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NOVAS NARRATIVAS DO CONTEMPORÂNEO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DO MOVIMENTO SLOW Anna Elizabeth Balocco * Resumo: Neste projeto, analisa-se criticamente o discurso do movimento slow nas novas narrativas do contemporâneo presentes na mídia impressa e eletrônica, com o respaldo teórico da Análise Crítica do Discurso. Para tanto, constituiu-se um arquivo de textos de diferentes registros simbólicos e foram investigadas as matrizes de sentido que informam este discurso e as condições de possibilidade para a sua emergência. O foco da análise recai sobre as relações interdiscursivas entre os textos do arquivo, identificadas mediante investigação de suas relações lexicais. Os resultados da pesquisa sugerem que as matrizes de sentido mais importantes no arquivo desta pesquisa são fornecidas por: a) um discurso crítico às tecnologias digitais; e b) um discurso crítico aos valores da cultura do desempenho e da produtividade. O discurso do movimento slow articulado no arquivo, em seus diferentes textos, é produzido de perspectivas diferentes e tem sentidos e valores sociais distintos. Palavras-chave: Discurso. Mudança social. Movimento slow. Interdiscursividade. 1 INTRODUÇÃO A Análise Crítica do Discurso aborda a linguagem e a produção de sentidos da perspectiva da mudança social (FAIRCLOUGH, 2003). Uma das marcas de mudança social na contemporaneidade é o fenômeno da aceleração temporal: todos já experimentamos a sensação de estarmos eternamente atrasados no cumprimento de nossas tarefas do dia a dia, de estarmos sempre correndo atrás do tempo. De onde vem esta sensação de defasagem entre nossas expectativas de tarefas a cumprir, de um lado, e de seu cumprimento efetivo? As explicações que remetem às novas tarefas digitais na sociedade da comunicação e da visibilidade midiática (administrar nossos e-mails, nossas listas de discussão, nossos Facebooks, Twitters, blogs ou fotologs) são suficientes para o entendimento da forma como nos relacionamos com o tempo na contemporaneidade? Ou a aceleração * Professora Associada da UERJ. Doutora em Linguística pela UFRJ, 2000. Email: [email protected].

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NOVAS NARRATIVAS DO CONTEMPORÂNEO:UMA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DO

MOVIMENTO SLOW

Anna Elizabeth Balocco∗

Resumo: Neste projeto, analisa-se criticamente o discurso do movimento slow nas novas narrativas docontemporâneo presentes na mídia impressa e eletrônica, com o respaldo teórico da Análise Crítica doDiscurso. Para tanto, constituiu-se um arquivo de textos de diferentes registros simbólicos e foraminvestigadas as matrizes de sentido que informam este discurso e as condições de possibilidade para a suaemergência. O foco da análise recai sobre as relações interdiscursivas entre os textos do arquivo,identificadas mediante investigação de suas relações lexicais. Os resultados da pesquisa sugerem que asmatrizes de sentido mais importantes no arquivo desta pesquisa são fornecidas por: a) um discurso críticoàs tecnologias digitais; e b) um discurso crítico aos valores da cultura do desempenho e da produtividade.O discurso do movimento slow articulado no arquivo, em seus diferentes textos, é produzido deperspectivas diferentes e tem sentidos e valores sociais distintos.Palavras-chave: Discurso. Mudança social. Movimento slow. Interdiscursividade.

1 INTRODUÇÃO

A Análise Crítica do Discurso aborda a linguagem e a produção desentidos da perspectiva da mudança social (FAIRCLOUGH, 2003). Umadas marcas de mudança social na contemporaneidade é o fenômeno daaceleração temporal: todos já experimentamos a sensação de estarmoseternamente atrasados no cumprimento de nossas tarefas do dia a dia, deestarmos sempre correndo atrás do tempo. De onde vem esta sensaçãode defasagem entre nossas expectativas de tarefas a cumprir, de um lado,e de seu cumprimento efetivo?

As explicações que remetem às novas tarefas digitais na sociedadeda comunicação e da visibilidade midiática (administrar nossos e-mails,nossas listas de discussão, nossos Facebooks, Twitters, blogs oufotologs) são suficientes para o entendimento da forma como nosrelacionamos com o tempo na contemporaneidade? Ou a aceleração

∗ Professora Associada da UERJ. Doutora em Linguística pela UFRJ, 2000. Email:[email protected].

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temporal pode ser explicada também por uma cultura que nos leva aconsumir sempre mais e em intervalos cada vez menores, sendo a pressaassim entendida como um valor da cultura consumista? Há ainda acultura do sucesso e do desempenho, que nos empurra a realizar cadavez mais, em diferentes áreas da vida social – ela poderia ter uma cota deresponsabilidade pela notória sensação de aceleração temporal queexperimentamos?

Não somente o tempo se acelera na modernidade, mas tambémrefere-se à aceleração temporal em vários tipos de registros, discursos esuportes discursivos, formando-se assim um sistema de representaçõestão insistentemente repetido que vai construindo um novo imaginário namodernidade tardia.

Tal é o peso e tais são as implicações deste sistema derepresentações e deste imaginário, que já se observa uma atitude críticaem relação a isso, na forma de enunciados que buscam sobrepor-seàquele sistema de representações, ou pelo menos dialogar com ele. Há,nos mais variados registros da vida social, críticas à aceleração social, quese constroem em torno de valores como alimentação consciente (slowfood), compromisso reflexivo e ético na ciência (slow science), qualidade nasrelações familiares e com amigos (slow love life), tempo para o namoro(slow dating), compromisso com uma mídia responsável e reflexiva (slowmedia), tempo para o sexo (slow sex). Que teias de relações podem sertraçadas entre estes discursos e aqueles característicos da cultura daaceleração, que convivem no mesmo paradigma e que com elesdialogam? E que sentidos, ou valores sociais, são colocados emcirculação pelo discurso do movimento slow?

