se de Nossa Senhora-a-Branca

    em 1772 Nossa Senhora da Paz da S Desconhecido Desconhecido Nossa Senhora do Bom Despacho da capela de So Sebastio

    Desconhecido Uniu-se de Nossa Senhora-a-Branca em 1794

    Nossa Senhora do (ou da Expectao) do Hospital

    Anterior a 1701 Uniu-se de Nossa Senhora-a-Branca entre 1771-1779

    Nossa Senhora do Rosrio da S Anterior a 1701 Em atividade no ano de 1800 Santa Ana Anterior a 1701 Uniu-se dos Santos Passos em

    1737 Santa Cruz 1581 Em atividade. Santas Chagas da Cividade 1597 Uniu-se de Santa Cruz em 1774 Santssimo Sacramento da S Anterior a 1701 Em atividade em 1800 Santssimo Sacramento de So Vtor Desconhecido Em atividade em 1800 Santo Amaro da S Anterior a 1701 Em atividade em 1800 Santo Antnio de So Vtor Desconhecido Desconhecido

  • 5

    Santo Homem Bom Anterior a 1701 Uniu-se de So Vicente em 1783 Santo Nome de Deus e So Gonalo (de So Vtor)

    Anterior a 1701 Uniu-se de Santa Cruz em 1776

    So Bento do convento do Salvador Desconhecido Desconhecido

    So Crispim e So Crispiniano 1629 Em atividade no ano de 1800 So Gonalo do Recolhimento de Santa Maria Madalena

    1601 Uniu-se do Santo Nome de Deus em 1733

    So Pedro dos Clrigos 1556 Desconhecido So Sebastio de So Vtor Desconhecido Uniu-se das Almas de So Vtor em

    1775 So Tiago da Cividade Anterior a 1701 Uniu-se de Santa Cruz em 1794 So Tiago de So Vtor Desconhecido Em atividade em 1800 So Toms de Aquino Desconhecido Desconhecido So Vicente Anterior a 1701 Em atividade. So Vtor Desconhecido Desconhecido Senhor das Necessidades de So Vtor Desconhecido Em atividade em 1800

    Fonte: Livros de registo de todas as confrarias em anlise. 1

    As confrarias estudadas abrangem um leque alargado do total de instituies existentes

    na cidade, durante esta centria, correspondendo a cerca de 49% do total de irmandades

    existentes em 1762. A maioria estava j em funcionamento quando o sculo XVIII se iniciou,

    situao que se manteve para alm de 1800. Poucas se tero fundado durante estes 100 anos,

    mostrando que o perodo de ouro de constituio confraternal bracarense ter correspondido aos

    sculos XVI e XVII. A anlise deste quadro revela igualmente o desaparecimento de vrias

    irmandades, especialmente na segunda metade do sculo XVIII. Como veremos mais frente,

    esta situao no foi apenas apangio da realidade bracarense. As confrarias foram

    confrontadas com uma situao econmica difcil nesta poca e a soluo, para muitas, como

    aqui podemos verificar, foi a de se unirem a instituies congneres mais poderosas, ou

    desaparecerem.

    Foi nosso propsito abarcar neste trabalho no apenas a realidade das irmandades

    mais poderosas (como a de Santa Cruz, So Vicente ou Santssimo Sacramento da S), como

    tambm as das mais humildes, s quais pertenciam os grupos populares. Pensamos que a

    amostra analisada se reveste de representatividade. A abrangncia das fontes documentais

    existentes em cada fundo confraternal e em cada arquivo diferenciada. Algumas irmandades

    possuem um conjunto documental satisfatoriamente completo, relativamente ao perodo em

    estudo, enquanto outras esto dotadas de um corpo documental mais fragmentado. Tambm

    devido a esta situao se tornou necessrio analisar um nmero alargado de confrarias, de

    1 Optamos por no discriminar os livros consultados devido ao seu elevado nmero.

  • 6

    modo a podermos obter uma viso sustentada relativamente ao papel desempenhado por estas

    instituies na vivncia da morte.

    O estudo testamental e dos arquivos confraternais constituu o ncleo documental que

    guiou o trabalho de investigao, mas este no se restringiu somente a eles. No arquivo da Torre

    do Tombo, pudemos igualmente analisar documentao relativa a algumas instituies

    conventuais da cidade, que tambm intervieram no socorro espiritual das almas dos bracarenses

    de ento. O propsito deste estudo foi constatar o impato scio-econmico da morte nas

    diversas instituies, apesar do papel preponderante das organizaes confraternais.

    Todavia, qualquer investigao incompleta sem que a ela seja adicionado um largo

    trabalho de pesquisa bibliogrfica, no sentido de contextualizar os dados analisados e melhor

    entender os nossos resultados. O apoio dos trabalhos e pesquisas efetuados por outros autores

    permitiu, do mesmo modo, estabelecer uma anlise comparativa com as concluses por eles

    elaboradas, permitindo encontrar similitudes e diferenas. Assim, procedemos consulta de

    bibliografia de cariz nacional e estrangeiro, nomeadamente bibliografia portuguesa, espanhola,

    brasileira, francesa e inglesa. O estudo bibliogrfico abarcou as diferentes vertentes relativas

    temtica da morte em geral e tambm o papel fundamental desempenhado pelas confrarias na

    vivncia dos ltimos momentos, bem como no auxlio que prestavam salvao da alma.

    Com o objetivo de analisarmos um leque bibliogrfico alargado e complementar sobre o

    tema em estudo, procedemos igualmente a uma pesquisa que abarcou trabalhos recolhidos em

    diferentes bibliotecas.

    Procurmos sustentar a nossa investigao na pesquisa bibliogrfica e no trabalho de

    recolha, comparao e anlise quantitativa e qualitativa dos dados documentais depositados nos

    diferentes arquivos. Todo o trabalho foi desenvolvido no sentido de dar respostas s diferentes

    questes relacionadas com a vivncia da morte e da salvao da alma, na urbe bracarense,

    durante o sculo XVIII, a que j aludimos anteriormente. O trabalho que em seguida

    apresentamos tem por finalidade contribuir para o estudo desta temtica, apresentando as

    semelhanas e especificidades locais, inserindo Braga no contexto social e religioso da

    mundividncia catlica setecentista, de que fazia parte.

    O captulo nmero I pretende ser como que uma ncora de todo o trabalho final que

    foi produzido. Pretende-se introduzir o leitor no contexto religioso da Idade Moderna, no qual era

    fulcral, durante a vida terrena, preparar a alma para o dia do encontro final com Deus, de modo

    a garantir a sua salvao. Este captulo explica o aparecimento do Purgatrio, durante a Idade

  • 7

    Mdia, como um local de expiao das almas que no tinham ainda adquirido a perfeio de

    modo a poderem entrar no Paraso. Contudo, este novo lugar no adquiriu, de imediato, um

    estatuto de igualdade em relao ao Paraso e ao Inferno, dentro da mentalidade social da Idade

    Mdia. Foi somente no sculo XVI, com as crticas protestantes que negavam a sua existncia,

    que a Igreja Catlica sentiu necessidade de reforar, a partir do Conclio de Trento, a presena

    do Purgatrio junto das populaes. Atravs da pregao e do controlo eclesistico, os homens e

    mulheres eram instrudos sobre este local em que a alma, ainda que sofrendo o castigo das

    suas faltas, podia ambicionar salvao. A Igreja exortou, deste modo, os indivduos a investir

    os seus recursos na salvao da alma, levando os fiis a mandarem celebrar missas, perptuas

    ou no, no sentido de libertar rapidamente a sua alma das penas purgatoriais.

