NOTÍCIAS BIOGRÁFICAS DE CORNÉLIO À LÁPIDE
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Cornelius a Lapide, sj (1597-1637)
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NOTÍCIAS BIOGRÁFICAS DE CORNÉLIO À LÁPIDETradução por Uyrajá Lucas Mota Diniz
Cornélio à Lápide, ou seja, Cornelis Van den Steen, era natural de Bucold,
área do Estado e Diocese de Lieja. Nasceu em 1566, data memorável naquelas
comarcas. O Duque de Alba acabava de tomar as rendas do governo das provínciasde Flandes e de Holanda que Guilherme, o Taciturno, dispunha-se a sublevar contra
o rei de Espanha, Filipe II. Bucold, pátria de Cornélio, e Louvain, que habitou até
quase os cinquenta anos, estão situadas próximas das terras baixas e pantanosas
onde a casa de Orange obteve a modesta cadeira de estadouder 1, que foi para ela o
primeiro escalão do trono da Inglaterra. Assim, pois, o fluxo e refluxo das tropas
espanholas, os esquadrões alemães, dos pseudo reformados e católicos em pé de
guerra, várias vezes chegou ao dintel de sua morada.
Ademais, se recordamos estes acontecimentos, não é porque Cornélio
desempenhasse neles um papel ativo, senão que influíram sobre seus pensamentos,
suas determinações e sua vida, e formam o fundo, por assim dizer, no qual se
destaca seu puro e pacífico retrato.
1 Estatuder (em holandês: stadhouder, é alguém que mantém um lugar, similar a "regente" ) foi um cargo político das antigas províncias do norte dos Países Baixos que envolvia funções executivas.
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Faltam-nos detalhes sobre a infância de Cornélio à Lapide; sabemos somente
que, desde sua adolescência, entregou-se à Companhia de Jesus, que cumpria
gloriosamente a missão recebida de Deus e contava, em suas filas, o mais escolhido
da cristandade2.
O jovem noviço era muito baixo de estatura3 e de tão débil compleição, que
seu estômago chegou a não poder digerir os alimentos que tomavam seus
companheiros; alimentos que, por austeridade, jamais quis modificar. Sentia-se
vivamente inclinado ao retiro e ao silêncio; e sua regra de conduta era a seguinte
máxima da sabedoria antiga: Oculta sua vida. A Ordem da qual fazia parte parecia-
lhe certo asilo onde poderia viver na obscuridade, e era amigo de repetir as palavras
de Jó: In nidulo meo moriar. Outros, sem embargo, eram os desígnios do Altíssimo.
É verdade que Cornélio morreu na Companhia de Jesus; porém, a maior parte de
sua vida ficou longe de ser a do pássaro oculto em seu ninho, em meio do profundo
silêncio ou dos misteriosos murmúrios das dilatadas selvas. Cornélio era um
daqueles homens que Deus escolhe em tempos de tempestade e de luta para
converter-lhes em principais atletas do exército santo. Tinha um coração puro, a
alma plena de caridade e de humildade, e os padecimentos que cada dia sofriaforam, sem dúvida, o melhor título ante um Chefe coroado de espinhos. Tais
padecimentos mantinham em seu coração o desinteresse das coisas mundanas,
obrigavam-lhe a ser resignado e paciente, e lhe fizeram cada dia mais merecedor
das inspirações do Espírito Santo. Não vemos outra explicação senão a de que a
incompreensível Providência se deleita em eleger frequentemente instrumentos
débeis para que mais ressalte que somente Ela é capaz de empregá-los. O Céu
chamava a Cornélio, o homem quase inano, o enfermiço, não somente para que
tomasse parte nas tarefas apostólicas da Ordem religiosa que ocupava o posto mais
2 É hoje em dia geralmente desconhecido o entusiasmo com que a juventude católica reuniu-se sob a bandeirade Santo Inácio de Loyola, a fim de fazer frente ao Protestantismo. A dedicatória das obras póstumas deCornélio à Lápide dá-nos dele uma ligeira ideia. Nucio de Anvers, impressor de Cornélio, diz que tinha naCompanhia de Jesus a um filho seu e a seus sobrinhos, filhos de suas três irmãs – tal era o contingente deuma só família.3 Um dos biógrafos de Cornélio à Lápide conta sobre o particular o seguinte episódio: “Tendo, um dia, ohonroso encargo de dirigir a palavra ao Papa, Cornélio começou de joelhos seu discurso, porém o Santo
Padre convidou-lhe a levantar-se. Apesar de haver obedecido no momento, sua pequena estatura fez presumir ao Soberano Pontífice que continuava na mesma posição pelo que lhe convidou novamente a que se levantasse. Então Cornélio, compreendendo o motivo desta nova ordem, exclamou com modéstia: Beatissime Pater, ipse, fecit nos, et non ipsi nos” [Santo Padre, (Deus) mesmo nos fez, e não nós mesmos] (LEGUY, Biografia Universal ).