Estas são algumas das questões abordadas neste trabalho, em quese buscam as matrizes de sentido que informam o discurso domovimento slow e as condições de possibilidade para a sua emergência.Neste artigo, destacam-se apenas dois fragmentos do arquivo depesquisa, para fins de exploração e ilustração do tema, tratado maisextensamente em outra publicação (BALOCCO, 2012, em preparação).Na seção a seguir, apresentam-se considerações teóricas e metodológicas,que preparam o terreno para a prática analítica.

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2 QUADRO TEÓRICO E METODOLOGIAPara responder às questões que orientam esta pesquisa, elegeram-

se os métodos e procedimentos da Análise Crítica do Discurso(doravante ACD), através de categorias analíticas como discurso, ordem dodiscurso e interdiscurso. No entanto, dada a natureza interdisciplinar dapesquisa em ACD, foi necessário ainda eleger alguns conceitos dasociologia para orientar a análise da mudança social, como aquelesusados na periodização da história (como modernidade e modernidadetardia); o próprio conceito de mudança social; e o de aceleraçãotemporal. Neste texto, apresentam-se apenas as categorias diretamenteusadas no desenvolvimento da análise aqui apresentada: na próximasubseção, apresenta-se a revisão teórica dos conceitos da sociologia; nassubseções seguintes, os métodos e procedimentos analíticos no âmbitoda ACD.

2.1 A mudança social e o conceito de aceleração temporalRosa e Scheuerman (2009, p. 2) argumentam que houve dois

períodos de aceleração temporal na história recente. O primeiro delesteve início no século XIX, entre 1880 e 1920, com o advento dasmáquinas e da industrialização; segundo os autores, para algunspesquisadores este primeiro período coincide com o advento damodernidade1. Este período de aceleração temporal foi seguido por umdebate público, no âmbito da esfera acadêmica, mediante análise das suascausas e efeitos, desenvolvidas por autores do calibre de Georg Simmel,Henry Adams, Filippo Marinetti (no seu Manifesto Futurista) e JohnDewey (p. 7).

O segundo período de aceleração temporal se deu com a quedados regimes comunistas e a revolução digital no final da década de 80 einício da década de 90 do século XX, o que mais uma vez gerou umdebate público sobre a aceleração temporal. Desta vez, o discurso sobrea aceleração temporal passou a articular-se ao debate sobre aglobalização, característica da modernidade tardia. Para os autores, odebate hoje em curso sobre a globalização pode ser entendido como“uma tentativa de se atribuir sentido às ramificações da aceleração social”(ROSA; SCHEUERMAN, 2009, p. 7).

1 Os termos ‘modernidade’ e ‘modernidade tardia’ são definidos adiante.

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O que se pode concluir destas observações é que o debate sobre aaceleração temporal ocorre em períodos distintos, é formulado a partirde diferentes perspectivas teóricas, e tem, portanto, valores e sentidosdiferentes. Sendo assim, uma pergunta relevante para esta pesquisa é: quevalores ou sentidos sociais hoje em circulação articulam-se ao discursodo movimento slow, que se fundamenta numa crítica à aceleraçãotemporal?

Outra questão importante diz respeito à forma de circulação desentidos deste discurso. As posições críticas à aceleração temporalformuladas no interior do discurso acadêmico (em bibliografiaespecializada na área da Sociologia) equivalem a questionamentos: 1) aodesenvolvimento tecnológico, científico, ou digital levado adiante deforma cega, sem avaliação de suas consequências éticas e políticas; 2) àexpansão ilimitada do crescimento econômico e da produtividade, com aconsequente precarização das relações de trabalho; 3) à crescenteinstabilidade das instituições e das associações, que ameaça a democracia:não há tempo suficiente para o debate público de questões de interessecoletivo (JESSOP, 2009, p. 158; SCHEUERMAN, 2009, p. 292).

No caso do chamado movimento slow, reproduzem-se osargumentos formulados no interior do discurso acadêmico, ou são-lhesacrescidos outros valores? Que princípios discursivos regulam acirculação de sentidos na modernidade tardia e que efeito têm sobre osvalores veiculados pelo movimento slow? Estas são algumas das questõesa serem analisadas neste trabalho. No entanto, antes de abordá-las, épreciso apresentar uma visão teórica da mudança social e dos conceitosusados na periodização da história.

Os termos ‘modernidade’ e ‘modernidade tardia’, nesta pesquisa,são entendidos a partir de Giddens (1991). Para o cientista social inglês,por modernidade entende-se o período histórico que se inicia na Europapós-feudal, marcado pelos seguintes traços: o advento da industrializaçãoe a racionalização da vida social a partir de um pensamento científico etecnológico, naquilo que veio a ser chamado de um ‘paradigmaracionalista, ou técnico-industrial’; o declínio de uma ordem socialtradicional e a consequente individualização da sociedade, com asubstituição de comportamentos prescritos pela tradição pela escolhaindividual de comportamentos e costumes.

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A modernidade tardia, por sua vez, tem início nas últimas décadasdo século XX (se é que é possível uma delimitação tão precisa) e recobreum período em que se observa a radicalização do processo deindividualização da sociedade: quanto mais nos afastamos da tradição ede noções herdadas, mais abre-se o leque de opções para os indivíduos,que precisam escolher os seus estilos e projetos de vida. Estas escolhassão feitas sob a égide de sistemas peritos2, que se espalham pelasociedade, não somente na forma de estudos acadêmicos divulgados pelamídia, mas também na forma de manuais, guias, livros de autoajuda,sessões de aconselhamento terapêutico, entrevistas, pesquisas de opinião.Todos estes elementos contribuem para um dos traços centrais damodernidade tardia, que é a sua reflexividade3.

