NOUVEAUX BRÉSILS FIN DE SIÈCLE || A telenovela brasileira : do nacionalismo à exportação

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Presses Universitaires du Mirail A telenovela brasileira : do nacionalismo àexportação Author(s): Lidia SANTOS Source: Caravelle (1988-), No. 75, NOUVEAUX BRÉSILS FIN DE SIÈCLE (Décembre 2000), pp. 137- 150 Published by: Presses Universitaires du Mirail Stable URL: http://www.jstor.org/stable/40853837 . Accessed: 14/06/2014 14:45 Your use of the JSTOR archive indicates your acceptance of the Terms & Conditions of Use, available at . http://www.jstor.org/page/info/about/policies/terms.jsp . JSTOR is a not-for-profit service that helps scholars, researchers, and students discover, use, and build upon a wide range of content in a trusted digital archive. We use information technology and tools to increase productivity and facilitate new forms of scholarship. For more information about JSTOR, please contact [email protected]. . Presses Universitaires du Mirail is collaborating with JSTOR to digitize, preserve and extend access to Caravelle (1988-). http://www.jstor.org This content downloaded from 195.34.78.81 on Sat, 14 Jun 2014 14:45:32 PM All use subject to JSTOR Terms and Conditions

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Presses Universitaires du Mirail

A telenovela brasileira : do nacionalismo àexportaçãoAuthor(s): Lidia SANTOSSource: Caravelle (1988-), No. 75, NOUVEAUX BRÉSILS FIN DE SIÈCLE (Décembre 2000), pp. 137-150Published by: Presses Universitaires du MirailStable URL: http://www.jstor.org/stable/40853837 .

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CM.H.LB. Caravelle n° 75, p. 137-150, Toulouse, 2000

A telenovela brasileira : do nacionalismo a exportação

PAR

Lidia SANTOS Yale University

A telenovela brasileira é hoje um rentável produto de exportação. Feuilleton televisivo de transmissão diária, cuja estória pode durar meses no ar, ela está incorporada no quotidiano dos brasileiros. Sua presença nas conversas diárias, nas gírias e expressões lingüísticas do dia-a-dia, e mesmo nas pesquisas académicas das ciências sociais e humanas, especialmente nas áreas que se dedicam aos estudos do quotidiano, indica que o produto atingiu plenamente os objetivos traçados quando de sua passagem da exibição em dias alternados para a transmissão diária.l O fato, só tornado possível com a possibilidade de gravação dos episódios, através do uso do video-tape, foi assim descrito pelo primeiro diretor artístico da TV Excelsior: « era possível montar o cenário e num só dia, gravar todos os capítulos da novela, e depois passar horizontalmente durante toda a semana. Do ponto de vista da dona-de-casa, ela sabia que todo dia às 8 horas tinha novela; é como todo dia ter que fazer almoço e levar a criança para a escola. Entrou no quotidiano! »2 Talvez seja este

1 As pesquisas sobre a telenovela brasileira se desenvolvem em vários campos das ciências sociais e humanas. Na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, o Núcleo de Pesquisa sobre a telenovela coordena boa parte das pesquisas brasileiras, embora haja centros similares em Brasília e no Rio de Janeiro. Ver Anamaria Fadul, ed. Ficção Seriada na TV. As Telenovelas Latino- Americanas. Com uma bibliografìa anotada da telenovela brasileira (São Paulo: Núcleo de Pesquisa da Telenovela, ECA-USP, 1992. Na Colômbia, o trabalho de Jesús Martín-Barbero e Sonia Muñoz é outra referência. Ver Jesús Martín-Barbero y Sonia Muñoz, org. Televisión y melodrama: géneros y lecturas de las telenovelas en Colombia (Bogotá: Tercer Mundo Ed., 1992). 2 Alvaro Moya, entrevista com Walter Durst, Funarte, Rio de Janeiro, 1982. Apud José M. O. Ramos & Silvia H. S. Borelli, «A Telenovela Diária», Renato Ortiz, Silvia Helena Simões Borelli & José Mário Ortiz Ramos, Telenovela. História e Produção (São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 54-108), p. 61.

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cotidiano que os imigrantes brasileiros nos Estados Unidos buscam ao fazer fila, às sextas-feiras, para alugar nas lojas de vídeo das comunidades brasileiras dos estados de Connecticut e Boston, a preciosa fita que contém os episódios de toda a semana da novela que está passando no Brasil. 3

