Notas Sobre o Racismo à Brasileira - Roberto Da Matta

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  • 7/25/2019 Notas Sobre o Racismo Brasileira - Roberto Da Matta

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    PorRoberto Da Matta

    NOTAS SOBRE O RACISMO BRASILEIRA

    Esta minha interveno tem dois aspectos ou dimenses. De um lado, quero falar de fatossociais concretos - alguns,alis ,bem conhecidos do nosso racismo-, como sua manifestaoimplcita, disfarada e de difcil discusso, como se, entre ns, brasileiros, falar de racismofosse um tabu, de acordo com aquela tend!ncia que "lorestan "ernandes chamou, compropriedade,#o preconceito de ter preconceito#. De outro, quero me concentrar nas inter-relaes dos fatos sociais com os ideais polticos, alvo que - se bem entendo - move esteencontro e tem suas dificuldade especficas, sobretudo quando se trata de um tema todramtico quanto pungente, quando a $usta vontade de erradicar o preconceito certamenteembaa a discusso de suas caractersticas histricas e de sua organi%ao sociolgica oucultural.&ara tanto,quero comear relembrando um episdio de di% respeito ao assunto .Em '()*, quando estava em +ambridge , assachusetts, reali%ando , na niversidade dearvard, meu doutorado em antropologia social, fiquei sabendo da visita de um grupo deestudantes brasileiros. Eram lideres estudantis, convidados pelo Departamento de Estado do

    /overno dos Estados nidos, que reali%avam um programa de visitas a centros culturais norte-americanos e , em arvard, participavam de seminrios e debates.

    +arente de noticias do pas e de contato com compatriotas - aquela 0poca, 0 bom lembrar, nohavia e-mail,nem fa1,nem sede1, os estudantes no podiam via$ar tanto quanto ho$e - , fui aolocal da reunio.

    2, em um vasto salo harvardiano , dois negros americanos, se no me engano, ambospolticos locais e ligados ao chamado ovimento 3egro que estava surgindo, disseramdissertavam sobre suas e1peri!ncias aos $ovens lideres estudantis brasileiros. 2embro-me bemde que o ob$etivo dos polticos americanos era compartilhar, a partir da grande e1peri!ncia

    liberal americana',as conquistas dos negros em relao ao establishment branco, mudandolegislaes e provocando, por meio de um ativismo pacifico, democrtico e consistente, aintegrao poltica e $udiciria dos Estados nidos como nao e, no limite da esperana ,como sociedade.

    4o t0rmino do discurso dos americanos, os estudantes brasileiros iniciaram uma s0rie deperguntas-comentrios provocadoras e um tanto impertinentes. Di%iam, por e1emplo, que asmudanas polticas mencionadas no eram efetivamente transformaes de estrutura, quecontinuava fundada no mercado. 4legavam que a modificao aparente do quadro dos direitosdas minorias no mudava o cerne do problema 5 a estrutura do capitalismo fundada nae1plorao do trabalho, continuava em vigor. 6nsinuavam, como era comum naquela d0cada,

    que, para mudar as relaes raciais, seria necessrio primeiro modificar todo o #sistema#pormeio de uma revoluo .

    Depois de cerca de trinta minutos de impasse ideolgico, um dos palestrantes negros resolveuendurecer e disse mais ou menos o seguinte, olhando durante sua plat0ia de brasileiros5

    Curioso que vocs cobrem tanto do nosso sistema. O fato que estamos trabalhando com o

    que podemos para mudar as relaes raciais por aqui. Vocs que se di!em uma democracia

    racial s"o muito piores em termos pr#ticos. $ois ve%am s&' no meio de mais ou menos oitenta

    estudantes brasileiros eu ve%o apenas sete ou oito ne(ros. ) (rande maioria branca. Onde

    est# a tal *democracia racial* de vocs +.4ps a reunio, fui me encontrar com o grupo e logo

    descobri a perturbao dos brasileiros diante do seguinte problema5 quem era o negro que osamericanos haviam descoberto entre eles7 &ois, como me disse um dos estudantes, com

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    e1ceo de uma ou duas pessoas, no havia preto #entre eles#...Essa historia tem o m0rito de revelar o corao do problema, pois situa com dramaticidade umfato social bsico5 como as sociedades classificam suas eventuais variedades 0tnicas .