Em Bajoit (2008, p. 127), encontro elementos para entender amudança social na modernidade tardia como um processo, não dedecadência cultural, que leva à dissolução dos laços sociais e àatomização da sociedade, mas como um processo de formação de umanova sensibilidade, que emerge dos escombros do paradigma racionalistaou técnico-industrial da primeira modernidade. Embora apresente traçosde exacerbação do individualismo, a modernidade tardia traz tambémindícios de um novo modelo cultural, fundado em valores como aharmonia ou integração entre o homem, a técnica e a natureza; oconsumo consciente; os limites éticos colocados à ciência; a valorizaçãodo civismo e de formas de participação política localizadas; o respeitopelo outro. Há uma mudança de modelo ou paradigma cultural em curso(uma mudança de sensibilidade, de práticas e formações discursivas) e aanálise do tempo aqui proposta busca tanto os sinais da ruína do modelocultural racionalista e técnico da primeira modernidade, quanto osvestígios da construção de um novo modelo cultural.

2 Ou ‘sistemas abstratos’, para usar um termo de Giddens, adotado para referência aos discursosteóricos e das ciências, que penetram praticamente todas as atividades sociais na modernidade.3 Este traço será retomado em outros momentos deste trabalho.

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2.2 Discurso, texto, ordem do discurso e interdiscurso

De uma perspectiva mais abrangente, o termo discurso pode serusado para referência a uma das dimensões da vida social, intimamenterelacionada a outros elementos da vida social. É este o sentido do termona expressão “Análise do Discurso” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 3), ouseja, análise da linguagem em uso na vida social. Mas o termo pode serusado de forma concreta para referência a visões de mundo distintas,como na expressão ‘o discurso do movimento slow, em que se nomeiauma perspectiva crítica sobre o fenômeno da aceleração temporal namodernidade tardia. Outros exemplos de discurso com este sentidoseriam: o discurso feminista, o discurso patriarcal, o discurso da ecologia,o discurso racista, dentre diversas outras possibilidades.

Também de uma perspectiva mais abrangente, os textos (sendo aconcretização da linguagem) são elementos de práticas sociais. Porém, deuma perspectiva linguística, os textos podem ser definidos comounidades semânticas, exibindo traços de coesão e coerência interna eexterna: os textos, enquanto unidades de sentido, estabelecem relaçõesde coesão e coerência entre os elementos que os compõem; por outrolado, também estabelecem, externamente, relações de coesão e coerênciacom outros textos presentes na cultura em que estão localizados.

O exame das relações externas que os textos mantêm entre si nãose faz sem a intermediação de categorias conceituais (e analíticas) queorganizam estas relações. Uma destas categorias é a da ordem do discurso,usada para a classificação de textos com base em critério institucional:assim, certos textos têm semelhança entre si em função dos domíniosfuncionais em que ocorrem na vida social. Aqui, reconhecem-se ordensdo discurso como: a ordem do discurso acadêmico, a do discursomidiático (ou da mídia), a do discurso jurídico, religioso, literário, aordem do discurso promocional (ou da propaganda), além de váriosoutros domínios funcionais.

O exame das relações entre textos também é realizado através dainvestigação da sua heterogeneidade, mediante adoção da categoria deinterdiscurso ou interdiscursividade, que propicia o desvendamento da formacomo os textos carregam os valores de determinados discursos. Apresença destes valores sociais (ou discursos) nos textos é identificadamediante análise da forma como os textos transformam os conceitos

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centrais de certos discursos (ou visões de mundo) em relaçõessemânticas de determinada natureza (FAIRCLOUGH, 2003, p. 128).Assim, por exemplo, os textos do arquivo desta pesquisa transformam osconceitos centrais do discurso slow em relações semânticas de oposiçãoentre diferentes temporalidades, na contemporaneidade: os valorespresentes no discurso do movimento slow enunciam-se a partir de umaperspectiva crítica à aceleração temporal, que marca a modernidade e seestende pela modernidade tardia, como será discutido adiante.

2.3 Critérios na constituição do arquivo de pesquisaO arquivo da pesquisa é composto de textos publicados na mídia

impressa e digital, constituído a partir dos seguintes critérios. Emprimeiro lugar, foi adotado um critério temático, que orientou a seleção detextos com enunciados remetendo ao recorte da pesquisa, centrado napercepção do tempo na contemporaneidade. Ainda no que diz respeitoaos critérios de constituição do arquivo, a coleta foi temporal, recobrindoum período de coleta inicial de dois meses, depois estendido por maisdois meses, na fase de consolidação do arquivo. Finalmente, registre-seque não foi adotado um critério genérico na seleção dos textos, ou seja,foram coletados gêneros discursivos de natureza variada, de diferentesregistros simbólicos (editoriais, cartas de leitor, textos publicados emcolunas, capas de revista, blogs, anúncios, sites, filmes, livros, ouquaisquer outros), entendendo-se que o objetivo da pesquisa é constituirum arquivo com elementos heterogêneos, reunidos sob a rubrica de suaorientação valorativa ou discursiva.

2.4 Descrição do arquivoUma descrição completa do arquivo, com identificação das

matérias publicadas em suporte impresso, pode ser encontrada emBalocco (2012, em preparação). Neste artigo, apenas dois textos doarquivo foram analisados (descritos nas seções em que são analisados),por restrições de espaço.

Ainda no que diz respeito aos métodos de coleta de dados eprocedimentos analíticos, é preciso acrescentar que a coleta de textos denatureza heterogênea remete ao conceito de arquivo, de Foucault, autorcujas ideias sobre a sociedade e poder influenciam fortemente a tradiçãoteórica aqui articulada.