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arriscado da luta, senão para prestar ademais serviços especiais à Igreja, serviços
independentes da vida monástica: os que escritor e doutor .
Esta vocação manifestou-se precocemente.
O Protestantismo agarrava-se ao texto da Sagrada Escritura, o
desnaturalizava e eliminava livros inteiros, arruinando deste modo a Tradição
Católica em sua origem. Cornélio à Lápide sentiu-se pleno de entusiasmo para o
estudo do Hebraico, dos Escolásticos e dos Comentadores, de tal modo que aos
vinte e oito anos já era catedrático de Língua Hebraica e de Sagrada Escritura no
Colégio de Louvain, e dezenove anos mais tarde publicava, por obediência,
admiráveis Comentários sobre as Epístolas de São Paulo, quando seu nome já
ocupava um lugar distinto entre os exegetas católicos. Ao morrer, deixou escritos
dez enormes volumes em fólio sobre o Antigo e o Novo Testamento.
Para apreciar o alcance e o valor de uma obra tão considerável, é preciso
conhecer de que maneira Cornélio olhou para a Escritura. Ele mesmo no-lo indica
nos Prolegômenos com que prefaciou seus comentários sobre o Pentateuco. Seja-nos permitido resumir algumas de suas páginas.
O universo é um livro que expõe quem é Deus; com regras, foi formado
como “tipo” da esfera incriada, e se lhe chamou espelho das coisas divinas. Sem
embargo, em sua imperfeição, o universo não nos oferece uma ideia clara e exata da
Divindade, senão unicamente vestígios por meio dos quais é fácil reconhecê-La.
Acrescenta-se que o livro da natureza não nos ensina as verdades de ordem
sobrenatural, nem o que conduz ao Céu da Santíssima Trindade e à felicidade
eterna, objeto dos desejos do homem durante sua vida e na hora da morte.
Por esta razão, a bondade divina acreditou ser conveniente dar-nos outro
Livro além daquele do universo. Um livro no qual o homem encontrará não umaimagem muda da Divindade, sem características que falassem à sua vista, sons que
ressoassem em seu ouvido, ensino que chegasse à sua alma e fizesse nasce nela
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ideias claras e viventes das coisas divinas; um Livro, por fim, no qual aprendesse a
conhecer a Deus, a conhecer a si mesmo, assim como aos espíritos celestiais, a
criação, as regras de conduta que deve observar, e os meios pelos quais há de chegar
à felicidade.
Este Livro é a Sagrada Escritura.
Abraça, seja de um modo expresso, seja em princípio, todas as ciências,
todas as regras, todas as noções.
Tudo quanto existe, pertence, com efeito, ou à ordem natural ou à ordem
sobrenatural, que pode também chamar-se a ordem da graça, ou melhor, a ordem
divina, que compreende a essência e os atributos de Deus.
As ciências físicas e a filosofia natural nos dão a conhecer o primeiro. Aqui
na terra, a doutrina revelada, isto é, a fé e a Teologia, e no Céu, a visão de Deus, que
é felicidade dos Anjos e dos Santos, nos dão a conhecer o segundo e o terceiro.
Ninguém pode duvidar que a Sagrada Escritura não somente nos ensina
verdade da ordem natural, senão que é necessária para no-las dar a conhecer
perfeitamente, porque, como diz Santo Tomás, a Filosofia não demonstra as
verdade desta ordem senão a pequeno número de pessoas, à força de tempo e
deixando infiltrar muitos erros.