    A partir do sculo XVIII, contudo, a crise do Purgatrio comeou a delinear-se no mundo

    ocidental. Novas correntes de pensamento, surgidas com o iluminismo, criticavam o excessivo

    controlo da Igreja sobre a sociedade. Os pensadores iluministas consideravam que este facto

    coartava o progresso humano, mantendo as pessoas subjugadas ao medo da condenao

    eterna. Por seu turno, a Igreja j no conseguia gerir a economia baseada no Purgatrio, no s

    pelo nmero gigantesco de missas que se iam acumulando, sem que houvesse clrigos

    suficientes para as celebrar, como tambm por os bens e fundos monetrios que sustentavam o

    pagamento das missas pelas almas dos defuntos estarem a tornar-se insuficientes.

    O segundo captulo aborda a evoluo do movimento confraternal europeu e bracarense,

    centrando-se, por fim, na anlise das confrarias das Almas setecentistas da cidade de Braga. As

    confrarias surgiram na Idade Mdia, quer na Europa, quer em Portugal e eram essencialmente

    de cariz laical, sendo frequentemente associaes de indivduos que partilhavam um mesmo

    ofcio laboral. Embora promovessem o culto religioso cristo, estas associaes distinguiam-se

    sobretudo pelo apoio assistencial que disponibilizavam aos seus membros, nomeadamente em

    situaes de pobreza, de doena ou por ocasio da morte. A partir do sculo XVI viram diminuir

    a sua dimenso assistencial material, em favor da assistncia religiosa aos confrades e

    promoo do culto dos seus santos patronos. Inseridas num contexto teolgico que valorizava a

    alma sobre o corpo, as confrarias tornaram-se recetculos privilegiados dos que pretendiam

    deixar legados com o fim de sufragar as suas almas. Por outro lado, estas instituies

    proporcionavam aos seus membros o acompanhamento do corpo sepultura, bem como a

    celebrao de missas por sua alma. As confrarias conheceram assim um grande apogeu no

    sculo XVII, com a adeso em massa dos fiis a estas instituies.

  • 8

    Mas, sobretudo a partir de meados do sculo XVIII, este cenrio comeou a inverter-se.

    As ms administraes das Mesas, os problemas financeiros motivados pela perda de dinheiro

    que emprestavam a juro, bem como a interveno estatal que limitou a possibilidade dos

    testadores lhe deixarem os seus bens para sufrgio das suas almas, foram alguns dos motivos

    que vieram estabelecer uma situao de crise no movimento confraternal. Deste modo, muitas

    destas instituies foram extintas, ou viram-se compelidas a unir-se, face aos constrangimentos

    apontados.

    No conjunto de irmandades bracarenses analisadas, procurmos refletir sobre a

    especificidade das confrarias das Almas locais. Estas organizaes tinham por fim principal a

    celebrao de missas semanais ou dirias, pelas Almas do Purgatrio.

    O captulo seguinte centra-se essencialmente na preparao do indivduo para a morte,

    no seu acompanhamento ltima morada e na escolha desta ltima. Os fiis deviam preparar-

    se para a eventualidade da ocorrncia da morte solicitando a receo dos sacramentos da

    confisso, comunho e uno dos enfermos. Simultaneamente, deviam redigir o seu testamento,

    de modo a deixar estipuladas as questes materiais e espirituais, de forma a poderem partir em

    paz. Um aspeto a considerar era a escolha da mortalha. Nos ltimos momentos de vida, o

    defunto devia ser acompanhado por familiares e amigos. A presena do proco local era

    tambm fundamental para o ajudar a bem morrer e para o auxiliar espiritualmente com as suas

    oraes, s quais os presentes se deviam associar. A morte era comunicada sonoramente pelo

    toque de sinos, segundo as prescries clericais locais, embora instituies como as confrarias

    determinassem os seus prprios modelos de anncio da morte dos irmos.

    O corpo era posteriormente transportado ao local de sepultura, acompanhado pelos

    familiares, vizinhos e amigos, mas tambm por clrigos e irmandades, para solenizar esta ltima

    viagem. semelhana do que sucedia com o anncio da morte, as confrarias bracarenses

    tinham procedimentos prprios que punham em execuo no acompanhamento dos seus

    membros sepultura. Todavia, no fim do sculo XVIII, pareciam ser cada vez menos os que

    pediam a presena destas entidades no acompanhamento, denotando a vontade de um funeral

    mais humilde.

    A anlise testamental demonstrou ainda as preferncias dos bracarenses pelas igrejas

    confraternais e paroquiais, como locais de descanso eterno. As igrejas confraternais pareciam

    ter tanta ou mais importncia que as igrejas paroquiais, na hora da escolha da ltima morada. O

    facto de as irmandades possidentes de um templo facultarem enterro gratuito aos seus

  • 9

    membros, bem como proporcionarem preos mdicos para os restantes fiis, poder ter

    contribudo para este cenrio.

    No quarto captulo analismos as modalidades de salvao da alma. Os testadores

    solicitavam a celebrao de missas e ofcios, durante o perodo do velrio, at ao enterro. A

    preocupao com este momento correspondente ao juzo individual manteve-se patente ao longo

    da centria. O volume de sufrgios que cada um solicitava era distinto. Muitos tambm

    determinavam a celebrao de missas, a ttulo no perptuo, para depois do enterro. Tambm

    neste caso o nmero de sufrgios solicitado variava conforme as possibilidades e o estatuto

    social de cada um. Contudo, numa perspectiva geral, os valores quantitativos dos sufrgios

    estavam em recuo nas ltimas dcadas da centria.

    Por seu turno, alguns fiis propugnaram pela celebrao de missas perptuas pelas

    suas almas e de seus familiares e amigos, atribuindo legados s instituies confraternais

    bracarenses. Estes legados eram de diverso cariz peridico. Se alguns implicavam a celebrao

    de missas dirias ou semanais, outros tinham um mbito mais reduzido, prevendo apenas a

    celebrao de um nmero varivel de sufrgios anuais. Os legados quotidianos e semanais

    implicavam um investimento considervel, s ao alcance dos grupos privilegiados da sociedade,

    como os membros da fidalguia, do clero mais abastado, funcionrios da administrao civil e

    eclesistica local ou mercadores. Alguns fiis, membros dos grupos dos ofcios populares, como

    os sapateiros, ferreiros ou carpinteiros, instituram legados de missas anuais.

    O quinto captulo da tese debrua-se sobre os locais de celebrao das missas de

    sufrgio pela salvao das almas, bem como sobre os capeles encarregues desse servio.

    Constatmos que os bracarenses mandavam celebrar missas pela sua alma, novamente, nas

    igrejas confraternais, bem como nas igrejas paroquiais. Os conventos da cidade, ao invs,

    parecem ter sido pouco solicitados para esta tarefa. Dentro do estudo dos locais de celebrao,

    dois altares se destacaram: o altar privilegiado de So Pedro de Rates da S e o altar privilegiado

    da igreja de So Vicente. Estes altares eram mais eficazes na economia da salvao,

    possibilitando s almas que neles eram sufragadas maior rapidez na libertao do Purgatrio. A

    nossa anlise constatou igualmente que as instituies confraternais bracarenses do sculo XVIII

    se esforaram afincadamente por obter, do Vaticano, a qualidade de privilegiados para os altares

    em que eram celebradas as missas de sufrgio pelas almas dos seus confrades defuntos.