O comentário ilustra também outro aspecto a ser levado em conta na especificidade da telenovela brasileira: ela é o produto que melhor espelha o pioneirismo dos profissionais de televisão do Brasil, que representa hoje um importante mercado de trabalho para a gente de formação média e universitária que não tem como localizar-se num país de poucos leitores e uma rede instável de instituições culturais. Uma telenovela recente, O Rei do Gado (1996) de Benedito Barbosa, autor conhecido por sua tentativa de « elevar » o nível das imagens televisivas é um bom exemplo. Nos seus primeiros capítulos se podia constatar o objetivo de conseguir uma estética « cinematográfica » que também possibilitasse mostrar aspectos desconhecidos da geografia e da história brasileiras. Como nas demais novelas « modernas » brasileiras, parte-se de um problema em voga no país. No caso de Benedito Barbosa, a problemática parte sempre do mundo rural. Em O Rei do Gado se fazia alusão ao embate entre o movimento dos sem-terra e a UDR, associação de proprietários rurais de tendência direitista. Nos primeiros capítulos ou, segundo a terminologia da teoria literária, na apresentação da novela, faz-se uma retrospectiva da estória familiar do futuro protagonista, descendente de uma família de imigrantes italianos, caracterizada por bons valores morais. Na tradição da vendetta italiana, e usando de maneira remota a trama shakespereana de Romeu e Julieta, a novela começa contando as peripécias do amor proibido de um ancestral do protagonista, apaixonado pela filha da família vizinha e inimiga.

Apesar da pretensa cinematografia das imagens e da « seriedade » e « atualidade » do tema - a imigração europeia do início do século aliada às mudanças da economia agrária no Brasil - as imagens iniciais da telenovela O Rei do Gado demonstram a fidelidade do produto ao objetivo central das telenovelas: a cultura dos sentimentos. O ciclo económico do café, amplamente marcado pela redundância das imagens do cafezal, aparece como pano de fundo para a história amorosa em que estão envolvidos os personagens, mostrados em close. Suas faces e seus movimentos se marcam pela paixão, sentimento que prende o espectador desde o primeiro minuto.

Segundo Beatriz Sarlo, a diferença entre a alta literatura e a literatura sentimental reside no fato que « na tradição culta, quando a hegemonia do amor-paixão se implanta, é sempre instável, assediada por outros

3 Constatei o fato em 1996, antes de que a Rede Globo abrisse seu canal nos Estados Unidos, o que pode ter mudado essa demanda. Na época, havia uma rede que copiava os episódios e os alugava ou vendia em bloco a cada sexta-feira.

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sentimentos e paixões vinculadas à economia, à política, ao prestígio, à ascensão social, ao êxito intelectual e mundano »A Na literatura sentimental, género no qual se originam as telenovelas, ao contrário, todo o enredo gira em torno do amor-paixão, sentimento também entendido de forma estereotipada, já que é, quase sempre, origem de sofrimentos intermináveis por parte dos personagens nele envolvidos. A origem burguesa da cultura sentimental - nascida no século XIX, com o feuilleton - tende a castigar esse amor que foge às regras do bom matrimonio burguês.

Mas o interesse atual pelas telenovelas, que vem produzindo quase uma centena de livros académicos a cada ano, durante os últimos quatro anos, parece dirigir-se não à sua origem, mas à sua permanência. O fato de que a telenovela brasileira seja hoje exportada para 128 diferentes países, conforme nos faz saber Anamaria Fadul, indica que o amor-paixão ignora barreiras geográficas e lingüísticas (Fadul 1992). Além disso, a demanda pelo produto demonstra que a cultura dos sentimentos deixou de estar incluída apenas no quotidiano dos brasileiros. Assim, a maioria das pesquisas académicas sobre a telenovela parece tentar responder à indagação do porquê de tamanha popularidade.

Uma das primeiras tentativas de respondê-la é de forma empírica: se buscam na contemporaneidade outras manifestações da inclusão dessa emoção exacerbada no quotidiano. E aqui mesmo na Europa, onde a cultura sentimental nasceu e foi esquecida pelo pensamento académico, se ofereceu uma primeira resposta, através da comoção recentemente despertada pela morte de Diana Spencer, princesa de Gales. Na série de artigos publicados na imprensa norte-americana sobre o fato, me chamou a atenção a entrevista de duas jovens que diziam ter decidido comprar o disco « Tributo a Diana », de Elton John, depois de chorar durante a transmissão do enterro pela televisão. Segundo elas, levavam o disco para casa na esperança de « poder chorar um pouco mais ».5 A frase confirma uma afirmação de Felix Caignet, o cubano autor de O Direito de Nascer e um dos mais exitosos autores de rádio-novelas da América Latina. Perguntado sobre porquê inventava enredos tão melodramáticos, respondeu: « ...eu parto do princípio de que as pessoas querem chorar. Eu só lhes dou o pretexto ».6

A comparação me foi também sugerida pela maneira com que os meios de comunicação de massa norte-americanos trataram a reação emocional à morte de Diana, comparada à dos países católicos quando

4 Beatriz Sarlo, El imperio de los sentimientos. Narraciones de circulación periódica en la Argentina (1917-1927) (Buenos Aires: Catálogo, 1985), p. 86. 5 «Musical Tribute to Diana Sells Briskly in U.S. Debut», New York Times, 24 Sep. 1997, nati. ed: B6. 6 Apud Desiderio Navarro, «El kitsch nuestro de cada día», Unión. Revista de la Unión de Escritores y Artistas de Cuba, 2, abril-mayo-junio 1988. 23-28. 28.

