Novas formas de organização de coletadores e empresários ... · além da questão social...

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Novas formas de organização de coletadores e empresários em torno dos projetos para geração de energia com biogás em aterros sanitários Dalcio Caron Prof. Dr. Departamento de Economia, Administração e Sociologia – ESALQ/USP CPF: 291161808-44 Endereço: Av. Pádua Dias, 11 - Piracicaba/SP. CEP: 13418-900 [email protected] Luiz Carlos Beduschi Filho Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental - PROCAM/USP CPF: 181061738-36 [email protected] Daniela Bacchi Bartholomeu Doutoranda em Economia Aplicada – ESALQ/USP CPF: 273.182.668-10 Endereço: Av. Guerino Lubiani, 464 – Vila Verde. Piracicaba/SP. CEP: 13.420-823 [email protected] Mariano Colini Cenamo Engenheiro Florestal - ESALQ/USP CPF 216318518-45 Travessa Francisco Gobeth, 152. Piracicaba/SP. CEP: 13.400-100 [email protected] ÁREA TEMÁTICA: 8 - Instituições e Organizações na Agricultura FORMA DE APRESENTAÇÃO: ORAL, sem debatedor 1

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Novas formas de organização de coletadores e empresários em torno dos projetos para geração de energia com biogás em aterros sanitários

Dalcio Caron Prof. Dr. Departamento de Economia, Administração e Sociologia – ESALQ/USP

CPF: 291161808-44 Endereço: Av. Pádua Dias, 11 - Piracicaba/SP. CEP: 13418-900

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Luiz Carlos Beduschi Filho Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental - PROCAM/USP

CPF: 181061738-36 [email protected]

Daniela Bacchi Bartholomeu Doutoranda em Economia Aplicada – ESALQ/USP

CPF: 273.182.668-10 Endereço: Av. Guerino Lubiani, 464 – Vila Verde. Piracicaba/SP. CEP: 13.420-823

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Mariano Colini Cenamo Engenheiro Florestal - ESALQ/USP

CPF 216318518-45 Travessa Francisco Gobeth, 152. Piracicaba/SP. CEP: 13.400-100

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ÁREA TEMÁTICA: 8 - Instituições e Organizações na AgriculturaFORMA DE APRESENTAÇÃO: ORAL, sem debatedor

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Novas formas de organização de coletadores e empresários em torno dos projetos para geração de energia com biogás em aterros sanitários

Resumo

A principal hipótese que orienta este artigo relaciona-se com a capacidade da sociedade em forjar pactos entre diferentes atores sociais visando a melhor gestão do espaço e dos problemas ambientais que enfrenta. A noção de capital social (PUTNAM, 1993; OSTROM, 1990) pode contribuir para a compreensão dos caminhos trilhados em algumas localidades que acabaram por levar a acordos benéficos para todos os atores sociais.

O texto explora, também, algumas possibilidades no âmbito dos projetos de geração de energia renovável a partir de gás metano proveniente de aterros sanitários. É possível que esses projetos, além de contribuírem para a diminuição das emissões de gases que provocam o efeito estufa na atmosfera terrestre, possam ser, também, uma oportunidade de melhor equacionamento dos problemas sociais relacionados à gestão de resíduos sólidos no País.

A fundamentação dessa hipótese se dá pela evidência de que é possível estabelecer um jogo em que todas as partes ganhem a partir da formulação de acordos que levem em conta as demandas dos diferentes grupos sociais envolvidos.

No caso dos projetos de geração de energia, ganham os empreendedores, que terão proporcionalmente, mais material orgânico depositado nos aterros (já que o material orgânico é o responsável pela emissão de gás metano); ganham as comunidades de coletadores, que organizados podem ter maior poder de barganha nas negociações dos materiais que separam, além de trabalharem de forma menos insalubre; e ganha a sociedade em geral, uma vez que a vida útil dos aterros se amplia, diminuindo a pressão por áreas para novos aterros.

Palavras-chave: aterros sanitários, biogás, coletadores

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1 Introdução

Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais abrangente, realizada através de um convênio entre a Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos do Ministério do Meio Ambiente – SQA/MMA e o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (CEPEA)1, finalizada em abril de 2004. O estudo completo considerou, além da questão social relacionada aos projetos de geração de energia renovável em aterros sanitários, objeto deste artigo, também questões legais, análise de viabilidade econômica e quantificação de geração de energia e créditos de carbono nos aterros sanitários das regiões metropolitanas e grandes cidades do país.

A principal justificativa da pesquisa decorre do fato de que 12% da emissão antrópica de metano para a atmosfera são provenientes da decomposição da matéria orgânica (Holdren, 1990). Como o metano é um gás de efeito estufa, com uma capacidade de reter calor 23 vezes superior ao do gás carbônico, devem ser buscadas atividades que promovam a redução das emissões daquele gás.

Desta forma, o aproveitamento do biogás pode gerar energia termelétrica limpa, contribuindo, por um lado, para aumentar a produção energética nacional e, por outro, para diversificar a matriz energética.

Além dos problemas ambientais e econômicos, a questão dos aterros sanitários e do aproveitamento do biogás envolve problemas sociais, em especial no que se refere às populações carentes que têm sua fonte de renda advinda dos resíduos depositados em lixões e aterros.

O objetivo deste artigo, portanto, é analisar os aspectos sociais envolvidos nos projetos de geração de energia renovável a partir de gás metano proveniente de aterros sanitários das regiões metropolitanas do Brasil.

Sem dúvida, esse é um dos principais aspectos envolvidos nos projetos, uma vez que se trata de lidar com comunidades de coletadores de materiais potencialmente recicláveis que encontram nos lixões das grandes cidades a sua sustentação financeira.

Obviamente, quando se trata de aterros sanitários, supõe-se que o problema da permanência dos coletadores já foi resolvido, uma vez que a legislação ambiental obriga a retirada dessas pessoas para classificar tais empreendimentos como aterros e não como lixões.

Contudo, a realidade brasileira, em especial nas grandes metrópoles, é bem mais complexa do que a capacidade da legislação em fazer cumprir determinadas orientações. É evidente o conflito que se estabelece entre os catadores, que têm nos aterros/lixões a sua fonte de renda, e os gestores de tais espaços que, amparados e pressionados pela legislação, têm de tomar decisões a respeito do futuro dessas populações e da destinação final dos resíduos sólidos.

Assim, são evidenciados os conflitos existentes e exploradas as formas possíveis de resolução dos mesmos. Sem dúvida, a situação dos aterros e, em última instância, da disposição final de resíduos sólidos, reflete as contradições permanentes a que estão condenadas as sociedades modernas: por um lado, essas comunidades de catadores prestam

1 CARON, D; BEDUSCHI-FILHO, L.C. Aspectos Sociais e Comunidades de Coletadores. In: MELLO, P.C.

(Coordenador) Estudo do Potencial de Geração de Energia Renovável proveniente dos “Aterros Sanitários” nas Regiões Metropolitanas e Grandes Cidades do Brasil. Relatório de Pesquisa. FEALQ/CEPEA/MMA: 2004.

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um serviço à sociedade, uma vez que diminuem, com seu trabalho de seleção e destinação alternativa do lixo, o volume de resíduos depositados nos lixões e aterros.

Por outro lado, a presença dessas comunidades nas áreas dos aterros compromete a eficiência das operações de deposição e cobertura dos resíduos, além de gerar uma série de problemas de saúde para as pessoas que vivem de tal atividade, indiscutivelmente insalubre e degradante.

