Nos Fragmentos de Diadorim: o discurso amoroso no sertão
description
Transcript of Nos Fragmentos de Diadorim: o discurso amoroso no sertão
Nos Fragmentos de Diadorim: o discurso amoroso no sertão
Aline Job
Pode-se dizer que o amor é um dos temas mais recorrentes na literatura e que
corresponde a um dos maiores anseios da humanidade – a busca por aquele que representa
a outra metade de cada indivíduo. Mesmo a filosofia preocupou-se em conceituar o amor:
como em O Banquete (2002), em que Platão define a ideia de amor como a união de dois
seres, criando a completude absoluta; é o ser andrógino por excelência.
Na filosofia contemporânea também o amor tem surtido reflexões, que, não
obstante, mantêm alguns dos elementos clássicos, mas constituem-se como perspectivas
mais “humanizadas”, levando em consideração problemáticas individuais de como
processar o ato de estar apaixonado por alguém ou de amar alguém, um outro, Ithe wholly
other1.
No documentário Derrida2, de 2002, dirigido por Kirby Dick, Jacques Derrida
discorre sobre diversos temas, desde elementos de sua teoria da desconstrução a tópicos
concernentes da filosofia em si. Em certo ponto do documentário, é pedido a Derrida que
fale o que puder sobre o amor e ele, contrariado, diz que não tem nada a dizer sobre o amor
e pede que, pelo menos, uma pergunta sobre o amor seja delineada, pois seria impraticável
examinar o “amor” como generalidade. O momento se complica e a entrevistadora pede
que Derrida fale sobre o porquê de a filosofia ter sempre se preocupado com o amor; e
Derrida volta a dizer que não teria nada para falar, apenas estaria recitando clichês. Mas de
uma pausa após esse diálogo, Derrida constrói o seguinte pensamento:
One of the first questions one could pose…I’m just searching a bit…is the question of the difference between the who and the what. Is love the love of someone or the love of some thing? Okay, supposing I loved someone. Do I love someone for the absolute singularity of who they are? I love you because you are you. Or do I love your qualities, your beauty, your intelligence? Does one love someone, or does one love something about someone? The difference between the who and the what at the heart of love, separates the heart. It is often said that love is the movement of the heart. Does my heart move because I love someone who is an absolute singularity, or because I love the way that someone is? Often love starts with some type of seduction. One is attracted because the other is like this or that. Inversely, love is disappointed and dies when one comes to realize the other person doesn’t merit our love. The other person isn’t like this or that. So at the death of love, it appears that one stops loving another not because of
1 Jacques Derrida em The Gift of Death.2 Link para o documentário: http://youtu.be/TswHCM2cOmg.
who they are, but because they are such and such. That is to say, the history of love, the heart of love, is divided between the who and the what. The question of Being, to return to philosophy – because the first question of philosophy is: What is it “to Be”? What is Being? The question of being is itself always already divided between the who and what. Is “Being” someone or some thing? I speak of it abstractly, but I think that whoever starts to love, is in love, or stops loving, is caught between this division of the who and the what. One wants to be true to someone – singularly, irreplaceably – and one perceives that this someone isn’t x or y. They didn’t have the qualities, properties, the images, that I thought I’d loved. So fidelity is threatened by this difference between the who and the what.
Num primeiro momento, o que Derrida faz é esboçar o conhecimento que se tem
sobre o amor e o que, na verdade, está envolvido nessa questão. Assim, o amor, para
Derrida, não seria uma série de elementos que faz com que alguém ame outra pessoa, mas
o conjunto todo dessa pessoa, a sujeito como singularidade única. E, em última análise,
define o amor como “quem” e não “o que”; o amor é pelo todo, pelo outro, aquele que é
inapreensível e supremo.
Mas não só Derrida dissertou sobre o amor, Alain Badiou em entrevista à coluna “A
life in writing”, do jornal britânico The Guardian, e divulgando seu livro mais recente, In
Praise of Love, fala que o amor está menos em encontrar a pessoa certa do que um longo
trabalho para que o amor exista; e o entrevistador acrescenta trecho de livro que está em
concordância com as colocações de Derrida:
"While desire focuses on the other, always in a somewhat fetishist[ic] manner, on particular objects, like breasts, buttocks and cock, love focuses on the very being of the other, on the other as it has erupted, fully armed with its being, into my life that is consequently disrupted and re-fashioned."