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morre uma pessoa pública. Estava implícito na comparação o catolicismo secular dos países latino-americanos, cujas imagens de pesar coletivo são periodicamente transmitidas para todo o mundo. Confirmando um estereótipo, elas entram no noticiário quotidiano como prova visível do exotismo de uma cultura pobre e atrasada que por sorte, está lá, em outro lugar. Daí o mal estar que a visão do enterro da princesa inglesa provocou nos meios noticiosos deste hemisfério. Pela primeira vez, o lá estava aqui e o outro passava a ser o mesmo. Além disso, o fato assusta sobretudo por ocorrer num país que desde sempre ditou regras de comportamento aristocrático para o resto do mundo ocidental. A primeira delas era esconder as emoções, cuja exibição pública era condenada como característica das pessoas pouco refinadas, ou de mau gosto. A manifestação coletiva à que se assistiu com a notícia da morte de Diana Spencer parece demonstrar que grande parte da demanda atual pelas telenovelas pode passar por uma espécie de irrupção incontrolável dessa emoção reprimida.

No entanto, como afirma Anne Vincent-Buffault, até o século XVIII europeu era chie chorar em público.7 Mulheres e homens eram inclusive estimulados a exibir e compartilhar suas emoções. O paulatino deslocamento das lágrimas da sensibilidade para o sentimentalismo começa na segunda metade do século XIX; e sua desvalorização é, ao mesmo tempo, social e sexual. Preparado este deslocamento desde o século XVIII, com Kant, para quem as emoções se localizariam no « gosto bárbaro »8, no fim do século seguinte as lágrimas passam exclusivamente ao universo feminino e são vistas muitas vezes como patologia, transformando as mulheres que por elas se manifestavam nas histéricas que tanto preocuparam os médicos do fim do século XIX. (Buffault 1986).

As rádio e telenovelas buscavam inicialmente atender a essa demanda supostamente lacrimosa do público feminino, sendo por isso mesmo tratadas pelas redes de rádio e televisão como produtos de segunda classe. Inventadas nos Estados Unidos como marketing de produtos de higiene e cosmética, daí o epíteto de soap-operas que têm até hoje nos países saxões, as rádio e telenovelas se caracterizavam por produções baratas, cuja autoria nunca era lembrada. Produtos descartáveis como os que se anunciavam nos intervalos das transmissões, seus enredos intermináveis muitas vezes careciam de lógica interna e verossimilhanca, fato caricaturizado num romance do escritor peruano Mario Vargas Llosa, intitulado Tia Julia e o Escrevinhador (1978). O público feminino era também garantido pelos horários em que era apresentada essa ficção de segunda classe, sempre no espaço de tempo dedicado ao serviço doméstico quotidiano.

7 Anne Vincent-Buffault, Histoire des larmes. XVIIe- XIXe (Paris: Rivages, 1986). 8 Emmanuel Kant, Critique de la faculté de juger (1790; Paris: Gallimard, 1985) 148.

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No Brasil, a telenovela rapidamente ascende a um estágio superior na programação das redes televisivas. Embora conserve no enredo, na maioria dos casos, a hegemonia do amor-paixão, própria de suas congéneres dos demais países latino-americanos, sua produção atinge custos cada vez mais altos e seus atores e atrizes rapidamente se transformam em celebridades que hoje formam, especialmente na Rede Globo, um star-system similar à Hollywood norte-americana. A nobilitaçao do produto pode ser atestada pela autoria. A telenovela brasileira talvez tenha sido a primeira a conferir ao escrevinhador de suas telenovelas, citando o termo de Vargas Llosa, o status de autor.

Para entender a especificidade da tamanha e tão rápida ascensão da telenovela brasileira, é necessário compreender o contexto onde ela nasceu e amadureceu. Embora tenha se instalado no Brasil nos anos 50, se pode dizer que a televisão brasileira « nasce » no final dos anos 60, apoiada pela ditadura militar que se instalara no país em 1964. Com o desenvolvimento técnico garantido por altas inversões de capital nacional e estrangeiro, a televisão brasileira pôde criar uma linguagem áudio-visual peculiar e de grande empatia com seu numeroso público. Pela televisão se impunha também o consumo. Através do novo meio, além da propaganda política, chegava à massa de consumidores potenciais o incentivo ao consumo que a diversificação da indústria de bens duráveis produzia. Sustentadas pelas gordas contas pagas pela ditadura, as agências de propaganda inundavam o espaço urbano com anúncios caracterizados por excelente programação visual. Os mesmos anúncios se aperfeiçoavam com jingles eficazes no rádio e na televisão. A Rede Globo, cuja expansão se devia também ao capital do holding norte-americano Time-Life, começava a cooptar autores teatrais oriundos da esquerda marxista- leninista para a sedimentação de seu mais rentável produto: as telenovelas. O caso mais notável é o do dramaturgo Dias Gomes. Sua passagem para a televisão, onde se transformou num dos mais produtivos autores de telenovelas, é um dos principais temas de sua auto-biografia.9