Experiências diversas, desenvolvidas no sentido de humanizar a atividade de coleta de lixo, têm demonstrado o potencial gerador de renda para as comunidades de coletadores, ao mesmo tempo em que resgatam a cidadania das pessoas que vivem do lixo. De catadores, essas pessoas passam a ser reconhecidas como alguém que presta um serviço essencial à sociedade, devendo por isso ser reconhecida e valorizada2.

Geralmente, a organização desses trabalhadores em cooperativas ou associações tem conseguido agregar valor à atividade de coleta de resíduos, ao mesmo tempo em que resgata os vínculos sociais e inclui esses indivíduos de forma plena e universal no exercício da cidadania.

Contudo, a organização das comunidades de coletadores e a conscientização da sociedade em torno da idéia de separação do lixo têm um custo que não deve, de maneira alguma, ser deixado de lado nas análises socioeconômicas. A discussão recai, portanto, sobre a divisão de responsabilidades sobre tais custos.

Historicamente, no Brasil, é deixada a cargo do Estado a responsabilidade de arcar com os gastos com organização e conscientização, ficando a iniciativa privada isenta.

Porém, a tendência de minimização da máquina estatal está levando à criação de formas híbridas de gestão desses problemas. As parcerias entre o Estado, a iniciativa privada e o terceiro setor têm demonstrado que é possível criar novas formas de organização social em que todos os envolvidos na questão podem ganhar.

Ganham os coletadores, que passam a realizar o trabalho de forma mais adequada e adquirem novo status na sociedade em que vivem; a iniciativa privada, que recebe materiais recicláveis de melhor qualidade e em melhores condições de uso; o Estado, que passa a ter a responsabilidade com tal questão compartilhada com outros atores sociais; e a sociedade, que passa a contar com um serviço mais eficiente de separação e destinação final dos resíduos sólidos que gera.

O texto, portanto, divide-se em três partes, além desta introdução. O item 2 trata dos conflitos existentes entre os diversos atores sociais relacionados à questão da disposição dos resíduos sólidos. Pretende-se evidenciar a existência de uma verdadeira arena social (HANNINGAN, 1995; FERREIRA, 2003; CORDEIRO BEDUSCHI, 2004) onde são negociados os conflitos entre os atores, apontando para os diferentes argumentos que cada uma das partes envolvidas utiliza nessa disputa.

No âmbito deste projeto específico, os principais atores sociais envolvidos nas arenas de disputa são as comunidades de coletadores, os responsáveis locais pela gestão dos resíduos sólidos, os empreendedores que vislumbram oportunidades de negócios com a utilização de um resíduo (gás metano) dos aterros, os gestores públicos envolvidos com a questão da disposição de resíduos do lixo (agências estatais) e a legislação ambiental, uma vez que influencia diretamente as decisões tomadas.

2 O reconhecimento do papel dos catadores é um processo que começa a ser construído socialmente, com a sociedade passando a perceber a sua importância e a valorizar o seu trabalho (BERGER e LUCKMAN, 1999).

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Após evidenciar essa arena, são apresentados, no item 3, quatro exemplos de organização de comunidades de coletadores acompanhados de uma síntese analítica dos modelos de organização adotados.

O item 4 se devota às conclusões e recomendações, que remetem à possibilidade desses projetos, além de contribuírem para a diminuição das emissões de gases que provocam o efeito estufa na atmosfera terrestre, possam ser, também, uma oportunidade de melhor equacionamento dos problemas sociais relacionados à gestão de resíduos sólidos no País.

2 Mudanças Climáticas e Geração de Energia Renovável: a contribuição dos aterros sanitários No âmbito do projeto desenvolvido pela FEALQ/CEPEA/MMA (2004), a gestão dos resíduos sólidos se relaciona diretamente com o potencial de geração de energia nos aterros sanitários, que por sua vez, se relaciona diretamente à discussão sobre mudanças climáticas. Em primeiro lugar, pelo fato de que as condições necessárias à geração de energia renovável a partir do resíduo (gás metano) pressupõem a operação do empreendimento em local apropriado. Como já foi explicitado em outros capítulos deste relatório, somente nos aterros sanitários é possível, dadas as condições de segurança e regularidade da emissão, a instalação de um empreendimento que permita o aproveitamento deste resíduo para a geração de energia renovável. Lixões e aterros controlados são considerados impróprios para tal propósito. Porém, apenas nas capitais brasileiras, 26% de todo o resíduo sólido é depositado de forma inadequada em lixões; das cidades com mais de 50 mil habitantes, 73% depositam seus dejetos em lixões (UNICEF, 2001). Nestes locais, a presença de catadores de lixo vivendo em condições sub-humanas é uma das principais características.

Segundo levantamento da Unicef vivem (ou melhor, sobrevivem) nos lixões brasileiros em torno de 45 mil crianças e adolescentes, que não têm acesso aos direitos fundamentais garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Desde os primeiros dias de vida são expostos aos perigos dos caminhões e máquinas, à poeira, ao fogo, aos objetos cortantes e contaminados, aos alimentos podres (UNICEF, 2001). Associado à destinação final inadequada, o aumento do consumo de materiais descartáveis, uma das características fundamentais das sociedades modernas, faz com que se amplie a busca por novos locais para a disposição do lixo. Quando se imagina que uma pessoa gera, em média, 25 toneladas de lixo ao longo de sua vida, pode-se ter noção da magnitude dos problemas relacionados à gestão dos resíduos sólidos. A enorme desigualdade social vigente no País, em especial os altos índices de concentração de renda e as crescentes taxas de desemprego, associadas ao déficit educacional, têm feito com que parcela significativa da população encontre na separação e comercialização dos materiais encontrados no lixo a sua única forma de sobrevivência.

Tal situação encerra um intrigante paradoxo, uma vez que esses catadores de lixo, que vivem à margem da sociedade, prestam, para essa mesma sociedade consumidora de materiais descartáveis, um importante e fundamental serviço.

Eles impedem que grande parte de materiais reaproveitáveis, descartados como lixo, seja destinada aos lixões e aterros do País. Estima-se que, no Brasil, 90% do material

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reciclado pela indústria é proveniente do trabalho (não-reconhecido) dos catadores (UNICEF, 2001).

Essa situação permite várias digressões a respeito do papel dessas comunidades nos processos de gestão de resíduos sólidos e, no caso deste estudo em particular, nas relações que podem existir entre o trabalho dos catadores e a geração de energia renovável nos aterros. Se essa última relação pode parecer estranha a princípio, vale acompanhar o seguinte raciocínio: entendendo a disponibilidade de gás nos aterros sanitários como o principal “insumo” para a atividade de geração de energia renovável, do ponto de vista de um potencial empreendedor é muito mais interessante que seja depositada nos aterros sanitários a maior quantidade possível de resíduos orgânicos, uma vez que é esse tipo de resíduo o responsável pela geração do gás que será utilizado no seu empreendimento para a transformação em energia.

Além disso, quanto menos material sólido (ou inorgânico) for depositado, maior será a vida útil do aterro, assim como maior será a quantidade de gás produzida, tanto por área quanto por período, já que o material inorgânico ocupa o lugar do orgânico.