Novamente se coloca o ponto de vista de que existe uma confusão no que é o amor
e lança a ideia de amor para o campo da alteridade, como receber o outro como um outro
total, não em partes que sejam do agrado deste ou daquele. Entretanto, o que Derrida não
fala, Badiou fala de si em relação ao amor:
I have only once in my life given up on a love. It was my first love, and then gradually I became so aware this step had been a mistake I tried to recover that initial love, late, very late – the death of the loved one was approaching – but with a unique intensity and feeling of necessity. (…) There have been dramas and heart-wrenching and doubts, but I have never again abandoned a love. And I feel really assured by the fact that the women I have loved I have loved for always.
Entra-se, com essa citação, no campo do amor como evento e, também, como
contingência: uma vez perdido, pode não ser mais recuperável, restando ao sujeito do amor
percorrer esse amor perdido. Uma vez que o sujeito do amor define um determinado Outro
como objeto de seu amor, isso é irrevogável, pelo menos no pensamento de Badiou.
Só de amor, amor filosófico, mas também humano, se discorreu até esse trecho,
entretanto esse ensaio se propõe como uma reflexão teórica e literária sobre o tema. E
como sugere o título, é sobre o amor de Diadorim e Riobaldo nas veredas de Guimarães
Rosa que essa amarração vai se dar.
E é no sertão que o amor se enreda no meio de espinhos e de terrenos de seca, no
meio da terra vermelha e queimada pelo sol, assim como as faces de quem a habita.
Riobaldo narra sua história como jagunço a partir da velhice, tendo, nesse caso,
conhecimento do desfecho daquilo que ele está a narrar, mas por toda a narração age
criando um texto que difere, retarda a revelação, tanto de seu amor como de como ele
termina.
O amor de Riobaldo veste-se de vários rostos, são as prostitutas, as namoradas,
Otacília (com que se casa e vive até os dias em que narra a história) e Diadorim, que
transcende o objeto de amor, é neblina... Ademais, a sua posição atual de narração
demonstra uma certa fragmentação difusa entre o Riobaldo de antes e o Riobaldo de agora:
em que momento foi que Riobaldo deixou de ser jagunço? Foi a morte de Diadorim que
cria a alteração?
Com a fragmentação do sujeito, após a quebra de crenças até então estabelecidas,
pensar na concepção de um amor como os representados na literatura medieval é muito
difícil, se não impossível. O indivíduo que por ser fragmentado talvez busque no outro
aquilo que lhe falta, num movimento de tentativa de encontrar novamente a unidade. Nesse
sentido, a busca pelo amor pode ser vista como elemento essencial para que o indivíduo
sinta-se plenamente completo. Riobaldo narra menos a sua história como jagunço e chefe,
como Urutu Branco, do que a sua história de amor que nunca chega a ser, está num modo
de devir eterno, presentificado toda vez que ele narra o acontecido, é o poder da anamnésis.
Em Grande Sertão: Veredas, há diferentes representações do amor e pode-se
afirmar que elas flutuam entre amor terreno e sensual e amor idealizado. Ao amor terreno e
sensual corresponderiam Otacília e Nhorinhá e ao amor idealizado corresponderia
Diadorim.
Esse amor idealizado, presente em toda a narrativa, observa-se na exaltação em
todos os comentários de Riobaldo feitos sobre Diadorim. O amor dos dois se constrói sobre
a impossibilidade de realização, primeiramente, pelo fato de que Riobaldo acredita que
Diadorim seja homem e pelo fato de que quando Riobaldo pode então se permitir amar a
Diadorim – quando descobre que seu amigo era na verdade uma mulher – este está morto e
inatingível para sempre.