    O estudo elaborado neste captulo aborda tambm os homens responsveis pelos

    servios religiosos das irmandades: os capeles e os servos. Estes ltimos desempenhavam

  • 10

    funes conforme a instituio confraternal a que serviam. Aqueles que trabalhavam para as

    confrarias mais pequenas, com apenas um altar a seu cargo, tinham tarefas mais restritas,

    cabendo-lhes essencialmente o cuidado com a limpeza do altar e a ajuda nas missas aos

    sacerdotes celebrantes. Os que trabalhavam em confrarias mais poderosas que possuam um

    templo desempenhavam tambm funes mais alargadas, como o toque dos sinos, o enterro de

    defuntos e a limpeza geral da igreja.

    Aos capeles cabia a celebrao dos sufrgios a que estas instituies se

    comprometiam. As irmandades mais humildes, que eram a maioria, tinham geralmente apenas

    um nico capelo, pois era suficiente para os seus compromissos celebrativos. J as confrarias

    poderosas, que tinham de celebrar mais sufrgios, tiveram de optar por outra estratgia.

    Determinaram a existncia de um capelo principal, para celebrar as missas dos dias de

    preceito da religio catlica e que agisse como um coordenador de toda a atividade celebrativa,

    litrgica e festiva da irmandade. Ele tomava igualmente parte em eventos da instituio como o

    acompanhamento de defuntos. Juntamente com este capelo existiam outros congneres,

    encarregues de celebrar as missas de legados perptuos que as confrarias tinham recebido. O

    estudo das relaes entre os capeles e as irmandades mostra a existncia de conflitos,

    sobretudo quando os clrigos pediam aumentos pelas missas que celebravam.

    O sexto captulo remete-nos para o apoio confraternal salvao das almas dos irmos.

    Na verdade, as irmandades locais proporcionavam a celebrao de sufrgios pelas almas dos

    confrades, quer a ttulo individual, quer a ttulo coletivo. Coletivamente, estas instituies

    celebravam o seu aniversrio no qual procuravam sufragar as almas de todos os irmos, vivos

    e defuntos, em comum. Este evento anual inclua a celebrao de missas e, em algumas

    confrarias, tambm de um ofcio solene de defuntos. As confrarias celebravam, igualmente, com

    periodicidade semanal, mensal e ferial, missas pelas almas de todos os irmos. Para alm disso,

    preocuparam-se com a obteno de indulgncias, ou seja o perdo das penas do Purgatrio,

    para as almas dos seus confrades. Mediante a execuo de certos requisitos, estes podiam

    contar com um benefcio espiritual aps a morte, para a libertao da alma. Atravs da obteno

    de indulgncias, as confrarias queriam ser apelativas para os fiis.

    A nvel individual, as irmandades bracarenses mandavam celebrar um certo nmero de

    missas pela alma de cada irmo em particular, quando falecesse. A primeira metade do sculo

    XVIII correspondeu a um perodo de grande aumento do nmero destes sufrgios, num

    movimento concorrencial confraternal. Mas esse crescimento no teve em conta as dificuldades

  • 11

    da segunda metade da centria, a nvel local e nacional, sendo patente que, a partir dessa

    altura, comeam a notar-se atrasos na celebrao dos sufrgios, bem como a necessidade de

    algumas irmandades reduzirem o seu nmero.

    De facto, a assistncia alma e a fora do Purgatrio estavam em crise na segunda

    metade do sculo XVIII. sobre este fato que se debrua o ltimo captulo da tese. Como

    referimos, novas ideias emergiam sobre o que devia ser a relao entre vivos e defuntos. Estes

    no deviam condicionar eternamente o viver dos primeiros. Imbuda desta mentalidade, a

    legislao pombalina de 1766 e 1769 introduziu limites na possibilidade de se testar em favor

    da alma, alm de intervir nas capelas de missas existentes. Em Braga assistiu-se a um

    decrscimo acentuado da fundao de legados pios perptuos, a partir da dcada de 1760.

    Mesmo quando algumas das restries pombalinas foram posteriormente suspensas, esta

    tendncia manteve-se. A crise agrcola e inflacionista local, associada menor circulao

    monetria nacional, pela diminuio do ouro brasileiro, tero igualmente contribudo para este

    cenrio. E o que se assistiu, na verdade, foi crescente dificuldade de algumas confrarias no

    cumprimento das suas obrigaes pias, deixando atrasar-se ou no celebrando mesmo,

    centenas de missas.

    Para tentarem dar resposta a esta questo, solicitaram autorizao para celebrarem os

    sufrgios noutros altares mais baratos, para alm de envidarem esforos no sentido de

    reduzirem os encargos pios a que se tinham comprometido, semelhana do que sucedeu

    noutras instituies congneres. Parece-nos, no entanto, que este movimento de reduo de

    sufrgios, associado s dificuldades na sua celebrao surgiu, em Braga, num perodo posterior.

    Alis, em algumas confrarias, o problema do atraso celebrativo dos sufrgios perptuos no se

    colocara ainda no dobrar da centria.

    Apesar do esforo feito nesta investigao, temos conscincia de que deixamos

    perguntas sem resposta, portas abertas para novas abordagens a que nos queremos manter

    ligados, pelo interesse que esta temtica nos suscita.

  • 12

    Captulo I

    A morte e a salvao da alma: o Purgatrio

    A preocupao dos homens com a sua condio, enquanto seres mortais e com o seu

    destino aps a morte, anterior fundao do cristianismo. A religio egpcia, por exemplo, foi

    fundamental na crena de uma vida para alm da morte e na elaborao da ideia de um

    julgamento dos mortos, sendo o seu destino ditado conforme as suas aes em vida. Este

    julgamento dos defuntos, o mais antigo de que se conhece meno, consistia na pesagem do

    corao do falecido diante do tribunal de Osris. Se o julgamento fosse favorvel, existia uma

    espcie de Paraso como recompensa; j para aqueles a quem fosse desfavorvel, o seu

    corao seria devorado por uma divindade.1

    Assim, as noes de um Paraso ou de um Inferno, como destinos finais do ser

    humano, surgiram antes da fundao da religio crist, a qual, neste aspeto, era herdeira de

    religies que a tinham precedido.2 A sua mensagem reforava o carter imortal da alma e previa

    que todos seriam julgados no fim dos tempos, conforme os seus procedimentos e a crena na

    mensagem de Cristo. Este julgamento era o juzo final. Atravs dele, os fiis a essa mensagem

    seriam recompensados por Deus que os acolheria no Paraso, enquanto os restantes estariam

    condenados a sofrer eternamente no fogo do Inferno. Como refere Michel Vovelle a escatologia

    crist inicial s reconhecia estes dois lugares de destino final para o homem.3

    Esta viso sobre o destino de cada um est explanada nos evangelhos do Novo

    Testamento. Algumas passagens destes textos referem efetivamente a diviso feita entre os que,

    no fim dos tempos, no juzo final, seriam colocados ao lado direito de Deus e aqueles que o

    seriam ao seu lado esquerdo. Deste modo, os indivduos que tivessem cumprido os preceitos

    cristos, quer para com Deus, quer para com o prximo, tinham a salvao garantida no Paraso