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O arquivo é um construto metafórico usado para referência a umregime discursivo, ou ao sistema de normas que rege aquilo que pode (edeve) ser dito numa sociedade (FOUCAULT, [1969] 1987, p. 149). Oque caracteriza o arquivo é a dispersão de sentidos: os enunciados de umarquivo disseminam-se pelos diferentes registros de uma sociedade, nossuportes discursivos mais variados de produção, consumo e circulaçãode textos. Assim, por exemplo, o enunciado de que a característicaprincipal do mundo moderno é a aceleração temporal inscreve-se namídia, nas artes, no discurso médico, na publicidade, na literaturapopular e científica, para dar apenas alguns exemplos.

Desnecessário dizer que o arquivo é hoje relativizado e entendido,não como um sistema válido para todos os segmentos da sociedade,numa determinada época, mas como um regime discursivo disputadopor diferentes atores sociais. É esta noção que permite a investigação daforma como determinado regime discursivo dialoga com posiçõescríticas aos valores sociais que sustenta. No caso do regime discursivoque regula nossa percepção do tempo na atualidade e dos valores quesustenta, observa-se que os enunciados sobre a aceleração temporalinteragem com outros que conclamam à desaceleração nos ritmosmetabólicos da vida.

O termo ‘arquivo’ pode também ser usado de forma concreta parareferência a um conjunto de textos reunidos sob a rubrica de suaorientação valorativa, ou ideológica, como é o caso do conjunto detextos reunidos nesta pesquisa. Neste sentido concreto, a noção dearquivo permite a relativização dos dados coligidos pelo pesquisador, quetraz as marcas do lugar de produção da pesquisa. Por exemplo, outropesquisador voltado para o estudo do discurso do movimento slow,produzindo pesquisa a partir de outro recorte teórico, coligiria umarquivo com características distintas, entendendo-se assim que o arquivonão é um dado prévio à pesquisa, mas parte constitutiva dela4.

4 Para Meyer (2001, p. 16), a pesquisa na ACD desenvolve-se num processo de “feedback contínuoentre análise e coleta de dados”, o que corrobora as afirmações apresentadas sobre a relatividade doarquivo.

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2.5 Procedimentos analíticos

Quanto aos procedimentos analíticos, estes são baseados natradição hermenêutica, que informa o quadro teórico aqui articulado. Ahermenêutica é uma tradição analítica voltada para a inferência eprodução de relações de sentidos, distinguindo-se assim dos métodos deexplicação causal adotados nas ciências naturais. Para o círculohermenêutico, o sentido de um elemento só pode ser apreendido (oupostulado) a partir da sua relação com o todo de que faz parte (MEYER,2001, p. 16). Isto significa que um texto, por exemplo, não pode serentendido fora das suas relações com o contexto em que é produzido.

Neste entendimento, procedeu-se ao levantamento de enunciadossobre aceleração/desaceleração temporal nos textos que compõem oarquivo desta pesquisa. O objetivo deste levantamento é identificarrelações entre estes textos, do ponto de vista de sua interdiscursividade, ouseja, do ponto de vista da forma como são relacionados em função dedeterminado discurso, ou visão de mundo. A identificação dessas relaçõesinterdiscursivas foi feita com base na investigação lexical, commapeamento dos campos semânticos ativados nos textos5 e nacaracterização de discursos protagonistas e antagonistas6 a partir dasrelações semânticas de oposição entre a pressa e o tempo lento domovimento slow.

Nas seções a seguir, são introduzidos fragmentos do arquivo depesquisa e a prática analítica a partir da qual serão feitas consideraçõespreliminares sobre o discurso do movimento slow na contemporaneidade.

3 O MOVIMENTO “SLOW SCIENCE”

Do arquivo desta pesquisa, foram destacados dois textosdivulgados na mídia digital, para ilustração da prática analítica. Emprimeiro lugar, aborda-se analiticamente o texto intitulado “Slow ScienceManifesto”, acessado em 10/julho/2011, e postado pela Slow ScienceAcademy, de Berlin, conforme Anexo 1.

5 No quadro teórico (Linguística sistêmico-funcional) que informa a análise textual no âmbito daACD, entende-se que as relações discursivas realizam-se como relações semânticas, que por sua vezsão instanciadas como relações lexicais, colocando em funcionamento o princípio da realização queestrutura os diferentes estratos da linguagem (HALLIDAY, 1994).6 Para os conceitos de discursos ‘antagonista’ e ‘protagonista’, veja-se Fairclough (2003, p. 126).

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Esse manifesto é assinado por cientistas alemães, que seresponsabilizam por um movimento que começou na Alemanha e pareceganhar adeptos no mundo acadêmico (Folha de São Paulo, matéria sobreo Slow Science Movement, 08/08/2011). O neurocientista JonasObleser, do Instituto Max Planck, declarou à Folha de São Paulo que omovimento que lidera é uma iniciativa “[...] de neurocientistas queluta[m] para que o modelo midiático de produção científica seja revisto”.

Para responder à primeira questão de pesquisa, sobre as matrizesde sentido que informam o discurso slow em diversos domínios da vidasocial, foram adotados procedimentos para a caracterização dos campossemânticos que constituem o texto e das relações semânticas articuladasentre eles. A identificação de campos semânticos é um procedimentosimples, que se desenvolve a partir da consideração do léxico neleativado.

Observa-se a ocorrência de dois campos semânticos no texto emconsideração: o do fazer científico e o do mundo digital. No primeirodeles, observa-se referência à ordem do discurso propriamente dita (ofazer científico na academia), instanciado oito vezes através do termo“science”, uma vez através do termo “accelerated science”, uma vezatravés do termo “science blog”, seis vezes através do termo “slowscience”, uma vez através do termo “natural sciences”, uma vez atravésdo termo “academy”; e, finalmente, uma vez através do termo“humanities”.