Analogamente a muitas histórias de amor da literatura ocidental, como Romeu e
Julieta e Tristão e Isolda, o amor de Riobaldo por Diadorim está na ordem não apenas do
amor idealizado, mas também do amor impossível e trágico. Impossível porque nunca irá
se concretizar e trágico porque termina com a morte de Diadorim. As relações com outras
mulheres são materializadas, representam momentos da vida de Riobaldo, seja como
jagunço seja como fazendeiro, mas Diadorim nunca chega a ser, a ponto de Riobaldo
afirmar que:
De mim, pessoa, vivo para minha mulher, que tudo modo-melhor merece, e para a devoção. Bem-querer de minha mulher foi que me auxiliou, rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também – mas Diadorim é a minha neblina... (ROSA, 1994, p.27)
É somente na revelação de que Diadorim é de fato uma mulher que o sujeito
fragmentado e atormentado de Riobaldo aceita sua existência como “homem humano”,
porque é isso que há, e pode então se permitir sentir o sentimento de amor mais lindo já
narrado no sertão, mas como em tantas outras histórias é tarde demais para os dois.
Com a morte de Diadorim, do outro de Riobaldo, surge a impossibilidade deste de
conhecer a si mesmo e vislumbrar o Riobaldo que nem ele mesmo conhece. Ao narrar suas
desventuras e dores passadas, Riobaldo reconstrói e revive Diadorim e assim reconstrói e
revive a si mesmo, num movimento que parece infinito (pela anamnésis). Ele sabe desde o
início que a estória se acabou, que a estória está acabada e que, com a morte de Diadorim,
a estória acaba. Talvez irrelevante seja comentar, mas é justamente quando narra sobre os
eventos de sua relação com Diadorim, Riobaldo utiliza “estória” e não “história”, que ele
utiliza para falar de qualquer outra personagem ou mesmo de si, mas não de Diadorim, que
é escritura, é jogo, é neblina.
O ato de narrar de Riobaldo pode, ainda, ser visto pela perspectiva de salvação: ao
narrar o seu amor que nunca de realiza por Diadorim, Riobaldo, pela narração, recria-se e
recria o outro perdido no “meio do redemunho”, além de salvar-se: “I remember in order to
be unhappy/happy – not in order to understand. I do not write, I do not shut myself up in
order to write the enormous novel of time recaptured.” (BARTHES, 1978, p.217). O futuro
de Riobaldo, como fazendeiro e esposo de Otacília, parece mais uma situação de
substituição daquilo que ele nunca teve e perdeu antes mesmo de experienciar – o amor
verdadeiro e recíproco: “Never again will this happiness return just this way. Anamnesis
both fulfills and lacerates me.” (BARTHES, 1978, p.217).
De amor já se dissertou, do amor no sertão também um pouco. Numa tentativa de
antimétodo, o ensaio vai seguir por uma outra estrutura, não mais texto da autora e citação,
mas citação ao lado de citação, Roland Barthes ao lado de Guimarães Rosa, numa tentativa
de correspondência naquilo que Barthes defende como discurso amoroso e a construção do
amor de Riobaldo por Diadorim, e algumas outras considerações dos dois. Os fragmentos
apresentados unem-se para tentar demonstrar a caracterização da relação de amor
estabelecida entre Riobaldo e Diadorim e como essa relação e a sua não realização
desenvolvem um discurso de amor sempre inatingível, constantemente na sua busca por
respostas que jamais serão respondidas. E o dito e o não dito ficam por parte do leitor.
Nos fragmentos de Barthes e de Rosa
Os trechos são, respectivamente, de Roland Barthes (1978), A Lover’s Discourse, e
de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas (1994).
The lover who doesn't forget sometimes dies of excess, exhaustion, and tension of memory. (p.14)
Pensar em Diadorim, era o que me dava cordura de paz. Ah, digo ao senhor: dessa noite não me esqueço.
Posso? Aos poucos, fui ficando soporado, nem bom nem ruim. Matar, matar, que que me importava? Dessa
noite esquecer não posso. Garoou, para a aurora. (p.289)
Ao tanto com o esforço meu, em esquecer Diadorim, digo que me dava entrante uma tristeza no geral, um
prazo de cansado. Mas eu não meditava para trás, não esbarrava. Aquilo era a tristonha travessia, pois então
era preciso. Água de rio que arrasta. Dias que durasse, durasse; até meses. Agora, eu não me importava. Hoje,
eu penso, o senhor sabe: acho que o sentir da gente volteia, mas em certos modos, rodando em si mas por
regras.