Dias Gomes foi o sedimentador do segundo género que se desenvolveu na telenovela brasileira: o género farsesco, muitas vezes apelando para o grotesco. O segredo deste género é a caricatura, que foi concretizada com maior êxito na novela Roque Santeiro (1985), cujos protagonistas, Sinhozinho Malta e Viúva Porcina rapidamente se incorporaram no quotidiano dos telespectadores. O primeiro representava o arquetípico político do interior brasileiro, corrupto e manipulador. A ele se subordinavam o prefeito, o comerciante e o padre da pequena cidade onde se ambientava o enredo. Da caricatura literária, Sinhozinho herdou a repetição de determinadas expressões como « - Estou certo, ou estou errado? » A esta expressão se juntava a sonoplastia que acrescentava, a cada aparição do personagem, o chocalhar

9 Dias Gomes, Apenas um Subversivo (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998).

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de seu relógio de ouro, caricatura de sua riqueza conseguida através da corrupção. A coleção de perucas faz parte também da composição da caricatura, que se completa com a alusão à perversão sexual do personagem, que late como um cachorrinho a cada chamada de Porcina, nas cenas de intimidade. A viúva Porcina, por seu turno, aparece caricaturada por seu modo de vestir, falar e comportar-se. A interpretação exagerada da atriz Regina Duarte tinha também como objetivo explorar um novo lado de sua persona, já que sua carreira tinha sido marcada, até então, pelos papéis de mocinha bonita e ingénua. O epíteto de viúva tem origem numa farsa montada pela cúpula da cidade a respeito de um artesão de imagens desaparecido. Daí o apelido de santeiro agregado a seu nome. Porcina, na verdade amante ocasional de Roque, se aproveita de seu desaparecimento para forjar um casamento que nunca existiu. O comerciante, Zé das Medalhas, vive do comércio das imagens do santo. O prefeito mantém a farsa porque ela traz turistas para a cidade, cuja maior atração é a igreja onde termina a peregrinação turístico-religiosa, fato que mantém o padre também interessado em manter a trama. A estória se complica com a volta de Roque, que na realidade está vivo, à cidade.

Esta novela foi ao ar em 1985 e a concretização de seu projeto correspondeu a uma outra novela, ocorrida nos bastidores da cultura brasileira durante os anos de regime militar. Roque Santeiro é uma adaptação da peça O Berço do Herói escrita por Dias Gomes para o teatro no ano de 1963. Com o golpe militar de 1964, a peça teve que esperar dois anos para ser publicada e preparada para a encenação. No dia da estreia, no entanto, foi proibida pelas autoridades militares. Um ano depois, em 1966, uma tentativa de transformá-la em filme foi também frustrada. Em 1975, Dias Gomes decide adaptá-la para a televisão, com o novo título de Roque Santeiro. Para evitar a censura dos militares, muda o protagonista, originalmente um soldado desertor transformado em herói pelo mesmo artifício, para um artesão, « fazedor de imagens de santos », tornado um beato pela cúpula da cidade. Ainda assim a peça foi outra vez censurada. Somente em 1985, com o país já em processo de abertura, Roque Santeiro foi ao ar. O enorme sucesso da novela fez com que algumas cenas passadas na televisão fossem incluídas pelo autor na versão da peça publicada posteriormente em livro.10

Dias Gomes foi contratado pela Rede Globo em 1969, um ano portanto depois da decretação do Ato Institucional n° 5, que marcou a repressão mais acirrada do governo militar aos intelectuais, estudantes e professores. Auto-didata e tendo começado sua carreira como profissional do rádio, o autor já era conhecido na altura como dramaturgo engajado através de suas peças O Pagador de Promessas e Dr. Getúlio. Seu primeiro trabalho na Globo, uma adaptação de um folhetim estrangeiro, foi

1° Dias Gomes, Roque Santeiro, ou O Berço do Herói (Rio de Janeiro: Ediouro, 1991).

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assinado sob pseudónimo, o que indica uma tentativa de não aparecer como um dramaturgo sério, com um passado vinculado às ideias nacionais-populares, vendido à Rede Globo, instalada no Rio de Janeiro em 1965. Em 1966, a rede conseguira sair-se incólume, graças aos militares, da acusação feita pela Associação Brasileira de Imprensa sobre a inconstitucionalidade do investimento do grupo Time-Life na emissora carioca (A Constituição brasileira proibia o investimento estrangeiro na área de comunicação de massa).