    &ois, se falamos de relaes raciais de uma perspectiva sociolgica, 0 preciso distinguir de

    sada a miscigenao como fato emprico, isto 0, como o resultado biolgico do encontrose1ual de brancos, negros e ndios - para ficar na trilogia clssica da fbula racial brasileira -,do modo pelo qual cada sociedade trabalha esse resultado, reconhecido-o ou no como emfato social concreto. +omo no h sistema valor, moralidade, mitologia ou sistema declassificao que se$a #natural# ou mais pr1imo de uma nature%a humana, pois todos soarbitrrios, e1iste uma variedade intrigante nos modos de lidar com os mestios.8 que chama aateno quando se compara a e1ist!ncia classificatria americana com a brasileira, 0 o fato deque, embora e1istam #mulatos# ou #mestios#, tanto nos Estados nidos quanto no 9rasil, nasociedade brasileira esses mestios tem um reconhecimento cultural e ideolgico e1plicito,quanto que, no caso americano, eles se submergem como #brancos# ou como #negros #. 8resultado 0 que o sistema americano persegue a distino e a compartimentali%ao dos tipos0tnicos em grupos autocontidos,contrastantes, aut:nomos e socialmente coerentes, isto 0, sem

    mistura. 2 o sistema tem repulsa pela ambig;idade, pelo mais ou menos e pelo meio-termo.4ssim, ou se 0 #branco# ou se 0 #negro#, #hisp enquanto que , no 9rasil, o sistemainclui hierarqui%a de modo complementar, de acordo com o princpio do desigual ,mais $usto#.+om isso, o sistema brasileiro estabelece que, entre brancos e negros, h uma gradaocomple1a e mais5 que todas as etnias de fato se complementam para a formao do #povobrasileiro#, pois o que falta em uma, e1iste de sobra na outra, conforme tentei revelar alhures,

    em um ensaio no qual tento elucidar a nossa #fabula de tr!s raas#.?

    @@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@

    ,.-este conteto vale acentuar que considero importante a distin"o entre na"o / ou 0stado/-acional / e sociedade como duas distintas e at mesmo

    contradit&rias de coletividade. De modo breve a na"o uma coletividade fundada na idia de soberania de territorialidade e de leis epl1citas. 2ua unidade

    especial b#sica o indiv1duo / o cidad"o / que nela dotado de autonomia liberdade i(ualdade pol1tica e %ur1dica e responsabilidade. 3# a sociedade dispensa o

    territ&rio tem leis impl1citas / (eralmente conceituadas como mandamentos tabus pecados ou normas normais indiscut1veis e dadas pelos deuses e her&is

    civili!adores / e sua unidade fundamental a fam1lia o cl" a aldeia ou um elo social. 4ma sociedade pode estar em (uerra com sua na"o como parece fa!er

    prova ho%e o caso de 4(anda e 5urundi. -ormalmente na"o e sociedade est"o em conflito pois os ideais nacionais nem sempre s"o reali!ados pela sociedade

    nas suas pr#ticas. -esse sentido o caso do 5rasil interessante porque fomos uma na"o que adotou princ1pios i(ualit#rios mas t1nhamos uma sociedade

    hierarqui!ada constitu1da que era por nobres cidad"o livres e escravos. $ara maiores consideraes sobre esse ponto ve%a /se Da Matta Conto de mentirosos'

    2ete ensaios de antropolo(ia brasileira Rio de 3aneiro Rocco ,667.

    8.Cf . Roberto Da Matta Relativi!ando' 4ma introdu"o 9 antropolo(ia social Rio de 3aneiroRocco.

    m dos mais lAcidos estudiosos de sistemas raciais, o socilogo 8racB 3ogueira, fala de umcontraste entre um #preconceito de marca#, tpico do 9rasil, e de um #preconceito de origem#,

    vigente nos Estados nidos. 8utros, como o historiador social norte-americano +arl Degler ,elaborara a distino e1plicitando historicamente o #mulato# como uma vlvula de escape> ou,

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    em termos de minha interpretao, afirmando que, no caso brasileiro, o mulato era um lugarsocial reconhecido e marcado e no algo va%io de sentido como acontece nos Estados nidos.

    8 problema bsico por0m - problema sem o qual a questo racial no pode ser entendida --,$a% no estilo cultural por meio do qual as duas sociedades elaboram, constroem e lidam com as

    suas diferenas. Desse modo no se nega a presena de #mestios#, nem nos Estados nidos,nem na Cfrica do ul. ampouco se nega a presena de iniq;idade no caso brasileiro, que foi etem sido igualmente in$usto e violento para com os #diferentes #, sobre tudo os negros. as sesalienta que a mestiagem 0 percebida de modo diverso nessas sociedades. E mais5 quecompreender o modo pelo qual cada sistema ordena suas percepes sociais 0 um fato socialfundamental para construo de medidas orientadas para a implementao de maisoportunidade e mais igualdade para todas as minorias.