    1 Sobre o julgamento dos mortos na religio egpcia consulte-se Brandon, S. G. F., The judgement of the dead an historical and comparative study of the idea of a post-mortem judgment in the major religions, London, Weidenfeld and Nicolson, 1967, pp. 6, 19, 41, 46-47; Cunha, Mrcio da Rosa; Roman, Pedrinho, O julgamento de Osris no Livro dos mortos egpcio, in XI Salo de iniciao cientfica e trabalhos acadmicos da Universidade Luterana do Brasil, Guaba, Universidade Luterana do Brasil, 2010, pp. 2-9,

    http://guaiba.ulbra.br/seminario/eventos/2010/artigos/historia/salao/659.pdf. 2 Leia-se Guntzel, Alessandro, Depois da morte mas antes do paraso: as diferenas entre o discurso oficial da Igreja Catlica e a crena expressa nos exempla em relao purgao dos pecados no ps-morte na Pennsula Ibrica nos sculos XIV e XV, Porto Alegre, Instituto de Filosofia e Cincia Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009, p. 8, tese de licenciatura policopiada. 3 Consulte-se Vovelle, Michel Les mes du purgatoire ou le travaile du deuil, Paris, Gallimard, 1996, p. 19.

    http://guaiba.ulbra.br/seminario/eventos/2010/artigos/historia/salao/659.pdf

  • 13

    junto dos seus eleitos, sendo colocados a sua direita; os que pelo contrrio no tinham seguido

    esses mesmos preceitos, eram postos sua esquerda e condenados ao suplcio eterno.

    Se o juzo final da humanidade estava presente na teologia crist desde as suas origens,

    o mesmo j no sucedia com o reconhecimento teorizado e explcito da existncia de um

    julgamento particular de cada indivduo logo aps a morte.4 Considerava-se que as almas dos

    crentes em Cristo, depois de falecerem, ficariam como que adormecidas, num local chamado

    refrigerium, tambm designado como o seio de Abrao, junto com os santos,5 aguardando o

    juzo final e a ressurreio no Paraso.6 O reconhecimento da existncia de um juzo particular

    mencionado nos escritos e ensinamentos dos pensadores cristos s comeou a surgir,

    paulatinamente, a partir do sculo IV. Mas em que consistia o juzo particular? Tratava-se de um

    primeiro julgamento da alma de cada pessoa falecida, imediatamente aps a morte, decidindo-

    se logo a se seria ou no condenada para sempre. Se o juzo final, feito por Deus a toda a

    humanidade no fim dos tempos, era de cariz coletivo e conclusivo, o juzo particular era de

    pendor pessoal e inicial.7

    Esta distino fez surgir um espao de tempo entre os dois juzos, passvel de ser

    utilizado com o objetivo de purificar as almas dos falecidos, abrindo-se a porta ao nascimento

    posterior do Purgatrio. Se o cristianismo primitivo no deu grande ateno ao destino da alma,

    por acreditar na eminente segunda vinda de Cristo, coincidente com o juzo final, o constante

    adiamento e demora deste evento tornou essa questo pertinente, favorecendo o nascimento do

    Purgatrio.8 Deste modo, ao fazer-se a teorizao teolgica, foi possvel situar a durao e

    existncia do Purgatrio como tendo lugar antes do juzo final. Era um local temporrio no alm,

    4 Sobre o juzo particular leia-se Vanzeto, Judinei Jos, Doutrina Escatolgica do Juzo Particular, in Revista Electrnica Theologia, vol. 1, n 1, Faculdade Palotina Fapas, 2008, pp. 1-5. 5 Assim, os servios religiosos efetuados por ocasio do falecimento de algum durante grande parte da Idade Mdia centravam-se sobretudo em garantir uma viagem segura desta vida para o mundo dos mortos, esperando os defuntos no dito refrigerium e no seio de Abrao pela ressurreio que teria lugar no juzo final. Saliente-se que estes lugares de espera mantiveram-se presentes na mentalidade crist durante a Alta Idade Mdia, pelo menos na Pennsula Ibrica. Consulte-se Mattoso, Jos, O culto dos mortos na Pennsula Ibrica sculos VII a XI, in Lusitnia Sacra, 2 srie 4, Lisboa, Universidade Catlica Portuguesa, 1992, pp. 19-20. 6 A hiptese da ressurreio dos mortos comeara a surgir j na religio judaica, no sculo II antes de Cristo. Consulte-se sobre este assunto Brandon, S. G. F., The judgement of the dead, pp. 64-65. 7 A ideia de um juzo particular logo aps a morte continuou a expandir-se na teologia crist ao longo da Idade Mdia, fortalecendo-se e consolidando-se no sculo XIII. Leia-se a este respeito Mitre Fernndez, Emilio, La muerte y sus discursos dominantes entre los siglos XIII y XV (reflexiones sobre recientes aportes historiogrficos), in Serrano Martn, Eliseo (ed.), Muerte, Religiosidad y Cultura Popular. Siglos XIII-XVIII, Zaragoza, Instituto Fernando el Catlico, 1994, p. 27. 8 Leia-se sobre este aspeto Binski, Paul, Medieval Death, Ritual and Representation, New York, Cornell University Press, 1996, pp. 24-25; Llewellyn, Nigel, The art of death, Visual culture in the english death ritual 1500-1800, London, The Board of the trustees of the Vitoria and Albert Museums, 1991, p. 26.

  • 14

    que duraria at ao juzo final, enquanto o Paraso e o Inferno eram lugares de dimenso eterna e

    intemporal.9

    Todavia, apesar desta porta que se abria, o surgimento do Purgatrio foi um processo

    longo, sendo uma noo imprecisa nos primeiros tempos. Inicialmente, e de forma no

    sistematizada, alguns telogos comearam a mencionar a necessidade de uma purificao para

    os cristos, que morriam sem terem alcanado a perfeio espiritual e moral. Alguns autores

    tm vindo a chamar a ateno sobre o contributo dado por Santo Agostinho, no sculo V, para a

    formao do Purgatrio, ao referir a existncia de penas purgatrias para os pecadores, que

    tinham lugar entre a morte destes e a sua ressurreio final. Essas penas podiam ser atenuadas

    com os sufrgios que os vivos mandassem celebrar pelos pecadores falecidos.10

    Foi progressivamente, atravs de algumas referncias bblicas que comearam a ser

    interpretadas pelos telogos e santos da igreja ao longo da Idade Mdia, que se teorizou a ideia

    da existncia de um terceiro lugar, onde as almas dos mortos, que ainda no podiam ser

    acolhidas junto de Deus, eram conduzidas com o fim de se purificarem para esse encontro.11

    O termo Purgatrio aparece referenciado pela primeira vez, de modo claro, apenas no

    final do sculo XII, por um mdico parisiense chamado Pierre le Mangeur, que props esta

    designao, posteriormente adotada pelo Papa Inocncio III.12 Mas a sua definio teolgica de

    forma mais explcita e alargada, continuava a no ter lugar. De tal modo que, ao princpio, e

    durante algum tempo, surgiram dois tipos de castigo no Purgatrio: um que purificava as almas

    pela gua, e outro que as santificava atravs do fogo.13 a partir do sculo XIV, em Frana, que

    a ideia de um Purgatrio purificador das almas atravs do fogo se vai afirmando em detrimento