Mas é justamente esse investimento que permite à televisão brasileira vincular as ideias nacionais-populares com a modernização em curso no país. O objetivo nacional-popular de competir com as narrativas televisivas que se importavam, principalmente, dos Estados Unidos, só foi possível graças « à implantação de uma racionalidade mais apurada e a consolidação de uma indústria televisiva que se espelha nos Sistema Globo de Televisão ». (Ramos & Borelli, 1989, p. 68) Assim, a estética da telenovela brasileira se beneficia também de um momento muito peculiar da cultura do país. A implantação da televisão, datada dos anos 50, coincide com a circulação, no campo intelectual brasileiro, das ideias da sociologia da dependência que gerou, em diversos campos, uma tentativa de atualizar a produção cultural. A arquitetura de Niemeyer e Lucio Costa, a poesia concreta e a bossa-nova são realizações que se concretizam entre os anos 50 e 60. O projeto nacional-popular que embasava as teorias desenvolvimentistas também se transfere para a televisão. De 60 a 63, se percebe nas telenovelas o projeto de transmitir ao espectador a realidade brasileira. « Os personagens do antigo folhetim, que reforçavam um imaginário herdado da aristocracia (carruagens, reis, rainhas, duques e condes), passam a circular pelas ruas do Rio e de São Paulo, em ônibus e automóvel, vestindo terno e gravata. Os príncipes e condes cedem lugar aos industriais, homens de negócio e membros das profissões liberais. » (Ramos & Brelli, 1989, p. 75). Se, em termos empresariais, o que se buscava era a identificação do espectador com os personagens que passavam a fazer parte do seu quotidiano, do ponto de vista dos autores, por outro lado, havia ecos das ideias nacionais- populares em circulação. A modernização em curso nos centros urbanos se reflete também nos diálogos: o tom recitativo e melodramático dos folhetins vai aos poucos adquirindo um tom mais natural e expressões coloquiais e gírias usadas nas ruas são incorporadas às falas dos personagens.

Dias Gomes, oriundo da estética nacional-popular engajada - esteve por período curto filiado ao Partido Comunista Brasileiro - foi responsável por introduzir nestas mudanças a permanência dos valores rurais, de memória ainda presente na geração de migrantes do interior que fizera crescer rapidamente as grandes cidades brasileiras, nos anos 30 e 40. Suas novelas se passam, na maior parte dos casos, em pequenas cidades da Bahia (onde ele próprio nasceu) e os cenários, que nos

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melodramas eram apenas um pano de fundo sem referências à cultura nacional, passam a ter o ativo papel de fazer com que o espectador se identifique com os tipos populares similares aos de sua cidade natal e dos quais ainda se recorda. A praça central com seu chafariz ou seu coreto, onde se localiza a igreja e prefeitura, são sempre o ponto de partida das novelas de Gomes. Os objetos do cenário também pretendem ser evocativos da memória coletiva. Neste caso, tanto do interior, quanto do subúrbio, onde vão viver esses migrantes quando de sua chegada às cidades. Por outro lado, as instâncias de poder nas novelas de Dias Gomes e sua relação com a gente comum são tratadas de uma maneira aprendida com a estética nacional-popular. Esta também transparece na escolha dos temas, assim enumerados pelo próprio Dias Gomes: « preconceito de cor, coronelismo, dinheiro como força corruptora, divórcio, celibato de padres, zona sul do Rio de Janeiro, jogadores de futebol, retirantes e marginais do jogo do bicho e contrabando. »H Tais temas correspondiam também à demanda do espectador masculino que, desde que a telenovela passou ao horário noturno, tornou-se uma expressiva parte de sua audiência.

Além disso, com esses temas, Dias Gomes pretendia filiar-se a uma posição « mais realista » e « politizada », fiel às matrizes nacional- populares de sua obra teatral. Esta funcionaria como alternativa ao predomínio da cultura sentimental nas telenovelas. Com esta posição, Gomes se colocava, de certa maneira, « acima » de outros autores, que continuavam apostando nos enredos puramente melodramáticos, como sua própria mulher, Janete Clair, que por anos dividiu com o marido o horário nobre das telenovelas da Rede Globo. Com os objetivos « altos » de suas novelas, Dias Gomes se auto-incluía, também, no contingente de autores de extração mais « erudita » que, impossibilitados de trabalhar no teatro, na época sob forte ação da censura estatal da ditadura militar, migrou para a televisão. O background nacional-popular desses autores lhes autorizava defender a possibilidade de oferecer às classes populares um espetáculo seriado de bom nível através da televisão, herdado sobretudo dos modelos temáticos da literatura brasileira. O ápice dessa crença, na primeira fase da telenovela brasileira, foi Beto Rockfeller, de Braulio Pedroso, levada ao ar entre 68 e 69. Ela apresenta, pela primeira vez, um anti-herói, nos moldes de Macunaíma. Beto Rockfeller é considerada, pela maioria dos autores dedicados ao estudo da telenovela brasileira, como o marco do fim de sua fase experimental.12 Com essa novela, a televisão brasileira teria encontrado a fórmula que se aperfeiçoaria com o Sistema Globo de Televisão: proposta realista que pretendia trazer o quotidiano para o vídeo (a estória se baseava em fatos extraídos dos jornais da época), diálogos coloquiais, representação mais

11 Dias Gomes, «Os trabalhos da telenovela», Revista Veja, 8-12-71. 12 Ver Ismael Fernandes, Telenovela Brasileira: Memória (São Paulo: Brasiliense, 1987).