Que luz tão resplandecente projetam os Santos Livros sobre Deus e seus
atributos, sobre a imortalidade da alma, a liberdade do homem, os castigos e as
recompensas futuras, e, por fim, sobre a criação! Ao desenvolver todas estas
questões, procedem com uma certeza e uma solidez tais que temos de negar às
ciências naturais e quando estas se extraviam, aquelas as levam a bom caminho.
Onde acharemos noções tão seguras sobre a criação e a origem do mundo,como as que não o Eclesiastes, Jó e o Gênesis? Não contém os livros históricos da
Bíblia a história primitiva de todos os povos e a única cronologia que não seja um
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tecido de datas falsas? Que lógica e que política possuem a lógica e a política
reveladas! Que tratado de moral pode comparar-se às curtas e profundas máximas
recolhidas no Livro da Sabedoria, no dos Provérbios e no do Eclesiástico? Que
metafísica poderá jamais igualar-se com a que desenvolve o Livro de Jó e os
Salmos que, com uma poesia admirável, celebram o poder, a sabedoria e a
imensidade de Deus, dos Anjos e todas as obras de suas mãos?
No tocante à ordem da graça e à ordem divina, é um mundo desconhecido da
Filosofia, ao qual somente a Revelação franqueia a entrada.
Em que escola, senão na Escritura, pode o homem aprender o concernente à
criação e à queda do homem; e à vida, a doutrina e a morte de Jesus Cristo; ao fim
do homem e às condições da bem-aventurança? Que doutrina tão maravilhosa a que
abraça todas essas verdades e se acha resumida nos Evangelhos e nas Epístolas dos
Apóstolos!
A ciência da Escritura é verdadeiramente uma enciclopédia divina: expõe
quanto nos interessa conhecer, e não fossem as verdades que encerra, os homensnão haveriam pronunciado nem uma palavra que mereça ser repetida. Assim é que
as obras dos Padres da Igreja, nos quais se acha mil vezes mais gênio, profundidade
e encanto que nas mais belas obras do mundo grego e romano, não são mais que
admiráveis comentários de um texto, todavia, mais admirável.
Santo Atanásio, São Basílio, São João Crisóstomo, Santo Ambrósio, São
Jerônimo, Santo Agostinho, todos os mais sábios Doutores, não tem nem um
pensamento que não se ache em gérmen, quando menos, na Escritura. São Gregório
Magno ia mais longe: dizia que existem nos Livros Santos tais mistérios, que ainda
não foram revelados aos homens e somente são conhecidos dos Anjos.
Disto se segue que, quase infinita em seu objeto, a ciência da Sagrada
Escritura é dificílima por causa de sua específica profundidade.
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Sob o ponto de vista das dificuldades da interpretação, encontramos uma
grande diferença entre os Livros Sagrados e os livros profanos; e é que cada frase
destes últimos não costuma conter mais que um sentido, enquanto que, nos Livros
Sagrados, contém até quatro:
- o sentido li teral , que é o que oferecem imediatamente as palavras ou os fatos
referidos.
- o sentido alegórico , quando estas palavras e estes fatos encobrem uma profecia
concernente a Jesus Cristo ou à Igreja;
- o senti do tropológico , quando contém um ensino que tem relação com os
costumes morais;
- o sent ido anagógico , quando apresentam como um enigma alguma verdade,
alguma revelação sobre a vida celestial4.