    9 Consulte-se Le Goff, Jacques, O nascimento do Purgatrio, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, pp. 18-19, 345-346; Tavares, Maria Jos Pimenta Ferro, Pobreza e morte na Idade Mdia, Lisboa, Editorial Presena, 1989, p. 75. 10 Sobre o papel de Santo Agostinho leia-se Chaunu, Pierre, La mort Paris, XVI, XVII, XVIII sicles, Paris, Fayard, 1978, p. 104; Vovelle, Michel, Les mes du Purgatoire, p. 19. 11 O aparecimento do Purgatrio, ainda no cristianismo medieval, veio complexificar a viso simplista inicial que incidia apenas sobre o juzo final que separava a humanidade em dois grupos. O corpo era como uma priso para a alma durante a vida, pois propiciava-lhe ocasies de pecado e, por isso, no alm a alma tinha de passar por uma outra priso chamada Purgatrio antes de poder entrar no eterno descanso. Veja-se S, Isabel dos Guimares, Prticas de caridade e salvao da alma nas Misericrdias metropolitanas e ultramarinas: sculos XVI-XVIII: algumas metforas, in Oceanos, 35, (Julho-Setembro), Lisboa, Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 1998, pp. 44, 48. 12 A aceitao da existncia do Purgatrio pelo papado vai fazer aumentar o seu poder espiritual sobre o mundo cristo atravs da concesso de indulgncias, ou perdes das penas do Purgatrio, aos fiis. Os papas ficavam com o poder de libertar as almas deste cativeiro. Este poder comea a esboar-se ainda na Idade Mdia, mas depois do Conclio de Trento que se afirmar totalmente. Leia-se Le Goff, Jaques, O Nascimento do Purgatrio, p. 385. 13 Sobre a existncia destes dois tipos de Purgatrio na poca Medieval bem como a posterior supremacia do Purgatrio infernal leia-se Vovelle, Michel, Les mes du Purgatoire, pp. 41-42.

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    da santificao pela gua.14 Todavia, a propagao e completa assimilao do Purgatrio dentro

    da sociedade crist, no era ainda um facto consumado no final da Idade Mdia.15

    Na verdade, possvel constatar que embora fosse no sculo XIII que o Purgatrio se

    tornou uma verdade da f da Igreja Catlica, o aumento das referncias documentais sobre o

    mesmo teve lugar somente no sculo XIV. E foi apenas a partir dos sculos XV e XVI, que se

    assistiu expanso em maior escala da devoo e interiorizao do Purgatrio na mentalidade

    da sociedade crist.16 Por seu turno, alguns autores afirmam que em Portugal as primeiras

    menes ao Purgatrio surgiram apenas nos fins do sculo XIV.17 Ao mesmo tempo, foram

    tambm aparecendo os primeiros altares e representaes visuais deste lugar intermdio de

    acesso ao Paraso.

    O grande momento de afirmao definitiva do Purgatrio, dentro da Igreja Catlica,

    enquanto lugar de acolhimento das almas dos falecidos, em p de igualdade com o Paraso e o

    Inferno, d-se somente no sculo XVI com o Conclio de Trento que solenemente confirma e

    refora a existncia deste lugar de purificao.18

    14 Segundo Ana Cristina Arajo, todavia, apesar da prevalncia do fogo como fator punitivo no Purgatrio barroco, a gua, o vento, os raios e os animais peonhentos eram por vezes representados como elementos que castigavam as almas. Veja-se Arajo, Ana Cristina, Vnculos de Eterna Memria: esgotamento e quebra de fundaes perptuas na cidade de Lisboa, in Actas do Colquio Internacional Piedade Popular, Sociabilidades, Representaes, Espiritualidades, Porto, Terramar, 1999, p. 434. 15 Num estudo feito a algumas dezenas de testamentos sobre a fundao de capelas em Lisboa no sculo XV, Teresa Costa e Filipe Calvo no encontraram neles qualquer referncia ao Purgatrio. Consulte-se Calvo, Filipe; Costa, Teresa, Fundao de capelas na Lisboa quatrocentista: da morte vida eterna, in Lusitnia Sacra, 2 srie, 13-14, Lisboa, Universidade Catlica Portuguesa, (2001-2002), p. 344. Alessandro Guntzel refere igualmente que na Pennsula Ibrica o discurso da Igreja Catlica sobre o Purgatrio parece no ter ainda grande eco nas populaes locais nos sculos XIV e XV. Consulte-se Guntzel, Alessandro, Depois da morte mas antes do Paraso..., pp. 3-44. 16 Sobre a expanso da interiorizao da ideia do Purgatrio na cristandade dos sculos XV e XVI consulte-se Le Goff, Jaques, O Nascimento do Purgatrio, p. 425. Por seu lado, Laurinda Abreu ainda que no divergindo grandemente do pensamento de Le Goff, menciona que foi sobretudo depois do Conclio de Trento no sculo XVI, que se assistiu a uma maior doutrinao de todos os fiis, por parte da Igreja, sobre o significado do Purgatrio. Consulte-se a este respeito Abreu, Laurinda dos Santos, As comunidades litorneas de Setbal e Lisboa em tempos de Contra-Reforma, in O Litoral em Perspectiva Histrica (sc. XVI a XVIII), Porto, Instituto de Histria Moderna, 2002, p. 252. 17 Leia-se Mota, Antnio Brochado da, Testamentos rgios primeira dinastia (1109-1383), Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2011, p. 136, dissertao de Mestrado policopiada. Foi, alis, D. Dinis, o primeiro rei que pediu sufrgios por sua alma. Mota, Antnio Brochado da, Testamentos rgios, pp. 142-143. Relativamente s primeiras menes do Purgatrio nos testamentos portugueses do sculo XIV confira-se Pina, Isabel Castro, Ritos e imaginrio da morte em testamentos dos sculos XIV e XV, in Mattoso, Jos (dir.), O Reino dos Mortos na Idade Mdia Peninsular, Lisboa, Edies Joo S da Costa, 1996, p. 127. 18 O Purgatrio era, pois, uma vlvula de escape para o alm, um lugar de castigos severos, mas com a garantia de sada para o Paraso, evitando a condenao eterna no Inferno. Na Idade Mdia, considerava-se que o Inferno tinha uma existncia fsica, debaixo da terra. Confira-se Schuner, Dirk, Regateando o Purgatrio. As representaes do alm na Idade Mdia, in Kraft, Margarete; Rith-Magni, Isabel (dir.), Humboldt, ano 37, nmero 70, Bonn, Inter Nationes, 1995, pp. 53-54.

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    Alis, como refere Philippe Aris, o Purgatrio fora, em geral, at ao Conclio de Trento,

    um local de carter excecional, reservado apenas para algumas almas sobre as quais existiam

    dvidas sobre a sua salvao e que necessitavam de oraes e de missas para a alcanarem.

    Pelo contrrio, aps o referido conclio, o Purgatrio tornou-se no destino maioritrio dos fiis,

    quase como que uma etapa normal na migrao que a alma fazia aps a morte. S havia

    garantia de passagem imediata ao Cu para aqueles que morressem reconhecidamente em

    estado de santidade pela Igreja Catlica.19 Assim, podemos dizer que, para a maioria da

    populao catlica da poca Moderna, o Purgatrio20 tornava-se no s como a sua nica

    esperana de salvao, mas tambm o destino mais certo que podiam esperar aps a morte.