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natural e próxima o mais possível da realidade. Finalmente, as músicas de sucesso, usadas pela primeira vez em Beto Rockfeller, visavam ao público jovem da classe média, que também assistia pela televisão os shows de música popular da Jovem Guarda ou do Tropicalismo. Enfim, Beto Rockfeller marca a conquista da classe média para a telenovela.

A partir de 1970, o nacionalismo passa a ser também o discurso oficial do governo militar. Portanto, a expansão da Rede Globo se deve tanto a um espírito empresarial sintonizado com a transformação social em curso no Brasil, quanto a uma ação estatal que transformou o projeto de modernização dos anos 50 numa modernização conservadora. Nos anos 70, um protocolo assinado entre o governo militar e as emissoras de televisão fazia restrições de ordem moral às imagens, determinando o que devia, ou não, ser mostrado. Nesse protocolo, se condenava a exibição de superstições e a exploração da miséria, ou seja, se pretendia « limpar » as imagens da estética popular herdada do rádio, por não atender à demanda da classe média, público visado como consumidor potencial dos produtos veiculados quotidianamente pela televisão. Nesse contexto, autores de extração mais « culta », como Dias Gomes, Jorge de Andrade, ou Walter Durst passaram a representar, tanto para os militares, quanto para os empresários da televisão, uma mão de obra capaz de « elevar » a linguagem das telenovelas. Daí a maior liberdade, que tiveram, desde então, de escrever e montar « suas » telenovelas, transformando-se a produção da telenovela da Globo num produto de um « autor » regiamente bem pago, com direito a uma produção de orçamento industrial.

As experimentações da linguagem visual puderam ser então aperfeiçoadas e as conquistas dessa linguagem pela telenovela passam a ser aproveitadas em outros setores da programação. A qualidade técnica da Rede Globo acaba se impondo como um padrão que, mais uma vez, representa uma « modernização conservadora » na televisão brasileira. Esta continua nos autores que chegaram à televisão sem passado teatral ou radiofónico. Nesses autores, a modernidade passa por citações cada vez maiores do universo do consumo. Dancing Days (78-79), novela de Gilberto Braga, teve parte de seu enredo passado numa discoteca. Roupas, música e imagem estimulavam o consumo. Os hábitos e os costumes dos personagens transmitem a vida da classe média urbana do Rio de Janeiro, embora o maniqueísmo estrutural dos melodramas seja conservado. Já a novela Baila Comigo (1981), embora conserve no enredo um dos temas mais antigos dos melodramas - a separação de dois irmãos gémeos que ignoram a existência um do outro - apresenta imagens de grande « modernidade ». Fusões e segmentação indicam a influência dos vídeo-clips na estética das telenovelas. Os planos, cada vez mais ágeis e rápidos, indicam a intenção de atingir o público jovem. Por outro lado, planos longos mostram a praia de Ipanema, ou flashes de Lisboa. Ou seja, Baila Comigo já pertence à fase das lágrimas para exportação.

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A telenovela brasileira emprega hoje um enorme contingente de profissionais, inclusive da área de letras. Linguistas funcionam como consultores sobre enredos regionais. Tradutores fazem as versões que são vendidas a países de vários continentes. As variadas culturas desses países fazem com que os títulos sejam mudados. Em Cuba, por exemplo, a novela Selva de Pedra transformou-se em Te odio, mi amor. A cada emissora estrangeira são oferecidos vários epílogos, escolhidos segundo uma melhor adaptação à cultura local.

No Brasil, a inserção da telenovela no quotidiano de seus cidadãos e a adaptabilidade do produto às transformações da sociedade pode ser atestada na interatividade que hoje a caracteriza. E comum, sobretudo entre a população jovem, o estabelecimento de redes na Internet, através das quais os telespectadores fazem saber à emissora que determinado personagem não está agradando. Mensagens como « Eu odeio a Maria, ou o João » são transmitidas por E-mail à Rede Globo que tem, assim, instrumentos para dar novo curso ao enredo, ou, inclusive, excluir o personagem da estória. Assim, além da catarse que se mantém, mesmo nas histórias mais « modernas » veiculadas pelas telenovelas, elas atingem uma interatividade que a literatura conheceu a partir do século XVIII e que foi gradativamente perdendo ao longo dos séculos seguintes. Didier Masseau se refere, por exemplo, à correspondência que Bernardin de Saint-Pierre, autor de Paulo e Virgínia (1796), mantinha com seus leitores, que o reconheciam como seu guia e conselheiro. 13 Masseau vê semelhança entre Saint-Pierre e Voltaire, que também era confidente, só que de toda a elite europeia. Nos dois casos, os dois tipos de intelectual tinham assegurado o circuito de suas ideias e opiniões, das quais recebia imediatamente o feed-back. Não será a nostalgia desse circuito que faz com que o escritor culto veja no escrevinhador das telenovelas o seu duplo invejado? Ou será que esse escritor, limitado pelos modelos que o próprio século XVIII engendrou para caracterizar a literatura, excluindo deles a relação da obra com o público, não esteja migrando para os outros veículos de comunicação?

