Nota de repúdio às agressões machistas cometidas na Peruada 2014

3
NOTA DE DENÚNCIA E REPÚDIO ÀS AGRESSÕES MACHISTAS NA PERUADA - COLETIVO FEMINISTA DANDARA - Resistir. Sim, resistir. Não vou calar não vou sofrer amordaçada quieta. Quanto mais tentarem me calar Tenham certeza Mais eu grito. (Raquel Aguiar) No dia 17 de outubro, a Faculdade de Direito da USP realizou a festa Peruada e, não diferente do que ocorre todos os anos, muitas mulheres relataram diversos casos de assédio e violências de gênero. Uma das estudantes da Faculdade relatou publicamente que, após assediar uma amiga sua, o estudante da faculdade e ginecologista Fabio Cabar agrediu fisicamente uma menina e um menino que a acompanhavam. Este, posteriormente, em post público no grupo da faculdade no Facebook, admitiu o ocorrido, desculpando-se pelo ato. Nós, do Coletivo Feminista Dandara, repudiamos toda e qualquer violência contra mulheres e acreditamos ser de grande valor as tentativas de restauração do dano causado à vítima. No entanto, entendemos que o mero pedido de desculpas por Facebook não encerra o problema, pois só alcança o âmbito privado da vida da atingida, não considerando o machismo enquanto motivação principal do ato. Isso porque, ainda que vivenciadas de formas diferentes por cada mulher, essas violências afetam a todas nós, não bastando apenas a conscientização e busca de emancipação individual. O machismo permeia todas as nossas relações cotidianas e se manifesta de forma mais ou menos sutil nas festas universitárias. Assim, não se trata de um caso isolado: todos os anos muitas mulheres são agredidas e assediadas na Peruada e a maioria desses fatos não vêm a público, pois as mulheres não se sentem à vontade expondo situações vexatórias, seja pela estigmatização, seja pelas tentativas de responsabilização da vítima pela agressão que sofreu. A nossa sociedade é baseada no sistema patriarcal e capitalista, que impõe uma necessidade de controle, apropriação e exploração do corpo, reproduzindo a cultura de que os corpos femininos servem ao prazer sexual masculino. Cabe ressaltar que o uso do álcool é comumente utilizado como justificativa para a agressão, como aconteceu nesta e em inúmeras situações (o álcool está associado à 50% dos casos de violência doméstica 1 ). Entendemos que o ele é apenas um desinibidor - assim como outros psicoativos - capaz de levar as pessoas a exteriorizar aquilo 1 Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) da Unifesp

description

Nota de denúncia e repúdio feita pelo Coletivo Feminista Dandara, da Faculdade de Direito da USP, em relação às agressões machistas cometidas na festa Peruada

Transcript of Nota de repúdio às agressões machistas cometidas na Peruada 2014

Page 1: Nota de repúdio às agressões machistas cometidas na Peruada 2014

NOTA DE DENÚNCIA E REPÚDIO ÀS AGRESSÕES MACHISTAS NA PERUADA- COLETIVO FEMINISTA DANDARA -

Resistir.Sim, resistir.Não vou calarnão vou sofrer amordaçadaquieta.

Quanto mais tentarem me calarTenham certezaMais eu grito.(Raquel Aguiar)

No dia 17 de outubro, a Faculdade de Direito da USP realizou a festa Peruada e, não diferente do que ocorre todos os anos, muitas mulheres relataram diversos casos de assédio e violências de gênero. Uma das estudantes da Faculdade relatou publicamente que, após assediar uma amiga sua, o estudante da faculdade e ginecologista Fabio Cabar agrediu fisicamente uma menina e um menino que a acompanhavam. Este, posteriormente, em post público no grupo da faculdade no Facebook, admitiu o ocorrido, desculpando-se pelo ato.

Nós, do Coletivo Feminista Dandara, repudiamos toda e qualquer violência contra mulheres e acreditamos ser de grande valor as tentativas de restauração do dano causado à vítima. No entanto, entendemos que o mero pedido de desculpas por Facebook não encerra o problema, pois só alcança o âmbito privado da vida da atingida, não considerando o machismo enquanto motivação principal do ato. Isso porque, ainda que vivenciadas de formas diferentes por cada mulher, essas violências afetam a todas nós, não bastando apenas a conscientização e busca de emancipação individual. O machismo permeia todas as nossas relações cotidianas e se manifesta de forma mais ou menos sutil nas festas universitárias. Assim, não se trata de um caso isolado: todos os anos muitas mulheres são agredidas e assediadas na Peruada e a maioria desses fatos não vêm a público, pois as mulheres não se sentem à vontade expondo situações vexatórias, seja pela estigmatização, seja pelas tentativas de responsabilização da vítima pela agressão que sofreu. A nossa sociedade é baseada no sistema patriarcal e capitalista, que impõe uma necessidade de controle, apropriação e exploração do corpo, reproduzindo a cultura de que os corpos femininos servem ao prazer sexual masculino.