    No se pode entender o reforo e a confirmao da verdade teolgica do Purgatrio

    neste conclio, sem recordarmos o cenrio religioso em que se insere. Na verdade, ele tem lugar

    num contexto de clara oposio do catolicismo s teses e crticas do movimento protestante da

    poca, o qual negava a existncia deste lugar de transio aps a morte.21 Os protestantes

    calvinistas, por exemplo, com a sua doutrina da predestinao, segundo a qual Deus desde o

    princpio teria destinado certos indivduos salvao eterna no Paraso e outros condenao

    eterna no Inferno, no reconheciam a possibilidade de existncia de um espao intermdio de

    purificao das almas aps a morte. Face teologia protestante, a Igreja Catlica teve de

    reforar e sistematizar o Purgatrio na sua doutrina oficial, reservando-lhe da em diante um

    lugar fulcral: a crena no Purgatrio passaria a ser uma forma de distino da tradio catlica

    crist, em relao s igrejas protestantes nascentes.22

    Assim, os catlicos tinham de manifestar a sua crena neste lugar de purificao e

    punio, para evitarem dvidas sobre a sua fidelidade f. Num tempo em que, no mundo

    catlico ocidental, se reforava o combate a todas as ideias que pusessem em causa a doutrina

    19 Aris, Philippe, O Homem perante a morte II a morte asselvajada, Mem Martins, Publicaes Europa Amrica, 1988, pp. 197-198. 20 Relativamente ao papel fundamental que o Purgatrio adquiriu na Europa Catlica a seguir ao Conclio de Trento leia-se Arajo, Ana Cristina, Corpos sociais, ritos, e servios religiosos numa comunidade rural. As confrarias de Gouveia na poca moderna, in Revista Portuguesa de Histria, Tomo XXXV, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2001-2002, p. 279; Oliveira, Miguel de, Histria da Igreja em Portugal, 4 edio, Lisboa, Unio Grfica, 1968, p. 202. 21 O Conclio de Trento pretendeu despoletar um movimento de uniformizao confessional da sociedade dirigido quer pela Igreja Catlica, quer pelo poder poltico. Este movimento era uma resposta s dvidas e inovaes suscitadas pela reforma protestante. Consulte-se a este respeito Santos, Lus Aguiar, Condicionantes na configurao do campo religioso portugus, in Azevedo, Carlos Moreira (dir.), Histria Religiosa de Portugal, vol. III, Lisboa, Crculo de Leitores, 2000, pp. 410-411. 22 Sobre o repdio do Purgatrio pelo movimento protestante leia-se Vovelle, Michel, Aspects populaires de la devotion au Purgatoire lge Moderne dans lOccident Chrtien. Le temoignage des representations figures, In Actas do Colquio Internacional Piedade Popular, p. 291.

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    oficial, atravs da Inquisio, tornava-se praticamente obrigatrio manifestar de algum modo a

    crena no Purgatrio.23 Podemos dizer que este se afirmava atravs de uma imposio do medo

    a vrios nveis: por um lado, o medo de ser condenado neste mundo pela Igreja se, porventura,

    se pusessem em causa os dogmas desta; e por outro, o temor pelo destino da alma no outro

    mundo, quer pela condenao eterna no Inferno, quer pelo receio do tempo que poderiam durar

    os castigos no Purgatrio.24

    O Purgatrio da poca Moderna era apresentado como um verdadeiro Inferno no que

    dizia respeito aos tormentos, s penas e aos castigos infligidos aos pecadores, antes de

    poderem alcanar o Paraso. S havia uma nica diferena assinalvel: o Purgatrio, como j

    referimos, era um lugar provisrio, onde as almas permaneceriam durante um determinado

    tempo, conforme maiores ou menores fossem as culpas e os pecados cometidos neste mundo,

    ao passo que o Inferno no teria nunca um fim e as almas a ele condenadas seriam punidas

    eternamente.25 Cabia ao clero a tarefa de elucidar e ensinar aos fiis, de forma compreensvel,

    em que consistia o Purgatrio, bem como fomentar o sufrgio das almas nele cativas.26

    23 No que diz respeito ao papel da Inquisio enquanto reguladora de comportamentos atravs do medo leia-se Mea, Elvira Cunha de Azevedo, O Santo Ofcio Portugus da legislao prtica, in Ramos, Lus de Oliveira et al (coord.), Estudos de Homenagem a Joo Francisco Marques, vol. 2, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001, pp. 165-174. 24 Em Portugal, a Inquisio conheceu o seu perodo de maior atividade entre os sculos XVI a XVIII. Esta instituio enviava os seus responsveis s localidades para que as populaes denunciassem todos os erros e heresias religiosos que conhecessem. Por exemplo, todo aquele que negasse a existncia do Purgatrio, bem como o valor que tinham as missas, oraes, esmolas e indulgncias, no atenuar das penas que as almas a padeciam, devia ser denunciado. O clima de medo instalado e os tormentos a que os detidos eram sujeitos, levava-os a denunciar at os amigos e familiares, mesmo que fossem inocentes e a confessar crimes que no tinham cometido. Para este assunto veja-se Bethencourt, Francisco, Inquisio, in Azevedo, Carlos Moreira (dir.), Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal, Rio de Mouro, Crculo de Leitores, 2000, pp. 449-452; Coelho, Antnio Borges, Inquisio de vora 1533-1668, Lisboa, Editorial Caminho, 2002, pp. 48, 63; Mendona, Joo Loureno de; Moreira, Antnio Joaquim, Histria dos principais atos e procedimentos da Inquisio em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1980, pp. 48, 133, 284. Tambm a Igreja Catlica, nas visitas pastorais a que procedia, convidava um certo grupo de pessoas, em cada parquia, a fazer a denncia de todos aqueles que dentro da comunidade no cumpriam as normas e preceitos cannicos. Consulte-se, Carvalho, Joaquim Ramos de, Comportamentos morais e estruturas sociais numa parquia de antigo regime (Soure, 1680-1720). Reconstituies, interpretaes e metodologias, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1997, pp. 6-7, 12-14, tese de Doutoramento policopiada. 25 Autores como Jean Delumeau ou Laurinda Abreu referem a mesma conceo do Purgatrio como um verdadeiro Inferno. Consulte-se Abreu, Laurinda dos Santos, Memrias da Alma e do Corpo. A Misericrdia de Setbal na Modernidade, Viseu, Palimage Editores, 1999, pp. 137-138; Delumeau, Jean, Le pech et la peur. La culpabilisation en Occident XIII-XVIII sicles, Paris, Fayard, 1983, p. 430. 26 A pregao na missa dominical era uma oportunidade para o clero catlico explicar aos fiis que comportamentos deviam ter e evitar para alcanarem a salvao. Consulte-se Marques, Joo Francisco, A palavra e o livro, in Azevedo, Carlos Moreira (Dir.), Histria Religiosa, Vol. II, , p. 397. Em relao ao papel do clero na difuso das teses catlicas sobre o Purgatrio e a salvao da alma confira-se Oliveira, Alcilene Calvalcante de, A difuso da doutrina catlica em Minas Gerais no sculo XVIII: anlise das pastorais dos bispos, in Histria: Questes e Debates, n 36, Curitiba, 2002, pp. 190-201.

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    Neste sentido, os homens da Idade Moderna, para poderem salvar a sua alma do

    castigo eterno, tinham de cumprir os preceitos religiosos, vivendo de acordo com os mesmos.