Notemos, ao mesmo tempo, que antes de empreende seriamente o estudo daEscritura e de seus grandes intérpretes, os Padres da Igreja, é necessário conhecer a
4 Em nossos dias, assim se expressa o Catecismo da Igreja Católica, sobre os sentidos da Escritura (## 115-119.): Segundo uma antiga tradição, podemos distinguir dois sentidos da Escritura: o sentido literal e o
sentido espiritual, sendo este último subdividido em sentido alegórico, moral e analógico. A concordância profunda entre os quatro sentidos garante toda a sua riqueza à leitura viva da Escritura na Igreja. O sentidoliteral. É o sentido significado pelas palavras da Escritura e descoberto pela exegese que segue as regras dacorreta interpretação. "Omnes sensus fundantur super litteralem - Todos os sentidos (da Sagrada Escritura)devem estar fundados no literal”. O sentido espiritual. Graças à unidade do projeto de Deus, não somente otexto da Escritura, mas também as realidades e os acontecimentos de que ele fala, podem ser sinais. 1. Osentido alegóri co. Podemos adquirir uma compreensão mais profunda dos acontecimentos reconhecendo a
significação deles em Cristo; assim, a travessia do Mar Vermelho é um sinal da vitória de Cristo, e tambémdo Batismo. 2. O sentido moral. Os acontecimentos relatados na Escritura devem conduzir-nos a um justoagir. Eles foram escritos "para nossa instrução" (1Cor 10,11) 3. O sentido anagógico. Podemos verrealidades e acontecimentos em sua significação eterna, conduzindo-nos (em grego: "anagogé"; pronuncie"anagogué") à nossa Pátria. Assim, a Igreja na terra é sinal da Jerusalém celeste. Um dístico medievalresume a significação dos quatro sentidos: L it tera gesta docei, qu id credas all egoria, moral is quid agas,
quo tendas anagogia (A letra ensina o que aconteceu; a alegoria, o que deves crer; a moral, o que deves fazer; a anagogia, para onde deves caminhar)."É dever dos exegetas esforçar-se, dentro dessas diretrizes, por entender e expor com maior aprofundamento o sentido da Sagrada Escritura, a fim de que, por seutrabalho como que preparatório, amadureça o julgamento da Igreja. Pois todas estas coisas que concernemà maneira de interpretar a Escritura estão sujeitas, em última instância, ao juízo da Igreja, que exerce odivino ministério e mandato do guardar e interpretar a Palavra de Deus" Ego vero Evangeli o non
crederem, nisi me cathol icae Ecclesiae commoveret auctor itas. (Eu não creria no Evangelho, se a isto nãome levasse a autoridade da Igreja católica").
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fundo os idiotismos5 do Grego e do Hebraico, línguas nas quais foram
primitivamente escritos os Livros Sagrados.
Cornélio aceitou valorosamente a missão. Prosseguiu a redação de seus
Comentários em meio das perigosas vicissitudes das guerras de religião que
desolavam Brabante e as possessões flamencas dos espanhóis, em meio do ruído
das controvérsias que até entre os católicos surgiam, como por exemplo as doutrinas
de Bayo, na Universidade de Louvain, apesar das fadigas inerentes ao professorado,
e certos indeclináveis trabalhos do ministério eclesiástico, como a confissão e a
pregação. Deus estendeu sobre ele sua mão protetora, os susteve, o fortificou e lhe
preservou de grandes perigos, e até da morte.
Eis aqui as circunstâncias: existia em Asprecolline, próxima de Louvain, uma
milagrosa capela dedicada à Virgem Maria, à qual havia ido Cornélio no dia 08 de
setembro de 1604 para ouvir as confissões de numerosos devotos de Maria,
anunciar-lhes a Palavra de Deus e celebrar o Santo Sacrifício. Mas, de repente, um
destacamento da Cavalaria Holandesa se precipitou sobre o venerado santuário
com tanto sigilo e rapidez, que todos os católicos foram surpreendidos. Então,aquele lugar se converteu na carnificina mais espantosa, e não contente o inimigo,
ateou fogo ao sagrado edifício. O primeiro movimento de Cornélio foi correr ao
Tabernáculo, retirar a Sagrada Eucaristia e conduzi-la consigo para que não fosse
profanada pelos hereges. Durante alguns instantes, Cornélio se encontrou rodeado
de inimigos, e só escapou por um notório milagre.
Lendo o relato deste acontecido, não parece que presenciamos algumas das
sangrentas cenas de que muitas daquelas aldeias foram testemunhas durante o
terror? Como Hércules, o protestantismo em sua infância preludiava as sangrentas
execuções que, uma vez idoso, devia levar a cabo sob o nome e o disfarce diferentes
dos de sua juventude.
5 Idiotismo ou idiomatismo é o traço ou construção peculiar a uma determinada língua, que não se encontrana maioria dos outros idiomas (Verbete “id iotismo” no Dicionário Eletrônico Houaiss).
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Ademais, Hércules e o protestantismo não seriam, no fundo, uma aparição do
antigo inimigo do gênero humano, fazendo-se adorar sob uma figura e
dogmatizando pela obra do outro?