Assim, quanto maior for a quantidade de material inorgânico depositado nos aterros, maior será o custo para todos os envolvidos no processo. Perde o empreendedor, que terá menor disponibilidade de gás para transformar em energia; perde a sociedade, que terá que encontrar novas áreas para a instalação de novos aterros; perdem outros investidores, em especial aqueles ligados ao setor industrial de reciclagem, que deixam de ter matéria-prima para os seus empreendimentos; enfim, somam-se perdas que ainda hoje, como todo o avanço da ciência econômica, são muito difíceis de mensurar.

Porém, mesmo o cidadão comum pode perceber que o desperdício é enorme quando se dá conta de que no Brasil são produzidas, diariamente (segundo levantamento da PNSB feita pelo IBGE em 2000), 125.281 toneladas de lixo domiciliar, das quais 63,6% são depositadas em lixões a céu aberto. 2.1 Lixão: uma realidade verdadeiramente dantesca Nos lixões, o líquido gerado na decomposição do lixo – o chorume – penetra no solo, contaminando as águas subterrâneas e os rios; os gases provocam explosões e fogo, em alguns casos com vítimas fatais. O mau cheiro é sentido de longe e o lixo atrai ratos, moscas, baratas e gente...gente pobre, que não tem outra forma de sobrevivência.

Esse contingente cata materiais para vender e se alimenta de restos de comida estragada ou contaminada, lida com cacos de vidro, ferros retorcidos, resíduos químicos e tóxicos, ficando exposto a acidentes e doenças.

Além disso, nesses locais, verdadeiras “terra de ninguém”, prevalece a “lógica do mais forte”. O conflito pelos melhores materiais é constante e as pessoas se organizam numa estrutura extremamente verticalizada onde são comuns as brigas e mortes. Existe nos lixões a figura do “dono do lixo”, que identifica aqueles caminhões que fazem a coleta nos bairros de classe alta e que, por isso, trazem materiais com valor mais alto.

Dessa forma, auferem melhores resultados, reproduzindo uma estrutura de dominação baseada na força e no medo. Um outro ator sempre presente nos lixões é o comprador de materiais recicláveis. Foi possível, nas visitas de campo, identificar verdadeiros cartéis de compradores, que fixam o preço dos materiais, explorando ainda mais aquelas pessoas que não encontram alternativa de sobrevivência.

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O relato de uma catadora do aterro de Piracicaba foi contundente: “... chegou um rapaz que estava disposto a pagar mais pelos materiais. Um rapaz bom. Ele tentou fazer isto durante duas semanas, mas depois sumiu daqui. A gente ficou sabendo que os outros compradores colocaram ele pra correr. Isso aqui não tem jeito não, meu filho!”. (entrevista com Dona Elza, catadora no aterro controlado há mais de oito anos).

Um dos compradores que atua neste mesmo aterro, ao ser questionado sobre o seu trabalho, fez a seguinte declaração: “...nós ajudamos o aterro. Se não tivesse a gente aqui, esse aterro já tinha acabado faz tempo”. (Zé Luiz, comprador de materiais no aterro de Piracicaba há cinco anos). Apesar das considerações anteriores, o lixão é a forma mais utilizada para destino final de lixo no Brasil. Segundo pesquisa da ÁGUA E VIDA (1998), há lixões em 26% das capitais brasileiras, em 73% dos municípios com mais de 50 mil habitantes e em 70% dos municípios com menos do que isto. A falta de controle nos lixões faz com que, mesmo quando são envidados esforços para a retirada dos catadores (o que não se faz sem grandes conflitos, sendo necessário até o uso de força policial), estes voltem após algum tempo. Ou seja, os lixões, pela sua própria constituição, estimulam a presença de catadores no seu interior. Para o catador, a disposição dos resíduos no lixão é extremamente eficaz do ponto de vista da coleta do material.

Ignorando as péssimas condições de trabalho, essas pessoas vêem que nos lixões se concentram resíduos que podem ser separados e vendidos. Esta dinâmica, associada a um total descontrole da presença de pessoas dentro da área, estimula a permanência dos catadores. Alguns fazem, inclusive, cálculos baseados em uma racionalidade econômica assustadora, ainda que firmados no imediatismo próprio dos miseráveis: “...aqui no lixão eu ganho mais do que catando na rua.” (Dona Teresa, aterro controlado de Piracicaba).

Obviamente, essa situação implica na constatação de que não adianta apenas retirar os catadores, mas de se criar novas formas de inclusão social para essas pessoas que as estimulem a sair desses locais. É necessário que os catadores visualizem, em outra atividade, ganhos maiores do que os que eles têm separando materiais nos lixões e aterros controlados. 2.2 O lixo é um desperdício Do ponto de vista da degradação ambiental, o lixo representa mais do que poluição. Significa também muito desperdício de recursos naturais. O desenvolvimento das sociedades modernas trouxe, de forma incrível, uma inversão no sentido prático das embalagens. Se antes serviam para proteger os produtos, agora são veículos de comunicação que estimulam o consumo.

O resultado é um acúmulo crescente de resíduos, cada vez mais estranhos ao ambiente natural do planeta e que passa a ser depositado nos lixões/aterros. Desta forma, pode-se afirmar que os catadores de lixo, ao interceptarem e selecionarem parte do material reaproveitável que seria destinada a esses locais, prestam um serviço fundamental como agentes ambientais. Os materiais recicláveis (plástico, papel, metais e vidros) ficam difíceis de ser reaproveitados e perdem valor comercial quando misturados no lixo com a matéria orgânica (sobras de alimentos) e com rejeitos (lixo de banheiro, pilhas, lâmpadas, etc.).

Com a coleta seletiva, os materiais recicláveis são separados nos lugares onde o lixo é gerado – residências, escritórios, escolas, etc – e transportados e destinados para a

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reciclagem. Essa prática facilita e estimula a reciclagem, porque os materiais coletados separadamente, por serem mais limpos, têm maior potencial de aproveitamento.

Poucos municípios brasileiros têm sistema oficial de coleta seletiva de lixo e os catadores – adultos e crianças – são os responsáveis pela separação da maior parte dos materiais recicláveis, fazendo este trabalho informalmente na maioria das localidades. A catação de alimentos e de materiais para comercialização também ocorre nas calçadas das cidades brasileiras por catadores de rua. Estes atores, obrigados a realizar tal trabalho, além de não serem reconhecidos pela sociedade, sofrem a perseguição do poder público, uma vez que essa atividade provoca sujeira e conflitos nas ruas. A partir dessas considerações, pode-se afirmar que é cada vez mais necessário estimular os programas de coleta seletiva nos municípios, que devem incluir como atores fundamentais na construção dos caminhos alternativos do lixo os catadores. Elas levam, também, à formulação da tese sustentada pelo artigo: é necessária a articulação dos diferentes atores sociais, como prefeituras, Ministério Público, ONG’s, sindicatos, empresários, comerciantes, associações de catadores, entre outros, para o melhor encaminhamento das questões relacionadas à gestão dos resíduos sólidos no País. Nas diferentes arenas sociais (HANNINGAN, 1995) que caracterizam a questão ambiental no planeta, podem ser forjados os pactos necessários para promover processos de gestão que conciliem os interesses econômicos e sociais com a proteção ambiental.

Ao longo do trabalho de pesquisa foi possível conhecer algumas experiências que comprovaram tal hipótese. Foram visitados desde lixões nas piores condições possíveis, com grande número de catadores vivendo nos seus limites e expostos a condições sub-humanas de sobrevivência, até aterros sanitários concebidos desde o seu início de acordo com as normas ambientais vigentes no País.