Observa-se ainda referência a práticas discursivas característicasdeste domínio discursivo, através dos termos “peer-review journalpublications”, “research”, além de referência a traços que o caracterizam,como “specialization” e “disciplines”, todos instanciados apenas uma vezno texto.

No que diz respeito aos sujeitos que desempenham estas práticasdiscursivas, há ocorrência do termo “scientists” (instanciado duas vezesapenas), mas referenciado anaforicamente quinze vezes através dopronome “we”, além de três vezes através do pronome “us” e duas vezesatravés do pronome “our”.

Outro campo semântico articulado no texto é o da mídia digital,através dos termos “blog” (instanciado uma vez isoladamente e uma vezno sintagma nominal “science blog”) e “twitter”, usados em oposição

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aos termos que caracterizam o fazer científico: “we don´t blog, we don´ttwitter”, “we take our time”, “we think”, “we digest”.

Embora haja a articulação de dois campos semânticos distintosneste texto (a prática científica e prática midiática digital), observa-se apredominância do léxico relacionado à primeira, que estrutura o texto esustenta a sua direção argumentativa. A caracterização do modo defuncionamento do fazer científico nas academias em oposição ao modode funcionamento das práticas discursivas no mundo digital (“We don´tblog. We don´t twitter”) fornece ao leitor pistas para a identificação desua valoração ou posicionamento discursivo: trata-se de um texto queinstancia um discurso crítico à aceleração temporal.

Há várias outras pistas para a identificação das matrizes de sentidoque informam este texto: o próprio conceito de tempo é instanciadoinúmeras vezes no texto, sob diferentes formas e segundo duasvalorações distintas, que emergem da relação de oposição entre oscampos semânticos. Na primeira delas, associada aos valores da práticacientífica caracterizada como “slow science”: “We take our time”,“Science needs time to think”, “Science needs time to read”, “time tofail”, “it creeps about on a very slow time scale”, além de várias outras.Na segunda ordem de valoração, o conceito de tempo associa-se aosvalores da cultura midiática (“We don’t blog, we don’t twitter”); aosvalores da cultura empresarial, ou do discurso do trabalho (“media andPR necessities”); aos valores da cultura da ciência aplicada à saúde e comvistas à prosperidade de uma nação (“research feeding back into healthcare and future prosperity”).

Neste texto, o discurso slow manifesta-se como uma crítica aofazer científico na contemporaneidade, que parece adotar os valores dacultura digital, uma cultura de tempo ágil, acelerada, marcada pelo fluxoininterrupto da informação. O termo “science blog” é apenas umexemplo da forma como a cultura midiática infiltra-se pela academia,com suas práticas discursivas e seus valores: tanto isto é verdadeiro que ogênero “blog”, de uso circunscrito à ordem do discurso midiático,aparece nesta expressão com seu uso ampliado (o gênero “blog” passa aser usado na ordem do discurso acadêmico: “science blog”).

Outro índice da posição discursiva adotada no texto pode serencontrado no enunciado a seguir: “We do need time to misunderstand

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each other, especially when fostering lost dialogue between humanitiesand natural sciences”. Observa-se que o enunciado constrói uma relaçãode oposição entre os valores de um discurso disciplinar7 (o das“humanities”) àqueles do discurso das ciências naturais (“naturalsciences”). Embora este enunciado tenha posição secundária no texto,em relação aos valores da cultura digital, ele sustenta criticamente odiscurso do Slow Science Movement: no interior do discurso acadêmico,é amplamente reconhecido (embora nem sempre aceito) o papel dashumanidades no encaminhamento de questões éticas sobre odesenvolvimento científico nas áreas da saúde, da medicina e dastecnologias. Em geral, estas questões dizem respeito à necessidade de umtempo ampliado para a avaliação dos efeitos e do alcance das novasdescobertas.

Neste ponto, seria possível argumentar que a cultura midiáticaprevê as condições de possibilidade para a emergência do discurso slow: ajulgar pela forma como a ordem do discurso midiático (especialmente odigital) é articulada no texto, o discurso da desaceleração temporalreclamado pelo Movimento Slow Science tem como principal alvo oritmo acelerado do fazer científico, impulsionado por demandas queemergem dos valores da cultura digital. No entanto, esta interpretaçãodeve ser adiada, para que seja possível retomá-la a partir dos resultadosda análise do discurso do movimento slow em outras áreas da vida social.

Assim, na seção a seguir, para efeito de contraste com osresultados da análise deste texto, introduz-se o texto de apresentação doblog “Slow love life”.

4 O BLOG “SLOW LOVE LIFE”

O blog “Slow love life” (Anexo 2) é mantido por DominiqueBrowning, uma jornalista que trabalha por conta própria, depois devários anos ligada a diferentes instituições. No seu blog, a jornalistadefende um ritmo de vida desacelerado, com tempo para realizar asatividades do dia a dia de forma mais atenta, dando atenção aos seuspequenos detalhes (primeira parte do texto, intitulada “Welcome”).

7 O termo ‘discurso disciplinar’ é usado para referência não somente à divisão entre áreas doconhecimento no mundo acadêmico, mas principalmente para referência às culturas, valores ecódigos distintos que orientam o fazer científico na academia.