    Por outro lado, a libertao das almas do Purgatrio era obtida atravs das oraes em seu favor

    e, sobretudo, pela celebrao de missas por sua inteno, intercedendo junto de Deus para que

    as libertasse rapidamente desse lugar de sofrimento. Simultaneamente, os fiis, enquanto vivos,

    podiam obter ainda a reduo futura das penas do Purgatrio, atravs das indulgncias que as

    autoridades eclesiais lhes concediam, mediante certos requisitos, bem como procedendo a

    obras de caridade que os ajudariam a alcanar a salvao.27

    Era tambm importante a invocao dos santos como intercessores na salvao das

    almas. Em particular, a figura de So Francisco de Assis era muito venerada como a de um

    santo que, todos os anos, no dia da sua morte, se dirigia por graa divina ao Purgatrio e de l

    retirava vrias almas levando-as para o ansiado Paraso.28 Tambm a figura de Nossa Senhora,

    sobretudo sobre a invocao da Senhora do Rosrio, era apresentada como uma poderosa

    intercessora das almas do Purgatrio junto de Deus.29 Mas no eram apenas as figuras celestes

    do catolicismo moderno que podiam desempenhar um papel intercessor na remisso das almas

    dos defuntos. O pobre era uma figura-chave na obteno da salvao, pois pela sua condio

    social neste mundo, era considerado como estando mais prximo de Deus, o qual poderia assim

    atender com maior solicitude as suas splicas e oraes. Neste sentido, os mais ricos

    requisitavam a sua presena nos funerais e concediam-lhes esmolas na hora da morte,

    27 Para a obteno das indulgncias, os fiis deviam executar um conjunto especificado de prticas penitenciais ou piedosas, como oraes ou obras de caridade, em certos dias e locais especficos. Sobre indulgncias leia-se Delumeau, Jean, Le pch et la peur, pp. 427, 444. Por outro lado, as obras de caridade que cada indivduo executava ao longo da vida serviam no s para lhe valerem no momento do juzo particular, como tambm para lhe atenuarem as penas a que estaria sujeito no Purgatrio. Leia-se Arajo, Maria Marta Lobo de, A proteo dos arcebispos de Braga Misericrdia de Viana da Foz do Lima (1527-1615), in Abreu, Laurinda dos Santos (ed.), Igreja, Caridade e Assistncia na Pennsula Ibrica (scs. XVI-XVIII), Edies Colibri e CIDEHUS-EU, 2004, pp. 240-241; Dias, Jos Sebastio da Silva, Correntes de sentimento religioso em Portugal, sculos XVI a XVIII, Tomo I, vol. II, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1960, p. 563. 28 Em relao ao papel desempenhado por So Francisco de Assis leia-se Gonzalez Lopo, Domingo, Los comportamentos religiosos en la Galicia del Barroco, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia, 2002, p. 330. Todavia, havia outros santos que tambm eram associados salvao das almas, no Purgatrio. Nos fins da Idade Mdia, na Catalunha, eram importantes as figuras de So Miguel, So Gregrio Magno ou So Nicolau Tolentino como santos que ajudavam ao resgate das Almas do Purgatrio. Confira-se Rodriguz Barral, Paulino, Purgatrio y culto a los santos en la plstica catalana bajo medieval, in Locus Amoenus n7, 2004, pp. 38-51. 29 No que diz respeito ao protetora da Virgem do Rosrio confira-se Martn Garca, Alfredo, Religiosidad y actitudes ante la muerte en la Montana Noroccidental Leonesa: el concejo de Laciana en el siglo XVIII, in Estudios Humanisticos, Histria, n 4, 2005, p. 173. Sobre o papel intercessor da figura de Maria em sentido lato, consulte-se Salvado, Maria Adelaide Neto, Confraria de Nossa Senhora do Rosrio de Castelo Branco: espelho de quereres e sentires, Coimbra, A Mar Arte, 1998, pp. 61-62.

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    esperando, atravs do exerccio da caridade e do benefcio das suas oraes, alcanar

    misericrdia diante de Deus e salvar a alma.30

    Depois da morte, as almas esperavam poder contar com a solidariedade dos vivos para

    as sufragarem, pois enquanto estivessem no Purgatrio pouco ou nada podiam pedir para si

    mesmas.31 Deste modo, os homens da Idade Moderna preocupavam-se, durante a vida, em

    assegurar (sobretudo por via testamental) a celebrao de missas e outros sufrgios por sua

    alma, depois da morte. Estes servios religiosos eram, geralmente, mandados celebrar por uma

    vez somente aps o seu falecimento. Ou seja, a pessoa deixava estipulado um nmero

    especfico de missas e outros servios religiosos, como os ofcios, responsos, ladainhas e outros,

    para serem celebrados tanto no seu funeral, como posteriormente.

    Todavia, tambm existia quem estabelecesse sufrgios pios de forma perptua, pela

    sua alma. Neste ltimo caso, o instituidor podia deixar bens, como terras ou casas, para que,

    com o rendimento destes, lhe mandassem celebrar missas at ao final dos tempos. Noutros

    casos, optava-se por deixar quantias em dinheiro, dado normalmente a juro, para com o

    respetivo rendimento, pagar os ditos sufrgios.32 A pessoa ou entidade coletiva que recebia e

    administrava esses bens, ou fundos monetrios, comprometia-se a mandar celebrar os sufrgios

    30 Sobre o importante papel dos pobres na salvao leia-se Arajo, Maria Marta Lobo de, Alcanar o cu atravs da ddiva de roupa: a distribuio de roupa nos testamentos de Vila Viosa (sculos XVI-XVIII), in Sociedade e Cultura 2, Cadernos do Noroeste, Srie Sociologia, vol. 13, n 2, Braga, Instituto de Cincias Sociais da Universidade do Minho, 2000, p. 233; Raimundo, Ricardo Varela, Morte vivida e economia da salvao em Torres Novas (1670-1790), Torres Novas, Municpio de Torres Novas, 2007, pp. 340-343. 31 Vovelle, Michel, Mourir autrefois attitudes colectives devant la mort aux XVII et XVIII sicles, Paris, Gallimard, 1974, p. 126. 32 A propsito do emprstimo de dinheiro a juro, proveniente de legados pios leia-se Ferreira, Jos, A confraria de Nossa Senhora de Monte de Frales, in Barcelos. Revista, 2 srie, n 1, 1990 pp. 71-76; Reis, Maria de Ftima Dias dos Reis, A Misericrdia de Santarm: estruturao e gesto de um patrimnio, in Cadernos do Noroeste. Srie Histria 3, vol. 20 (1-2), Braga, Instituto de Cincias Sociais da Universidade do Minho, 2003, pp. 491-492. As Misericrdias tiveram um papel muito importante neste tipo de atividade financeira, baseada nos legados pios perptuos que recebiam. Consulte-se sobre este assunto Abreu, Laurinda dos Santos, A Santa Casa da Misericrdia de Setbal de 1500 a 1755: aspectos de sociabilidade e poder, Setbal, Santa Casa da Misericrdia de Setbal, 1990, p. 57; Elias, Lus Filipe da Cruz Quaresma, A Santa Casa da Misericrdia de Coimbra e o emprstimo de dinheiro a juros (1753-1765), in Revista de Histria da Sociedade e da Cultura, 10, Tomo I, Coimbra, Centro de Histria da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 2010, pp. 262-263; Lopes, Maria Jos Queirs, Misericrdia de Amarante: contribuio para o seu estudo, Amarante, Santa Casa da Misericrdia de Amarante, 2005, pp. 54-55. Por outro lado, algumas Misericrdias ultramarinas encarregavam-se de fazer chegar aos herdeiros da metrpole os legados e heranas que lhes eram deixados pelos testadores que faleciam nas colnias portuguesas, da Idade Moderna. Tornavam-se, desde modo, procuradoras de defuntos. Consulte-se Amorim, Ins, Misericrdia de Aveiro e Misericrdias da ndia no Sculo XVII: Procuradoras dos defuntos, in I Congresso Internacional do Barroco, Actas, vol. I, Porto, Reitoria da Universidade do Porto e Governo Civil do Porto, 1991, pp. 423-427.