Diadorim era mais do ódio do que do amor? Me lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia, tão
remarcado. Como foi que não tive um pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um
corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da
boca descorados no branquiço, os olhos dum
terminado estilo, meio abertos’ meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e
uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram. (p.263)
"to sigh for the bodily presence": the two halves of the androgyne sigh for each other: as if each breath, being incomplete, sought to mingle with the other: the image of the embrace, in that it melts the two images into a single one: in amorous absence, I am, sadly, an unglued image that dries, yellows, shrivels. (p.15)
Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha,
recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que
cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia
por que nome chamar; eu exclamei me doendo:– “Meu amor!...”
It is the other as a whole who produces in him an aesthetic vision: he praises the other for being perfect, he glorifies himself for having chosen this perfect other; he imagines that the other wants to be loved, as he himself would want to be loved, not for one or another of his qualities, but for everything, and this everything he bestows upon the other in the form of a blank word, for the Whole cannot be inventoried without being diminished: in Adorable! there is no residual quality, but only the everything of affect. (p.19)
Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim. Meu amor de prata e meu amor de ouro. (p.65)
Diadorim, esse, o senhor sabe como um rio é bravo? É, toda a vida, de longe a longe, rolando essas braças águas, de outra parte, de outra parte, de fugida, no sertão. E uma vez ele mesmo tinha falado: – “Nós dois, Riobaldo, a gente, você e eu... Por que é que
separação é dever tão forte?...” (p. 610)
Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Deus é que me sabe. O Reinaldo
era Diadorim – mas Diadorim era um sentimento meu. (p.439)
The other's fade-out, when it occurs, makes me anxious because it seems without cause and without conclusion. Like a kind of melancholy mirage, the other withdraws into infinity and I wear myself out trying to get there. (p.112)
Diadorim tinha morrido – mil-vezes-mente – para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus
olhos marejavam. (p.857)
Não escrevo, não falo! – para assim não ser: não foi,não é, não fica sendo! Diadorim... (p.861)
Diadorim desconversou, e se sumiu, por lá, por aí, consoante a esquisitice dele, de sempre às vezes
desaparecer e tornar a aparecer, sem menos. (p.80)
I devour every amorous system with my gaze and in it discern the place which would be mine if I were a part of that system. I perceive not analogies but homologies (…). (p.129)
Diadorim era aquela estreita pessoa – não dava de transparecer o que cismava profundo, nem o que
presumia. Acho que eu também era assim. Dele eu queria saber? Só se queria e não queria. Nem para se
definir calado, em si, um assunto contrário absurdo não concede seguimento. Voltei para os frios
da razão. (p.78)
To know that one does not write for the other, to know that these things I am going to write will never cause me to be loved by the one I love (the other), to
De volta, de volta. Como se, tudorevendo, refazendo, eu pudesse receber outra vez o que
nãotinha tido, repor Diadorim em vida? (p.864)
know that writing compensates for nothing, sublimates nothing, that it is precisely there where you are not – this is the beginning of writing. (p.100)
Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real
tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa.
Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe. (p.132)
Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eudesminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos
anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se
remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. (p.253)
Para que referir tudo no narrar, por menos e menor?Aquele encontro nosso se deu sem o razoável comum, sobrefalseado, como do que só em jornal e livro é que
se lê. Mesmo o que estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado e verdadeiramente entendido – porque, enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais
é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. (p.189)
The loved being is recognized by the amorous subject as "atopos" (a qualification given to Socrates by his interlocutors), i.e., unclassifiable, of a ceaselessly unforeseen originality. (p.34)
Diadorim era um impossível. Demiti de tudo. (p.702)
Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer – mas com
ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher.
(p.861)
E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
– “Meu amor!...”Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para
poder não presenciar o mundo. (p.862)
Sometimes an idea occurs to me: I catch myself carefully scrutinizing the loved body (…). To scrutinize means to search: I am searching the other's body, as if I wanted to see what was inside it, as if the mechanical cause of my desire were in the adverse body(…). (p.71)
Foi mesmo aquela vez? Foi outra? Alguma, foi; me alembro. Meu corpo gostava de Diadorim. Estendi a
mão, para suas formas; mas, quando ia, bobamente, ele me olhou – os olhos dele não me deixaram. Diadorim, sério, testalto. Tive um gelo. Só os olhos negavam. Vi
– ele mesmo não percebeu nada. Mas, nem eu; eu tinha percebido? Eu estava me sabendo? Meu corpo gostava
do corpo dele, na sala do teatro. (p.250)
Sufoquei, numa estrangulação de dó. Constante o que a Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim, casca de tão grosso
sangue, repisado. E a beleza dele permanecia, só permanecia, mais impossivelmente. Mesmo como jazendo assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e
máscara, sem gota nenhuma. Os olhos dele ficados para a gente ver. A cara economizada, a boca secada.