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A seguir, no texto “What is slow love? Sprigs on your desk”,postado em 15 de setembro de 2011, observa-se a ocorrência de doiscampos semânticos: o das atividades do dia a dia, de um lado, e o domundo do trabalho, de outro. No primeiro, a ordem do discursomobilizada no blog é a das relações interpessoais próximas, fora deambientes institucionais. É neste domínio discursivo, em que o indivíduose relaciona com o mundo de forma sensível e solidária (“Slow lovemeans engaging with the world in a considered8, compassionate way”), eem que a atividade central é a “apreciação” da beleza de cada momento(“appreciating the miraculous beauty of everyday moments”), que searticulam os valores positivos que caracterizam a posição discursiva dajornalista. São eles: “a natureza interdependente da vida” (“celebratingthe interconnected nature of life”), “a beleza milagrosa dos momentosdiários “ (“the miraculous beauty of everyday moments”), uma rotinaatenta (“the practice of daily mindfulness”), os focos de beleza [em tornode nós] (“give ourselves a spot of beauty”).

No segundo campo semântico, tematiza-se o mundo do trabalho,que se encontra em relação de oposição ao primeiro, através davaloração negativa de seus termos: “cubículos escuros” (“Many of usspend hours in front of computers, or work in drab cubicles”);“escritórios feios” (“in ugly offices”).

Permanecendo no blog, observa-se a ocorrência do textointitulado “Where to find me”, que traz vários elementos da ordem dodiscurso promocional: há ocorrência de formas verbais no imperativo,que caracterizam os textos nessa ordem do discurso, cujo propósito éorientar a ação do leitor, levando-o eventualmente a consumir. No casodo texto em discussão, o produto a ser consumido pode ser um website(“visit my website“), ou uma biografia (“find my biography”). Mas otexto anterior também contém elementos do discurso promocional,como na referência ao “vaso de Frances Palmer” e no convite a ler arevista Connecticut Cottages and Gardens, que inclui um texto de Palmermostrando o seu trabalho em terracota.

Há ainda referência ao trabalho de um fotógrafo, Sandi Fifield, e aum livro seu a ser lançado, Between Planting and Picking, além de menção

8 Na verdade, a forma correta aqui, em inglês, seria “considerate” e não “considered”, como estágrafado pela autora do blog.

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ao fato de que o livro do fotógrafo contém um texto seu, da gerente doblog Slow love life.

Para finalizar, há no blog dois campos semânticos em oposição: odas atividades do dia a dia e o do mundo do trabalho. Observa-se ainda,em relação à heterogeneidade constitutiva do texto, que o blog articulaos discursos midiático e o promocional. Se no caso do blog anterior opropósito do texto examinado é claramente indicado pelo seu título:“The Slow Science Manifesto”, ou seja, o de divulgar um manifesto(entendido como uma carta de princípios do movimento Slow Science),no caso deste blog a identificação do seu propósito comunicativo centralé mais complexa. Trata-se de um site de vendas apenas? Ou é possívelconsiderar este blog como um dispositivo de vendas sofisticado, em quealguns produtos concretos são anunciados (o vaso de Frances Palmer, arevista de decoração e jardinagem, o livro de fotografia), mas em que se“vende” também um estilo de vida?

Na seção a seguir, retomam-se estas considerações, relacionando-as às duas questões de pesquisa: quais as matrizes de sentido queinformam o discurso do movimento “slow”? E quais são as condições depossibilidade para a sua emergência?

5 CONCLUSÕES

O manifesto do Slow Science e o blog Slow love life mantêmentre si relações de interdiscursividade, que se revelam imediatamentenos seus títulos (“slow science”, “slow life”): ambos instanciam umdiscurso crítico ao fenômeno da aceleração temporal, observado emvárias áreas da vida social (na academia e no fazer científico, no mundodo trabalho, na mídia, nas rotinas do dia a dia). A matriz de sentido maisimportante nestes textos é, assim, fornecida pelas críticas à aceleraçãotemporal.

No entanto, o manifesto e o blog falam de tempos diferentes eremetem a conceitos distintos de aceleração temporal. De que aceleraçãotemporal se fala nestes textos? No manifesto, a aceleração resulta doprogresso tecnológico-digital e de um fazer científico guiado pela buscade resultados rápidos: o movimento Slow Science pretende resgatar osvalores de uma temporalidade lenta e autorreflexiva (“a very slow time

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scale”) para a ciência, ameaçada pelo ritmo acelerado da cultura digital epor demandas de produtividade. Constrói-se, no manifesto que instanciao discurso do slow, uma relação polarizada entre o tempo da ciência, deum lado, e o da cultura digital e da cultura do trabalho, de outro.

Já no blog, a aceleração temporal tematizada é a dos ritmos devida, que resulta numa percepção de tempo experiencial marcado pelacompressão das atividades e experiências do dia a dia (ROSA, 2009, p.85): atividades como comer, dormir, interagir com a família, passear,parecem perder espaço hoje para as atividades produtivas (“our busy,productive days”, no blog). O blog constrói uma relação polarizada entreo tempo experiencial e o tempo do trabalho: este último invade o tempoda família e dos amigos.

É, portanto, a mesma matriz de sentido, mas os discursosarticulados são distintos: têm perspectivas e valores diferentes. Num, odiscurso slow tem como alvo principal, ou discurso antagonista, osvalores da cultura digital (embora também tematize, numa posição deantagonista, os valores da produtividade); noutro, o discurso antagonistafunda-se nos valores da cultura do trabalho e da produtividade.

Assim, o exame preliminar do arquivo desta pesquisa sugere que odiscurso slow articula-se a sentidos advindos de várias áreas distintas, dasquais duas são apontadas neste trabalho: no âmbito da hegemonia dacultura digital, com seu ritmo acelerado (conforme análise do manifesto);e no que diz respeito ao tempo existencial, ou metabólico, que sugereque os valores do mundo do trabalho (“produtividade”) infiltram-se nomundo da família e dos afetos, provocando uma aceleração dos ritmosda vida.