Em algumas destas visitas pôde-se observar e entender os processos de articulação dos diferentes atores sociais, chegando-se à conclusão de que os melhores resultados são fruto de um esforço coletivo, onde a busca das convergências é capaz de superar as mais arraigadas desconfianças e limitações. 3 Experiências de coordenação da ação coletiva e gestão de resíduos sólidos A discussão sobre ação coletiva é relativamente antiga nas ciências sociais. Em um trabalho já considerado clássico, Mancur Olson afirma que ela é praticamente impossível de ocorrer, visto que o comportamento característico do ser humano é aquele do tipo “carona” (free-rider, no original).

Tal comportamento é o mais racional, do ponto de vista individual, já que na maior parte das ações coletivas os atores são muitos e variados, de tal forma que a não-participação de um ator, isolado, não será percebida pelo conjunto.

Dessa forma, afirma OLSON (1965), o comportamento racional é não participar dos esforços da ação coletiva e se beneficiar do esforço dos outros. Porém, como todos os atores racionais tendem a pensar dessa forma, logicamente a ação coletiva nunca é colocada em prática.

Esse frame teórico pode contribuir para o entendimento do problema da gestão dos resíduos sólidos. Nos diferentes centros urbanos, por mais que se tente articular uma ação coletiva que tenha como foco, por exemplo, a separação do lixo antes da sua deposição nas ruas para a coleta, a tendência, diria OLSON (1965), é que cada indivíduo, acreditando que a sua ação não será percebida pelos outros atores, não colabore com o esforço proposto.

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Como todos os atores pensam que são racionais, nenhum deles vai separar o lixo antes de colocá-lo porta a fora. Desse raciocínio deriva a idéia de que a articulação da ação coletiva tem um custo, ou seja, no caso da separação do lixo, existe um custo para estimular e conscientizar a comunidade a participar do esforço amplo de dar um melhor destino aos resíduos que cada um dos atores gera.

Isso passa a ser ainda mais importante nos grandes centros, onde a percepção individual dos espaços públicos é cada vez mais turva. Cada indivíduo acredita que o público é um problema do governo, do Estado, dos políticos, enfim de qualquer outro ator social que não ele, indivíduo. A partir das idéias de Olson, as soluções para tal dilema apontam para dois extremos opostos: a regulação central, geralmente por parte do Estado, que força os atores individuais a se comportarem de acordo com determinados padrões; ou os estímulos por meio da clara definição de incentivos econômicos para os atores que, se adotam determinados padrões de comportamento socialmente mais desejáveis, são recompensados economicamente.

A questão da disposição do lixo pode ilustrar de forma muito clara essas considerações: por um lado, o governo pode forçar os cidadãos a adotarem determinadas posturas, como por exemplo, a separação do lixo em seco e úmido. Contudo, o governo não tem condições de monitorar e fazer cumprir uma determinação deste tipo, uma vez que o custo desta ação seria muito elevado.

O governo poderia, também, estipular uma punição para aqueles que não cumprissem a determinação de separar o seu lixo, mas como fazer para monitorar quem cumpre ou não tal determinação?3 Por outro lado, os indivíduos podem ter estímulos econômicos para adotarem determinados tipos de comportamento. O mercado pode passar a remunerar aquelas pessoas que separam o lixo.

Um bom exemplo disso é a reciclagem de latas de alumínio. Se o Brasil é um dos países que mais recicla esse material, com certeza não é por força de qualquer lei, mas pela remuneração que tal atividade proporciona para uma parcela da população que não tem outro tipo de atividade mais lucrativa. Dessa forma, os cidadãos em geral se encontram entre dois extremos ao manipular as sobras do seu consumo: não recebem punição por dispor os resíduos todos juntos e também não recebem estímulo econômico para separá-los. Essa apatia aparente em relação aos resíduos sólidos pode ser quebrada, então, por meio da articulação dos diferentes atores, que passam a atuar junto à sociedade na busca de novas formas de coordenação da ação coletiva que suplantem os pressupostos de Olson. Como mostra OSTROM (1990), diversos exemplos espalhados pelo mundo demonstram que é possível a articulação de ações que têm como pressuposto básico a coordenação das ações individuais em torno de objetivos comuns.

Essa coordenação da ação coletiva sinaliza para os atores que a adoção de estratégias individuais cooperativas é mais interessante, tanto do ponto de vista individual quanto do ponto de vista coletivo, do que os comportamentos competitivos e/ou

3 Um exemplo de punição para aqueles indivíduos que não adotam o comportamento esperado é a multa para os motoristas que não respeitam o rodízio municipal de veículos.

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desinteressados no bem comum. Assim, são criadas redes de solidariedade (CASTELLS, 1997) que conseguem fazer com que “bens comuns” sejam produzidos4. 3.1 Cooperação na gestão dos resíduos sólidos: redes de solidariedade que acumulam capital social 3.1.1 O caso de Belo Horizonte/MG Um bom exemplo dessas redes de solidariedade forjadas a partir da articulação de diferentes atores sociais é o caso do município de Belo Horizonte. Na capital do Estado de Minas Gerais, há mais de dez anos a questão dos resíduos sólidos vem sendo discutida e encaminhada pela participação dos mais diferentes atores sociais.

Se num primeiro momento tal município enfrentava um problema sério com a grande quantidade de moradores de rua que tinham na catação de lixo a sua única forma de sobrevivência, com todas as conseqüências que tal atividade acarreta se feita de forma inadequada, como por exemplo, a sujeira nas ruas e os conflitos por espaços nas calçadas, atualmente esta parcela da população é um importante ator na formulação de políticas de gestão dos resíduos sólidos.

Organizados na Asmare (Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável), os trabalhadores deixaram de ser vistos como sujeitos indesejáveis para serem hoje percebidos como agentes ambientais do município. Porém, tal transformação não acontece do dia para a noite. Foi preciso muito luta e engajamento social de diferentes atores para que tal situação pudesse chegar a esse ponto.

A articulação de entidades como a Pastoral de Rua, a Cáritas (Organização Católica de Cooperação Internacional), a Fundação Interamericana (ONG), a Secretaria de Limpeza Urbana da Prefeitura (SLU/BH), o Sindicato dos Médicos de Belo Horizonte, escolas das redes pública e privada de ensino (que realizam campanhas de coleta seletiva de materiais reaproveitáveis), empresas privadas (que destinam suas sobras para a Asmare), permitiu a criação de uma densa rede de solidariedade que fez com que a gestão do lixo em Belo Horizonte se tornasse referência no Brasil. O trabalho da Asmare começou com a iniciativa de um grupo de irmãs beneditinas, em 1987, que passou a contatar os moradores de rua do município. Difíceis e às vezes agressivos, os catadores levaram muito tempo para aceitar a presença das freiras e dos membros da Pastoral dos Moradores de Rua, entidade vinculada à Igreja Católica e Cáritas.

Com o tempo, a importância da auto-organização foi aceita e reuniões de rua levaram a atividades de mobilização pelos direitos dos catadores. Eles próprios tiveram uma presença na discussão da implantação da coleta seletiva de lixo, algo sendo discutido para fazer parte da Lei Orgânica da cidade, mas sendo orientado em direção à iniciativa privada.

O resultado das mobilizações e articulações foi o reconhecimento institucional dos catadores como agentes privilegiados na cadeia de limpeza pública e no desenvolvimento sustentável da cidade.