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    estabelecidos. Este tipo de atos religiosos eram pedidos por pessoas que possuam capacidade

    econmica ou financeira para os mandarem celebrar.33

    O cariz perptuo destes legados pios parece-nos importante. Efetivamente, o facto de

    haver pessoas que instituam legados de missas perptuas pela salvao da sua alma era em si

    uma contradio.34 Por um lado, o objetivo era esses sufrgios servirem para que a alma do

    instituidor estivesse o menor tempo possvel a padecer os terrveis tormentos do Purgatrio. Mas,

    em contrapartida, estes sufrgios eram estabelecidos para serem celebrados enquanto o

    mundo durasse, ou seja, para sempre, at ao fim do mundo conforme o entendia a teologia

    catlica. Por conseguinte, abria-se a porta para que a alma destes instituidores estivesse como

    que condenada a ficar no Purgatrio eternamente, enquanto o mundo terreno existisse. , alis,

    interessante evidenciar a forma como a mentalidade moderna catlica fazia corresponder a

    passagem do tempo terreno, com a passagem do tempo que se padecia no Purgatrio. Na

    verdade, na construo mental, social e teolgica deste lugar, procurava-se fazer uma

    correspondncia relacional entre a quantidade de pecados cometidos na terra pelo indivduo e o

    volume de sufrgios que seriam necessrios para os reparar e, por conseguinte, o tempo que

    uma alma estaria padecendo. E se o tempo no Purgatrio podia medir-se tal como se media no

    mundo dos vivos, a verdade era que nesse lugar de sofrimento o tempo para as almas parecia

    ser mais longo e penoso do que para os vivos, em razo da dureza das penas a que estavam

    submetidas.35 Neste sentido, podemos constatar que as Almas do Purgatrio viviam o seu

    suplcio dia a dia, como se ainda estivessem ligadas e presas s regras temporais do mundo

    terreno.

    A perpetuidade de vrios legados de missas institudos, transformando o Purgatrio num

    crcere de almas,36 leva-nos, alis, a questionar os motivos que estavam realmente

    subjacentes sua instituio. Certamente que a salvao da alma preocupava as pessoas. O

    receio de mandarem celebrar um nmero limitado de sufrgios, levava-as a poder pensar que

    no seriam suficientes para as tirar rapidamente do Purgatrio, o que as fazia precaverem-se,

    33 Leia-se Barreira, Manuel, Santa Casa da Misericrdia de Aveiro. Poder, pobreza e solidariedade, Aveiro, Santa Casa da Misericrdia de Aveiro, 1990, p. 97. 34 Esta contradio foi sobretudo observada por Laurinda Abreu. Consulte-se Abreu, Laurinda dos Santos, Memrias da Alma e do Corpo, pp. 138-139. 35 Sobre este assunto consulte-se Le Goff, Jacques, O nascimento do Purgatrio, p. 346. 36 Abreu, Laurinda dos Santos, Memrias da alma e do corpo, pp. 89, 138-139.

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    obrigando os vivos a pedirem eternamente pela sua salvao.37 Teriam a conscincia pesada

    devido ao temor do Purgatrio, motivado pelos erros e pecados cometidos durante a vida?

    provvel que, vendo aproximar a hora da sua morte, os homens temessem pela salvao, bem

    como pelas duras e longas penas a suportar antes de alcanarem o Paraso. A reviso do que

    fora as suas vidas certamente os faria refletir, luz do discurso tico e religioso da Igreja

    Catlica e, consecutivamente propugnar, dentro da medida das suas possibilidades, pela

    obteno do maior nmero de socorros espirituais que lhes aliviassem as penas.

    Contudo, encaramos igualmente a possibilidade de que, subjacente a este desejo

    verdadeiro de salvao, estivesse ainda presente outra preocupao, a qual no era referida de

    modo to explcito. Ao estabelecerem vnculos pios perptuos, pensamos que os homens da

    poca Moderna ambicionavam tambm tentar preservar a recordao da sua vida na memria

    dos vivos, de forma eterna.38 Constitua uma maneira de, entre tantas almas sufragadas pelos

    vivos, conseguirem destacar a sua individualidade pessoal.39 Como se tratava de indivduos que

    ocupavam socialmente lugares de destaque, ou possuam maior capacidade financeira,

    entendemos que, com a instituio destes legados pios, o objetivo era o de manter, depois de

    mortos, o mesmo estatuto na memria dos vivos.40 Doutro modo, afigura-se-nos difcil

    37 Certos altares de celebrao dos sufrgios eram considerados privilegiados, ou seja, possibilitavam uma libertao mais rpida das almas cativas no Purgatrio. Em Braga, por exemplo, o altar de So Pedro de Rates da S tornou-se privilegiado em 1548. Leia-se Moraes, Juliana de Mello, Viver em Penitncia: os irmos terceiros franciscanos e as suas associaes, Braga e So Paulo, (1672-1822), Braga, Universidade do Minho, 2009, p. 284, tese de Doutoramento policopiada. 38 Maria Lurdes Rosa chama igualmente a ateno para este aspeto. A autora mostra como tanto, ou mais do que a salvao, era a vontade de perpetuao na memria dos vivos que levava instituio de sufrgios. Esta aspirao, em finais da Idade Mdia, tinha chegado a tal ponto que havia quem pedisse que os sufrgios fossem celebrados nos dias santos mais importantes do calendrio cristo. Associava-se, assim, a memria do falecido figura central da religio crist, Jesus Cristo. Mas o snodo de Braga, em 1477, proibiu esses exageros. Leia-se sobre esta temtica Rosa, Maria Lurdes, As almas herdeiras. Fundao de capelas fnebres e a afirmao da alma como sujeito de direito (Portugal 1400-1521), Lisboa, FCSH-UNL, 2005, p. 320, tese de Doutoramento policopiada. 39 A este propsito confira-se Arajo, Ana Cristina, Despedidas triunfais triunfais celebrao da morte e cultos de memria no sculo XVIII, in Jancs, Istvn; Kantor, ris (org.), Festa, cultura e sociabilidade na Amrica portuguesa vol. I, So Paulo, Imprensa Oficial, 2001, p. 20; Fert, Jeanne, La vie religieuse dans les campagnes parisiones (1622-1695), Paris, Libraire Philosophique J. Vrin, 1962, pp. 331, 333; S, Isabel dos Guimares S, As Misericrdias Portuguesas de D. Manuel I a Pombal, Lisboa, Livros do Horizonte, 2001, pp. 99-100. Alguns destes indivduos dos grupos favorecidos pretendiam associar a individualidade do corpo individualidade da alma, inumando os seus corpos em capelas reservadas onde se celebrariam missas por sua alma. Leia-se Abreu, Laurinda, Uma outra viso do Purgatrio: uma primeira abordagem aos breves de perdo e de reduo, in Revista Portuguesa de Histria, t. XXXIII, Coimbra, Faculdade de Letras de Coimbra, 1999, pp. 721, 736; Carvalho, Elisa Maria Domingues da Costa, A fortuna ao servio da salvao da alma da famlia e da memria, atravs dos testamentos dos arcebispos e dignatrios de Braga na Idade Mdia (sculos XII-XV), in Lusitnia Sacra, 2 srie, tomo XIII-XIV, Lisboa, Universidade Catlica Portugesa, 2001-2002, p. 21. 40 Sobre os legados pios dos mais favorecidos e a vontade de perpetuao do seu estatuto na memria dos vivos