Antes de serem apresentadas generalizações sobre ofuncionamento e o modo de circulação de sentidos do discurso domovimento slow, é necessário um exame exaustivo dos textos quecompõem o arquivo da pesquisa. No entanto, é possível instigar adiscussão sobre o papel e os efeitos deste discurso, colocando-se aseguinte questão: qual o alcance e a efetividade de um discurso que temcomo característica principal o aglutinar-se a valores sociais os maisdiversos, em diferentes lugares de fala e em diferentes registrossimbólicos?

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E, finalmente, é possível responder provisoriamente à questão dascondições de possibilidade para esse discurso, encaminhando-se asseguintes considerações para posterior escrutínio. O discurso expressonos textos do movimento slow parece refletir e construir uma novasensibilidade, que se traduz numa atitude crítica aos valores damodernidade e ao seu paradigma técnico-industrial. Essa novasensibilidade não pode ser entendida apenas como uma crise passageiradaquele paradigma, mas como o embrião de um novo sistema de sentido(BAJOIT, 2008, p. 127), que encontra no conceito de slow uma superfíciediscursiva para agregar novos valores sociais, como a demanda de umareflexão ética sobre os limites do fazer científico, para dar um exemploapenas, do arquivo da pesquisa.

No entanto, estas posições críticas aos valores da modernidadesão por vezes apropriadas de forma superficial em várias áreas (como noMovimento Slow Sex, ou mesmo no blog Slow Love Life aquiapresentado), perdendo assim a sua força motriz. Fica, portanto, apergunta a ser respondida pela pesquisa: o princípio discursivo queregula a circulação de sentidos acionada pelo movimento slow, em seusdiferentes matizes, seria aquele da comodificação da linguagem operandona modernidade tardia (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 15),que tende a transformar os discursos críticos em produtos vendáveis(commodities), distanciando-os de sua matriz ético-político-ideológica?Uma espécie de tendência a transformar tudo em mais um discurso newage, entendido como uma fala desencaixada, válida para todos e paraqualquer um, sem um mínimo de história e narrativa compartilhadas?

Neste caso, o funcionamento discursivo do slow deveria serentendido como regulado pela lógica que critica: ou seja, o discurso doslow critica muitos dos efeitos possivelmente causados pelos valores deuma cultura da produtividade e uma cultura digital (aceleração dos ritmosde vida, aceleração cultural, aceleração da produção e do consumo), masé, ele próprio, um produto destes males. Desta perspectiva, o movimentoslow e seu discurso não é somente um diagnóstico da modernidade tardia,mas, também, um produto dela, ou uma de suas mercadorias.

No entanto, aqueles que adotam uma atitude crítica aos valores damodernidade, radicalizados ou levados ao extremo na modernidadetardia, encontram no discurso do movimento slow uma superfície

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discursiva para inscrever o seu desejo de mudanças. O seu desafio é o deescapar à lógica do sistema que criticam.

Não há dúvida, no entanto, de que a nova linguagem do tempo,flagrada no discurso do slow, é uma porta de entrada para o estudo dasrearticulações discursivas promovidas pelo profundo desejo demudanças que circula na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

BAJOIT, G. El cambio social: análisis sociológico del cambio social y cultural emlas sociedades contemporáneas. Tradução de Hernán Pozo. Madrid: Siglo, 2008.[ed. original francês Armand Colin, 2003].

BALOCCO, A. E. Os sentidos do tempo: análise crítica de um arquivo docontemporâneo. Rio de Janeiro, 2012, em preparação.

FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research.London: Routledge, 2003.

______; CHOULIARAKI, L. Discourse in late modernity: rethinking CriticalDiscourse Analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 3. ed. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1987. [ed. original francesa 1969]

GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991.[ed. original inglesa Polity Press, 1990]

HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar: second edition.London: Arnold, 1994.

JESSOP, B. The spatiotemporal dynamics of globalizing capital and their impacton state power and democracy. In: ROSA, H.; SCHEUERMAN, W. E. (Orgs.).High speed society: social acceleration, power and modernity. Pennsylvania: ThePennsylvania State University Press, 2009.

MEYER, M. Between theory, method and politics: positioning of theapproaches to Critical Discourse Analysis. In: WODAK, R.; MEYER, M.(Orgs.). Methods of Critical Discourse Analysis. London: Sage, 2001. p. 14-31.

ROSA, H.; SCHEUERMAN, W. E. (Orgs.). High speed society: social acceleration,power and modernity. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press,2009.

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ROSA, H. Social acceleration: ethical and political consequences of adesynchronized high-speed society. In: ROSA, H.; SCHEUERMAN, W. E.(Orgs.). High speed society: social acceleration, power and modernity. Pennsylvania:The Pennsylvania State University Press, 2009.

SCHEUERMAN, W. E. Citizenship and speed. In: ROSA, H.;SCHEUERMAN, W. E. (Orgs.). High speed society: social acceleration, power andmodernity. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 2009.

ANEXOS

Anexo 1: MOVIMENTO SLOW SCIENCE

THE SLOW SCIENCE MANIFESTO

We are scientists. We don’t blog. We don’t twitter. We take ourtime.

Don’t get us wrong—we do say yes to the accelerated science ofthe early 21st century. We say yes to the constant flow of peer-review journal publications and their impact; we say yes toscience blogs and media & PR necessities; we say yes toincreasing specialization and diversification in all disciplines. Wealso say yes to research feeding back into health care and futureprosperity. All of us are in this game, too.

However, we maintain that this cannot be all. Science needs timeto think. Science needs time to read, and time to fail. Sciencedoes not always know what it might be at right now. Sciencedevelops unsteadily, with jerky moves and unpredictable leapsforward—at the same time, however, it creeps about on a veryslow time scale, for which there must be room and to whichjustice must be done.