    3o caso do 9rasil, a id0ia de hierarquia tem duas caractersticas5

    '. Ela atua por meio de uma lgica complementar que, embora limite a ascenso dos#diferentes#, no os dispensa como tal. 8u se$a 5 a complementaridade se e1prime em umaideologia segundo a qual negros, brancos e ndios formam um tri que os negros formavam uma quase maioria da populao, gerando umainevitvel consci!ncia de que todos se ligavam pela cor da pele e de que saamos

    gradualmente do regime de trabalho escravo, transformando o escravo em cliente e em sub-cidado, o racismo I brasileira tende a se manifestar de modo implcito, dando ou tirandonegritude ou indianidade ou estrangeirice de qual quer pessoa.

    Em uma palavra, tara-se, como $ indicativa 8racB 3ogueira, de um sistema de preconceito noqual o conte1to 0 determinante. 4ssim, se fulano dei1a de atuar de acordo com esse cdigoimplcito, ele poder ser #enegrecido# ou #acaboclado#. Desse modo, um pessoa pode ser alvode muitas classificaes raciais, que gera uma notvel insegurana classificatria, inseguranaque, ao lado da import

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    implementao da ideologia racial no plano legal. E, ainda, a criao de grupo de milit no brasileiro, contrauma acomodao que, propositadamente, troca reconhecimento da mestiagem comoaus!ncia de preconceito e, no limite da segregao de oportunidades.

    er, pois, a partir desses constataes que se deve discutir o sistema racial brasileiro. msistema, repito, que tanto se funda na parado1al dificuldade de classificar negros e brancos,quando se estrutura no fato de que cada categoria racial conhece o seu lugar em umahierarquia.2egislar positivamente para tal sistema demanda apanhar a sua intelig!nciasociolgica.

    eria tudo isso um empecilho I ao afirmativa, I democracia ou I igualdade de oportunidades7 +laro que noK as seria preciso levar em conta o seguinte 5

    '. Fue ao afirmativa se$a concebida a partir do sistema e considere a origem e o fato de queo nosso sistema 0 gradativo e, mais que isso,conte1tual e relativamente eletivo.&essoas ficam#brancas# ou #negras# de acordo com suas atitudes, sucesso e, sobretudo, relacionamentos.

    ?. Fue se deve ter em conta as dificuldades do programa de #ao afirmativa# dentro darealidade americana como, aliais, alguns dos participantes do seminrio chamaram a ateno.Do mesmo modo que a #mulataria# no acabou com o nosso preconceito, a #ao afirmativa#tamb0m no liquidou o lado negativo das relaes raciais nos Estados nidos. 4o contrrio, ela

    a tem reforado, embora tenha provocado maior participao de negros em certas instituiese ambientes daquela sociedade.

    L. "inalmente, cabe considerar se mudar a lei seria realmente o ponto mais importante,sobretudo em um pas onde as leis mudam com mais facilidade que prticas sociais.3esse sentido, caberia perguntar se, ao lado dessa discusso $urdica,no se deveriaaprofundar o seguinte5

    ' .Meali%ar uma campanha nacional, utili%ando sobretudo a televiso, na qual os brasileiros sevissem confrontados com os seus mecanismos implcitos de e1cluso racial.3esse tipo decampanha, valeria a pena valori%ar figuras de negros historicamente importantes, ressaltando o

    lado 0tnico e, tamb0m, denunciando as mil formas de hipocrisia pelas quais a discriminao see1erce no 9rasil.

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    ?. Messaltar o fato de que a id0ia de que temos uma #democracia racial# 0 algo respeitvel.Fuanto mais ou se$a, porque, apesar do nosso tenebroso passando escravocrata, samos doescravismo com um sistema de preconceito, 0 certo, mas sem as famosas # 2eis =im +roN #americanas, que implementavam e, pior que isso, legitimavam o racismo, por meio dasegregao no campo legal.

    3o se trata - conv0m enfati%ar para evitar mal entendidos - de utili%ar a e1presso no seusentido mistificador, mas de resgat-la como um patrim:nio que se$a capa% de fa%er com que o9rasil - nao, honrando com seu comprometimento igualitrio, possa resgatar a sua imensadivida com esses negros que tiveram o mais passado fardo na construo do 9rasil -sociedade.