4 Para uma definição de bens comuns, ver OSTROM (1990). Em síntese, pode-se afirmar que são aqueles bens que estão disponíveis para todos os atores. Uma vez produzido, ele está ao alcance de qualquer indivíduo, independente de ele ter participado da sua produção. Exemplos de bens comuns são a pureza das águas, a diminuição da poluição do ar, a conservação das florestas, entre outros.

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Em 1990, um terreno da Rede Ferroviária Federal foi ocupado por um grupo de catadores e suas famílias e lá se instalou também uma área de aglutinação de atividades a partir das quais a associação foi criada. Esta teria sido a história da Asmare se não fosse pelo trabalho iniciado em 1993, quando foi eleito na cidade um governo de perfil popular.

Por intermédio de sua superintendência de limpeza urbana, a prefeitura começou a trabalhar ativamente com os catadores, integrando-os em sua política de resíduos sólidos. Neste papel, o poder público incentiva o cooperativismo do grupo, não só cedendo três galpões na região central, que são utilizados como depósitos, mas também apoiando um conjunto de iniciativas que envolvem capacitação profissional, educação e empenho em garantir os elementos necessários ao resgate da cidadania.

Hoje, a Asmare é uma referência nacional que tem contribuído para o surgimento de experiências similares. Outras secretarias e coordenadorias da Prefeitura são também envolvidas, ajudando a negociar posse de terrenos ocupados e mobilizando vínculos com os serviços públicos em geral. A Asmare é organizada em diversas comissões, como a de Meio Ambiente, de Gestão do Empreendimento, Administrativa e Contábil. São realizadas assembléias mensais para a discussão e encaminhamento das decisões, num processo de tomada de decisão caracterizado pela horizontalidade e participação. Os materiais separados são comercializados por meio de licitações mensais, nas quais as empresas de reciclagem apresentam as suas propostas de preços. As propostas são abertas publicamente e a empresa que apresentar a melhor oferta leva os materiais naquele mês. Mais recentemente, foi constituído o Bar Re-Ciclo, que é um espaço da associação, todo decorado com materiais reaproveitados, que funciona semanalmente com apresentação de artistas populares. Esta foi uma alternativa de renda adicional para a entidade, que aproveita o reconhecimento conseguido no município para agregar valor às suas atividades.

É nesse espaço que são comercializados os produtos manufaturados nas oficinas da associação, como cadernos de papel reciclado, roupas feitas a partir de retalhos, brinquedos, artefatos decorativos, instrumentos musicais, entre outros. Os associados podem fazer as suas refeições na própria associação. Diariamente, a Oficina de Alimentação serve, no refeitório, almoço a um custo de R$ 2,00 por pessoa, preparado por uma equipe de ex-catadores ou parentes.

A experiência de Belo Horizonte encerra uma importante lição: o poder público, em vez de tratar os catadores como problema, os convidou a ser parte da solução, discutindo com eles os caminhos possíveis para que todos pudessem se beneficiar de tal atividade; as empresas passaram a destinar as suas sobras para a Asmare, que faz a separação e encaminha para o setor industrial de reciclagem os materiais reaproveitáveis; os catadores trabalham hoje em local digno, agradável, limpo; têm renda mensal média de R$ 400 a R$ 600 e, acima de tudo, têm novamente dignidade.

Trabalham e têm consciência de que prestam um serviço fundamental para a sociedade, querem e lutam para ser reconhecidos por isso, afirmando a identidade socioprofissional como “catadores”.

As escolas, como forma de incentivar as crianças, desenvolvem programas de educação ambiental e fazem coleta seletiva do lixo, que é encaminhado para a Associação; a Secretaria de Limpeza Urbana tem uma divisão que só se preocupa com a mobilização social em torno da gestão dos resíduos sólidos e que promove campanhas, eventos

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educativos, festas e apresentações de teatro, onde o tema básico é o envolvimento da comunidade no esforço coletivo por uma melhor destinação aos resíduos sólidos. Uma síntese atual dos compromissos da parceria estabelecida entre os diversos atores sociais envolvidos com a questão da gestão dos resíduos sólidos em Belo Horizonte pode ser vista no trecho apresentado adiante5: “O trabalho desenvolvido com os catadores de papel visa à capacitação desse segmento, reconhecendo-o como agente prioritário da Coleta Seletiva e, portanto, trabalhador autônomo de limpeza urbana no município. A parceria estabelecida com os catadores garante: - Formalização do apoio por meio de convênio entre a Secretaria Municipal de

Desenvolvimento Social, a Mitra Arquidiocesana e a Asmare, garantindo o fornecimento de vales transportes e uniformes aos associados, e viabilizando pessoal administrativo;

- Aluguel de dois galpões de triagem (equipamentos com prensas, balanças, etc.) na área central e construção de um galpão na Avenida do Contorno;

- Apoio ao processo de organização da Cooperativa por meio da realização de cursos de capacitação;

- Aumento na produção de recicláveis por meio da doação de materiais advindos dos Postos de Entrega Voluntária – LEV’s – espalhados pela cidade;

- Capacitação da Asmare para realização da Coleta de Recicláveis dos LEVs de forma sistemática e eficiente;

- Trabalho de conscientização da população sobre a importância do catador para a limpeza urbana propiciando um início de reconhecimento da sociedade;

- A progressiva retirada de pontos críticos de catadores que ocupam o espaço da rua como local de moradia e trabalho”.

3.1.2 O caso de Porto Alegre/RS Se em Belo Horizonte o principal problema não era a presença de catadores de lixo em lixões e sim nas ruas do município, em Porto Alegre a situação era caótica no final da década de 80. O curta-metragem Ilha das Flores chocou a população brasileira ao mostrar a cruel realidade da vida das pessoas que viviam nos lixões da região, competindo com os porcos por um pouco de comida. A partir da década de 90, sendo a gestão municipal assumida por uma administração mais progressista, Porto Alegre passou a construir uma verdadeira referência nacional de gestão de resíduos sólidos. Porto Alegre é um município com aproximadamente 1,4 milhão de habitantes (1.360.590, segundo o Censo Demográfico de 2000), dos quais 53% são mulheres. Apresenta uma taxa de alfabetização de 96,7% entre a população com dez ou mais anos de idade. É uma das sete capitais do País onde o percentual de domicílios com lixo coletado atinge 100%6.

Diariamente são geradas na cidade 1.600 toneladas de resíduos sólidos, as quais 900 toneladas correspondem a resíduos domiciliares. Estima-se que 270 toneladas sejam potencialmente recicláveis.

5 Adaptado do texto: O catador de papel na coleta seletiva de Belo Horizonte. http://www.lixo.com.br/BH.htm 6 As demais são Aracaju, Curitiba, Florianópolis, Goiânia, Cuiabá e Brasília.

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Atualmente, com a coleta seletiva, 60 a 70 toneladas desses materiais (22% a 25% do potencialmente reciclável) são distribuídas diariamente entre nove unidades de reciclagem, formadas por diferentes associações de recicladores.

Ali, esses materiais são separados, beneficiados, armazenados e comercializados. A venda do produto obtido gera renda para 456 mulheres e homens envolvidos no processo e para suas famílias, o que abrange um universo de 1.800 pessoas. Essas nove unidades de reciclagem e as pessoas que estão diretamente envolvidas nas suas atividades diárias, estão conectadas a uma população de aproximadamente 350 mil pessoas.