São perguntas que a telenovela propõe ao pesquisador da literatura, produto tão popular que começa a forçar novas definições no campo da teoria da ficção. Se levarmos em conta as definições do pós-modernismo praticadas por Fredric Jameson talvez possamos afirmar que as telenovelas brasileiras são expressão da cultura pós-moderna.14 Escritas por autores de formação « erudita » misturam a formação « alta » de seus autores e atores - na maioria oriundos de escolas de formação profissional - ao meio de expressão « baixo » da televisão. Conservando

13 Didier Masseau, L 'Invention de l'intellectuel dans l'Europe du XVIIIème siècle (Paris: Presses Universitaires de France, 1994), p. 15. I4 Fredric Jameson, The Cultural Turn. Selected Writings on the Postmodern, 1983-1998. (London / New York: Verso, 1998).

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as origens populares de seu género permitem a incorporação de inovações técnicas próprias das experimentações eruditas.

Como justificar, também, que um produto por tanto tempo considerado « espúrio » venha ocupando um tão grande número de pesquisadores académicos do mundo inteiro? Creio que tal interesse se baseia sobretudo nos novos estudos da história das mentalidades e da análise do quotidiano. A crítica feminista, por exemplo, valoriza a capacidade de adaptação da telenovela às novas realidades e vê sua inserção do quotidiano feminino não apenas no ato de assistir à telenovela, mas também nos comentários que ela suscita durante o dia-a- dia das mulheres, possibilitando-lhes trocas de experiências que ficariam, de outra forma, sem expressão. Segundo Cristina Penãmarín, por exemplo, « as mulheres exploram (através da telenovela) a ambiguidade e a complexidade das relações sentimentais, ensaiam identidades impossibilitadas ou rejeitadas em suas vidas, trazem na fantasia princípios que sustentam em suas relações e conversas, ou, ao contrário, deixam entrever na conversa opções que praticam ou desejariam realizar »15. Mas como localizar, nessa análise, o público masculino que, desde a passagem da telenovela para o horário noturno, compartilha a telenovela com as mulheres?

Na América Hispânica, dois pesquisadores fazem avançar a discussão. Jesús Martín Barbero entende a cultura de massa latino-americana como responsável pela mediação entre as culturas tradicionais e o sujeito moderno.16 Carlos Monsiváis vê no kitsch, um forte componente das telenovelas, uma espécie de pedagogia para os camponeses recém- chegados à cidade.1/7 Monsiváis inclui o kitsch nas manifestações do popular urbano (e por extensão com essa mesma categoria poderíamos classificar as telenovelas), conceito que articula as antigas categorias de cultura de elite, cultura de massa e cultura popular num novo tipo de cultura, cuja permanente interação das três categorias anteriores não constitui nova síntese.

Nos dois teóricos se percebe a incorporação da experiência do populismo como instrumento de análise. A abrupta emergência das classes populares nas cidades latino-americanas, durante os anos 30 e 40, é por eles entendida como uma relativa promoção social. A nova visibilidade como massa atribui às classes populares uma presença indiscutível nos diferentes contextos nacionais latino-americanos. Experimentando mais benesses do que perdas neste processo, as classes populares adquirem uma nova forma de ser nas grandes cidades,

15 Cristina Peñamarín y Pilar López Diez, Los melodramas televisivos y la cultura sentimental (Madrid: Comunidad de Madrid, Dirección General de la Mujer, 1995). 1" Jesús Martín Barbero, De los medios a las mediaciones. Comunicación, Cultura y Hegemonía (México: G.Gili, 1987). !7 Carlos Monsiváis, Escenas de pudor y liviandad, 5. ed. (México, Grijalbo, 1988) p. 186.

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caracterizada pela permanente mistura dos valores rurais e dos comportamentos urbanos nos quais se inclui também o contato com os produtos da cultura de massa forànea. A implantação da sociedade de consumo na América Latina dos anos 60, acompanhada da globalização do mercado da cultura de massa, amplia o processo. Segundo Martín Barbero e Monsiváis, o popular massivo das grandes cidades latino- americanas se caracteriza desde então por urna permanente reciclagem de hábitos e comportamentos. Que produto da cultura de massa encarnaria melhor esse modelo senão a telenovela brasileira?

A novidade do modelo de Martin Barbero e Monsiváis, que também guarda suas raízes no pensamento de Walter Benjamin, consiste em atribuir um papel mais ativo à massa, considerada por dois séculos de pensamento conservador como uma multidão amorfa e ameaçadora. Ele representa também um avanço em relação às interpretações da cultura de massa como responsável pelo estabelecimento da sociedade do espetáculo, criado por Guy Debord em 1967, conceito que atribui ao espectador um papel passivo e robotizado.18

A presença dos comportamentos e dos hábitos nas teorias de Martin Barbero e Monsiváis corresponde também ao novo corpo teórico de interpretação social que se construiu nos anos 80, especialmente aqui na França. Da filosofia à história das mentalidades, a atenção da teoria crítica se deslocou das totalizações marxistas para os aspectos microscópicos da vivência social. A ideia de revolução coletiva se atomiza e um novo vocabulário teórico segmenta a idéia de revolução total. Os anos 80 se marcaram pela análise das estratégias, das táticas e das resistências microscópicas à tecnologia disciplinadora, antes definida por Michel Foucault. !9 Nesta nova configuração teórica, produtos heterogéneos, como as telenovelas, passam a ter um papel no pensamento crítico sobre as sociedades.