Cabe ressaltar que o uso do álcool é comumente utilizado como justificativa para a agressão, como aconteceu nesta e em inúmeras situações (o álcool está associado à 50% dos casos de violência doméstica1). Entendemos que o ele é apenas um desinibidor - assim como outros psicoativos - capaz de levar as pessoas a exteriorizar aquilo que estava reprimido e jamais pode ser utilizado como elemento naturalizador da violência. Assim, estruturados na mentalidade machista, os atos violentos são facilitados e a agressividade masculina potencializada. O uso de quaisquer substâncias não pode dissimular o que de fato produz essa violência, isto é, a ideia enraizada de que o corpo feminino está disponível para ser usado como uma propriedade ou objeto, negando a autonomia das mulheres sobre seus corpos, seus desejos e suas perspectivas de vida.

Além disso, é preciso destacar que o próprio modelo da festa, como está posto, propicia que esse tipo de violência aconteça, a começar pelo espaço não acolhedor para as mulheres, que são diariamente constrangidas e agredidas na rua, de modo que, para muitas, a única maneira de se sentirem seguras é estando próximas de amigos homens. Além disso, a chamada para “soltar a lascívia acumulada” é outro ingrediente que torna esse ambiente particularmente hostil. Se, por um lado, somos cotidianamente estimulad@s a encerrar nossa sexualidade no âmbito privado, o que impossibilita que seja vivida livremente, por outro, na Peruada, somos encorajad@s a extravasar, sobretudo por meio do álcool e outras substâncias, toda a sexualidade reprimida ao longo do ano, o que acaba acontecendo de forma violenta e muitas vezes leva a abusos. Esse tipo de comportamento pode ser visto também em 1 Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) da Unifesp

Page 2: Nota de repúdio às agressões machistas cometidas na Peruada 2014

diversas festas universitárias, nas quais presenciamos infindos casos de assédio sexual e lesbofobia. Essa é, então, uma falsa libertação, não apenas pela assimétrica valoração dada a expressão da sexualidade feminina e masculina, mas também porque acontece às custas da opressão e violação das mulheres, que não estão livres para viverem sua sexualidade sem julgamentos morais e sem o constante risco da violência. Vale lembrar que 35% da população feminina no Brasil sofre com alguma disfunção sexual, sendo que uma a cada 10 mulheres tem problema com o desejo sexual e a cada 100, 35 nunca atingiram o orgasmo2. Eis a contradição: somos corpos erotizados, mas pouco gozamos da nossa própria sexualidade.

Nesse ponto, é importante perceber que tais violências ocorrem por conta de uma desigualdade estrutural entre homens e mulheres, construída e sustentada pelo machismo. Por isso, em que pese a necessidade de redimensionar o problema privado para entendê-lo como um problema social, esclarecermos que não reivindicamos o uso dos instrumentos penais como forma de combate à violência sexual de gênero, uma vez que são ineficazes para proteger as mulheres e que suas instituições não estão livres da reprodução do machismo. A Polícia, o Judiciário, o Executivo, o Legislativo, todos os poderes reproduzem essa lógica opressora, na medida em que duplicam a vitimação da mulher por meio da divisão discriminatória entre as honestas e as desonestas, isto é, as merecedoras ou não da proteção penal. No caso em questão, o exercício da violência institucional do sistema penal foi evidente: a vítima buscou a polícia para apresentar a denúncia de agressão, a qual não somente recusou-se a ajudar, como também a culpabilizou por estar naquele ambiente, como se estar na festa significasse compactuar com quaisquer tipos de violência. O sistema penal, essencialmente alienante para a mulher vítima de violência sexual, não previne novas violências e não dá valor aos interesses das vítimas, sendo insuficiente para a compreensão do conflito e, consequentemente, incapaz de transformar as relações de gênero.

Assim, a violência contra a mulher é um problema que deve ser superado mediante a organização coletiva das mulheres. É preciso repensar esse modelo de festa, permeado de violações às mulheres e que as coloca enquanto objetos de diversão, e não como sujeitos, para que possamos construir, juntas, um espaço que nos contemple. Essa necessidade fica muito clara quando relembramos a reunião espontânea de algumas estudantes, ocorrida ano passado após a Peruada, a fim de denunciar as violências que sofreram e expor essas histórias no espaço público. Esse processo de coletivização é uma forma de enfrentamento do problema e permite que as mulheres criem entre elas uma rede de apoio e segurança, para que olhem e cuidem umas das outras. As organizações das festas devem comprometer-se a garantir que as mulheres possam publicizar seus problemas, se elas assim quiserem, seja no momento do ocorrido ou depois. E embora as mulheres sejam protagonistas desse processo, é importante que os homens também se sintam responsáveis por realizar essa mudança e que atuem nesse sentido.

Por isso lutamos pelo fim da violência contra a mulher e de qualquer imposição de padrão sexual e de relacionamento e defendemos outras formas de entretenimento e diversão, menos machistas e violentas. Acreditamos que uma Faculdade que deseja se opor às injustiças sociais não tem outra escolha coerente senão inovar, aceitando o desafio de repensar formas de diversão, problematizando tais questões junto à comunidade acadêmica e propondo modelos de festas que refutem a coisificação das mulheres e outras expressões do machismo.

Acreditando nisso, convidamos todas as mulheres a estarem no páteo conosco entregando este texto para mostrar que não aceitamos e resistimos: chega de violência contra as mulheres!

2 Estudo Mosaico Brasil; 2008