Trata-se dos moradores que, ao separar os materiais recicláveis, constituem um elo primordial dessa cadeia, podendo ser considerados tão responsáveis pelo seu sucesso quanto as pessoas diretamente ligadas às unidades de reciclagem.7

As unidades de reciclagem, em Porto Alegre, estão diretamente ligadas à coleta seletiva, na concepção e na trajetória de implantação. Como elemento de destaque dentro do Sistema de Gerenciamento Integrado, a coleta seletiva é uma alternativa ecológica que desvia do destino em aterros sanitários ou lixões, resíduos sólidos que podem ser reciclados. A implantação da coleta seletiva no município teve início em 1990, beneficiando naquele ano apenas um bairro (Bairro do Bom Fim). Nos anos seguintes, a iniciativa se ampliou gradativamente, atingindo em 1996 todos os 150 bairros da cidade. Desde o início da iniciativa, o mecanismo principal consiste na coleta porta a porta, realizada pelo DMLU (Departamento Municipal de Limpeza Urbana) uma vez por semana em cada bairro, por meio de veículos adaptados para esta finalidade – cuja dinâmica se distingue da coleta regular realizada diariamente. Cabe portanto à população armazenar seus materiais recicláveis durante uma semana, como um procedimento habitual. Somente em 2000 foram instalados os PEVs (Postos de Entrega Voluntária), lugares especiais onde a população fornece os resíduos separados8. Os PEVs assumem caráter complementar, permitindo que se torne desnecessário à população aguardar o dia da coleta para disponibilizar os materiais, constituindo uma opção para os moradores das ruas onde o caminhão da coleta seletiva ainda não transita. A implantação da coleta seletiva foi diretamente ligada a um amplo processo de divulgação intensamente capilar, juntamente com um programa de educação ambiental nos bairros, vilas populares, condomínios, empresas, hospitais, órgãos públicos e escolas – com ênfase especial nestas últimas. O projeto em pauta caracteriza-se por seu duplo eixo: a) o equacionamento da problemática urbana da destinação de resíduos potencialmente recicláveis; e b) a geração de trabalho e renda para segmentos especialmente vulneráveis ou excluídos do mercado formal. A percepção dos ganhos ambientais e sociais, que caracteriza o cunho socioambiental do projeto, mostra-se como um elemento já fortemente presente no imaginário tanto dos agentes promotores no âmbito governamental quanto da população local, além dos segmentos diretamente envolvidos nas unidades de reciclagem.

7 Mais uma vez, a idéia de redes de solidariedade aparece como um indicativo de sucesso de projetos deste tipo. 8 A exemplo do que ocorre em Belo Horizonte.

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O destino dos materiais é o mesmo: as unidades de reciclagem, geridas por associações que, à exceção de uma, foram constituídas ao longo dos anos de vigência do projeto, isto é, a partir de 1990. Em 1985, alguns anos antes da implantação da coleta seletiva no município, havia sido formada, na Ilha Grande dos Marinheiros, a então denominada Associação das Mulheres Papeleiras e Trabalhadoras em Geral, com o apoio da Igreja Católica. Entre 1991 e 1997, outras sete associações e unidades de reciclagem foram constituídas, com diferentes dinâmicas e características sociais, porém tendo como aspecto comum sua inserção progressiva no projeto, que acompanhou a própria expansão da coleta seletiva no município de Porto Alegre.

Já em 2002, veio a se constituir uma nona unidade, a Oficina de Triagem do Hospital Psiquiátrico São Pedro, que conta, entre os participantes de sua Associação de Recicladores, tanto com moradores da comunidade vizinha quanto com pacientes da unidade de saúde. Esse breve salto no tempo entre a primeira e a última entidade, longe de identificar uma tendência, serve para ilustrar a diversidade do universo aqui focalizado. Esta diversidade impede que sejam formuladas receitas prontas a respeito de como lidar com a questão dos resíduos sólidos. Ao contrário, o que se aprende com tal processo é a necessidade de adequar os projetos às reais necessidades e dinâmicas das comunidades. Essas associações de recicladores são constituídas juridicamente, dispondo de autonomia administrativa e operando mediante estatutos e regimentos internos específicos, onde se definem suas normas de gestão e funcionamento. As associações são as gestoras das unidades de reciclagem, mantendo convênios com as prefeituras para a utilização dos espaços e equipamentos e o recebimento de cargas diárias de material proveniente da coleta seletiva, sendo as quantidades e mecanismos de entrega definidos caso a caso. Cada unidade define ritmos e jornadas de trabalho diferenciadas, mas em todos os casos não há qualquer hierarquia entre as tarefas, seja no sentido de atribuição de valor simbólico diferenciado, seja no sentido da remuneração auferida. A relação estabelecida é de natureza não-salarial e sem vínculo empregatício, embora seja formalizada pelo elo com a associação. Os recicladores recebem pelo seu trabalho por meio de um sistema de partilha no qual cada entidade estabelece os seus critérios. Ainda que não se deva idealizar o caráter democrático da organização do trabalho e da gestão nas unidades, merece atenção o cunho extremamente horizontal do processo, sem prejuízo das funções específicas assumidas pelas pessoas eleitas para as tarefas de direção9. Entre as atividades desenvolvidas no âmbito do projeto, vale destacar o aspecto da capacitação do público envolvido nas associações e respectivas unidades de reciclagem. Este é um componente que vem assumindo proporções crescentes ao longo dos últimos anos.

Pode-se dizer que, no quadro atual, há um processo diversificado e permanente de capacitação que atinge o conjunto dos associados. Incluem-se nesse rol: cursos de formação básica (programa de alfabetização e escolarização); cursos de formação técnica (ligados às atividades de classificação e manuseio de resíduos em diferentes modalidades); cursos de desenvolvimento de habilidades de gestão (cooperativismo, auto-gestão, contabilidade, comunicação, etc.). 9 Uma diferença significativa quando se compara com a situação dos lixões descrita no capítulo anterior.

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Um dos principais resultados do projeto de Porto Alegre é a combinação entre benefícios sociais e ecológicos, constituindo-se uma realidade que aponta para a possibilidade de se construir caminhos alternativos rumo a processos mais sustentáveis de desenvolvimento.

Por um lado produziu-se, com a implantação e consolidação da coleta seletiva e o reaproveitamento pelas unidades de reciclagem dos resíduos dali originados, um ganho de preservação ambiental de amplas proporções. Por outro, centenas de mulheres e homens, em situação anterior de exclusão ou extrema vulnerabilidade face ao mercado de trabalho, vieram a ter acesso a oportunidades de ocupação e renda regular, benefício que se reflete nas condições de vida de suas famílias.

Ainda que os rendimentos auferidos sejam baixos, já não se trata de um quadro de indigência ou calamidade. Mais do que garantir a sobrevivência desse contingente, criaram-se condições para a sua inclusão social e acesso aos direitos básicos de cidadania. A experiência de Porto Alegre aponta, ainda, para avanços organizacionais (um bom exemplo é a criação, em 1998, da Federação das Associações de Recicladoras do Rio Grande do Sul-Farrgs); na construção de parcerias, envolvendo os mais diferentes atores como o poder público, universidades, empresas privadas e organizações da sociedade civil; a evolução em termos de participação decisória e política.