Pouco depois de haver publicado seus comentários das epístolas de São
Paulo e no momento de dar à luz os do Penteteuco, Cornélio à Lápide foi chamado a
Roma. O padre Aguaviva, Geral da Companhia de Jesus, o distinguia
singularmente, preferindo-o a todos os demais membros da Ordem para o
desempenho da Cátedra de Sagrada Escritura no Colégio Romano.
Seguiu vários anos com aquele cargo, rodeado sempre de um brilho que
devia alarmar singularmente a um coração tão humilde como o seu. A cada
manifestação de apreço que recebia, inclinava sua fronte e balbuciava: “Em
consciência, sou seguramente o mais néscio dos homens. Quarenta anos faz que
estudo os Santos Livros, trinta anos faz que não me ocupo de outra coisa, e, sem
embargo, somente consegui entendê-los muito imperfeitamente”6.
Até o ano de 1620, sua dedicada saúde não lhe permitiu continuar com asrudes fainas que tinha a seu encargo. Abandonou o magistério e teve que se
contentar com prosseguir a redação de seus Comentários. Assim é que, por meio de
uma necessidade premente, a Providência deu-lhe aquela calma e aquela espécie de
solidão tão apetecidas do escritor, que há de folhear muitos volumes e tem que
dedicar-se a largas pesquisas.
O próprio Cornélio comunicou-nos o estado de sua alma e seus pensamentos
durante o ultimo período de sua vida.
“Fujo do ruído e da mansão dos poderosos” , diz-nos. “Busco o silêncio e o
retiro que tanto me gosta, sem ser inteiramente inútil. Vivo entre os Padres da
Igreja, e encontrei em Roma o asilo sagrado de Belém que São Jerônimo buscou
com tanto afã até o fundo da Palestina. Quando jovem, cumpri o cardo de Marta;agora, já em idade avançada, cumpro e me apraz cumprir o de Maria. Penso na
6 Alleganbe: De scriptoribus Societatis Jesu.
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brevidade da vida, estou sempre na presença de Deus, e me preparo para a
eternidade, na qual vou entrar. Agrada-me a cela7 , que sempre minha mais fiel
amiga, prefiro-a a todos os lugares do mundo, e me parece que é o céu aqui na
terra. Discípulo das santas musas, aspiro aos céus. Dedico-me a receber as
inspirações divinas, a meditar e celebrar os oráculos eternos. Sentado aos pés de
Cristo, recebo com recolhimento de sua boca palavras de vida para transmiti-las
aos demais homens”8.
Compostas em Louvain as primeiras obras de Cornélio, a saber: os
Comentários às Epístolas de São Paulo e os do Pentateuco, dedicou uns a Matias
Hovius, Arcebispo de Malinas, e os outros a F. H. Vanderburch, Arcebispo de
Cambray e príncipe do Santo Império; ambos estreitamente unidos a ele, e
particularmente o útimo, pelos laços de comum afeto e amor aos mesmos estudos.
Em Roma, Cornélio encerrou-se, como temos visto, em um profundo retiro, e
acreditou estar dispensado de dedicar suas obras aos homens. Os Comentários dos
Profetas, cujo primeiro tomo veio à lume em 16229, e o segundo em 162510, estão
dedicados a Deus Uno e Trino; os dos Atos dos Apóstolos, as Epístolas Canônicas eo Apocalipse, não tem dedicatória11; os do Eclesiástico12 estão postos sob o
patrocínio de Jesus Cristo, e os dos Livros de Salomão 13, acham-se oferecidos à
Virgem, Mãe da eterna Sabedoria.
“Recebei”, diz neles, “recebei , ó Virem santa e bendita, estes comentários
da Sabedoria (do Rei Salomão), do mais sábio dentre os homens. Pertencem-vos
por direito. A sabedoria deve voltar ao que a concede pelo mesmo canal que a
trouxe ao mundo”.
7 Pequena habitação dotada de escassa mobília, disponível aos habitantes ou visitantes de uma casa religiosa(Nota do tradutor).8 Veja-se a dedicatória que procede aos comentários sobre os Profetas Maiores.9 In quatuor Prophet. Majores Comment.10 In duodecim Prophet. Monoris Comment.11 1627.12 1634 13 In Prov. Salomonis Comment., 1635 – In Ecclesiasten, Sapient. Comment, 1638
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Cornélio pensava frequentemente na Bélgica, e sentia o não haver podido
regar aquele solo com seu sangue: ambicionava a coroa do martírio.