Embora me alinhe nesse pensamento que acabo de citar, gostaria de compartilhar com os leitores uma dúvida que me vem do trabalho com os escritores que usam as telenovelas e os produtos da cultura de massa de maneira crítica, como Ignacio de Loyola Brandão, Augusto Boal e Clarice Lispector. Será a recepção ativa das telenovelas por parte das classes populares suficiente para resistir à ideologia por ela transmitida? Ou será que as telenovelas garantem a assimilação dos valores das classes hegemónicas aos quais essas classes atribuem maior prestígio? Michèle e Armand Mattelart, no seu pioneiro estudo sobre as telenovelas, já chamavam a atenção para o fato de que o modelo de representação da sociedade brasileira das novelas da Rede Globo está centrado sobre a zona do Rio de Janeiro situada no eixo burguês da cidade, ou seja, nas praias

18 Guy Debord, La Société du spectacle (1967; Paris: Gallimard, 1992). 19 Refiro-me, sobretudo à obra de Michel de Certeau. Ver Michel de Certeau, L'Invention du quotidien 1. Arts de Faire, Luce Giard, Ed. Paris: Gallimard, 1990.

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da Zona Sul, que também servem ao modelo de exportação dessas telenovelas.20 Os autores fazem a respeito uma citação do autor e diretor de telenovelas Walter Avancini, que reproduzo a seguir por sua atualidade:

A novela continua a seguir os códigos da linguagem, os gostos, as ambições da classe média (...)• Mas a classe trabalhadora continua a ser representada de forma caricatural. O que se apresenta corno autentico, são os valores da burguesia que transmite aos trabalhadores a mensagem segundo a qual é preciso aprender a viver olhando de longe, sem pretender ter. Costumo dizer que não se pode pedir à televisão e à telenovela que sejam o que elas não podem ser. Elas não fazem mais do que refletir uma situação brasileira. A televisão não é um fator de mudança. (...) É evidente que a televisão se banha na fantasia. Ela evita a confrontação com a realidade, porque essa confrontação implica em problemas políticos. O trabalhador não é posto em cena na televisão. (...) A maioria dos autores de novelas no Brasil fazem também parte de uma elite, de uma classe média e dela refletem os valores. (Mattelart 1987, 83).

Estudar a telenovela significa, portanto, tentar o confronto com a realidade que ela escamotea. Admitir que a telenovela faz parte do cotidiano de todas as classes sociais do Brasil é um primeiro passo. Perceber também que a demanda pela emoção que elas transmitem é um dado a ser levado em conta na análise é uma segunda hipótese. As contradições constatadas, tanto no campo de sua produção, quanto a respeito da recepção que dela fazem seus espectadores não permitem, pela limitação do próprio produto, propor soluções utópicas. Mas, à maneira da própria telenovela, nos obriga a perceber o presente brasileiro com um olhar a um só tempo mais imaginativo e mais realista.

RESUMO- Rentável produto de exportação em 128 paises, a telenovela brasileira, dominada pela Rede Globo, está incorporada no quotidiano da população desde 30 anos. Grande parte do seu êxito resulta da «cultura dos sentimentos», mas em sua versão mais moderna ela sabe também mergulhar na realidade como o demostrou, entre outros, o sucesso do Rei do gado (1986) que encenava o embate entre os sem terra e os fazendeiros.

20 Michèle et Armand Mattelart, Le Carnaval des Images. La fiction brésilienne (Paris: La Documentation Française, 1987).

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RÉSUMÉ- Rentable produit d'exportation diffusé dans 128 pays, le feuilleton télévisé brésilien fait partie du quotidien de la population depuis une trentaine d'années. Si une grande part de son succès repose sur l'exploitation de « la culture des sentiments », dans sa version la plus moderne, il sait aussi plonger au cœur de la réalité comme l'a démontré entre autres avec brio « Le roi du troupeau » (1986) qui mettait en scène le conflit entre les sans-terre et les grands propriétaires terriens.

ABSTRACT- Brazilian TV serials are profitable export products, sold to 128 countries, and have been part of the population's daily life for about thirty years. Although those programmes rely on the «sentimental culture» to appeal to people, they are also capable of dealing with real, modern issues; for instance, «The King of the Herd» (1986) masterfully depicted the conflict between landless peasants and powerful landowners.

PALAVRAS CHAVE: Telenovela, Rede Globo, Cultura, Postmodernidad, Nacional-populismo.

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