Aliados a esses ganhos, contudo, permanecem desafios, como o de articular melhor a cadeia produtiva dos materiais recicláveis, em especial aqueles relacionados com a “disputa pelos resíduos”, por uma parcela de catadores clandestinos, não-associados às cooperativas, que “desviam” parte do material para um empresariado “submerso” e descomprometido com as questões socioambientais; e aqueles relacionados à comercialização, uma vez que as cooperativas ainda vendem seus produtos para intermediários, que ficam com grande parcela dos ganhos10. 3.1.3 O caso de Paulínia/SP

Em Paulínia, por iniciativa da empresa privada Estre, que implantou o aterro sanitário, foi contratada uma cooperativa de prestação de serviços já existente no município e proposta uma parceria que tem dado certo. Atualmente, a cooperativa já opera as instalações e a prefeitura iniciou o processo de coleta seletiva.

A empresa se encarregou de instalar todos os equipamentos para a triagem do material, como esteira, prensas e balanças, em local coberto e com condições dignas de trabalho. Já a cooperativa cuidou de selecionar as pessoas que já operavam com lixo no município e eram cadastradas na entidade. Estas, passaram por cursos de capacitação custeados pela Estre.

O que chama a atenção, nesse caso particular, é a iniciativa da empresa em atuar junto a um segmento que, em tese, não seria o seu principal foco. Ao contrário, por ter implantado o aterro sanitário em uma área privada, onde anteriormente não havia catadores, a empresa não teria qualquer problema relacionado a conflitos com essas pessoas.

Tal iniciativa demonstra, talvez, o amadurecimento de parte do empresariado brasileiro, que começa a entender as questões socioambientais não mais como uma restrição aos seus negócios, mas como um verdadeiro trunfo.

10 Nesse sentido, a experiência da ASMARE, que organiza licitações mensais para que as empresas de reciclagem concorram por meio de propostas lacradas para aquisição dos materiais, é muito interessante.

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Nesse caso, em particular, a iniciativa privada ganha ao impedir que parte dos materiais potencialmente recicláveis seja destinada ao aterro, fazendo com que a vida útil do empreendimento se amplie.

Ao estabelecer uma parceria com a cooperativa e instalar os equipamentos para a seleção de materiais, evitando a contratação de mão-de-obra própria, a empresa pode auferir resultados melhores ao associar a responsabilidade social à sua imagem institucional.

Por outro lado, pessoas que anteriormente não conseguiam ter acesso ao mercado de trabalho, agora têm a oportunidade de desenvolver uma atividade que gera renda e resgata a sua cidadania. Tal iniciativa influenciou a prefeitura do município, que iniciou os trabalhos para implantar um processo de coleta seletiva e educação ambiental.

Essa postura pró-ativa do empresariado pode contribuir sobremaneira para o encaminhamento das questões relacionadas à gestão dos resíduos sólidos no Brasil, uma vez que demonstra a viabilidade de projetos que aliam os aspectos ambientais, sociais e econômicos.

3.1.4 O caso de Itatiba (SP)

Em Itatiba foi implantada uma cooperativa em abril de 2001, embora a coleta seletiva já existisse desde 1995, atendendo quase 100% da população. Antes da existência da entidade, era a prefeitura municipal quem fazia a separação e vendia os materiais, por meio de leilões, forma considerada burocrática demais. Além disso a operação não ocorria adequadamente, uma vez que os funcionários não tinham estímulos econômicos para realizarem eficientemente o serviço.

Atualmente a cooperativa possui 28 famílias cadastradas, com 29 pessoas trabalhando. Os cooperados recebem, em média, R$ 300 por mês e passe para o transporte público. Todos têm à disposição luvas, uniformes e equipamentos de proteção. “Estamos muito contentes com esse trabalho”, afirma Regina, participante do projeto há um ano. Antes, era catadora nas ruas. “Aqui, o trabalho é bem melhor”, elogia.

A prefeitura faz a coleta seletiva com caminhões próprios e destina os materiais recicláveis para a cooperativa comercializar. As ações são articuladas pelos departamentos de Meio Ambiente e de Ação Social. Outro fruto desta ação conjunta é o programa de alfabetização que está sendo implantado para os membros da cooperativa e conta com a ajuda de professores voluntários. Esses exemplos, selecionados das diversas visitas de campo realizadas, demonstram a importância da cooperação entre diferentes atores. Em algumas situações, a iniciativa é do poder público; em outras, é de organizações da sociedade civil; há, ainda, as ações do setor privado, que reflete uma tendência muito importante de comprometimento dos empresários mais esclarecidos, que passam a adotar posturas pró-ativas no enfrentamento de questões problemáticas da sociedade.

Os relatos confirmam duas das afirmações feitas anteriormente. A primeira, de que é possível articular diferentes atores sociais em torno de questões que são, por sua própria natureza, coletivas. A segunda demonstra que existe um custo para se pôr em prática tais ações e que ele deve ser arcado por todos os interessados, ou seja, é preciso conseguir que os comportamentos do tipo “carona” sejam evitados. Empresas, governos, organizações da sociedade civil, enfim, todos têm de assumir parte dos custos desse processo de geração de um bem comum.

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3.2 Síntese analítica dos modelos de organização relacionados à coleta de materiais recicláveis. Este item sintetiza e analisa os principais modelos de organização relacionados à atividade de separação e destinação de materiais recicláveis. Eles são tipos ideais, ou seja, a realidade é muito mais complexa do que os modelos apresentados, que devem ser entendidos aqui como uma forma de simplificar a análise. 3.2.1 Coleta seletiva pelo poder público e entrega nas unidades descentralizadas

Nesse modelo de gestão de resíduos sólidos, o poder público é o responsável pelas atividades de coleta seletiva e entrega dos materiais potencialmente recicláveis para unidades descentralizadas, gerenciadas por associações ou cooperativas de recicladores. Estes têm o trabalho facilitado, uma vez que o material é previamente selecionado pela população e está em melhores condições de reutilização.

No entanto, tal sistema implica na necessidade de grande comprometimento do poder público para a sua efetivação, especialmente no investimento em programas e projetos de educação ambiental , uma vez que a principal parceira das cooperativas passa a ser a população.

Então, a dependência das organizações dos recicladores em relação ao poder público é elevada, tornando-se um dos principais desafios desse modelo de gestão de resíduos sólidos.

3.2.2 Coleta nas ruas e postos de entrega voluntária (PEV) pelos próprios catadores organizados em cooperativas

Esse modelo de organização, exemplificado pela experiência de Belo Horizonte (Associação de Recicladores), tem como principal característica a coleta de “porta em porta” pelos próprios catadores. A eficiência do processo é menor do que quando tal atividade é feita por caminhões (geralmente da prefeitura), porém induz ao contato direto da população com os catadores. Esse contato acaba diminuindo a distância social entre esse segmento e a sociedade, que passa a entender e valorizar o trabalho.

O material é coletado no início do período noturno pelos catadores, que circulam pelas ruas com carrinhos ou carroças. O material é separado, geralmente, no dia seguinte. Nesse modelo, a existência de locais apropriados para o depósito dos materiais recicláveis é fundamental, principalmente para garantir que as sobras não fiquem espalhadas pelas calçadas e ruas da cidade.

É um modelo de organização social do trabalho que, se por um lado é menos eficiente do que a coleta seletiva feita com caminhões da prefeitura, por outro confere mais autonomia para os catadores, que passam a identificar “fornecedores” de resíduos com quem estabelecem relações que são, em alguns casos, pessoais. O trabalho de “educação ambiental” junto à população é feito, dessa forma, também pelos catadores, talvez de uma forma muito mais eficaz.