“Ó profetas do Senhor” , exclamava no prefácio de seus comentários sobre
os quatro Profetas Maiores. “Ó Pr ofetas do Senhor, que me fizestes partícipe de
vossa coroa de profeta e doutor, associai-me igualmente a vosso martírio para que
sele com meu sangue a verdade que me transmitistes! Somente assim será perfeito e
realizado o meu ensino. Passei muitos anos a explicar vossas palavras e em
comentá-las; eu vos fiz falar e profetizar com outra língua e, de certo modo,
profetizei convosco; alcançai-me, pois, do Pai das luzes, que o é também das
Misericórdias, o salário do profeta, isto é, o martírio”.
Cornélio Van den Steen, haveríamos de perguntar-lhe, mártyr significa
testemunha; por acaso, não recebestes vós a graça de ser testemunha da divindade e
do poder de Jesus Cristo, fazendo os três votos religiosos, sofrendo a triste prova de
vossa má saúde, e levando a cabo, com valor e perseverança, vossos trabalhos a
respeito dos Livros Sagrados? Se não derramastes vosso sangue pelo Salvador,
gastastes as forças de vosso corpo pela glória de seu nome, e esgotastes osmananciais de vossa vida. Por outro lado, o martírio é uma manifestação que tão
somente costuma durar algumas horas, alguns dias, quando muito; é uma
manifestação feita perante um certo número de pessoas, e que muitas vezes, nem
sequer fica registrada nas páginas da história; porém, a manifestação feita por
escritores eminentes, dura séculos inteiros, tem lugar perante todo o universo e se
reproduz a cada vez que são lidas suas obras. Acreditai-nos: invejável é o lugar que
recebestes entre os servidores de Deus.
Mas como nos atrevemos a consolar a alma que não foi chamada a cumprir o
único sacrifício que lhe faltava realizar pela causa que tanto amava!
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Cornélio à Lápide morreu em Roma, em 12 de março de 1637, à idade de 70
anos completos14. Deixou manuscritos seus comentários sobre os Evangelhos e a
maior parte dos livros históricos do Antigo Testamento.
O colégio Romano dedicou os Comentários sobre os Evangelhos ao príncipe
cardeal Francisco Barberini, chanceler da Santa Igreja Romana, sobrinho do Papa
Urbano VIII, e seu delegado na França e Espanha.
Ao princípio deste volume se acham as seguintes linhas:
“O professor cuja perda lamentamos desenvolveu muitíssimas máximas
relativas aos costumes; porém, podemos afirmar que ele pôs em prática quantas lhe
concerniam até tal grau, que seria impossível traçar uma história de sua vida tão
completa como a reprodução das regras de conduta que nos deixou em seu
Comentários. Cada vez que achemos o retrato de um personagem amigo da solidão
e da contemplação, figuremo-nos ter ante os olhos ao distinto Cornélio à Lápide”
Houve porventura oração fúnebre mais eloquente?
Escritos sem ordem em diferentes épocas, os Comentários de Cornélio
compreendem a Bíblia toda, exceto o Livro de Jó e os Salmos, sobre os quais
deixou notas incompletas que não foram publicadas.
Já temos indicado de que modo o sábio jesuíta olhava a Sagrada Escritura, e
é fácil formar-se uma ideia exata de sua obra. Não se contenta com expor de modo
claro e preciso os diversos sentidos do Sagrado Texto, pois quanto a isso, que forma
a base de todo o seu comentário, acrescenta o resumo da doutrina dos grandes
teólogos sobre todos os pontos importantes do dogma ou da moral, e citações muito
numerosas e variadas dos Santos Padres, dos autores ascéticos e até de filósofos e
dos poetas pagãos; e, finalmente, trechos seletos da história eclesiástica e profana, e
da vida dos Santos. Em uma palavra, abraça, pode-se dizer, a verdadeira ciência, a14 Longe de haver-se extinta a família Van den Steen, é hoje numerosíssima. Um membro desta família, oconde Van den Steen de Jehai, ministro plenipotenciário da Bélgica próximo da Santa Sé, morreu, faz poucosanos, em Roma, seu corpo descansa na Real Igreja de São Juliano dos Belgas.
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ciência de Deus, do homem, do mundo, estudada com a teia da Revelação, a única
que lança sobre os mistérios da terra uma luz satisfatória.