Os cabelos com marca de Sufoquei, numa estrangulação de dó. Constante o que a Mulher disse:
carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de
Diadorim, casca de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia, só permanecia, mais
impossivelmente. Mesmo como jazendo assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e máscara, sem gota
nenhuma. Os olhos dele ficados para a gente ver. A cara economizada, a boca secada. Os cabelos com
marca de duráveis... (p.860-861)
Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a
surpresa. A coice d’arma, de coronha... (p.861)
A Mulher lavou o corpo, que revestiu com a melhor peça de roupa que ela tirou da trouxa dela mesma. No peito, entre as mãos postas, ainda depositou o cordão
com o escapulário que tinha sido meu, e um rosário, de coquinhos de ouricuri e contas de lágrimas-de-nossa-senhora. Só faltou – ah! – a pedra-de ametista, tanto
trazida... (p.862)
The lover's constant thought: the other owes me what I need. Yet, for the first time, I am really afraid. I fling myself on my bed, I mull over the situation and I decide: from now on, I will not make any attempt to possess the other. (p.232)
A já, que ia m’embora, fugia. Onde é que estava Diadorim? Nem eu não imaginava que pudesse largar Diadorim ali. Ele era meu companheiro, comigo tinha
de ir. Ah, naquela hora eu gostava dele na alma dos olhos, gostava da banda de fora de mim. (p.250)
O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo
lambente – “Diadorim, meu amor...” (p.408)
Um Diadorim só para mim. Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia. Mas, com minha mente, eu abraçava com meu corpo aquele Diadorim – que não era de
verdade. (p.409)
(…)my language will always fumble, stammer in order to attempt to express it, but I can never produce anything but a blank word, an empty vocable, which is the zero degree of all the sites where my very special desire for this particular other (and for no other) will form. (p.19)
Eu penso é assim, na paridade. O demônio na rua... Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei explicar estas coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é o
do sentidor. O que eu quero, é na palma da minha mão. (p.439)
Expondo ao senhor que o sucedido sofrimento sobrefoi já inteirado no começo; daí só mais aumentava. E o que era para ser. O que é pra ser – são as palavras!
(p.60)
I cannot decipher you because I do not know how you decipher me. (p.134)
O senhor vai ver. Eu era dois, diversos? O que não entendo hoje, naquele tempo eu não sabia. (p.700)
1-love-you is irrepressible and unforeseeable. (p.149)
Riobaldo nunca diz a Diadorim que o ama.
One day, I shall recall the scene, I shall lose myself in the past. The amorous scene, like the first ravishment, consists only of after-the-fact manipulations: this is anamnesis, which recovers only insignificant features in no way dramatic, as if I remembered time itself and only time: it is a fragrance without support, a texture of memory; something like a pure expenditure. (p.216)
Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas, antes delas acontecerem... Com isso minha fama clareia? Remei vida solta. Sertão: estes seus
vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra. (p.36)
Me lembro do que me lembro (...).(p.289)
Daí, mesmo, que, certa hora, Diadorim se chegou, com uma avença. Para meu sofrer, muito me lembro.
Diadorim, todo formosura. (p.730)
A meio me lembro, e conto, é só para firmar minha capacidade. (p.842)
The truth is what, being taken away, leaves nothing to be seen but death (as we say: life is no longer worth living). (p.230)
Ela tinha amor em mim. E aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que
narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi. (p.863)
Diadorim não é, já foie, quando era, era neblina, existe só e nas palavras e
memórias de Riobaldo: “The other is my good and my knowledge: only I know him, only I
make him exist in his truth. Whoever is not me is ignorant of the other (…).” (BARTHES,
1978, p.228).
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. A Lover’s Discourse: fragments. New York: Hill and Wang, 1978.
ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
PLATÃO. O Banquete, ou Do amor. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.