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3.2.3 Coleta nas ruas pelos próprios recicladores desorganizados e competindo entre si

Por este modelo de gestão de resíduos sólidos, não podemos identificar qualquer traço de ganho para os catadores que não seja apenas o econômico. Eles reproduzem as formas gerais de competição entre os trabalhadores e são geralmente muito explorados pelos atravessadores.

Como não estão organizados, ou melhor, como competem entre si, não têm poder de barganha para negociar o preço com os compradores. Além disso, é comum brigarem pelos resíduos e deixarem materiais de menor valor espalhados pelas calçadas.

Os investimentos na organização social dessa parcela da população são, portanto, fundamentais. Como se observa na experiência de Belo Horizonte, em vez de tratar esse segmento como um problema, ele pode fazer parte das soluções para a melhor gestão dos resíduos sólidos dos municípios.

3.2.3 Coleta nos lixões

Sem dúvida alguma, o pior tipo de organização social relacionado à coleta, separação e destinação dos resíduos sólidos potencialmente recicláveis. Nos lixões, no meio da sujeira, as pessoas estão expostas a indignas condições de vida e trabalho. Este relatório aponta firmemente para a necessidade de erradicação dos lixões no País, fazendo, contudo, a ressalva de que é preciso buscar e implementar alternativas de geração de renda para as comunidades que vivem nesses locais. Não basta expulsar os catadores dos lixões, mas encontrar soluções que incluam socialmente essas pessoas. 3.2.4 Coleta seletiva e entrega em usinas de reciclagem dentro do aterro

A instalação de unidades de separação de lixo dentro das áreas dos aterros sanitários é uma das alternativas para evitar que parte dos materiais potencialmente recicláveis se perca e seja destinada ao aterramento. Diferente das unidades descentralizadas, essa alternativa é mais eficiente do ponto de vista da logística do transporte dos resíduos.

Porém, esse processo é menos interessante do ponto de vista da separação e da minimização das perdas: os operadores têm dificuldade em separar determinados materiais (como tampas de garrafa de vidro e de plástico, por exemplo), uma vez que, na esteira, o tempo para esta operação é pequeno. 4 Conclusões e recomendações As principais conclusões deste artigo apontam, como já foi demonstrado, para a necessidade de articulação dos diferentes atores sociais no enfrentamento da questão social envolvida na gestão dos resíduos sólidos. Uma importante inovação institucional é a criação dos fóruns Lixo e Cidadania. Operando nos âmbitos nacional, estadual e municipal, eles podem contribuir para novas formas de gestão de resíduos sólidos que incorporem os princípios fundamentais dos Direitos Humanos e da Agenda 21.

Em junho de 1998 foi criado o Fórum Nacional Lixo & Cidadania, formado por órgãos governamentais, ONG’s, entidades técnicas e religiosas que atuam em áreas relacionadas à gestão do lixo urbano e na área social. Os objetivos são: I) a erradicação do

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trabalho infanto-juvenil nos lixões, propiciando a inclusão social, com cidadania,; II) a geração de renda para as famílias dos catadores, prioritariamente na coleta seletiva; III) e a mudança radical da destinação final de lixo, acabando definitivamente com os lixões no Brasil (UNICEF, 2001).

Esses fóruns articulam diversos setores da sociedade para garantir a visão integrada do problema da gestão dos resíduos sólidos, abrangendo a dimensão do País e a sua diversidade. Participam organizações não-governamentais, promotorias da Infância e do Meio Ambiente, secretarias de Meio Ambiente, empresas privadas e escritórios do Unicef.

A experiência acumulada nos últimos anos nos fóruns Lixo e Cidadania apontam para algumas recomendações consideradas básicas para o melhor enquadramento da questão social nos projetos de implantação dos aterros sanitários no Brasil, como pode ser visto a seguir: 1- Devem ser erradicados os lixões no Brasil, visto serem uma forma imprópria de

destinação dos resíduos sólidos, tanto do ponto de vista ambiental quanto do ponto de vista socioeconômico;

2- Deve ser estimulada a formação de cooperativas e associações de catadores, uma vez que eles já desempenham um papel importante na seleção e destinação alternativa dos resíduos, contribuindo para a diminuição da quantidade de material encaminhada aos lixões e aterros. O catador de lixo é quem mais conhece a realidade da atividade de coleta seletiva, o que o torna um dos principais informantes para a formulação de políticas públicas para o setor;

3- A transformação dos lixões em aterros, que supõe a retirada dos catadores de lixo, deve ser acompanhada de incentivos para que essas comunidades encontrem novas formas de geração de renda, de preferência com a atividade de coleta seletiva, em condições adequadas de operação;

4- O poder público deve ser o principal animador dos projetos de coleta seletiva e gestão integrada de resíduos sólidos. Contudo, deve estimular a participação de outros atores sociais, como as organizações da sociedade civil e o setor privado;

5- O setor privado deve assumir progressivamente a sua responsabilidade pela geração dos resíduos sólidos. Se a sociedade pós-industrial se caracteriza pelo consumo crescente de materiais descartáveis, utilizados pelas indústrias como uma “comodidade” que atende aos desejos da sociedade, este setor deve também se responsabilizar pela destinação final dos resíduos que ele precisa gerar;

6- É necessária a implantação de programas e projetos de educação ambiental, visando a conscientização da população sobre a importância da destinação adequada dos resíduos que ela produz;

Essas considerações, quando introduzidas no âmbito dos projetos de geração de energia renovável a partir do gás metano, proveniente dos aterros sanitários das regiões metropolitanas do Brasil, levam também à formulação da recomendação de que é necessário que os futuros empreendedores do setor de energia renovável assumam responsabilidades sobre o futuro das comunidades que vivem da atividade da coleta e destinação alternativa de resíduos sólidos, uma vez que essas comunidades prestam um serviço do qual esses empreendedores se beneficiarão.

Dessa forma, uma pergunta recorrente no âmbito desse trabalho, é: “Podem os catadores participar dos projetos de geração de energia a partir dos resíduos dos aterros?”

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A resposta é afirmativa. Os catadores podem (e devem) participar dos projetos de geração de energia como um dos principais protagonistas na medida em que contribuem, por meio do seu trabalho, para o aumento do potencial de geração de gás metano. Nesse sentido, de forma indireta, eles ajudam no fornecimento da matéria-prima que será utilizada para a geração de energia.

Essa relação sintetiza, de forma emblemática, a noção de que o lixo é, na verdade, uma relação social. A categoria “lixo” só é válida quando se incorpora um juízo de valor que alguém faz sobre determinado material, ou seja, o que é considerado como “lixo” para alguns, é considerado como “matéria-prima” para outros.

Uma conclusão que se pode tirar a partir das discussões anteriores é que os melhores locais para se implantar projetos de geração de energia renovável são aqueles onde existem programas de coleta seletiva e destinação alternativa de resíduos sólidos. Do ponto de vista econômico porque nesses pontos, possivelmente, a quantidade de material inorgânico depositado seja menor do que onde tais iniciativas não existem. Do ponto de vista operacional, considerando-se que nesses locais os conflitos inerentes à questão dos resíduos sólidos estarão mais bem encaminhados.

Por fim, vale ressaltar que a solução para o problema da gestão dos resíduos sólidos no País passa pela necessidade de se ter uma visão integrada dos diferentes fatores que a influenciam. Na gestão participativa está o caminho para a construção de um futuro mais adequado para as sociedades humanas, que incorporem de forma definitiva os princípios de justiça social, viabilidade econômica e proteção ambiental.

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