Cremos que Cornélio a Lápide é não somente o melhor e mais completo dos
comentadores que em tão grande número produziu a escola católica do século XVI,
senão talvez o primeiro entre todos, ao menos no gênero que adotou, gênero muito
excelente. É o único de quem tenhamos recebido um curso quase completo de
Sagrada Escritura explicada e desenvolvida com ajuda dos magníficos trabalhos dos
Santos Padres e da crítica de toda a Tradição.
A Providência quis permitir que passasse trinta anos de sua carreira de
escritor nos mais arriscados postos da cristandade, e a efetivasse logo em Roma
para que conhecesse a fundo o caráter da luta travada, e conservasse em seus
comentários a pureza do ensino da Mãe e Mestra das Igrejas. Vindo, por outro lado,
bastante tarde para não tropeçar em alguns escolhos que, em seu caminho,
encontraram aqueles que lhe precederam. Havia já passado o reinado de Aristóteles,
e se tocavam os resultados do descobrimento da imprensa. A plêiade de sábios
críticos dos fins do século XVI e do princípio do XVII acabava de publicar boasedições da maior parte dos Padres, sobretudo, de Santo Agostinho; assim, os
materiais de que Cornélio podia dispor eram bastante puros, e excetuando a maior
ou menor exatidão em atribuir a certos Doutores da Igreja sentenças pertencentes
provavelmente a outros, e excetuadas também teorias científicas hoje descartadas,
bem como alusões a fatos da história natural tidos por fábulas, não se pode censurar
senão a repetição de alguns conceitos já expressos, o defeito de não munir-se de
uma ordem rigorosa, e o de haver deixado notar uma grande desigualdade de valor
nas diferentes partes de sua obra.
Sem que temamos passar por panegiristas, permitir-nos-emos observar que
Cornélio à Lápide não pode dar sua última demão ao monumento que nos legou, e
que, por outro lado, as imperfeições indicadas eram quase inevitáveis.
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A Sagrada Escritura expressa frequentemente, uma mesma verdade em
termos quase idênticos; como é possível que os comentadores não repitam algo de
seu contexto?
Em segundo lugar, o defeito de ordem em Cornélio não é tão grande que
produza incoerência e confusão. Trata-se mais de um bem auxiliar que evita uma
uniformidade monótona que cansaria ao leitor, e privaria às palavras do professor
algo daquela liberdade tão preciosa em obras de vulto, quando não chega a
extrapolar-se.
Em terceiro lugar, todo comentador que não se detém em oferecer o sentido
do texto, colhe dos Padres e autores eclesiásticos a maior parte do trabalho que
adiciona. Estes, contudo, não explicaram todos os versículos, nem tampouco todos
os livros da Sagrada Escritura. Limitaram-se aos mais importantes sob o ponto de
vista da doutrina, do uso frequente que deles fazia a Liturgia, e das necessidades dos
povos que tinham que instruir.
Assim é que os livros históricos, excetuados os do Gênesis, os Evangelhos eos Atos dos Apóstolos, não tiveram comentadores. Ainda que citados com
frequência, os livros morais do Antigo Testamento não foram reunidos em um
tratado completo; e, por fim, até os que mais foram examinados, foram-no por
autores de distinto alcance e com notável desigualdade em sua extensão.
Citando os principais, São Jerônimo, Santo Agostinho, São Cirilo de
Alexandria, deixaram preciosos trabalhos sobre os profetas.
São Basílio, Santo Ambrósio, São João Crisóstomo, e sobretudo o ilustre
bispo de Hipona, espargiram vivos esplendores sobre os mistérios do Gênesis.
Os dois últimos e Santo Tomás de Aquino fizeram largos e admiráveis
estudos sobre São Mateus, São João, os Atos dos Apóstolos e as Epístolas de SãoPaulo.
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Muito conhecida é a magnífica paráfrase de Jó por São Gregório Magno. São
Gregório de Nissa e São Bernardo explicaram o Cântico dos Cânticos.
A maior parte dos Padres da Igreja, e entre outros São Basílio, Santo
Ambrósio e Santo Agostinho, escreveram páginas incomparáveis sobre os Salmos.