Slow science was pretty much the only science conceivable forhundreds of years; today, we argue, it deserves revival and needsprotection. Society should give scientists the time they need, butmore importantly, scientists must take their time.

We do need time to think. We do need time to digest. We doneed time to misunderstand each other, especially when fosteringlost dialogue between humanities and natural sciences. We cannot

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continuously tell you what our science means; what it will begood for; because we simply don’t know yet. Science needs time.

—Bear with us, while we think.

http://slow-science.org/

Anexo 2: Blog SLOW LOVE LIFE

WELCOME

SLOW LOVE means engaging with the world in a considered,compassionate way, appreciating the miraculous beauty ofeveryday moments, and celebrating the interconnected nature oflife. SLOW LOVE LIFE is a place to share ways to practice dailymindfulness in the midst of our busy, productive days.

WHAT IS SLOW LOVE? SPRIGS ON YOUR DESK

Many of us spend hours in front of computers, or work in drabcubicles in ugly offices. It seems a small treat to give ourselves aspot of beauty, one that we must tend to. Even a vase of flowersneeds the attention of a gardener--fresh water daily, a cleanvessel, a neatly cut stem.

We can let the computer go to sleep, in the middle of ourworkday, and, for a few moments, let the flowers, however tiny,refresh our own brains. When I worked at Conde Nast, freshflowers were delivered to the offices every week. I got agorgeous, vibrant bouquet on my desk, courtesy of the admirableZeZe’s wizardry. (The company provided flowers for all itsmagazine reception areas and editors’ offices. Yes, we werecoddled.) But there were times when their presence would quietly

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fade into the background; I stopped seeing them, appreciatingthem.

Working to create your own bouquets makes a difference--andthe surprise arrival of a gorgeous arrangement still take my breathaway. I cannot take bouquets for granted, however tiny. I alwayskeep one next to the kitchen sink, and on my desk there is usuallyat least one sprig or stalk (I love the complex architecture ofbear’s breeches, for instance, and the leaf of Acanthus mollis iseven more dramatic). And in a vase by Frances Palmer--evenbetter! Speaking of, please check out the story, PDF on her site,about her amazing garden in the beautiful Connecticut Cottagesand Gardens magazine--and her new terra cotta work for anupcoming show with photographer Sandi Fifield. I wrote a piecefor Sandi’s new book, Between Planting and Picking.

But back to your bouquets...Buy flowers at the deli on the way towork. Gather them from fields, empty lots, your garden. Evenfarmer’s markets yield leaves that, rather than eat--or before theyhit your plate--might spend time in a vase. Make a drawing aflower, or have your child do it for you--a new one every coupleof weeks. Or stop at the market and buy a sprig of rosemary orlavender for your vase. And make sure the vase pleases your eye.

Every once in a while, stop what you are doing, and gaze intogreen depths. And wonder at the evolution that led to thecrinkled edge of a leaf.

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LABELS: SLOW LOVE MOMENT

11 COMMENTS POSTED BY DOMINIQUE AT 7:00 AM

where to find me

In addition to this blog, please visit my website to read House &Garden column archives. You can read my monthly column,Personal Nature, at the Environmental Defense Fund website.

Slow Love is excerpted in The New York Times SundayMagazine, and in Good Housekeeping, June issue.

Find my biography.

<http://www.slowlovelife.com/2011/09/what-is-slow-love-sprigs-on-your-desk.html>

Recebido em: 24/10/11. Aprovado em: 27/05/12.

Title: Contemporary narratives in the media: a critical analysis of the slow movement discourseAuthor: Anna Elizabeth BaloccoAbstract: This research project carries out a critical investigation of the slow movement discourse that ispresent in the press and electronic media, while drawing on the theoretical principles of Critical DiscourseAnalysis, which is primarily concerned with the role of language and discourse in processes of socialchange. To this end, an archive of texts from different symbolic registers was compiled (blogs,advertisements, books, texts published in the press and posted online) with a view to investigating thesocial values underlying this discourse, as well as the conditions of possibility for its emergence. Theanalysis focuses on interdiscursive relations in the archive, identified on the basis of an investigation oflexical relations in its texts. The results suggest that the archive features: a) a critical discourse on the newsocial media; and b) a critical discourse of the culture of performance and productivity. The slowmovement discourse articulated in these texts is produced from different perspectives and has distinctvalues and social meanings.Keywords: Discourse. Social change. Slow movement. Interdiscursivity.

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Título: Nuevas narrativas del contemporáneo: un análisis crítico del discurso del movimiento slowAutor: Anna Elizabeth BaloccoResumen: En este proyecto, se analiza críticamente el discurso del movimiento slow en las nuevasnarrativas del contemporáneo presentes en los medios de prensa y electrónica, con el respaldo teórico delAnálisis Crítico del Discurso. Para tanto, se constituye un archivo de textos de diferentes registrossimbólicos y fueron investigadas las matrices de sentido que informan este discurso y las condiciones deposibilidad para su emergencia. El foco del análisis recae sobre las relaciones interdiscursivas entre lostextos del archivo, identificadas mediante investigación de sus relaciones lexicales. Los resultados de lainvestigación sugieren que las matrices de sentido más importantes en el archivo de esta pesquisa sonsuministradas por: a) un discurso crítico a las tecnologías digitales; y b) un discurso crítico a los valores dela cultura del desempeño y de la productividad. El discurso del movimiento slow articulado en el archivo,en sus diferentes textos, es producido de perspectivas diferentes y tiene sentidos y valores sociales distintos.Palabras-clave: Discurso. Cambio social. Movimiento slow. Interdiscursividad.