Resulta, pois, do que foi exposto, que por maior que seja a ciência, o talento
e o gosto do exegeta, os comentários largos dos livros da Sagrada Escritura que
indicamos, hão de ser naturalmente superiores aos daqueles que não ocuparam
bastante aos príncipes da ciência cristã.
Cornélio à Lápide teve que sujeitar-se à lei geral: é quanto se pode dizer.
Sem embargo, sua vasta erudição o pôs em estado de lutar contra ela, e não
sucumbiu senão em partes. Assim que seus comentários sobre os livros morais do
Antigo Testamento, e especialmente os que acompanham ao Livro do Eclesiástico,
nada deixam a desejar. Tomados em conjunto, do Pentateuco ao Apocalipse, tem a
maior riqueza de erudição sagrada que conhecemos15.
Por outro lado, cabal justiça fez-lhe a cristandade: poucas obras completas
existem de Padres da Igreja que foram reimpressas tão frequentemente como as do
sábio professor do Colégio Romano. Dos Comentários sobre as Epístolas de São
Paulo que passam, em verdade, por ser os melhores que saíram de sua pena,
fizeram-se cinco edições, tão somente em Anvers, no espaço de uns vinte anos.
Somente a França, entre todas as províncias da Igreja, manifestou-se
demasiado severa, ou melhor dito, injusta para com Cornélio à Lápide, aos finais do
século XVII e durante o século XVIII.
15 Aqui referimos um episódio cuja verdade garantimos: O abade de um monastério francês felicitava certodia ao general de uma Ordem, expressando-lhe a surpresa e a admiração que lhe inspirava o vasto saber deque havia dado tantas provas, seja em seus discursos, seja em seus escritos: “ Muito vos enganais, contestou-lhe o modesto e eloquente religioso, não conheço mais Padres da Igreja do que os que encontrei emCornélio à Lápide, e minha vasta ciência se limita a possuir perfeitamente as obras deste grandecomentador da Escritura!
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Sucessivamente, foi maltratado mais ou menos por Moreri, Richard Simon,
Dom Cardon, Ellies Dupin, etc. Porém, isto a ninguém causa admiração. A França
que tão enérgica e gloriosamente combateu os erros da pseudo-Reforma, sofreu em
parte, sobretudo no concernente à vida da alma, a influência do espírito protestante.
Em vez de um racionalismo dogmático, viu nascer e estender-se uma espécie de
racionalismo moral: a maior parte de nossos padres compreenderam mal as relações
do homem com Deus e a ação de Deus sobre o homem. Um vento glacial passou
sobre o coração e murchou demais aquela maravilhosa flor, plena de atrativos e de
perfumes, que se chamava piedade católica.
O céu pareceu de bronze; o sobrenatural quase desapareceu, ou pouco menos,
da vida dos homens e da história moderna; o que se chamava excesso de confiança
em Deus, foi severamente vituperado, e o culto à bendita Virgem Maria reduziu-se a
estreitos limites. Como era possível que achassem favor os comentários de Cornélio
à Lapide, impregnados de piedade e do espírito de outras idades?
Dom Cardon, autor suspeito de heresia, os trata audazmente de “compilações
informes, plenas de contos, de lendas e bagatelas”.
Em nossos tempos, a Biografia Universal de Michaud foi mais justa.
Qualifica Cornélio de “orador eloquente, tão profundo em Filosofia e Teologia
como versado em História”.
Que contraste entre este juízo e o que lhe precede!
Abstivemo-nos de pôr em relevo as vicissitudes que experimentou entre nós
(na França) a obra de Cornélio à Lápide, se nosso século não fosse, segundo a
expressão de um jovem e sábio eclesiástico16, o século das reparações, e se
Cornélio não tivesse direito a que assinalássemos aqui a que lhe é devida, ao menos
na França.
16 O presbítero Darbois, prólogo da tradução das Obras de São Dionísio, o Areopagita.
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As principais edições da obra completa do jesuíta de Bucold, uma das glórias
da Companhia de Jesus, tão fecunda em sábios escritores, são as de Anvers, de dez
volumes em fólio (1618-1642), a de Veneza (1711), e a de Lyon (1732), ambas de
dezesseis volumes em fólio.
Nestes últimos anos, a casa de Pelagaud de Lyon publicou também uma
edição de Cornélio à Lápide que consta de vinte volumes.